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Politeia e virtude no republicanismo clássico

O INDIVIDUALISMO E SEUS CRÍTICOS

Politeia e virtude no republicanismo clássico* * O presente texto serviu de base de base para exposiçãofeita no Grupo de Teoria Política do Instituto de Estudos Avançados - EEA/USP, em 24 de maio de 1996

Mario Miranda Filho

Professor do Departamento de Filosofia da FFLCH/USP

Para os amigos Bolivar Lamounier e Frederico M. Mazzucchelli

Certamente, "in his Laws and Politicks (Plato) intends not to teach us how to erect Manufactures, and to increase Trade or Riches" escreve Algernon Sidney, o adversário de Robert Filmer, este zeloso defensor da monarquia de direito divino no século XVII na Inglaterra. Em seus "Discourses Concerning Government" composto em torno de 1680, Sidney não se equivoca quanto ao mais alto propósito de Platão: é o conhecimento de Deus que é para o filósofo "the only worthy object of man's desire"; é somente através deste conhecimento que podemos saber o que é o Bem e daí o que é a Justiça; por isso "no man can be just"; nenhum exceto, talvez, o filósofo-rei. Pois a monarquia absoluta de que fala Platão "is not a fiction". E, não foi seu discípulo Aristóteles quem escreveu que devido à desigualdade de dotes, virtudes e habilidades existente entre os homens é natural que um deles possa ser o "Lord of all citizens"? Quando um homem deste gabarito surge no mundo, diz honestamente Sidney, "t'were better for us to be guided by him, than to follow our own judgement; nay, I could almost say, t'were better to serve such a Master than to be free."

Mas alinhar-se com Platão e Aristóteles não é aproximar-se perigosamente das teses de Filmer que explicitamente se apoiava nos gregos em sua defesa da monarquia absoluta? Este é o dilema de Sidney: afastar-se da Grande Tradição que remonta aos gregos sem entretanto cair no extremismo da nova posição de Maquiavel. Assim Sidney se mostra dividido entre a necessidade de advogar contra Filmer as novas teses de que os homens ostentam uma liberdade e igualdade naturais, a qual só renunciam por consentimento e o reconhecimento, devido à sua dívida para com os antigos, de que pela lei da natureza o povo deve inclinar-se à virtude e sabedoria superiores. É bem verdade que o governo justo necessita de consentimento; mas, novamente, para Sidney, só há um consentimento justo, o de ser governado pelos melhores homens. O apego à republica levou Sidney a ser executado em 1683, vítima da reação Tory, acusado de traição. Ele pertence a esta plêiade de publicistas do século XVII que se convencionou chamar de "Classical republicans". Entre eles contam-se James Harrington e John Milton, o defensor da constituição mista. Claro, eles são assim designados porque são continuadores da grande tradição antiga da filosofia política, ou dos clássicos propriamente ditos, tradição esta que começa com Sócrates, Platão e Aristóteles. Continuadores em termos, pois, como acabamos de ver com o exemplo de Sidney, não é fácil conciliar nesta época a filiação aos antigos, com as presenças tão próximas de Maquiavel e, ao invés de Atenas ou de Esparta, da republica imperialista de Roma - tão ao gosto de Maquiavel - ou da republica comercial de Veneza.

Seja como for, estes publicistas da aurora dos tempos modernos testemunham sobre a vitalidade e o caráter persistente da grande tradição da filosofia política clássica. Segundo Thomas Hobbes, esta tradição se compõe de Sócrates, Platão, Aristóteles, Cícero, Sêneca, Tácito e Plutarco; outras listagens não deixam de incluir outros nomes, como Xenofonte e os Estóicos. Nosso ponto de partida é portanto Sócrates e o Socratismo. Não se trata de ignorar que antes deste que Cícero chama de pai da filosofia, o filósofo que fez a filosofia descer do céu, que antes de Sócrates os filósofos gregos já haviam refletido sobre política, como atestam os Pitagóricos e os Sofistas. Não obstante, estes "pré-socráticos" nem de longe atingiram a complexidade da elaboração de problemas políticos a que chegou o Socratismo. Pode-se dizer a esse respeito que Sócrates marca para a filosofia o momento em que ela se volta decididamente para a polis, refletindo sobre as dificuldades nascidas do face a face entre ambas. A figura histórica e, digamos desde já, lendária de Sócrates, marca na história da filosofia o momento em que a filosofia reflete sobre porque lhe tem sido negado o direito de cidadania e em que a polis começa, pelo menos teoricamente, a se tornar mais filosófica.

Para ver como isto se deu, tomemos nossa primeira testemunha cronológica sobre Sócrates, a peça As Nuvens de Aristófanes. Nela vemos Sócrates às voltas com os cidadãos comuns, o rude Estrepsiades e seu filho Feidipides, um playboy ateniense, ambos passando por dificuldades financeiras. Estrepsíades, que tem uma visão confusa acerca do mestre pensador, convencido de que mestres são úteis, vai procurá-lo com a intenção de aprender como se livrar dos seus credores! A primeira fala do filósofo dá o tom da diferença existente entre ambos, ao mesmo tempo em que assinala para o público a soberba do mestre: este se dirige a Estrepsíade com o vocativo: -"Ó efêmero..." Certamente, para quem se ocupa com coisas eternas através da ciência da natureza ou da matemática (quando Estrepsíade bate à porta Sócrates acabara de medir a distância do pulo da pulga), para tais sábios as coisas humanas não valem um momento de atenção. Notemos desde logo que entre as coisas eternas de que se ocupa o filósofo não se incluem os deuses pois, como diz seu novo discípulo, para Sócrates Zeus não existe, quem governa o mundo é o Turbilhão. Pai e filho são assim iniciados na filosofia do mestre. Logo aprendem que não só os deuses da religião oficial da cidade não existem, como também que a ética e a moralidade têm um frágil fundamento. Aprendem também a retórica, e logo o filho se revelará aluno muito superior ao pai, cuja estupidez o leva a abandonar as aulas. Munido de tais ensinamentos o pai não só recusa pagar seus credores como também passa a ofendê-los. Agora ridiculariza suas promessas e juramentos referentes aos débitos e aos deuses. Tudo parece bem até que surge uma controvérsia entre pai e filho. Este elogia a nova poesia de Eurípides, destacando uma cena de incesto entre irmãos. Mal o pai se recupera do choque e o filho se põe a surrá-lo. Pior, demonstra, graças à retórica, que o que faz é justo. Temos então a catástrofe: arrependido das lições que tomou e de suas nefastas conseqüências, o pai amaldiçoa-se, volta-se passionalmente contra Sócrates, reconhece a existência de Zeus e dos outros deuses e deita fogo ao Pensatório. Justifica sua ação como punição à impiedade do mestre. Mas, é evidente que o real motivo de sua fúria não foram as lições de Sócrates ou sua impiedade e sim o fato de que atribui a Sócrates a responsabilidade do ensinamento que facultaria ao filho espancar a mãe. Ele talvez pensasse com horror que o filho que bate na mãe bem poderia ter relações incestuosas com ela. Diante deste horror ele recua para a dupla esfera da família e da religião. Vejamos mais de perto o sentido deste recuo. A polis, diz-nos Aristóteles, é logicamente primeira em relação à família, pois é a finalidade desta. Mas a família é cronologicamente primeira em relação à polis: diz-nos a Ética a Nicômaco (l.VII,l 162a), "a família é anterior à polis e mais necessária do que esta". Entretanto a família necessita da polis para se desenvolver em segurança e é a proibição do incesto que obriga a família a transbordar para a esfera mais ampla da polis, Esta proibição é como que a ponte natural entre ambas. Não admira pois a indignação de Estrepsíade diante da ameaça do incesto. A percepção de que o abandono da religião oficial - que lhe permite furtar-se aos credores - pode entretanto acarretar concomitantemente a legitimação do incesto, age sobre ele como uma súbita iluminação. É só neste momento, quando sente na carne as conseqüências de sua transgressão, que ele se dá conta da relação sistemática em que se encontram as esferas da família, da cidade e da religião. O contato do obtuso Estrepsíade com a filosofia não poderia ser mais frustrante: não apenas não o livrou dos credores, como às suas penas acrescentou a subversão da vida familiar. Inútil e perigosa, ela bem merece a seu ver o calor das chamas. Aproximando os extremos, a soberba da razão do filósofo e a irracionalidade do simplório cidadão, Aristófanes nos faz rir. Mas basta lembrarmos das mal-humoradas advertências de Meletos a Sócrates no Menão para que o riso se mude em siso. Entre a época das Nuvens e a do Menão Sócrates foi efetivamente morto pela cidade. Há algo em comum entre Meletos e Estrepsíade? Sem dúvida: ambos são exemplos do cidadão comum, profundamente enraizado na vida familiar, patriótica, tradicional, religiosa de Atenas. Seu comportamento é pautado por ações estereotipadas, presididas por um espírito despojado de qualquer esforço de reflexão, incapazes de distinguir o que é sua posse do que é o bem. Vivem imersos numa espécie de conformismo natural, perfeitamente de acordo com as exigências impostas pela tradição. O contato entre este tipo de homem pragmático e o filósofo produz um curto-circuito no qual ambos se queimam. Poder prever tais conseqüências é também tarefa da reflexão. Mas o Sócrates de Aristófanes é como o Tales da anedota célebre contada pelo próprio Platão no Teeteto: "Tales observava os astros, e como tinha os olhos pregados no céu caiu num poço. Uma escrava Trácia, finória e espirituosa, zombou, contam, dizendo-lhe que ele porfiava por saber o que se passava no céu e descuidava do que estava à sua frente e a seus pés. A mesma anedota se aplica a todos os que passam sua vida a filosofar". (173a...). Instalado em seu Pensatório, Sócrates vive na cidade apenas fisicamente. Na verdade partilha de outra sociedade, onde só o que conta é o saber, único t&iac ute;tulo que reconhece: não tem pátria nem família, não é casado, ignora os vizinhos, sequer sabe se estes são homens ou "criaturas de outra espécie". Encapsulado neste divino solipsismo este Sócrates não ignora apenas os outros; ou melhor, ignora os outros porque desconhece a natureza humana, as várias pulsões, por vezes heterogêneas, de que se compõe a alma humana. Por isso, este puro teórico é incapaz de avaliar os efeitos devastadores que seu conhecimento ou, por outro lado, sua indiferença à prática e à justiça pode acarretar quando adotado indiscriminadamente por outros. Confiado em seu Logos (razão), ele se esquece do poder deste A-logon (irracional) que é a base da família, da camaradagem, das relações humanas amorosas, em suma, da cidade em seu dia-a-dia. Esquece-se portanto de que está à mercê da força, de uma força superior à sua e de que esta força é por vezes a Ultima Ratio e como tal o derradeiro argumento (Logos) da cidade. O fundamento desta força irracional se encontra é claro nas profundezas da alma humana; mas também no fato de que a maioria dos homens são, acima de tudo, membros desta comunidade de base, da família como vimos em Aristóteles, e não de uma comunidade de sábios que investigam a natureza a qualquer preço! Em suas relações com os simples cidadãos Sócrates é portanto imprudente em sua apoliticidade. Este especialista da razão ignora o poder obscuro das paixões - de que o poeta, ao contrário é especialista. Por isso sua atitude será vista como insuportavelmente desafiadora. A soberba com que se refere aos deuses da cidade será vista não como a procura de uma religião, digamos, mais razoável (não como a "reasonableness" com que filósofos como Locke ou Kant procurarão analogamente caracterizar o cristianismo). A religião de Sócrates é uma religião diferente da religião oficial; e por mais que ele tenha pretendido permanecer fiel ao espírito desta a sua é uma religião interpretada. E, como diz Merleau-Ponty, a religião interpretada é a religião suprimida. Vítima da inveja de parte dos mais velhos -sua iconoclastia atrai especialmente os mais jovens, os ainda não formados ou conformados - este Sócrates será visto como herético e como tal expurgado como tantos filósofos o foram. Mas não temos notícia de que poetas tenham sido processados ou expulsos de Atenas! Lição de prudência que Aristófanes ministra aos filósofos e que Platão será o primeiro a aprender. Decidida a se instalar para valer na polis a filosofia, a partir de Platão, terá que operar em si mesma uma conversão: reconhecer a existência de gente como Estrepsíade como necessária, de gente cujo comportamento errante é ditado, em grande parte, por forças irracionais constitutivas do homem e portanto também da cidade. Isto eqüivale a reconhecer que a política abriga em si um elemento irracional que aparece por vezes como um incontornável para a razão - seja ele o sagrado, seja a estupidez da força bruta em sua recusa de escutar o outro - com o qual o especialista da razão tem que se haver. Viver na polis não é pois viver numa comunidade de sábios virtuosos, nem de religiosos, ou de conformistas ou de guerreiros, ou de ricos ou de pobres. A polis é, como diz exemplarmente Aristóteles na Política, uma pluralidade.

Aristófanes nos apresenta um Sócrates que simboliza a primeira forma que a filosofia assumiu, isto é, a forma de uma investigação da natureza, uma Fisiologia. Sua filosofia se enquadra inteiramente no título hoje consagrado de filosofia "pré-socrática". O Sócrates de Aristófanes não é pois o Sócrates da grande tradição, aquele que operou uma revolução na história da filosofia. Mas o Sócrates do comediógrafo permite-nos ver com maior nitidez este novo Sócrates que emerge nas obras de Platão e de Xenofonte, ao mesmo tempo em que nos permite compreender melhor a tarefa de Platão. Diante da ingenuidade deste primeiro Sócrates, fica claro que se a filosofia quiser viver na polis - e onde mais ela poderia viver? - terá que adquirir melhor reputação. Para tanto terá que levar em conta que a cidade é constituída por homens que em sua maioria tem seu comportamento ditado por determinações instintivas, por paixões nem sempre redutíveis às exigências da razão. O conflito entre a cidade e a filosofia tem portanto duas faces: se a cidade ameaça a filosofia, esta por sua vez, não a ameaça menos. A soberba do Sócrates do comediógrafo, sua indiferença à vida e à justiça da cidade, consideradas coisas efêmeras, é interpretada pelo cidadão comum como desafio, ameaça. E neste debate é preciso dizer que ambas têm bons argumentos: o cidadão comum por não poder aspirar ao sublime a que aspira o filósofo, e este por não se conformar, em sua genialidade, com a mediocridade do simples cidadão. A filosofia necessitará portanto de uma retórica para se proteger. Condizente com isto, é um novo Sócrates que vemos surgir nas obras de Platão, Xenofonte e Aristóteles. Não que este novo Sócrates tenha deixado de ser ameaçador para a cidade. Não obstante ele será retratado em profundidade. Primeiramente isto quer dizer que ele não é mais ingênuo quanto à força, tanto da filosofia, quanto da irracionalidade, que pode vitimá-lo. Mas sobretudo, ele é agora integrado a vida da polis: é um cidadão, e não apenas porque é casado e pai de família. Trata-se agora de um cidadão exemplar, que exorta seus semelhantes a refletir sobre a excelência humana que busca incessantemente, a areté, a virtude, sendo ele mesmo a mais acabada incarnação desta areté: o mais justo dos homens segundo Platão. Mas esta busca não se faz mais no Pensatório e sim no contato direto com os homens: trata-se daquilo que propriamente se designa como a dialética socrática. Ela nasce de uma necessidade interna ao diálogo, fruto da percepção demonstrada da insuficiência de fundamento ou da incoerência presente nas opiniões políticas, morais e religiosas. O diálogo primeiramente evidencia pontos de vista, aspirações, facções e evolui no sentido de um ultrapassamento desta posições parciais, ultrapassamento este que se faz com o acordo dos interlocutores, deixando para trás opiniões entretanto respeitáveis, movendo-se em direção a um horizonte superior, assentado numa percepção reconhecidamente melhor. Este plano mais elevado a que se aspira é o que se designa genericamente como virtude. As virtudes têm dois traços gerais: são reais e raras. São qualidades de caráter raramente realizadas. Elas levam as paixões humanas a se exprimir em feitos singulares onde brilha o nobre, o belo (o que os filósofos designam como kalos). Os antigos distinguem quatro virtudes cardinais: coragem, moderação (sofrosyne, entendida como uma apropriada submissão dos apetites sensuais), justiça (significando respeito à lei e espírito público) e sabedoria, com ênfase nos aspectos práticos inclusive políticos, e uma ativa solidariedade para com os amigos e inferiores. As virtudes serão assim resultado de uma síntese que harmonizaria razão e paixões e na qual ambas se transformariam para melhor. Este melhor, este exemplar do belo, do nobre, síntese da razão e da paixão, é o Sócrates que vemos em Platão e nos clássicos. Sua vida e sua morte demonstram que não há nada de mais elevado por quê lutar do que a filosofia entendida como a prática da virtude. Quando lhe propõem liberdade política em troca da abstenção do filosofar Sócrates recusa. Com esta atitude mostra que a virtude é o objetivo final que não pode ser visto como meio; que ao contrário, tudo o mais, inclusive a vida e a liberdade, axiomas da filosofia moderna, devem se lhe submeter. Esta é também a razão profunda pela qual os antigos não deferiam o primeiro lugar, entre as constituições, ao governo popular, já que a liberdade que o caracteriza essencialmente, pode ser entendida simplesmente como o direito de viver como se quer, (cf. República VIII 562b,c,d,e) ou seja como licença e, no limite, recusa de qualquer forma de coerção. Mas a responsabilidade cívica requer educação; e esta por sua vez requer uma visão clara do que seja a excelência humana, a virtude. Os clássicos estabelecem também uma proporção entre a virtude e a possibilidade que diferentes "naturezas humanas" possuem de incorporá-la. Podemos então falar em graus de virtude. Distinguir-se-á portanto a virtude do filósofo - a virtude propriamente dita cujo modelo é Sócrates - da virtude cívica ou política (a areté politiké ), cujo exemplo seria o cavalheiro (o kaloskagathos). Informados por alguns séculos de ideologia igualitária não nos é mais fácil compreender esta questão da superioridade do filósofo e de seu lugar na comunidade política. Digamos brevissimamente que Platão e Aristóteles, à despeito de suas profundas convicções constitucionalistas, legalistas, nã o só não se furtaram a expor as conseqüências políticas desta superioridade, como foram além, proclamando a legitimidade da deferência do governo, em casos excepcionais, ao sábio-virtuoso. Este é talvez o traço socrático mais persistente e indelével da tradição clássica: o único título realmente inquestionável ao governo é a sabedoria virtuosa. Comparados ao regime do sábio governante todos os outros são, em maior ou menor grau, regimes de facções. Um será o regime baseado na riqueza, outro no número ou na força e assim por diante, sem que nenhum contemple o bem comum, único critério inquestionável, porque se confunde com a própria justiça. Mas é certo também que, por outro lado, estes mesmos filósofos não ignoraram, como veremos a seguir, os riscos a que a comunidade se expõe acatando este principio teórico. Talvez um exemplo histórico recente talvez possa auxiliar-nos a compreender o que está em questão na idéia da coincidência entre o poder e o saber, ou do governo absoluto da sábio. Um dos mais sólidos governos constitucionais do Ocidente pagou, como se sabe, e com ele toda a humanidade, um preço altíssimo por não ter sabido escutar os apelos de um homem de excepcional sabedoria: refiro-me à Inglaterra e a Winston Churchill na década de trinta. Pense-se apenas no que teria sido poupado de sofrimento se os sucessivos alertas de Churchill quanto ao rearmamento e as verdadeiras intenções do regime nazista tivessem podido se transformar em ação imediata. Apressemo-nos a ponderar que com tal exemplo, longe de crermos que teria sido melhor para os ingleses um governo tirânico, o que estamos tentando dizer é que comparada à sabedoria viva, imediata do sábio, a solução constitucional é sem dúvida sempre preciosa, mas inferior. A figura do sábio governante nos torna portanto conscientes dos limites da política em sua melhor forma, ou seja, no regime constitucional moderno. Ora, assim como a constituição ou o governo limitado pela lei substitui a sabedoria viva, assim também o cavalheiro terá, na teoria política clássica, a função de substituir o sábio virtuoso. E aqui também, digamos desde logo, tal substituição não se fará senão sob severas limitações. O melhor exemplo antigo destas limitações nos é mostrado no Econômico de Xenofonte. Nesta obra vemos Sócrates dialogando com o mais ilustre representante da sociedade civil de sua época, o cavalheiro Ischomaco. Sócrates o procura porque quer saber o que é o perfeito cavalheirismo, esta incarnação do nobre e do belo na sociedade civil. Logo aprende que o perfeito cavalheiro tem como atividade econômica básica a agricultura. Sendo um cavalheiro, esperar-se-ia que este fazendeiro tivesse como propósito maior de sua vida, não tanto o ganho, quanto o que é nobre, o que conduz ao bem comum. Mas Ischomaco se põe logo a tecer loas a seu pai, que era uma espécie de super-fazendeiro, mas que na realidade vivia da compra e venda de fazendas. O pai de Ischomaco transformara portanto uma atividade-meio em fim, transformara a fazenda em mercadoria. Assim, o próprio filho, seguindo os passos do pai, estaria já em vias de transformar a economia (literalmente, arte de administração da casa) em crematística, arte ou habilidade de aumentar indefinidamente seu próprio dinheiro. Ou por outra, na medida em que o cavalheirismo se define como busca preferencial da honra, Ischomacos está deixando de ser um perfeito cavalheiro. Mas poderia ser muito diferente? Sabemos que só em Esparta um cavalheiro poderia se dedicar plenamente ao que lhe é digno, como diz o próprio Xenofonte na República dos Lacedemonios. É que esta elite, os esparciatas, era sustentada pelos periécos e sobretudo pelos escravos hilota, já que toda atividade econômica lhes era interditada. Mas Esparta se inscrevia entre as sociedades mais arcaicas da Grécia. Estados mais modernos, como Atenas, comportavam uma latitude econômica bem mais ampla, facultando a seus cidadãos o acesso a atividades econômicas e crematísticas.

A sabedoria é o único título realmente insuspeito ao poder. Mas a coalescência do filósofo e do governante é rara. Seu melhor substituto na sociedade é aquele cujo nome diz tudo: belo-e-bom (kaloskagathos), o cavalheiro. Mas assim como a sabedoria política é inferior à sabedoria filosófica, assim também o cavalheiro é limitado quanto à virtude: ele pode fazer a economia desandar em crematística. Refletindo sobre a política a filosofia encontra problemas, soluções e novos problemas. A filosofia aparece na figura de Sócrates como autêntica consciência dos problemas e das alternativas fundamentais da existência humana, inclusive em sua dimensão política. Consciência dos problemas... afinal não é este justamente o sentido da máxima socrática: sei que não sei, isto é, conheço os limites do conhecimento?

Vemos também desde já qual será a "solução" filosófico-política para a questão da melhor sociedade: o melhor seria um governo baseado no único título inquestionável: a sabedoria. Ora, na ausência ou na impossibilidade do filósofo-rei, da sabedoria viva, a única solução consistente é a de um governo limitado por leis: leis sábias e conducentes à virtude. Mas que homens se incumbirão de implantar tais leis? Os melhores, os mais educados, os mais elevados cidadãos , os cavalheiros, representantes no plano da sociedade civil, do virtuoso por excelência, o filósofo. Estes, graças a sua boa educação estariam em condições de administrar as leis com equidade - epieikes (justa medida). Mas como vimos, os cavalheiros nem sempre resistem a tentação do "amor celeratus habendi". Qual é então a lógica que subjaz à idéia do regime constitucional presidido pelos cavalheiros? Ou seja, porque deferir o governo de preferência a um patriciado urbano que tira seu sustento da propriedade agrícola? Para entender esta concepção é preciso lembrar primeiramente que o mundo antigo viveu sempre sob as severas limitações de uma economia de escassez, onde a pobreza era portanto um fenômeno inscrito na ordem das coisas. Por outro lado, a ciência antiga, eminentemente contemplativa, jamais formulou o projeto de uma dominação técnica da natureza nos moldes baconiano-cartesianos. Só um tal progresso técnico é capaz de criar as condições para emancipar o homem do reino da necessidade, construindo uma sociedade de abundância de onde a pobreza pode ser banida ou sensivelmente reduzida. Mas não custa lembrar também que um tal poder posto à disposição do homem abriga, como hoje sabemos, potencialidades imprevisíveis. Portanto também aqui novamente é preciso sabedoria e virtude para lidar com a força realmente colossal posta à nossa disposição pela ciência moderna. Neste quadro então a solução pensada pelos antigos de um governo constitucional limitado por leis e presidido pelos mais educados - ou um regime misto - não merece o olvido a que tem sido sistematicamente relegado pelos contemporâneos, sobretudo se pensarmos nos resultados a que chegamos, através das alternativas, à direita e à esquerda, em nosso século. Recordemos enfim que a partir do século XVII a engenharia institucional republicana, com seu sistema de divisão dos poderes, do checks and balances, os modernos não procurarão menos assegurar aos gentlemen-farmers os postos de liderança da república. Certamente, isto se fez num quadro diverso daquele da antigüidade. Em particular, como se sabe, dois novos princípios, de enormes conseqüências, foram introduzidos: a idéia hobbesiana de igualdade natural de todos os homens e a atribuição da soberania ao povo. E com o desenvolvimento do comércio e da indústria uma segunda elite, mais urbana e ligada a este novo surto acabaria por rivalizar ou predominar sobre a elite agrária (landed gentry). Mas como a soberania popular se realizava através do sistema representativo, de algum modo reaparecia aqui o dilema da teoria política do mundo antigo: lá como cá não se pode pura e simplesmente deferir o governo aos não-educados (note-se que distingo aqui a teoria política da política antiga propriamente dita, isto é, da democracia, onde não havia pré-condições educativas para a ocupação dos postos de governo). Assim, John Locke dirige seus tratados de educação aos gentlemen, estes mesmos que são chamados a representar o soberano, o povo. Toma como modelo a antigüidade greco-romana. Recomendando a leitura dos clássicos ele escreve: "Latin I look upon as absolutely necessary to a gentleman". Em eco a John Locke, Alexander Hamilton, refletindo sobre as mesmas dificuldades um século depois, observa no Federalista que serão representantes do povo, ao lado dos merchants os membros das learned professions, porque, característicamente, estes últimos "não têm nenhum interesse exclusivo na sociedade" e podem assim pensar "nos interesses gerais da sociedade". Espera-se assim que sejam eleitos aqueles que possuem "most wisdom to discern, and most virtue to pursue the common good of society". Mais de um milênio depois das reflexões políticas de Platão, Xeno-fonte e Aristóteles, sabedoria e virtude, associadas ao bem comum, continuam, ainda que conteúdos novos, a ser requisitos da boa república na figura do gentleman.

A filosofia mostra desde os primordios que a razão é o que há de mais sublime no homem, mas apercebeu-se logo de que ela era vítima fácil da desrazão na medida em que não conseguia se estruturar como um poder na polis. O poder político, por sua vez, desandava freqüentemente em ações cuja violência chocava o bom senso, como nos é dado ver em Tucídides. A solução mais óbvia para o dilema posto pela condenação de Sócrates consistia na construção de uma cidade fisosófica, onde o filósofo fosse o rei. Solução fácil teoricamente, mas inteiramente descabida na prática (embora um sociólogo-rei seja hoje mais aceitável.) Nela as potências irracionais bio-sociais, como Eros, as exigências egoísticas presentes na vida familiar, a filáucia etc. seriam contidas graças a um sistema educacional de rigor adamantino, assentado sobre uma razão absoluta que não recua sequer diante do emprego da mentira, ainda que nobre! Esta é a "solução" que vemos na república de Platão. O princípio que a organiza é consistente e talvez se possa dizer que nele encontramos o primeiro enunciado do conceito de Estado. Que ele seja consistente é o que nos garante Kant ao escrever na Crítica da Razão Pura sobre a república: "uma constituição cuja finalidade é a maior liberdade humana fundada sobre leis em que a liberdade de cada um subsista ao mesmo tempo que a liberdade de todos (...) eis uma idéia necessária que deve servir de base não somente às grandes linhas de uma constituição civil, mas ainda a todas as leis." É esta idéia que Platão designa como Politeia, termo grego que dá nome à obra supra mencionada e que Cícero traduziu para o latim Respublica. A politeia não se confunde com nenhum dos regimes reais, em particular não se confunde com os dois regimes dominantes na Grécia clássica, a oligarquia e a democracia. Toda polis é presidida por leis e estas são a expressão do grupo hegemônico da cidade. Cada polis se caracteriza portanto pela qualidade de suas leis ou seja pelo seu regime político: este pode ser o regime da maioria ou de alguns apenas, democracia ou oligarquia. O problema dos regimes concretos é que cada um deles, ao invés de contemplar a totalidade da polis é excludente: o povo exclui os oligarcas e vice-versa. Ora, tais exclusões não condizem com o conceito de Estado ou politeia, que é antes includente, plural. Na República Sócrates assevera que esta é a única a merecer, a rigor, o nome de Estado, pois "às outras cidades é preciso dar-lhes denominações e significação mais amplas, porque cada cidade não é uma, mas muitas(...) Pelo menos sempre há aí dois Estados que mutuamente guerreiam: o dos ricos e o dos pobres". (República L..IV, 422e,423a.; L. VIII ,551d,6,7,8.). Portanto o Estado, a politeia, enuncia-se conceitualmente como esta totalidade onde diferentes tipos de homens, agrupados em classes, são levados a realizar, no interior de cada classe, o bem a que fazem jus por seu trabalho. Idealmente pelo menos ele resolve o problema da justiça: o Estado justo será aquela instituição que buscará essencialmente o bem de todos e de cada um, o bem comum. Neste Estado ideal princípio e fim se harmonizam perfeitamente. O princípio: liberdade de cada um assegurada na medida em que também é assegurada a liberdade de todos. O fim: a virtude de mais alto significado político, a justiça entendida como bem comum. Eis aí o triunfo completo - em teoria - da cidade do filósofo virtuoso Sócrates (digamos, sua "vingança").

Esta concepção será confirmada, mutatis mutantis, pelas análises de Aristóteles na Política. Notadamente ele dará destaque à equação: pluralidade (como definidora da polis), virtude e bem comum (como definidor da justiça e portanto do Estado) é o que veremos adiante em nossa análise desta obra. Nos limites deste trabalho não podemos mais do que indicar, acerca da filosofia política de Platão, alguns pontos capitais. Primeiramente é preciso notar que República é uma obra que leva aos extremos certas abstrações. Nela a justiça é investigada e exposta como conceito, idéia. Para melhor apresentar a justiça assim concebida - que portanto não se confunde com nada que lhe seja semelhante no mundo sensível, da mesma forma que a idéia de igual tampouco se confunde com a semelhança existente entre, digamos, dois palitos de fósforo - para apresentar esta idéia, como dizíamos, é que Platão constrói uma cidade imaginária. Seu objetivo é o de dar a ver a idéia e não é claro exigir que a realizemos! Sua realização, diz-nos no Livro IX, é indiferente. Com isto queremos dizer que destacar República como se ela fosse a expressão de seu projeto político ou de seu melhor regime possível é um despropósito que só serve para desqualificá-la. Não obstante é a visão mais divulgada acerca do filósofo: de acordo com esta visão o melhor regime para Platão seria o governo absoluto, autocrático do filósofo-rei. Assim, ele ao invés de ser referido como um dos fundadores do regime constitucional, surge não apenas como o reacionário adversário de qualquer forma de democracia, como também como o precursor do totalitarismo contemporâneo, como entre outros nos asseveram, em continuidade com uma já longa tradição que se inicia com Bertrand Russel, Karl Popper e Gerard Lebrun. É importante assinalar a existência deste "mal-entendido", fruto de uma curiosa convergência de liberalismo, positivismo e nietzscheanismo, pois ele é hoje a maior causa do dogma segundo o qual a filosofia política clássica nada tem a nos dizer acerca de questões políticas. Enquanto se insiste em destacar as fantasias do "Fuehrer" ou do "pai dos povos", associando-os a Platão, deixam-se à sombra obras políticas fundamentais e estas sim, "mais realistas", como O Político e As Leis. E deixa-se também de refletir, como sugerimos com o exemplo de Churchill, sobre os limites da engenharia política.

Menos abstratas, mais próximas de uma possível realização, tais obras, em particular As Leis, mostram-nos primeiramente o eclipse do filósofo-rei. Platão diz-nos explicitamente que nenhum homem pode ser investido de um tal poder sem "ser afetado por hybris (desmedida) e por injustiça", isto é sem se tornar um nefasto tirano. Consequentemente a sabedoria viva do filósofo é substituída por uma sábia estrutura legal, por um governo das leis. Estas certamente procuram incorporar a sabedoria de um legislador que lembra ainda o filósofo da República. Mas o pensador que vemos nas Leis - diálogo que é a última palavra política de Platão -dialoga não com dois jovens inexperientes e idealistas que esperam demasiado da política como na República, mas com dois velhos cidadãos representantes dos dois regimes mais famosos e duros da Grécia, Esparta e Creta. Sobretudo, nas Leis o que se visa é realmente a fundação de uma cidade, a "segunda" em excelência e não a demonstração de uma idéia como na República. Enfim, e este ponto é fundamental, a figura do filósofo-rei destinava-se à consecução de um propósito realmente hiperbólico: o de simplesmente eliminar o mal da vida humana (L.V 473c,d,e., onde se lê: "A menos que os filósofos sejam reis...não haverá fim para os males que afligem e devastam o Estado e o próprio gênero humano".) Ora, que seja impossível eliminar o mal da existência humana é o que proclama todo o platonismo ( Teeteto, 176a5-8; As leis, 896e4-6). Não será demais a esse respeito recordar o mito de Cronos. Ele nos conta que houve tempo em que os homens viviam numa espécie de idade de ouro, felizes numa sociedade afluente e sem trabalho. Como eram então governados? Nossos governantes eram então não homens mas semi-deuses (daimons), seres de uma raça superior e mais divina. Cronos fez então para nós o que hoje fazemos com os rebanhos e animais domésticos, pois não fazemos bois dirigir bois ou cabras dirigir cabras, mas exercemos sobre eles a autoridade de nossa raça que lhes é superior. Graças assim à filantropia divina reinava entre os homens a paz, a sólida justiça e éramos sobretudo preservados das guerras civis. E o mito conclui: "O que este argumento quer dizer, ainda hoje, e nisto é verdadeiro, é que nos Estados onde reina não um deus mas um mortal, os cidadãos não podem se ver livres dos males e da labuta" (As Leis, L.IV,713). Não há forma mais eloqüente e elegante de dizer que a política não é o melhor lugar para projetarmos nosso anelo profundo de uma existência perfeitamente justa e feliz. Para isto seria necessário voltar à era de Cronos, ter como governantes daimons ou filósofos-reis, o que é manifestamente impossível. O mito deixa-nos uma lição de anti-fanatismo. Com efeito, se o fanatismo é uma adesão cega a uma idéia, um zelo excessivo e militante em favor de uma causa, então Platão ministra de fato uma tal lição de moderação política. Certamente ele fez deste anelo de perfeição e de plétora urna característica fundamental e inextirpável do homem: a isto chamou Eros. Mas, se é verdade que o impulso erótico se realiza de várias formas, desde as relações amorosas até a procriação e as artes, não é menos verdade que ele só se cumpre superiormente na filosofia e não na política.

Assim, o homem sendo o que é, não um daimon mas um ser dividido entre razão e instintos, o problema político não tem solução; pelo menos se entendermos como solução política a obtenção da felicidade pletórica geral. Não há como extirpar o mal. Do ponto de vista antropológico recordemos que o fato de o Socratismo, o Platonismo, e mesmo o Aristotelismo valorizarem a razão como um atributo divino emprestado ao homem e tornado como que seu apanágio, não os impediu de ver os aspectos teratológicos da alma humana. Para Platão a razão é apenas uma ilha minúscula da alma cercada, numa célebre imagem, de feras por todos os lados. Em outro contexto refere-se aos instintos ou desejos como déspotas selvagens e enlouquecidos que nos tiranizam até à velhice. E Aristóteles não perde ocasião para nos lembrar da perversidade humana {Política, L.II 1263b; 1267b.) que, assevera, "é um vaso sem fundo" e causa de nossa infelicidade. Não estamos portanto às voltas com pensadores nefelibatas, como quer nos persuadir uma gloriosa tradição.

É pois sobre o fundo desta concepção da psique humana - concepção que em seus aspectos essenciais se vê confirmada pela psicologia contemporânea - que em sua obra mais política, As Leis, Platão desenvolve uma ampla reflexão sobre as questões mais agudas da política levando em conta a lição aprendida de Aristófanes acerca do caráter irracional do ser humano. Nos limites desta exposição não podemos senão alinhavar alguns destes pontos capitais de As Leis, Dizer que o projeto de As Leis é mais realista é dizer que estamos agora distantes de dois cenários igualmente ideais: não estamos mais diante da liberdade quase ilimitada do governo ideal do filósofo-rei, com tudo que ele acarretava de impossibilidade real, nem tampouco estamos sob a égide do reino de Cronos, onde os homens viviam numa comunidade isenta de conflitos e de trabalho. O que estes dois cenários tinham em comum é que em ambos a vida humana transcorria à margem do mal, isto é, da irracionalidade e sob um paradigma celestial. Ao contrário, em As Leis estamos na contingência de organizar a polis por nossa conta e risco: a política é agora um empreendimento humano, como que desassistido pela divindade. Neste contexto resta ao homem um reflexo do divino, ou a possibilidade de imitá-lo através da inteligência imortal que, segundo os clássicos, trazemos conosco. O novo regime em sua melhor forma será portanto uma expressão da inteligência. O texto de As Leis nôlo diz através de um jogo de palavras: Platão faz a lei, nomos, derivar de noûs, inteligência (id.714a). Ora, há no mundo tantas espécies de leis quanto de regimes dos quais elas dependem. Há basicamente três regimes puros: a monarquia, a aristocracia e a democracia. Mas no mundo histórico concreto elas se apresentam diversamente: assim a Lacedemonia possui algo da tirania na instituição dos éforas, mas também de uma democracia pelo sorteio destes mesmos éforas. Mais, tem algo de uma aristocracia, um senado composto de anciãos e por fim, de uma monarquia graças à sua dupla realeza. A Lacedemonia se destaca pois como um modelo possível para a fundação de um novo Estado graças justamente a este seu carretar compósito. A vantagem da Lacedemonia emerge sobre o pano de fundo das deficiências dos regimes enumerados. É que na realidade estes regimes não são regimes (politeia) no rigor do conceito, mas como lemos em As Leis: "administrações urbanas, onde a cidade está sob o domínio de déspotas, uma parte escravizada à outra, de modo que cada regime recebe o nome da autoridade que nela reina como déspota". Platão repete aqui a análise, referida acima a propósito da república e que tanto impressionara Kant. Apenas a análise é agora mais detalhada e vai ao cerne do conceito de politeia : "não são, afirmamos agora, politeias, nem leis corretas aquelas que não são feitas no interesse comum de toda a cidade. Os que se beneficiam destas leis excludentes designamos como sectários, mas não como cidadãos e a justiça que alegam possuir, vã pretensão. Ao proclamarmos isto nossa intenção é a seguinte: não deferir os cargos em tua cidade nem à riqueza, nem a nenhum bem deste gênero, seja ele a fôrça física, o tamanho, ou o nascimento..."(id.715bc). Se diante dos regimes facciosos, excludentes, a Lacedemonia se mostra superior, tal superioridade se deve antes de mais nada não à pureza de seu regime, mas ao caráter compósito de suas instituições políticas. A verdadeira causa de seu elogio - sem prejuízo das necessidades retóricas do diálogo - é negativa: não sendo nem isto nem aquilo ela tende a ser mais inclusiva, menos excludente. O regime lacedemonio é enfim digno de figurar como paradigma porque é um regime misto! Certamente o texto que estamos analisando é um dos que deram nascimento à célebre "miragem espartana" (título do livro em que F. Oilier elenca a fôrça do paradigma lacedemonio no pensamento político ocidental, que culmina na obra de Rousseau). Mas Platão está longe de ser uma cultor cego de Esparta. Se a Lacedemonia possui algum mérito é porque ela corresponde de certo modo ao princípio enunciado em As Leis e que teve tão longa sobrevida: "não instituir um megalopoder e muito menos um poder amiktos" (As Leis, 693b, 2,3.). Ou seja, o poder deve ser misto. Há portanto aqui já a idéia do poder controlando o poder. A Lacedemonia é o que mais se aproxima do conceito ortodoxo, pois, como vimos, só pode ostentar o nome de politeia o regime que visa o bem comum. Na medida em que o regime misto procura corrigir as distorções instauradas por cada um dos regimes reais, de modo que sendo mais includente não defere o poder a nenhuma das facções que compõem ou rasgam a pólis - riqueza, força, nascimento - nesta medida ele contribui para um estado de coisas que lembra a época em que Cronos governava os homens e pode portanto ser considerada como expressão da inteligência, como politeia, o melhor regime.

É todo este conjunto de análises e temas que permitiram a Platão desenhar o perfil do melhor regime, do regime misto, que vemos reaparecer no contexto meticulosamente mais detalhado e mais rico da Política de Aristóteles. Nesta obra podemos ver os efeitos da revolução iniciada por Sócrates e o sucesso da empreitada platônica: agora, a filosofia lida de modo desassombrado com as mais espinhosas questões políticas. O filósofo entra abertamente no debate em que se dilaceram as facções da polis e se faz escutar graças apenas à sensatez de seu discernimento, que se traduz em melhores argumentos. É o que vemos Aristóteles fazer num momento especialmente delicado da obra, pois se trata de saber quem, dos dois representantes dos maiores regimes rivais, tem razão. Com efeito, democratas e oligarcas discutem acerca das dívidas contraídas pela polis: quem deve pagá-las? Em particular se as dívidas hoje cobradas foram contraídas por outro regime, agora derrubado. É o que ocorre por exemplo, diz Aristóteles no L.III (1276a), quando se passa de uma oligarquia ou de uma tirania para uma democracia. "Alguns se recusam então a cumprir os contratos pretextando que não foi a polis, mas o tirano quem os assinou; recusam muitas obrigações semelhantes sob o pretexto de que alguns regimes têm como razão de ser a dominação mas não o interesse comum". Notemos desde logo como a oposição política interesse das facções versus interesse comum, que já viramos em Platão, reaparece na análise aristotélica. Podemos dizer que é esta oposição que comandará sua análise desenvolvida nas partes realistas da Política.

Já se disse que a filosofia política dos séculos V e IV nasceu com o intuito de se por como substituta de Péricles, o governante que era a um só tempo um sábio, discípulo de Anaxágoras, e um político. Sem prejuízo desta tese, em nossa perspectiva procuramos lembrar que não é menos verdade que a filosofia política platônica-aristotélica se faz em continuidade com as reflexões originadas com a vida e morte de Sócrates. Este ponto aparece desde logo no Livro I da Política de Aristóteles. Com efeito, diz-nos este texto sobre a origem da polis que "formando-se para permitir a sobrevivência ela existe entretanto sobretudo em vista do bem viver (eu zeri)". Não basta pois a mera sobrevivência. Neste sentido não basta afirmar a animalidade política do homem, pois neste gênero também entram outros animais gregários como a abelha. Mas o homem tem uma destinação naturalmente superior: ele é dotado de logos (linguagem articulada, razão) e é próprio do logos "evidenciar o que é útil e seu contrário e também o que é justo e o que é injusto. Tal é pois o caráter próprio do homem entre todos os seres vivos: só ele percebe o bem e o mal, o justo e o injusto e os outros valores; ora, é a posse comum destes valores que faz a família e a polis". (Política, 1253a).

Como não associar este texto com a célebre "autobiografia" de Sócrates tal como aparece no Fedão de Platão, texto que é um marco na constituição da razão clássica? Ali ele nos conta como a descoberta da inteligência (nous) como princípio efetuada por Anaxágoras representou para o próprio Sócrates um salto em sua investigação ontológica. Entretanto, Anaxágoras se deteve a um passo do essencial pois se a inteligência é o princípio do todo ela é a dinamis "por cuja ação a melhor disposição possível para as coisas é a que foi realizada" (Fedão 99bc.) Portanto o modo correto de enunciar o verdadeiro principio é que ele consiste no bem (to agathon). É este o traço de união entre os filósofos que estamos enfocando. Assim Aristóteles registra que, "como a natureza nada faz em vão", tendo dotado o homem com o logos ela o votou ao bem. Nossos filósofos clássicos tomarão portanto o conceito de razão como original e naturalmente vinculado a uma excelência que busca uma expressão também prática: a razão clássica é em sua dupla dimensão, tanto teórica quanto prática, indissociável do princípio "agathóide" e é portanto uma razão ética no sentido forte deste termo. Eis porque os raciocínios e reflexões da Ética a Nicômaco de Aristóteles são dirigidos não a homens enquanto seres "intelectuais" mas a todos os homens honestos: "para ouvir as preleções sobre o que é nobre e justo, e em geral sobre temas da ciência política, é preciso ter sido educado nos bons hábitos (...) o homem que foi bem educado já possui esses pontos de partida..."

A virtude é para o homem sua mais alta destinação: isto quer dizer que a organização política deve ser norteada para a obtenção deste bem. Mas mais do que isto é preciso compreender que para Aristóteles a virtude passa a ser o telos, o fim incondicionado do homem (neste sentido a polis, rigorosamente concebida, será apenas um meio para a obtenção da virtude, assim como o homem é mais do que um animal político). Este condicionamento teleológico da polis à virtude é talvez o aspecto da filosofia política clássica que mais desafiou (e mesmo chocou) os modernos. Nas palavras de Gerard Lebrun: "Hobbes, leitor dos gregos, fez questão de ser o anti-Aristóteles" (O que é poder, p .37). Mas não será talvez mais apropriado conformarmo-nos à cronologia e compreender o Livro III da Política como uma antecipação de Hobbes e de Locke, ao invés de empreender o trajeto inverso? Lembremos neste sentido que o capítulo 9 do Livro III da Política enumera assim o objetivo da polis:

* este não consiste apenas em assegurar a posse dos bens materiais ou da propriedade;

* nem apenas assegurar aos cidadãos a proteção contra injustiças e crimes tanto de origem externa quanto interna;

* nem em facilitar as trocas, o comércio ou a garantia dos contratos...

Certamente, não pode haver comunidade política sem estas coisas, que são portanto condições necessárias mas não suficientes. A verdadeira finalidade da comunidade política não é a mera sobrevivência, mas a vida virtuosa. O propósito da polis é o de promover, tanto quanto possível, a formação de cidadãos virtuosos. Aristóteles vai mais longe ao afirmar que sua finalidade não é a mera convivência, mas as belas ações (ta kald). E é por isso que os que mais contribuem para este fim devem ter nela uma parte maior em cargos relevantes do que aqueles que, "iguais ou superiores em liberdade, lhes são entretanto inferiores quanto à virtude que lhes é própria, ou dos que, mais ricos, são entretanto menos virtuosos".

Tentemos por fim entender o porquê de tanta preocupação ética. Já o vimos, uma de suas raízes é a dimensão ontológica da filosofia socrático-platônica. Mas há uma outra origem não menos importante ainda que menos transcendente, mais terrena para tal preocupação. Retomemos o texto de onde partíramos para a análise de Aristóteles. Nele vimos enunciado o conflito que se declara quando ocorre uma mudança de regime. Deve o novo regime arcar com as dívidas contraídas pelo antigo? Vimos como este debate nos permitiu descobrir o critério do regime legítimo: o bem comum. No capítulo 6 lemos: "É claro que todas as constituições que têm em vista o interesse comum são de fato corretas segundo a justiça absoluta; aquelas que visam apenas o interesse privado do governante são defeituosas e são desvios das constituições corretas: estas são formas de despotismo; ora a polis é uma comunidade de homens livres" (lembremos que despotismo quer dizer aqui regressão a modos não políticos de governo). Este critério uma vez obtido pode-se então classificar as constituições distinguindo as corretas das desviadas: "Chamamos realeza as monarquias que visam o interesse geral, aristocracia o governo de poucos (...) seja porque os melhores detêm o poder, seja porque seu poder visa o maior bem da polis,.,, e quando a massa governa a polis tendo em vista o bem comum dá-se a este governo o nome de politeia, nome que é comum a todas as constituições". A estas formas ortodoxas correspondem os desvios: à realeza monárquica corresponde então a tirania, à aristocracia a oligarquia e à politeia a democracia.

Todas estas formas desviadas são assim chamadas porque ao invés do bem comum visam o bem privado dos governantes. Mas o texto de Aristóteles é mais preciso. Assim, para ficarmos apenas entre os dois regimes mais comumente existentes, a oligarquia e a democracia, seu texto precisa que estes regimes não são, como a literalidade da nomenclatura poderia nos levar a crer, respectivamente, o governo de poucos (oligoi) e o governo da maioria (demos): "A verdadeira diferença que separa a democracia da oligarquia é a pobreza e a riqueza". Assim, "a soberania de uma minoria ou de uma maioria é apenas um acidente". Neste sentido é perfeitamente possível pensar uma polis cujo governo fosse constituído por uma maioria rica: ela seria rigorosamente uma oligarquia - e não uma democracia. Inversamente, uma polis governada por uma minoria pobre seria uma democracia - e não uma oligarquia. Análises como estas constituem "o reconhecimento de uma importante verdade", nas palavras de W. L. Newman, o editor inglês da Política de Aristóteles do final do século passado. Ele mesmo acrescenta que as teorias contratualistas modernas prevalecentes "obscure our recognition of the fact wich Aristotle had long ago pointed out, that the constitution of a state has its roots in what moderns terms its social system". Assim também, no Livro IV da Política, depois de consolidar o principio de que a polis é uma pluralidade, Aristóteles, procede a uma enumeração de seus elementos constitutivos: agricultores, trabalhadores, artesãos, comerciantes, os servos (thetes), as forças armadas, os ricos, os funcionários e magistrados, os virtuosos etc. (Id. 129la). O que há de notável nesta passagem é que no texto que se segue Aristóteles extrai daí uma importante conclusão. Primeiramente afirma que as mesmas pessoas podem trocar entre si estas funções: "Assim, as mesmas podem ser simultaneamente defensores do país, agricultores, artesãos ou ainda conselheiros e juizes". Há entretanto uma excessão a esta troca quase universal de funções: "as mesmas pessoas não podem ser simultaneamente ricas e pobres." Daí a conclusão: "eis porque consideramos como partes por excelência da polis os ricos e os pobres." Poucas vezes a análise política terá chegado a tal grau de realismo: ricos e pobres, oligarquia e democracia são as classes e os regimes dominantes na política grega. Dominantes e antitéticos. Daí a questão - talvez a mais fundamental de toda a obra - a quem deferir o governo sem injustiça, ou seja, sem exclusão? Nenhuma das duas classes pode governar hegemonicamente sem acarretar injustiça para a outra. Resta um terceiro componente da cidade, constituído pelos que não são nem ricos nem pobres enquanto tais, os virtuosos, homens que não são eminentemente apegados aos bens materiais. Aqui parece então estar a pista para a solução do problema político. Nesse sentido Aristóteles nos diz no Livro V, onde trata das revoluções, que os virtuosos são de todos os cidadãos os que teriam os mais justos motivos para uma insurgência (1301a) pois são os que têm as melhores razões para se crerem desiguais (anisous) e portanto, acrescentemos, seriam os possuidores dos melhores títulos para governar. Mas, lamenta-se o próprio Aristóteles, procuremos na cidade os homens de bem: dificilmente acharíamos sequer cem deles (1302a). Além do mais os virtuosos parecem ser reticentes e pouco aguerridos quanto a manifestar suas reivindicações na arena política. Para não renunciar completamente à virtude, que Aristóteles reconhece ser um elemento mais vinculado às causas suficientes do que às necessárias da polis, será então preciso combinar as instituições políticas de tal modo que possam, a um só tempo, refletir a pluralidade da comunidade, sem perder de vista sua finalidade superior. Dito de outro modo: procurar-se-á introduzir indiretamente a virtude neste composto que é a politeia de Aristóteles e na qual, como se sabe, ricos e pobres - "as partes por excelência da polis" - conviverão em equilíbrio, graças a um novo e importante elemento que Aristóteles agora introduz como fiel da balança: a classe média.

Seu regime será portanto um regime misto em concordância com o ideal teórico das Leis de Platão. "Vê-se, lemos no Livro IV, que a melhor comunidade política é aquela constituída pela classe média e que as cidades capazes de ter uma boa constituição são justamente aquelas onde existe uma classe média numerosa e se possível mais forte do que as outras duas (...) seu peso faz inclinar a balança impedindo que os extremos prevaleçam". (1295b). Sabemos a fortuna a que estava destinada esta metáfora da balança nas concepções políticas posteriores, assim como o quanto a concepção do regime misto impregnou o pensamento ocidental. Depois de Aristóteles ela ganha nitidez com o historiador Políbio (século III a.C). Daí passa a Cícero e a Plutarco (ver Vida de Licurgo), ganhando a seguir o mundo moderno através de Francis Bacon e sobretudo de Montesquieu, que registra no Livro XI do Espírito das Leis (onde ele aliás cita Políbio): "Pour qu'on ne puisse abuser du pouvoir, il faut que, par la disposition des choses, le pouvoir arrête le pouvoir".

Perguntamos acima sobre o porquê desta ênfase ética no pensamento político dos antigos. Digamos que mais do que nós modernos eles tinham uma percepção aguda - tocquevilleana - da relação existente entre o regime e o caráter dos homens ou, mais precisamente, da capacidade que têm os regimes de formar os caracteres. Vimos a classificação dos regimes de Aristóteles e sabemos que é muito freqüente a ocorrência dos regimes deturpados. E isto quer dizer então: dos caracteres mal-formados. Já em sua politeia os homens livres governarão em condições de igualdade e num sistema de ocupação dos postos de governo por rotação. Ele assim incorpora em seu regime o ideal de liberdade da democracia. Mas liberdade supõe educação, como vemos ho Livro VIII. Vemos então novamente porque a democracia - o governo dos pobres - lhe parecia, assim como a Platão, um regime defeituoso. E isto menos pela pobreza em si mesma -afinal Sócrates vivera e morrera pobre - mas mais pelo fato de ela em geral ser um impedimento à educação. Os sofistas educadores bem o sabiam, e procuravam suprir esta carência da democracia com seu saber e suas aulas. Mas, ao condicionarem suas lições aos que podiam pagar, iam contra o ethos da democracia. No Livro VIII Aristóteles assinala para um sentido de liberdade que a distingue da atividades que possam tornar "o corpo ou a alma ou a inteligência impróprias para a busca e a prática da virtude" (cap. II 1337a). O vínculo teleológico entre a liberdade e a virtude que reaparece no final da obra é perfeitamente coerente com o principio, enunciado em seu início, que dava uma destinação ética à polis. Dos dois conceitos que procuramos ressaltar na caracterização do pensamento republicano clássico, um, politeia, em sua forma mais realizável de regime misto, está profundamente entranhado na modernidade, como pudemos exemplificar com Hamilton. Mas o que dizer da Virtude, que desde Maquiavel vem sendo objeto de uma contínua, ainda que não homogênea, rejeição? Ao final deste trabalho queremos apenas deixar o registro de alguns índices acerca desta profunda revolução semântica. Obscurecimento e ambigüidade marcam esta noção em Maquiavel. Assim, referindo-se a Aníbal, diz-nos que ele possuía "uma crueldade desumana juntamente com outras virtudes", e faz a mesma observação a propósito do criminoso Agathocles, que também aparece como virtuoso. No mesmo sentido, a noção de Príncipe em alguns casos não se distingue da noção de Tirano. No capitulo XV de o príncipe escreve: "Muitos imaginaram repúblicas e principados que jamais foram vistos ou nem se sabe que existiram. Há uma distância tão grande entre o modo como alguém vive e como deve viver que aquele que rejeita o que o povo faz em prol do que deve fazer, traz-lhe a ruína mais do que a preservação (...)" Maquiavel não tem dúvidas quanto ao resultado da conjunção havida entre a tradição de virtude dos clássicos e o cristianismo: ela representou uma efeminação do mundo. A partir de Maquiavel o caráter irrealista da reflexão política clássica tornar-se-á um topos que se multiplicará como hipóstases na literatura filosófica moderna. Assim Espinoza escreve no primeiro capítulo do Tratado Político: "Os filósofos concebem as emoções que se combatem entre si, em nós, como vícios em que os homens caem por erro próprio; é por isso que se habituaram a ridicularizá-los, deplorá-los, reprová-los(...) julgam assim agir divinamente e elevar-se ao pedestal da sabedoria, prodigalizando toda espécie de louvores a uma natureza humana que em parte alguma existe, e atacando através dos seus discursos a que realmente existe. Concebem os homens, efetivamente, não tais como são, mas como eles próprios gostariam que fossem (...)". No mesmo sentido escreve John Locke em The reasonableness of Christianity: "Virtude e prosperidade não andam juntas freqüentemente; por isso a virtude raramente tem seguidores. Não admira pois que ela não prevaleça em um estado onde as inconveniências que a esperam são visíveis e à mão; e as recompensas duvidosas e distantes(...)". Ou ainda Montesquieu, que compara a virtude política da República a um monastério e seu modo de vida ao fanatismo {Espírito das Leis, L.5 cap.2). Não é portanto sem razão que Leo Strauss caracteriza o pensamento político moderno, por contraste com o antigo, como tendente ao hedonismo. De fato, boa parte dos autores modernos prepara o caminho para concepções decididamente utilitaristas de David Hume, Jeremy Bentham e James Mill, que reconhecem apenas o princípio de utilidade como fundamento político.

Concluamos dando a palavra a um cientista político contemporâneo que sabe tirar proveito de seu conhecimento dos antigos. Após constatar que a ciência política contemporânea se preocupa talvez excessivamente com a agregação das preferências ele acrescenta: "Uma ciência adequada deve ter antes como preocupação a formação das preferências. Deve procurar responder a questão de como podemos desenvolver, de modo democrático, uma compreensão racional de nossos problemas (...). Esta será uma ciência política preocupada com a definição e a implementação do bem comum". (William T. Bluhm, "Liberalism as the agregation of individual preferences". In K. L. Deutsch e W. Soffer (org.). The crisis of liberal democracy, State University of New York Press, 1987).

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    O presente texto serviu de base de base para exposiçãofeita no Grupo de Teoria Política do Instituto de Estudos Avançados - EEA/USP, em 24 de maio de 1996
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      10 Dez 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 1996
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