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O comércio acima de tudo: e o meio ambiente fora da lei

Foreign commerce über alles: and the environment out of law

Resumos

Sem freios, o comércio internacional atropela as preocupações com o meio ambiente, e o poder dos organismos e das regulamentações estritamente internas ao comércio (e portanto refratárias a controles externos) só faz crescer. Mantida essa situação, a ameaça consiste na perpetuação (ou destruição) de um mundo financeiramente total, economicamente global e ecologicamente letal.


Free of restrictions, foreign commerce goes over all concerns about the environment, and the power of international organisms and rules strictly internal to commerce (and thus not responsive to external controls) only grows. If this situation is not changed the threat consists of perpetuation (or destruction) of a world that is financially total, economically global, and ecologically lethal.


FEDERAÇÃO E POLÍTICAS

O comércio acima de tudo (e o meio ambiente fora da lei)

Foreign commerce über alles (and the environment out of law)

Christian Guy Caubet

Professor Titular do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina

RESUMO

Sem freios, o comércio internacional atropela as preocupações com o meio ambiente, e o poder dos organismos e das regulamentações estritamente internas ao comércio (e portanto refratárias a controles externos) só faz crescer. Mantida essa situação, a ameaça consiste na perpetuação (ou destruição) de um mundo financeiramente total, economicamente global e ecologicamente letal.

ABSTRACT

Free of restrictions, foreign commerce goes over all concerns about the environment, and the power of international organisms and rules strictly internal to commerce (and thus not responsive to external controls) only grows. If this situation is not changed the threat consists of perpetuation (or destruction) of a world that is financially total, economically global, and ecologically lethal.

Uma tendência concreta das relações comerciais internacionais contemporâneas, hegemônica, almeja excluir os fatores socio-ambientais das considerações que devem estruturar o intercâmbio comercial, por meio de normas jurídicas internacionais. São os contornos dessa tendência que nos ocuparão aqui.

Essa afirmação e hipótese de trabalho exige algumas considerações preliminares, pois poderá parecer paradoxal ou gratuitamente provocativa. Com efeito, a maioria dos autores costuma afirmar que as exigências de preservação ambiental estão sendo cada vez mais levadas em consideração, para elaborar as normas jurídicas relativas ao intercâmbio comercial e à concorrência. Entretanto, contra a opinião da maioria, tentar-se-á demonstrar que o comércio e as normas jurídicas que o regem tendem a excluir as exigências do respeito à sustentabilidade, quer seja para a nossa geração ou, a fortiori, para as gerações futuras. Toma-se por referência, quanto à noção de sustentabilidade, a afirmação da Comissão Brundtland: " O desenvolvimento sustentável é aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras atenderem as suas próprias necessidades" (1988, p.46). Nas condições atuais do crescimento do comércio internacional e do padrão de vida das populações dos países "ricos", o desenvolvimento continua sendo obviamente insustentável: o consumo dos recursos renováveis e não renováveis aumenta. Além disso, a população também está aumentando. Mas toda a ideologia do comércio, toda a doutrina do comércio, a quase totalidade dos estudos sobre o comércio, partem do pressuposto de que as trocas comerciais devem crescer.

Dito de maneira diferente, a entropia está aumentando. A entropia, no mundo das ciências físicas, é a medida da desorganização de um determinado sistema. O direito, por aprovação ou por omissão, auxilia no aumento da entropia, muito embora ele pareça, genericamente, multiplicar seus esforços para identificar também os problemas ambientais e dedicar-lhes soluções. De Ramsar a Kyoto e de Montreal a Basiléia, diversas conferências- ou convenções internacionais, recentes ou não, parecem ter semeado as razões de um futuro ecologicamente mais correto. Essas quatro cidades, dentre outras, sediaram conferências ou encontros específicos dedicados à análise de importantes problemáticas internacionais de natureza ambiental, no âmbito de um mundo jurídico pseudo-norteado pelas megaconferências de Estocolmo (1972) e Rio de Janeiro (1992).

A entropia acelera-se, porque o mundo, apesar de notáveis esforços retóricos, continua acentuando suas características e relações reais: continua sendo financeiramente total, economicamente global, politicamente tribal e ecologicamente letal. Continua subordinando as questões éticas, políticas e socio-ambientais ao imperativo absoluto e constantemente, obstinadamente, reforçado das exigências do comércio internacional.

Esse texto tratará de evidenciar como o comércio, por postulado ideológico e práticas reputadas acima de qualquer suspeita, está "naturalizado" e utilizado como referencial absoluto, indiscutível, inquestionável, a pairar acima de considerações de quaisquer tipos. Em caso de divergência entre as necessidades do comércio e as de outras atividades humanas, aquelas têm primazia. Impõem sua lógica às demais. O postulado da primazia do comércio não pode ser discutido, por ser um dogma; só pode ser justificado, apoiado, legitimado. O sistema mundial do comércio não previu espaço (apesar de pouco convincentes aparências) para examinar os limites que ele deve respeitar. Ele não admite limite. O direito é um dos meios privilegiados para garantir esse resultado (o de não estabelecer limites definidos), quer seja nas relações internacionais, quer no âmbito interno dos diferentes países.

A exposição da temática apresentará, em primeiro lugar, a caracterização da ideologia do comércio. Em seguida, evocará o quadro global da entropia. Depois, examinará alguns dos parâmetros da proteção do meio ambiente pelo Direito Internacional Público, através de tratados específicos. Finalmente, serão apresentados alguns raciocínios específicos dos operadores jurídicos desta área.

O COMÉRCIO É INTOCÁVEL

O espantoso aumento das trocas comerciais internacionais, após o fim de segunda guerra "mundial" (1939-1945) e com o advento do reino do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade), passou a integrar de tal maneira a nossa cultura, que sequer costumamos pensar o significado global do fenômeno, em termos de impactos determinantes das condições sociais, da qualidade de vida e de outros parâmetros essenciais. O comércio não é considerado pelo que pode representar como meio de realizar algo, e sim como um valor em si, uma referência absoluta com conotações positivas ou negativas a partir do próprio fenômeno. Nessas condições, a atitude normal da maioria dos analistas consiste em postular a necessidade da inevitável expansão comercial mundial, como objetivo incontestável, acima de qualquer possibilidade de crítica séria.

De um ponto de vista crítico e ecológico, por exemplo, não há a mínima dúvida de que fenômenos como crescimento econômico contínuo, generalização dos padrões de vida das populações do hemisfério norte e bem-estar socio-ambiental (ou: qualidade de vida de tipo norte-ocidental/G7, para todos os habitantes do planeta) são objetivos incompatíveis entre si, mesmo que a população permaneça estável; o que ainda não é o caso. Contra este tipo de evidência crítica, cientificamente comprovado e portanto insuscetível de refutação, só cabe içar a necessária primazia do comércio à condição de dogma: o comércio é intocável, o resto deve ajustar-se e o conjunto só poderá melhorar.

A ideologia dominante induz esse tipo de consideração, mesmo quando pretende apresentar-se como reflexiva ou indagativa. Neste sentido, far-se-á referência a uma obra paradigmática, editada pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo: Comércio e Meio Ambiente. Direito, Economia e Política (1996), editada com o apoio do CIEL -Center for International Environmental Law. Por se tratar de obra de órgão dedicado à defesa e proteção ambiental, com o apoio de uma ONG preocupada com a defesa do meio ambiente, poder-se-ia pensar que certa ênfase seria dada ao meio ambiente, no sentido de fazer com que ele fosse considerado como uma referência à qual as exigências do comércio devessem curvar-se. Entretanto, o consenso embutido nessa coletânea opera da maneira exatamente inversa: a quase-unanimidade dos seus dezoito autores esmera-se em demonstrar que as considerações relativas ao meio ambiente não devem ter por efeito de prejudicar o comércio ou o crescimento econômico; ou que esses não têm impacto significativo sobre as questões ambientais; ou que todos os fenômenos são compatíveis; mesmo que ditos autores usem demonstrações ou citem fatos que, eventualmente, contradigam essas premissas dogmáticas.

Segundo Jagdish Bhagwati, auto-retratado como um "bom intelectual liberal", "os conflitos existentes entre ambos os grupos [os ambientalistas e os partidários da liberalização do comércio] são largamente exagerados" (p. 58 sg.). Aliás, como "obviamente nenhuma conclusão genérica deve ser baseada em outros casos de poluição, pode-se afirmar que o crescimento econômico não está intrinsicamente ligado, quer à degradação, quer à melhoria das condições ambientais"(p.59).

Pensamento isolado, esse? Sigrid Shreeve, ao apresentar uma visão das políticas da Comissão Européia, mostra como é fácil combinar retoricamente os diversos problemas: "Ao atribuir a mesma importância às metas relativas a comércio e meio ambiente, a Comissão reconhece que o desenvolvimento sustentável é pré-requisito para garantir que a liberalização seja acompanhada de benefícios ambientais. Da mesma forma, admite que o desenvolvimento ambientalmente sustentável dificilmente será alcançado a longo prazo sem que haja crescimento econômico". Nesse exemplo de contradição, qual é a posição real da União Européia? A resposta deve ser procurada nos fatos e nas práticas. Em particular, as respostas são encontradas na normatização das condutas, realizadas sob a égide das decisões jurisdicionais. Estas não têm dúvida, no âmbito intra-europeu: limitam as exigências ambientais dos países-membros, em prol das exigências da livre concorrência (ver adiante).

Os porta-vozes dos países em desenvolvimento defendem a mesma posição ideológica: "crescimento econômico, liberalização comercial e proteção ambiental são objetivos compatíveis e complementares", afirma o embaixador brasileiro Rubens Antônio Barbosa (p. 143). O maior problema não é o "como" garantir a sustentabilidade do conjunto das relações envolvidas, a partir das capacidades de sustentação dos diversos subsistemas. O que "não podemos admitir [é que] se ampliem indevidamente as possibilidades de restrição ao comércio, ou que medidas comerciais com objetivos ambientais possam vir a prevalecer sobre as regras da OMC. Seria um retrocesso lamentável".

é na fonte do processo de elaboração das práticas internacionais, que se deve buscar a expressão máxima dos dogmas relativos ao comércio. Tom Wathen sintetiza os termos da equação, em algumas páginas que dispensam maiores comentários ( p.26 sg.): "Historicamente, o GATT tem visto a proteção ao meio ambiente apenas em termos de barreiras ao comércio". O autor lembra que o último projeto aprovado na Rodada de negociações do GATT (Uruguai Round), sob a coordenação do então Diretor Geral da instituição, Arthur Dunkel, "tem o propósito de controlar as leis ambientais nos países-membros do Acordo, alinhando as normas de direito ambiental nacional e internacional com os princípios de comércio internacional do GATT". Nada de estranhar-se, portanto, que o projeto classifique os padrões ambientais como "barreiras técnicas ao comércio".

Existem tratados internacionais que pretendem incorporar sanções comerciais como forma de garantir seu próprio cumprimento? Existem! é o caso, dentre outros, do Protocolo de Montreal e da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies da Fauna e da Flora em Risco de Extinção - CITES. Qual será a implementação de suas disposições (normativas, pois incorporadas, por ratificação, ao direito interno dos signatários), se "os negociadores do GATT pretendem sujeitar qualquer legislação ambiental que tenha impacto sobre o comércio internacional à aprovação do Conselho do GATT, um órgão subsidiário das partes contratantes desse acordo. Pelo menos 24 acordos ambientais internacionais poderiam requerer autorização por parte da maioria dos ministros do comércio exterior do mundo inteiro, para assegurar a validade das sanções comerciais estabelecidas em suas disposições"( p.28)?

A própria Declaração do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento estabelece, no seu Princípio 12: "Políticas econômicas com fim de proteção ambiental não devem servir para discriminar ou restringir o comércio internacional. Medidas para controle de problemas ambientais transfronteiriços ou globais devem, sempre que possível, ser baseadas em consenso entre os países".

Em época mais recente, outra dimensão passou a acirrar os posicionamentos dos partidários do comércio, ou de seu controle em nome de exigências que não sejam apenas de lucro. Trata-se da problemática dos Organismos Geneticamente Modificados - OGM's. Quando a União Européia confirmou sua decisão de não permitir a importação de carnes norte-americanas, que incorporassem hormônios de crescimento em função das condições alimentícias de criação do gado, os Estados-Unidos passaram, a título de represálias comerciais, a aplicar tarifas de cem por cento sobre muitas mercadorias de origem européia. A base jurídica alegada foi o desrespeito que a decisão européia evidenciava, por ignorar a decisão da Organização Mundial do Comércio - OMC, de que a proibição era uma barreira desleal às exportações de carne norte-americanas e canadenses.

Dessa maneira, chega-se, em nome da liberdade do comércio (isto é: em nome da liberdade de ter lucro), a ignorar qualquer tipo de problema ou exigência resultando de imperativos coletivos. Não há dúvida em relação à ordem de prioridade que deve nortear os comportamentos. Pode-se, a rigor, assinar textos para proteger espécies animais ou vegetais, preservar determinados espaços nacionais ou regionais, ou mesmo quase universais, desde que não interfiram no livre jogo do comércio. Esse tipo de posição acaba favorecendo uma percepção deformada e profundamente disfuncional das realidades, na medida em que promove uma imagem do comércio como fenômeno autônomo, separado do contexto em que ele funciona. Ocorre, todavia, que o estudo desse contexto revela a extensão dos estragos que se verificam por toda parte, notadamente em razão das condições ilimitadas da expansão comercial.

O AUMENTO DA ENTROPIA

Ninguém pode fazer de conta que desconhece as realidades mais elementares das relações internacionais desde 1945, a ponto de não perceber que a um aumento espantoso dos números relativos ao comércio correspondeu um aumento trágico da degradação das condições de vida da maioria da população da Terra. Essa afirmação não pretende postular, de maneira simplória , que o aumento do comércio é a causa direta da degradação. é de modo complexo, ao contrário, que o comércio está estruturalmente ligado ao aumento da miséria planetária, para o qual ele contribui, a par de outros fatores estruturais, de diversas maneiras: pressão sobre os recursos através da exploração das "vantagens comparativas"; transferência de recursos humanos e naturais; apropriação dos recursos por meios cada vez mais sofisticados (biopirataria; biogenética; patenteamento de substâncias de seres vivos); produção de mais-valias transferidas para outros países; exploração desenfreada de recursos naturais, renováveis ou não; contínua deterioração dos termos do intercâmbio; deslocalização de atividades e investimentos especulativos de capitais de alto risco, dentre outros.

Le Monde Diplomatique (nov. 1997, p. 1) traz uma síntese dos resultados observáveis do modelo em vigor. "Seis milhões de hectares da terras aráveis desaparecem anualmente, em razão da desertificação. Por toda parte, a erosão, a superexploração devoram, em ritmo acelerado, a superfície das terras cultiváveis [...] 800 milhões de pessoas padecem de malnutrição.

"No ano de 2010, a cobertura florestal do globo terá diminuído em mais de 40%, em relação a 199O.[...]Entre 10 e 17 milhões de hectares desaparecem anualmente. Quatro vezes a Suiça. A deforestação destrui um patrimônio biológico único: as florestas tropicais úmidas hospedam 70% das espécies. Segundo a IUCN [International Union for Conservation of Nature], 20% de todas as espécies existentes terão desaparecido daqui a dez anos.

''As florestas mais atingidas são as florestas tropicais. Assim, na Indonésia, cerca de 80% da floresta úmida da ilha de Sumatra desapareceu desde os anos 70. E no Bornéo, o número de árvores cortadas quase quin-tuplicou, em dezesseis anos. Certamente, essas destruições estão oriundas do crescimento rápido da população, que utiliza a lenha como combustível e as terras para a agricultura, mas sobretudo da exploração florestal em prol dos países ricos".

No (terceiro) mundo inteiro, a par da perda de terras por desertificação e erosão, observa-se um movimento contínuo de abertura de fronteiras agrícolas, para a produção de gêneros alimentícios e de produtos primários destinados à exportação. Nos últimos dez anos, a soja conquistou milhões de hectares, no Brasil, do Rio Grande do Sul ao Acre. Em 1992, 86% da produção foram exportados para fabricar rações alimentícias, essencialmente em prol do gado dos países europeus (Galinkin, 1996:34). Florestas nativas são derrubadas em condições de total insustentabilidade. Muitas vezes, são substituídas por espécies exóticas economicamente mais rentáveis, em prejuízo da qualidade dos solos, das culturas de subsistência e dos ciclos hidrológicos, com conseqüências catastróficas para a qualidade de vida das populações locais e a manutenção das condições da biodiversidade original.

O aumento da entropia manifesta-se na nossa rotina diária, sem provocar muitas reações que não sejam de satisfação ou de verdadeiro entusiasmo. O exemplo da instalação de novas indústrias automobilísticas, no Brasil, a partir de abril de 1996, é paradigmático e merece alguns comentários.

A entropia automobilística

Não deixou de ser altamente simbólico, o lançamento do "carro mundial" (modelo Palio) da empresa italiana FIAT, em Belo Horizonte, em abril de 1996. A partir dessa data, vários construtores de automóveis (inclusive caminhões e ônibus) anunciaram sua intenção de ampliar suas fábricas no Brasil, ou de criar novas unidades de produção. Assim aconteceu com: General Motors, Honda, Mercedes Benz, Renault, Honda, Volvo, Volkswagen e Skoda. "Segundo Dorothéa Werneck, 70 empresas querem investir no Brasil, e se inscreveram no programa automotivo do Ministério da Indústria e Comércio. Os investimentos previstos nessa área são da ordem de R$ 16 bilhões. Pelo menos três montadoras já demonstraram interesse em promover investimentos diretos no país: a Hyundai, a Asia/Kia e a Honda" (Diário do Comércio, Belo Horizonte, 19/4/96, p.3).

Para definir a localização dessas novas indústrias houve intensas negociações e verdadeiros leilões interestaduais de ofertas de benefícios às montadoras. No caso da instalação da GM na região de Porto Alegre, um dos raros em que houve algumas dissonâncias no coro dos laudatários do empreendimento, o Estado do Rio Grande do Sul ofereceu à empresa as seguintes vantagens: financiamento de todo o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) para a aquisição de máquinas e equipamentos importados, mesmo com similar nacional; compensação de qualquer alteração na legislação tributária estadual ou federal; instalação de uma ligação de gás natural até o complexo automotivo; garantia de fornecimento preferencial de energia elétrica e telefonia por fibra óptica; instalação de linhas de efluentes sanitários e industriais, tratamento dos efluentes de resíduos sólidos; construção de um terminal fluvial completo de uso preferencial da GM na Grande Porto Alegre; construção ou modernização, em área próxima ao porto de Rio Grande, de um terminal marítimo privativo completo; instalação de meios hábeis para permitir navegação automática; melhoria das rodovias e acessos ao complexo; terraplanagem e urbanização do terreno onde será instalada a fábrica. Sem contar a abertura de créditos financeiros diretos, no montante de R$ 243 milhões ( O Estado, Florianópolis, 19 e 20/4/97, p.2).

Além de ferirem a própria soberania nacional (caso da eventual compensação por alteração na legislação tributária federal, por exemplo), essas disposições também ferem os preceitos da OMC sobre a livre concorrência ou a não-intervenção do Estado no mercado. Os protestos manifestados, nesta base, por eventuais prejudicados ou pelos guardiões planetários do dogma da liberalização do comércio, estão longe de ter alcançado as represálias que se verificaram no caso, supra citado, das exportações de carne norte-americanas. Simultaneamente, as novas instalações industriais das construtoras configuram uma redistribuição mundial da localização de suas unidades de produção, em função de critérios estratégicos não discutidos com mais ninguém. Dentro desses critérios, onde o objetivo principal consiste em maximizar o lucro, pode-se mencionar: custos menores de mão de obra e de recursos; facilidades de operação; prêmios oferecidos pelos poderes públicos; inexistência de estruturas administrativas para controlar eventuais requisitos na área ambiental...

Na ausência de urna política pública de transportes, voltada para minimizar o impacto do modelo "tudo-pelo-automóvel-particular-movido-a-gasolina", o Brasil está simplesmente plantando as sementes de imensos problemas a médio e longo prazos, quer seja em relação à sua matriz energética, ao trânsito em áreas urbanas, à depredação de recursos naturais renováveis ou não, ao tratamento de resíduos e efluentes e às condições de vida de milhões de pessoas.

As condições de instalação da Renault, em Curitiba (PR), são um desafio ao bom senso e a qualquer intento de preservação mínima da qualidade de vida. A fábrica francesa exigiu uma área livre de poluição. Recebeu o Distrito Industrial de São José dos Pinhais, "dentro da Bacia do Alto Iguaçu, principal manancial de abastecimento da Região Metropolitana de Curitiba, [fato que] coloca sobre risco todos os investimentos feitos até agora para protegê-la. Inclusive programas financiados pelo BIRD, como o Prosam, onde estão sendo investidos US$ 245 milhões de dólares [...]. O risco decorre de vários fatores: o uso total, pela indústria, de um dos rios definidos como manancial futuro; a atração de um número muito grande de fornecedores que também irão se instalar no manancial, pois já foi criado um distrito industrial para isso; o precedente que vai levar todos os municípios da região dos mananciais a querer também seu parque industrial; a ocupação e o adensamento da área em torno, pela população que virá atrás dos milhares de empregos anunciados" (Teresa Urban, 12/04/96). Extensa lista de disposições legais foram desrespeitadas para alcançar o objetivo de instalação da fábrica, que já está operando.

Seria interessante comparar as exigências da legislação ambiental dos países de origem das montadoras, com as do país receptor de seus investimentos e com as cláusulas de diversos tratados internacionais, dentro dos 24 que poderiam ter de requerer autorização aos ministros do comércio do mundo inteiro, para que fossem implementadas suas disposições relativas a penalidades de ordem comercial, no intuito de proteger o meio ambiente.

Outras dimensões do aumento da entropia apresentam uma importância considerável, porém não podem ser estudadas detalhadamente neste texto. Pode-se citar, por exemplo, a questão da produção mundial de resíduos e, particulanuente, de dejetos tóxicos e perigosos. Dezenas de milhões de toneladas desses produtos têm um destino final incerto, a começar pelos países industrializados. Uma funcionária européia descobriu que "três quartos dos resíduos perigosos europeus (estimados a trinta milhões de toneladas) são de origem e composição desconhecidas, que o Luxemburgo e a Alemanha não forneceram número algum sobre sua produção total, que a Bélgica não fez diferença entre os resíduos perigosos e os demais e que seus dados sobre as exportações de dejetos industriais incluem o lixo doméstico, enquanto que os dos Países-Baixos excluem os metais não-ferrosos" (Motchane e Raffoul, 1998, p.36).

Nessas condições, parece irrealista pensar que a Convenção de Basiléia (assinada em março de 1989), relativa ao controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e sua disposição final, possa auxiliar na resolução global e efetiva do problema. Todos têm interesse em livrar-se dos resíduos de toda ordem, desde que devidamente considerado a síndrome NIMBY (Not in my backyard/Não no meu quintal); tudo se vende ou se compra; sempre existe a possibilidade de encontrar alguém interessado em receber pagamento para hospedar qualquer tipo de resíduo...

As condições de definição, interpretação e aplicação do Direito Internacional Público, em geral, revelam outros aspectos da extensão dos problemas de defesa ambiental.

TRATADOS E PRINCÍPIOS PARA A PROTEÇÃO AMBIENTAL

Em uma lista não exaustiva, o documento Tratados e organizações ambientais em matéria de meio ambiente, elaborado pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1997), indica 58 instrumentos internacionais assinados entre 1959 (Tratado Antártico- Protocolo 91-) e 1993 (Convenção sobre a Proibição de Desenvolvimento, Produção, Armazenamento e Uso de Armas Químicas e sobre sua Destruição). Também foram editados os textos de alguns desses instrumentos internacionais: 1) Convenção de Ramsar (1971) sobre zonas úmidas de importância internacional, especialmente como habitat de aves aquáticas; 2) Convenção de Viena (1985) para a proteção da camada de ozônio e protocolo de Montreal (1987) sobre substâncias que destruem a camada de ozônio; 3) Convenção sobre mudança do clima (Rio, 1992); 4) Convenção da biodiversidade (Rio, 1992); 5) Convenção de Basiléia (1989) sobre o controle de movimentos transfronteiriços de resíduos perigosos e sua disposição final e 6) Convenção sobre o comércio internacional das espécies da fauna e flora selvagens em perigo de extinção, dita Convenção CITES (1973).

Na impossibilidade de resenhar e comentar todos esses textos, resta tecer considerações macroanalíticas sobre sua existência e significado.

Em primeiro lugar, nada impede que, à luz de princípios referendados pela comunidade das nações civilizadas (fonte de Direito Internacional Público, conforme o art. 38 do estatuto da Corte Internacional de Justiça), o consenso internacional em torno de normas básicas possa incorporar-se às exigências formuladas pela OMC. Nada mais lógico de que constatar o consenso existente em torno de princípios fundamentais, para formatar normas, com as devidas precauções, no âmbito da própria OMC. Essa démarche elementar e essencial, entretanto, não recebeu o mínimo apoio, até hoje, por parte de qualquer órgão da organização. Dessa maneira, continuam sem conseqüência prática, dentre outros, os princípios adotados pelas "nações civilizadas" na Conferência do Rio de Janeiro (1992) sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento Humano. Citando-se apenas alguns dos princípios adotados, verifica-se que existiria um consenso internacional em torno de assuntos da maior relevância:

"Princípio 8: Os Estados devem reduzir e eliminar padrões de consumo e produção considerados insustentáveis". A comparar com as condições de instalação das montadoras de automóveis...

"Princípio 10: A participação pública no processo decisorio ambiental deve ser promovida e o acesso à informação facilitado." A comparar com as observações de Tom Wathen (op.cit., p.29): "(...) como outras instituições internacionais, as deliberações do GATT continuam ocorrendo sem a participação da sociedade. Todos os procedimentos do GATT, incluindo as negociações, disputas e deliberações dos conselhos, são feitos em reuniões fechadas. Até mesmo as decisões dos painéis de disputa permanecem, em sigilo.[...].Esse sigilo é explicado pela necessidade de isolar a diplomacia das pressões internas da opinião pública".

"Princípio 13: Deve-se promover a adoção de leis e tratados internacionais visando a responsabilização e compensação por dano causado ao meio ambiente". (Desde que essas leis e tratados não interfiram com as necessidades do comércio?)

"Princípio 15: De forma a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser aplicado amplamente pelos Estados, de acordo com suas próprias condições".

A formulação do princípio de precaução assevera: "Em caso de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não deve servir de pretexto para o adiamento da adoção de medidas efetivas visando prevenir a degradação do meio ambiente".

"Princípio 16:.As autoridades locais devem promover a internalização de custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, levando em consideração que o poluidor deve arcar com os custos da poluição". A Ínternalização dos custos ambientais (ver adiante) é exatamente o que a OMC tende a rejeitar por todos os meios de que dispõe.

"Princípio 27: Os Estados e as pessoas devem cooperar de boa fé e num espírito de parceria para o cumprimento dos princípios constantes dessa Declaração e para o desenvolvimento do Direito Internacional no campo do desenvolvimento sustentável".

No âmbito de um mundo globalizado, esses princípios parecem truismos. Porém permanecem como truismos retóricos. Sua implementação entra em choque com os interesses concretos, que costumam encaminhar soluções no sentido de aumentar, cada vez mais, a entropia do conjunto; com base no sigilo das decisões e na recusa, portanto, da participação da maioria dos interessados, com base nas soluções mais technology intensive que se possa encontrar, na espiral aparentemente sem fim da concentração da renda entre as mãos de cada vez menos e da exclusão da maioria.

Entre muitos exemplos e para permanecer no âmbito das convenções citadas acima, pode-se fazer referência à Convenção de Ramsar sobre zonas úmidas de importância internacional, especialmente como habitat de espécies aquáticas.

O Brasil ratificou a Convenção de Ramsar (em 1992) e designou, como uma das cinco áreas a serem especialmente protegidas no seu território, a do Pantanal matogrossense. Isso implica assumir determinadas obrigações e responsabilidades, especificadas pela convenção, tanto em relação ao seu território como nas relações com Estados vizinhos e em empreendimentos posteriores à sua ratificação. Entretanto, é sem preocupar-se com essas obrigações que foram firmados outros acordos internacionais, com os países da bacia do Prata, para idealizar um empreendimento dos mais polêmicos: as obras da Hidrovia Paraguai-Paraná. A magnitude e os impactos previsíveis das obras poderiam levar a desrespeitar algumas obrigações da convenção de Ramsar, como: promover o uso racional das zonas úmidas; realizar consultas sobre a execução das obrigações da convenção, em particular no caso de uma zona úmida ou de uma bacia hidrográfica compartilhada; criar reservas de zonas úmidas. A partir de 1989, concretizou-se um conjunto de questionamentos precisos, formulados por ONG's que organizaram uma coordenação internacional, chamada Coalizão Rios Vivos, para tentar alterar as condições de realização do projeto.

Em relação à informação da opinião pública, à participação das populações diretamente implicadas, à avaliação dos impactos e às outras questões envolvidas, as opiniões variam de maneira considerável, em função das posições ocupadas pelos diversos protagonistas. Segundo o embaixador Rubens Antônio Barbosa, a hidrovia é "um dos exemplos mais marcantes de cooperação regional em projeto de grande envergadura com extensas implicações ambientais. O que se ressalta, neste caso, é o êxito do diálogo dos governos com a sociedade civil, por intermédio de organizações não-governamentais". Dentre os pontos de consenso, "vale ressaltar o compromisso de assegurar que os estudos de avaliação de impactos ambientais sejam abertos ao conhecimento público e que haja participação efetiva de todos os setores interessados pelo projeto(...)" (op.cit. p. 146-147).

Outros autores (Caubet, 1996; Vior, 1996, p.55) mostram as dificuldades em relação a esses assuntos. Eduardo Vior lembra que a Coalizão, constituída em 1994, tinha entre seus objetivos o de requerer ao Comitê Intergovernamental Coordenador da Hidrovia "informação transparente e participação efetiva da população sobre e nas obras a serem realizadas, sua viabilidade econômica e as previsões de impacto ambiental e social. Entretanto, apesar das abundantes promessas públicas de informação e consulta, os governos da Argentina, do Paraguai e do Uruguai iniciaram algumas obras parciais, sem esperar pela finalização dos estudos de viabilidade e de impacto ambiental". Isso porque "os governos envolvidos consideram satisfeito, o requerimento de participação popular, com a simples informação pública sobre os planos a realizar"(p.56). Será necessário dizer que, por "participação efetiva", as ONG's entendem outros fenômenos, comportamentos e práticas?

Essas divergências remetem para outra dimensão do problema da relação entre comércio e meio ambiente; a dos operadores do direito ...e de outros criadores de normas. Com efeito, existem normas que já estão surtindo efeito maior de que as normas jurídicas, muito embora não sejam regras de direito. é o caso das normas das séries ISO 9 000 e ISO 14 000, cuja relevância exige alguns comentários.

OS OPERADORES DO DIREITO E A FORÇA DAS NORMAS

Para a elaboração de normas especificamente "ambientais", existem obstáculos particulares que não podem ser subestimados. Exemplo desse problema é a questão dos direitos de propriedade sobre os diversos bens ambientais. O tratamento diferenciado dos recursos naturais, em função dos diversos sistemas culturais, pode ser ilustrado pelos estatutos jurídicos de certos recursos, como a água, o ar, os peixes, os espaços marítimos, etc. Expressões latinas como res communis ou res omnium communis usus revelam que o problema é antigo. O assunto não é secundário, pois a questão da propriedade está intimamente ligada à da externalidade/internalidade econômica e encontra-se, portanto, à raiz do problema dos elementos que devem ser levados em consideração para estabelecer os custos e os preços dos produtos.

é de conhecimento elementar, que os agentes econômicos tendem a privatizar os lucros e a socializar os prejuízos e custos de produção. Entre as duas opções, de tratar os efluentes de um determinado processo de produção e de se livrar deles sem tratamento, deixando "à natureza" o ônus de arcar com eles, a segunda opção tem preferência generalizada. Nisso reside a externalização do custo: em vez de estar embutido no preço final, o custo da poluição (já que o produto não foi objeto de tratamento adequado) é repassado ao meio ambiente e aos moradores, fauna e flora, dos habitats que recebem os efluentes e resíduos de toda espécie. A rigor, poder-se-ia observar que, muitas vezes, a externalização só pode ser considerada assim por causa da inexistência da fiscalização e da penalização dos culpados pela contaminação. Em muitos países, contaminar a água não é uma conduta lícita. Ao contrário, diversas normas jurídicas proíbem fazê-lo, quer seja através de legislação sanitária, agrícola, penal ou outra. Entretanto, as carências ou omissões na responsabilização dos autores de fatos de poluição, fazem parte do problema de como a ideologia dominante opera e determina as condições de funcionamento do "mercado". Resta constatar que uma das bases de cálculo dos lucros da indústria e do comércio, reside precisamente no fato de que eles conseguem apropriar-se de recursos "sem dono", ou repassar importantes custos de produção ao comum dos mortais em geral, aquele cuja qualidade de vida vai sendo diminuída pelas práticas de emissão de efluentes contaminantes. Neste caso, fala-se em prejuízo para os direitos difusos, os que pertencem indistintamente a todos e cuja proteção costuma ser precariamente garantida.

Nesse contexto, que é o que se verifica no âmbito interno de cada país, pode-se afirmar que existem normas gerais aplicáveis a todos e que também existem recursos jurisdicionais, que objetivam garantir a aplicação do direito e da lei. A existência de um terceiro (o juiz), independente em relação às partes envolvidas num litígio, constitui uma segurança para as relações sociais. Ora, tal não acontece com o Direito Internacional Público, que não comporta a obrigação de submeter um litígio a um terceiro, mediador ou juiz institucionalizado. Ao contrário, o DIP postula o voluntarismo como atitude normal nas relações entre Estados. Nas instâncias jurisdicionais internacionais, as próprias regras processuais objetivam garantir o voluntarismo e a casuística, contra a aplicação "objetiva" de um direito que seria objetivo.

Robert Housman e Donald M. Goldberg (1996, p.89 sg.) estudam os princípios jurídicos pertinentes à resolução de controvérsias entre acordos multilaterais de proteção ambiental e o GATT/OMC. Apontam para diversos soluções possíveis, em matéria de interpretação de disposições de tratados; todas elas conformes à prática do DIP: primazia eventual da norma posterior em relação à anterior; da lex specialis em relação a lex generalis; ou das normas definidas como sendo de jus cogens. Sua dúplice conclusão parece contraditória, pois se de um lado "seja qual for a escola de pensamento a prevalecer, os acordos ambientais devem modificar o GATT", também afirmam, na sua conclusão formal, que: " as regras de interpretação de tratados e de solução de conflitos não fornecem respostas definitivas quanto à necessária conciliação entre as normas gerais do GATT/OMC e aquelas previstas em acordos ambientais internacionais. Estas questões encontram-se numa espécie de limbo jurídico que persiste, em parte, porque tratados ambientais e de comércio internacional continuam percorrendo caminhos paralelos. À luz das práticas governamentais existentes, não tem havido interação entre estes dois tipos de acordo."

Dessa opinião não divergem outros dois autores que se dedicaram, na mesma obra, ao estudo dos princípios de Direito Internacional aplicáveis ao meio ambiente e ao desenvolvimento sustentável (Lacasta e Andrade Neves, 1996, p. 161 sg.). Cada um dos princípios que enunciam e analisam, todavia, está de tal maneira relativizado, nas suas conseqüências práticas, que dificilmente forneceriam uma base para estabelecer a primazia do direito ambiental sobre as exigências do comércio.

Essas tergiversações são tanto mais danosas ao respeito de exigências mínimas que o mundo do comércio, de seu lado, não possui dúvidas em relação ao valor de seus princípios. Já foi citado, na primeira parte deste texto, o propósito do projeto Dunkel: controlar as leis ambientais dos países signatários do acordo, "alinhando as normas de direito ambiental nacional e internacional com os princípios de comércio internacional do GATT".

"Esse-esforço se fundamenta em três princípios amplos: (1) multilateralismo: as ações que afetem o comércio entre os diversos países devem ser tomadas em consonância com regras internacionais amplamente aceitas; (2) não discriminação: todos os parceiros comerciais devem ser tratados igualitariamente e as empresas estrangeiras devem ter os mesmos direitos que as nacionais; (3) harmonização: para obedecer aos princípios de multilateralismo e da não discriminação, as leis comerciais nacionais não podem exceder os padrões internacionais" (Wathen, 1996, pp.26-27). A lógica de base é, pois, cristalina: os acordos comerciais têm primazia e os acordos ambientais, por melhores que sejam suas premissas, devem subordinar-se. é a lição que resulta das soluções encontradas em diversas controvérsias internacionais.

De atuns, golfinhos, tartarugas, camarões e outras espécies...

A decisão do Painel do GATT sobre o caso atum/golfinho, em setembro de 1991, ofereceu um primeiro exemplo de como são justificadas as prioridades comerciais. O MMPA (Marine Mammal Protection Act) dos Estados Unidos, proíbe a pesca de atum em condições que também provoquem a morte de golfinhos, que freqüentemente acompanham os cardumes de atuns. Com base no MMPA, os Estados Unidos haviam aplicado o embargo à importação de atum mexicano, pelo fato dos pescadores mexicanos usarem, fora das águas sob jurisdição norte-americana, redes de arrasto do tipo purse-seine (que se fecha por baixo, ao ser içada), o que importa em captura conjunta de golfinhos com atuns. Os árbitros estabeleceram uma distinção bizantina entre o produto e as condições de produção do produto. Segundo eles, a lei americana desrespeitava as exigências do GATT pelo fato de ela definir a exclusão da importação de atum, com base no processo de captura, e não em função do produto: o próprio atum (French, 1999, p.24).

O Painel do GATT decidiu que o Acordo do GATT proibia a aplicação do MMPA aos barcos pesqueiros mexicanos que operassem fora do território norte-americano. (...) "face ao princípio do multilateralismo previsto no GATT. Este painel também afirmou que leis que regulamentam o processo de colheita ou produção de um produto são prejudiciais ao livre comércio porque podem ser utilizadas para discriminar empresas estrangeiras".(Tom Wathen, p.27).

Nesse caso, está consagrada a solução que consiste em permitir a destruição de espécies sem valor comercial, para garantir o abastecimento do mercado com produtos que apresentam um valor econômico. Nessa atuação do Painel do GATT, verifica-se não haver previsão de nenhum mecanismo de feedback, para produzir normas técnicas, ou outras, adequadas à promoção da pesca do atum não predatória de outra espécie. Mas havia um feedback que permitia garantir a primazia de uma norma comercial, sobre uma norma de proteção ambiental... E o GATT não deixou de restabelecer a primazia do bom senso comercial, um momento ameaçado por desvio de ordem ambiental, mesmo que isso implicasse em desrespeito às normas que devem reger todas as outras: multilateralismo, não-discriminação e harmonização. Afinal, nenhuma dessas três exigências estava desrespeitada no caso. Mas nada deve ser oposto ao dever de fazer comércio a qualquer custo. é por esse motivo que, como as três exigências citadas são formuladas de maneira vaga e com amplíssimas possibilidades de interpretações divergentes e até incompatíveis entre si, é a própria OMC que está encarregada (por ela mesma) de exercer o poder de decisão/interpretação.

Para ressaltar as hipocrisias embutidas nos raciocínios apresentados para justificar as decisões, ainda se deve observar que: 1) os peritos dos painéis e os árbitros do GATT, hoje os da OMC, só chegam a ocupar suas funções em razão de sua dedicação total à defesa dos interesses do comércio; além disso, seus conhecimentos de ecologia ou de questões ambientais são nulos; 2) a OMC não inclui, para julgar os casos, pessoas que estejam totalmente dedicadas à defesa do meio ambiente, ou da sus-tentabilidade das atividades comerciais, ou dos direitos das gerações futuras; 3) a OMC já possui seu próprio sistema de solução de controvérsias, porém nenhum de seus membros está empenhado em promover a criação de um mecanismo internacional equivalente à OMC, para a defesa do meio ambiente ou a promoção do equilíbrio das condições de produção.

Em 1996, o papel do atum passou a ser desempenhado por camarões do Pacífico, o papel dos golfinhos por tartarugas marinhas e o do GATT pela OMC. Desta vez, é a pesca do camarão que induzia uma mortandade não desejada de tartarugas. Em função de dispositivos da lei de espécies ameaçadas, o mercado norte-americano de camarões passou a ser fechado para os produtos cuja captura resultava de uso de equipamentos que não impediam a captura simultânea de tartarugas. Esses equipamentos, de grande simplicidade, são conhecidos pela sigla TED (apetrechos que excluem as tartarugas) e obrigatórios nos USA desde 1988. Os pescadores de 16 países, sobretudo latino-americanos, adotam os TED. A índia, a Malásia e o Paquistão, cujos pescadores não usam os TED, bem como a Tailândia, cujos pescadores usam os TED, decidiram que não deveriam atender a eficiente exigência americana de TED, pois esta exigência nacional, unilateral, não podia ser imposta ao resto do mundo, nem a eles em particular. O Conselho de árbitros da OMC deu-lhes razão, em abril de 1998. Em grau de recurso, na própria OMC, outro conselho admitiu que legislações nacionais poderiam promover medidas de proteção de espécies, mas não da maneira desigual, para os outros países, como a decisão norte-americana fora implementada. Os ambientalistas norte-americanos levaram o caso para seus tribunais internos, cuja decisão final ainda não está conhecida. Essa decisão, todavia, poderia indicar a incompatibilidade entre a legislação norte-americana e as exigências da OMC. Em todo caso, mais uma vez se constata que os mecanismos de maior eficiência, são os que promovem a defesa dos interesses comerciais, contra os ambientais.

O mesmo tipo de raciocínio e de solução também está aplicado pela Corte de Justiça da União Européia. Num caso examinado em 1988, a Corte decidiu que a proteção do meio ambiente pode justificar medidas restritivas à livre circulação dos bens; porém não admitiu, no caso específico, que tal fosse a situação. O que ocorreu, é que o governo dinamarquês, no intuito de lutar contra o desperdício que representa o uso de vasilhames metálicos para cervejas e refrigerantes, decidiu instituir a obrigação de utilizar garrafas, a serem autorizadas pela outorga de licença. A Comissão das Comunidades ajuizou ação contra a Dinamarca, alegando tratar-se de uma barreira ao comércio.

A Corte decidiu que os Estados membros podem adotar medidas restritivas ao comércio, no intuito de proteger o meio ambiente. Entretanto, é necessário respeitar um princípio de proporcionalidade, isto é, adequar os meios utilizados aos objetivos perseguidos, sem excesso. No caso, foi considerada excessiva a exigência dinamarquesa de instituir um pedido de licença para comercializar as bebidas. Embora possa parecer razoável para qualquer um, a decisão dinamarquesa, face à possibilidade de se inventar centenas de modelos de vasilhames para comercializar bebidas, a Corte censura claramente uma disposição com finalidade de proteção ambiental, que deixava todos os concorrentes em pé de igualdade, em prol da circulação totalmente livre das mercadorias.

No mundo comercial europeu, está em vigor o princípio do reconhecimento mútuo das normas nacionais: "O país de importação não pode impedir a comercialização do produto se este corresponde às disposições legais vigentes no país de origem. A aplicação desse princípio conduz a que normas nacionais mais [exigentes] para a proteção da saúde, do consumidor e do ambiente sejam niveladas e equiparadas às dos países cujos standards são mais negligentes'. (Kreissl-Dõrfler, 1995:59). Esse "princípio de nivelamento por baixo" constitui-se em ameaça permanente de sérios retrocessos, onde quer que se promova um mercado comum ou uma área de livre comércio. Essa ameaça já está pairando sobre as relações do Mercosul, onde existem propostas de nivelar as exigências de proteção ambiental, em função das definições do menos exigente dos signatários do Tratado de Assunção (de 1991). No Brasil, o impacto de urna medida desse tipo seria catastrófico para a qualidade de vida de dezenas de milhões de pessoas.

No futuro, os princípios acima mencionados serão reforçados pela normas da ISO relativas à qualidade total (série 9 000) e à produção "ambientalmente correta" (ISO 14 000). Um aspecto muito interessante dessa normatização, é o fato de que ela não corresponde a uma produção normativa juridicamente obrigatória. A ISO - Organização Internacional das Normas - é uma entidade privada, sem poder coercitivo ou jurisdi-cional para exigir a implementação dos padrões (standards) que ela define. No entanto, as exigências da concorrência internacional fazem com que a certificação de conformidade às exigências formuladas pelas séries ISO, torne-se a verdadeira e única chave para ter acesso ao mercado dos países que promovem a adoção dessas normas. De pouco adiantará observar que ditas normas não refletem exigências de ordem ecológica, que são elaboradas por empresários e para empresários, que não há participação de membros da sociedade civil nas reuniões da ISO, e que tampouco os países em desenvolvimento conseguem ter uma participação que respeite sua importância. As séries 9 000 e 14 000 da ISO representam provavelmente a possibilidade de criar a mais importante matriz do comércio internacional do século XXI.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por ser financeiramente total e economicamente global, o mundo também é ecologicamente letal. O atual estado do meio ambiente, em âmbito planetário, é conseqüência de uma cultura que ignora a raiz dos problemas e que não abre espaço, ou muito pouco, à percepção das inúmeras dimensões da crise. A obsessão do lucro é o parâmetro mais relevante das relações internacionais, quer na paz, quer na guerra. Não é, portanto, de se estranhar muito que os setores da atividade econômica que menos se sujeitam a normas, sejam os das finanças e do comércio.

Mas poderia ser objeto de alguma curiosidade ou, pelo menos, de curiosidade um pouco mais disseminada no mundo acadêmico, o fato de que a imensa maioria dos autores constatem a "impotência" dos Estados em disciplinar os movimentos internacionais de capitais, num período em que se verificam abalos consideráveis nos mercados financeiros mundiais (de novembro de 1997: quedas nas bolsas de valores mobiliários do mundo inteiro, até abril de 2000: fortes oscilações do indicio Nasdaq, da bolsa de Nova Iorque). Afinal, até 1939, os movimentos transfronteiriços de capitais eram objeto de regulamentações pormenorizadas e de fiscalização bastante minuciosa. No século da eletrônica, o Estado nacional teria perdido seu poder de controle dos capitais? A oposição que as autoridades constituídas, no mundo inteiro, opõem à taxa Tobin, evidenciam que o problema está em outras esferas.

Quanto à OMC, está decidida a controlar e deter todas as "ameaças-à-livre-circulação- das-mercadorias-e-dos-serviços". Dispõe de muitos trunfos para essa tarefa, a começar pelo fato de que ela certamente pode apresentar-se como porta-voz da ideologia dominante, e de que ela certamente possui os meios, financeiros e de outra natureza, que não estão à disposição da defesa dos direitos humanos ou do meio ambiente. Isso, sem falar de meios processuais de grande simplicidade: a decisão, em última instância decisoria, da OMC, não admite recurso e obriga o Estado vencido no pleito, a adequar sua legislação interna à decisão da OMC. Dessa maneira, os cidadãos "politico-ecologicamente conscientes/corretos" de países que quiserem proteger o meio ambiente, estarão politicamente subordinados aos cidadãos (eventualmente amordaçados) de países que não dedicam uma linha sequer, de sua legislação interna, à defesa do meio ambiente.

Enquanto isso, houve a Conferência de Kioto, em dezembro de 1997, para enfrentar a questão das mudanças climáticas, que fora adiada no Rio de Janeiro, em 1992, bem como em Berlim, em 1995. A União Européia pronunciava-se a favor de uma redução dos gases que provocam o efeito estufa, em 15% até o ano 2010. A administração Clinton, nos Estados Unidos, ainda mais modesta (realista!...), propunha voltar aos padrões de emissão de 1990...no ano de 2012; e criar licenças negociáveis para poluir. A partir dessas bases de "negociação", os resultados da conferência de Kioto serão modestos. A decisão de diminuir as emissões de gases que provocam o efeito estufa, se implementada, importará uma redução de emissão de 7% para os USA, 8% para a Europa, 6% para o Japão. Mas a Austrália ganha o "direito" de aumentar suas emissões em 8%. E todos admitem que as emissões poderão ser objetos de licenças negociáveis: quem polui mais poderá comprar os direitos-de-poluir de quem não chega a degradar até "seu" teto de tolerância... O Princípio Poluidor -Pagador, antiga pedra angular da construção de um mundo mais respeitoso do meio ambiente, estará assim reciclado pela percepção mercantilista dominante no mundo, pois passará a "valer" dinheiro em transações comerciais...cujo objetivo será de "otimizar" economicamente os impactos das mais diversas formas de contaminação.

E tudo isso sob a égide de qual força neutra, técnica e objetiva, de quê tribunal internacional imparcial e dedicado à causa das futuras gerações, das quais tomamos este planeta emprestado? Por enquanto, apenas algumas iniciativas privadas, de ONG's combativas e corajosas, enfrentaram o problema de tentar dar efeito às leis que protegem o meio ambiente, em âmbito internacional. Os Estados e seus representantes só conseguiram produzir normas para fomentar o comércio e protegê-lo contra as iniciativas que podem tolher sua vocação planetária.

Por volta do ano de 2040, o aquecimento da Terra poderia ser de 1 a 2 graus, o suficiente para provocar uma elevação de até 1,5 metro no nível dos oceanos.

Com base nos conhecimentos científicos disponíveis, só se pode afirmar que o aquecimento da Terra poderia provocar esse efeito. Mas não estaria mais do que na hora de aplicar o princípio de precaução?.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Maio 2010
  • Data do Fascículo
    2001
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