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Benjamin & Schmitt: uma arqueologia da exceção

Benjamin & Schmitt: an archeology of exception

Resumos

Situados em pólos opostos da vida ideológica e cultural européia dos anos 20 e 30 do século passado, Walter Benjamin e Carl Schmitt são protagonistas em um complexo jogo de afinidade e repulsa no plano das suas concepções básicas, articuladas em torno do tema do excesso. A autora propõe uma hermenêutica do excesso.


Situated at opposed poles of the ideological and cultural life in the twenties and thirties of the last century. Walter Benjamin and Carl Schmitt are protagonists in a complex play of affinity and repulsion on the level of their basic conceptions, which are built around the theme of excess. The author proposes an hermeneutic of excess.


Benjamin & Schmitt: uma arqueologia da exceção

Benjamin & Schmitt: an archeology of exception

Annie Dymetman

Doutora em Sociologia pela USP

RESUMO

Situados em pólos opostos da vida ideológica e cultural européia dos anos 20 e 30 do século passado, Walter Benjamin e Carl Schmitt são protagonistas em um complexo jogo de afinidade e repulsa no plano das suas concepções básicas, articuladas em torno do tema do excesso. A autora propõe uma hermenêutica do excesso.

ABSTRACT

Situated at opposed poles of the ideological and cultural life in the twenties and thirties of the last century. Walter Benjamin and Carl Schmitt are protagonists in a complex play of affinity and repulsion on the level of their basic conceptions, which are built around the theme of excess. The author proposes an hermeneutic of excess.

Herdeiros do raciocentrismo iluminista, envoltos pela sagitalidade do presente, pelo entusiasmo e pelo desejo de autonomia, defrontamo-nos hoje com o vácuo civilizatório da barbárie, injustiça e violência, da indiferença a elas e até a sua anistia. O enigma sempiterno entre o progresso da humanidade e sua autodestruição. reatualiza-se no clima melancólico e apocalíptico do final do milênio, expresso no ethos da crise do capitalismo, do Estado e da razão que, ao se caracterizar por soluções concretas de curto prazo, tem confrontado propostas que muito rapidamente se mostram inócuas e estéreis.

No nível da economia, seja através do amplo espectro neoliberal – suave totalitarismo de Francisco de Oliveira – que, sob a égide de uma divisão de recursos mais igualitária como produto automático da abertura do mercado, tem retomado o debate em torno das políticas intervencionistas, não intervencionistas e semi-intervencionistas (o Estado mínimo), ou seja através da globalização financeira e seu desenvolvimento extraordinário, em detrimento da produção e do emprego, a crise remete às soluções monetaristas, ao capital financeiro e ao papel dos bancos.

No nível político, através da ambígua globalização/localização –glocalização de Boaventura Souza Santos –, tem-se assistido à reorganização política das nações, culminando em verdadeiros genocídios étnico-nacionais na Europa oriental – ruínas emergentes de situações inacabadas, recalcadas apenas ;– e nos penosos processos de democratização na América Latina, no Brasil sobretudo, marcado pela distribuição, de renda mais injusta do mundo ocidental, numa retomada das discussões em torno das aporias da democracia, do liberalismo e do Estado de direito.

No nível social, num Estado em que as políticas de bem-estar estão cada vez mais minguadas, a crescente conscientização dos direitos e liberdades da cidadania e o fortalecimento da sociedade civil têm propiciado abordagens fragmentarias e pontuais que conformam as novas sociabilidades pos-modernas e que remetem à questão das relações entre indivíduo e Estado, e à questão da justiça e da solidariedade.

As saídas atuais – neoliberalismo, Estado mínimo, organização da sociedade civil – têm se mostrado não só ineficazes como perversas, diante do aparecimento da nova/velha categoria social da barbarie moderna: a exclusão absoluta, a banalização da morte e da injustiça – desde a brutalidade e os assassínios em massa à insegurança do cotidiano das grandes metrópoles, onde convivem imbricados primeiro e terceiro mundo.

O convivio entre barbarie e cultura, justiça e indiferença, entretanto, não é novo: ele remete ao impacto da experiencia de urna certa concepção do político, sem precedentes no passado, os campos de exterminio, enquanto emblema do mal radical e da exclusão absoluta.

Uma revisitação às discussões em pauta no período weimariano, na Alemanha pré-hitleriana de 1919-1933, enquanto metodologia do anacronismo, numa "ida ao passado com questões do presente para retornar ao presente com o lastro do que se compreende do passado, num vaivém entre o antigo e o novo", pode talvez oferecer um recorte novo para o entendimento da atualidade, sob o prisma da barbárie como endêmica às sociedades modernas e racionais que produzem condições em que o efeito de atos individuais ultrapassa os limites da ética, da moralidade e da justiça.

UMA HERMENÊUTICA DO EXCESSO

Com este propósito, pretende-se de introduzir aqui uma hermenêutica do excesso, através de uma interlocução entre Walter Benjamin e Carl Schmitt – visando as aporias do Estado de direito, da democracia, do liberalismo e da concepção de justiça em que estamos mergulhados –, construída a partir das considerações destes dois autores sobre o polêmico artigo 48 da Constituição da República de Weimar. Esse artigo previa o Estado de exceção, que assegurava, sob circunstâncias excepcionáis, amplos poderes ao presidente, inclusive de suspender seções da Constituição e o próprio Parlamento e de intervir com a ajuda das Forças Armadas.

Na medida em que é a intenção deixar falar o passado,– tentou-se manter aqui o estilo discursivo de ambos. A linguagem jurídico-política de Schmitt numa construção cartesiana e linear de um lado e, de outro, Benjamin e a construção de colagens metafóricas e alegóricas.

Casos extremos, Carl Schmitt, jurista constitucional do nacional socialismo e Walter Benjamin, herói solitário da resistência alemã, têm obras ironicamente entrelaçadas. Num jogo de inversos, aproximam-se sobretudo na crítica política: Schmitl, radicalmente contra a democracia liberal e a social-democracia e Benjamin, que na luta política contra o fascismo critica a esquerda social-democrata no poder e, por extensão, o liberalismo e o Estado de direito. Seus registros, entretanto, diferem. O cerne da crítica schmittiana está na questão da governabilidade, enquanto em Benjamin é a revolução que paira no horizonte, no sentido anárquico da eliminação e superação do Estado e do direito.

A posição de Schmitt

A fase de Schmitt aqui em interlocução com Benjamin é a do monismo decisionista dos anos 20, que deve ser visto à luz de sua militância intelectual em termos da revolta intelectual contra a democracia liberal e do que veio a ser conhecido como Konservative Revolution, oxímoro cunhado por Armin Mohler, que caracteriza a direita alemã formada pelos nacionalistas – Deutschnationale – e pelos nacionais socialistas

A crítica schmittiana à democracia parlamentar e ao liberalismo desenvolve os argumentos então em voga na Alemanha e em toda a Europa, segundo a qual o Parlamento tornou-se lobby de interesses privados e ocultos, carimbo de decisões tomadas em negociações de bastidores: "o que os representantes dos interesses dos grandes capitais contratam nas pequenas comissões, é mais importante para o destino de milhões de pessoas, talvez, do que qualquer decisão política". E o diálogo pervertendo o político.

A essência democrática, que repousa sobre a identidade entre lei e vontade geral, sobre a identidade governante/governados, tem por substância a igualdade, não a liberdade. Mas a igualdade só é possível numa comunidade homogênea, em que o governo forte "expressa plenamente o poder político impedindo qualquer ameaça estrangeira à sua homogeneidade". Identificar quem controla é identificar com a vontade de quem a vontade do povo está construída. Paradoxalmente, no limite, a democracia atual revela-se necessariamente antidemocrática, pois a decisão "é válida mesmo contra a vontade do povo, porque o povo não a concede, mas a reconhece", sobretudo na atual democracia das massas desorganizadas, irracionais e ignaras, em que o nivelamento se dá "por baixo".

Com o socialismo no governo, deplora Schmitt, o Estado tornou-se refém dos grupos de interesse e perdeu sua "consciência coletiva unificada". Reduzido a produtores/consumidores, o Estado tornou-se "a somatória de tudo aquilo que não é político". O pluralismo, com a economização de todas as dimensões, termina deteriorando a unidade e soberania do Estado. O poder, fragmentado, fragiliza a existência política do Volk.

A perversão deste argumento desemboca numa defesa do mono-partidarismo, "mais democrático que o pluripartidarismo", por expressar totalmente a unidade do Volk. O voto secreto, nesta leitura,seria antidemocrático por estimular a expressão do interesse privado. Assim, para superar a ineficiência das instituições parlamentares só um governo forte, com todo o poder em mãos do presidente – única instituição autenticamente democrática, posto que o presidente é diretamente eleito pelo povo –, aliado a uma burocracia centralizada e um judiciário e exército autônomos. É o decisionismo em latência, reivindicando um regime de ação ao invés de deliberação, de "conversa sem fim"

Schmitt reivindica um governo totalmente envolvido na dimensão política e sem intervenção na economia – é o Estado total qualitativo –, diferenciado do quantitativo, que intervém em todas as esferas, inclusive na social e na econômica. Pregando o fim do pluralismo/lobbysmo, apoia a ditadura presidencial na pessoa do general Hindenburg, "guardião da Constituição", amalgamando autoritarismo político e liberalismo econômico.

Contra o romantismo político da "burguesia liberal", Sehmitt critica-lhe a poetização do político – e, portanto, seu esvaziamento –, que torna o debate parlamentar mera mise-em-scène. O engajamento estetizado, argumenta, é vivido não como algo que se faz, mas como algo que "acontece". Para o sujeito romântico os acontecimentos não são fruto de escolha e decisão, mas "algo que acontece" e que, por acontecer, se impõe; é a subjetivação e privatização da vida, é o mundo transformado em ocasião. Como o liberal, também o romântico evita tomar decisões.

Apesar da impecabilidade do argumento, Schmitt, ao substituir a arte pela arte romântica por uma política pela política, terminou aderindo a um romantismo às avessas. É uma estetização do político e, pode-se dizer, é também um esvaziamento do político.

O Estado liberal, com sua legislação pacificadora, despolitizaria a sociedade, ocultando o político, que reside na distinção entre amigo e inimigo e na relação entre eles; o inimigo é aquele que deve ser fisicamente eliminado. Separando de forma absoluta a dimensão do público e do privado, para o cristão Schmitt o "Amai-vos uns aos outros" refere-se ao inimigo privado, ao inimicus, e não ao público, o hostes.

Sua definição do conceito de político, construída como refutação ao liberalismo, tem por núcleo a idéia de inimigo interno que se expande e se reproduz em todos os aspectos da vida pública, justificando assim a guerra total do século 20, que, de um lado, inaugura a entrada e o envolvimento de civis na guerra, por conta principalmente dos bombardeios e dos aviões na Primeira Guerra mundial e, de outro, por todos aqueles considerados fora da "normalidade", mesmo que não pertençam ao exército, serem declarados inimigos. É a teoria do "inimigo generalizado", do inimigo epidêmico.

Entretanto, se o político é a relação amigo/inimigo, a pressuposição liberal de que onde prevalece a lei não há violencia eqüivale à renúncia ao conflito, o que torna o liberalismo um "sistema de conceitos desmilitarizados e despolitizados", que visa o fim do político, o fim do domínio da violência e do "espírito de conquista". Assim, o estado de exceção, cujos autores tiveram por intuito garantir a governabilidade, terminou servindo de recurso/mecanismo normalizador/controlador da ordem e da relação amigo/inimigo. Neste sentido, a exceção, a longo prazo, termina não implicando ruptura, e sim perpétua normalização.

Enquanto no liberalismo a dimensão do político eqüivale ao compromisso, ao acordo, à diplomacia, a distinção entre amigo e inimigo identifica o político com o militar, externamente, e com o policial, internamente. Assim, à opção de Schmitt pelo confronto, a pacificação liberal opta pela dominação que o discurso pela não violência mascara. Numa paráfrase a Foucault, e a vigilância do poder disciplinar substituindo o poder soberano.

A leitura de Schmitt do estado de exceção está atada à sua definição de soberania: "soberano é quem decide na situação de exceção". Importa a quem cabe declarar o estado de exceção – na sua versão francesa, no état de siège, é o Parlamento que tem o poder de instaurá-lo e não o presidente, como na Alemanha –, posto que em determinadas circunstâncias é necessário abrir exceções à lei geral. Trata-se da aplicação especial/excepcional de normas gerais, a fim de "encontrar via e procedimento legais para as mais radicais e revolucionárias aspirações..., sem recurso à violência ou à sublevação". É a decisão soberana, portanto, que instaura a ordem a partir do caos, criando a normalidade jurídica na qual atuam as instituições. É a exceção superando o "hamletismo político" liberal.

Embora a exceção apareça em formato de norma, decreto ou lei, ela tem mais afinidade com a decisão do que com a norma, mais com a ação do que com a reflexão ou com o discurso. Pois a decisão não pode ser deduzida da norma, porque a circunstancia ou o critério da decisão não estão contidos na norma. Daí a situação a-normal, a-nômala, a-nômica, problematizada pela suspensão das normas. Se admitir a exceção.implica não submeter o político ao normativo, de forma que a ordem auto-regulada é substituída pela voluntas externa ao sistema, então pode-se dizer que o fundamento da decisão é a decisão como fundamento e que o fundamento da decisão é necessariamente a exceção como fundamento. Soberana, a exceção não pode ser aprisionada pela racionalidade formal do cálculo e da previsão. E, neste sentido, a função da exceção é produção de irracionalidade.

A suspensão da norma no estado de exceção assemelha-se à decisão divina, era que "a decisão soberana é começo absoluto", em que a criação da ordem a partir do nada estabelece e expressiva aproximação entre o soberano e Deus. A secularização em Schmitt desloca a onipotência do legislador divino ao legislador mundano, onde suspender a lei reproduz a faculdade divina de suspender as leis da natureza. Sob esse aspecto o "estado de exceção tem para a jurisprudência um significado análogo ao milagre para a teologia", escreve ele na sua Teologia política.

O liberalismo, ao olhos de Schmitt, pois, e "pretensamente apolítico e mesmo antipolítico". É a negação política do político. O império da lei, em que as liberdades e os direitos do indivíduo devem ser garantidos contra os abusos do legislador, contrapõe-se ao império dos homens, distinguindo entre a norma jurídica e o mandato dependente de uma vontade ou de uma medida, opondo-se à ordem que emana da vontade do Príncipe.

Numa perigosa aproximação da crítica da esquerda, sobretudo da New Left

A idéia moderna de progresso oblitera as lutas, políticas que lhe deram origem. Com o caráter normativo do mercado e sua "harmonia preestabelecida" na sociedade de indivíduos autônomos, a liberdade, semelhante às disciplinas de Foucault, torna-se convivência auto-regulada: a dominação é mascarada pela discussão parlamentar e pela normatividade que emerge, automática e espontânea. O poder perde a dimensão de arbítrio, de expressão de uma vontade particular, e faz da sociedade mera redundância, sistema fechado, autovalidado: "um tudo que se originou de um nada", numa lógica semelhante à do mercado que, emancipado do Estado e da política, fatores exteriores à dinâmica auto-reguladora liberal, para se expandir se autodevora.

Por tratar a exceção como inerente ao Estado de direito, à modernidade e ao mercado, numa lógica em que "tudo que é sólido desmancha no ar", petrificada e naturalizada, ela representa a perpetuação da superação das crises cíclicas, numa perene transformação da crise estrutural em conjuntural. É a decisão que excede o procedimento normativo e normalizado do direito e excede a autonomia e a auto-regulação do mercado.

Mas a normalidade autovalidada, a normalidade/mesmidade, a "norma destruída na exceção" depende de parâmetros externos, o que inverte o próprio fundamento da normalidade: a exceção, produto do rigor democrático do Estado de direito, torna-se o continente dó próprio direito, de.forma que a norma se constrói a partir da exceção. A norma só adquire existência com a garantia constitucional do Estado de exceção, não para assegurar a continuidade da democracia na situação especial e neutralizar a crescente burocracia, como pretendia Weber, mas para garantir a possibilidade do decreto da situação excepcional, se e quando considerado necessário. Daí se considerar o caso limite da situação anormal, em que a suspensão das normas não problematiza a sua instauração, mas é estratégia de poder e de construção da verdade.

O fundamento da decisão, anterior à suspensão da norma, estabelece pois a validade da própria constituição, garantida apenas na medida em que contenha a exceção, na medida em que é contida pela exceção. À anterioridade e primado do dever ser da norma, pertence a vontade, instaurad ora da ordem: é a vontade como fundamento do direito. Admitir a exceção contrapõe uma ordem que é pública na origem, mas que também é fruto de uma vontade exterior às relações entre os indivíduos. Neste sentido, pode-se dizer que para o autor, novamente, a exceção aparece como transcendência e como produtora de irracionalidade.

A leitura de Benjamin

Com a crítica de Schmitt em mente passo à leitura de Benjamin, que, além de em A origem do drama barroco alemão, parece dialogar com o decisionismo schmittiano na sua discussão sobre os dois tipos de violência – fundante e conservadora do direito (e do Estado) e como agente libertador do eterno ciclo reprodutor do direito (e do Estado) –, em seu estudo para a crítica da violencia e nas teses sobre o conceito de História, onde a violência aparece em policroma: ora reprodutora, ciclotímica e controlável, ora messiânica, imprevisível e revolucionaria.

No Trauerspiel o pós-guerra de 1914-18 apresenta a mesma desolação posterior à guerra dos trinta anos, "a mesma dicção torturada, a mesma violencia verbal, a mesma temática do pessimismo". –Nele, a República de Weimar é transportada para a dimensão da liberdade alegórica, onde tudo pode ser dito e cuja força política remete à história presente, numa espécie de metodologia do anacronismo. Fundamentalmente uma crítica da atualidade, a obra de Benjamin visa as táticas da social-democracia, que desde 1900 cindem a esquerda entre reforma e revolução e em torno da derrocada inevitável do capitalismo.

O universo barroco é aqui visto como alegoria do Estado total qualitativo de Schmitt, arrancando o objeto do contexto e denunciando-o enquanto destino, historia infinitamente repetida e recontada. Renovadora, a alegoria recompõe e ressignifica, revelando uma anti-história, urna historia renaturalizada, petrificada, tornada segunda natureza. Nesta, a missão do protagonista, o Príncipe, é de implantar um reino estável – leia-se aqui democracia —, livre de rebelião e da anarquia, exercendo para isso poderes ditatoriais: é o decisionismo..

No Trauerspiel o poder aparece na forma dos dois corpos do rei. Pela polaridade a que se presta o barroco o Príncipe dá visibilidade ao seu corpo-criatura, em toda sua fragilidade e vulnerabilidade, sujeito ao sofrimento e à morte e, sobretudo, como criatura condenada ao poder, sujeita ao sacrifício. Perversão da criação, o abismo entre os dois corpos: a dignidade desmedida da condição principesca e a miséria desmedida de sua humanidade/Enquanto tirano, tem a função soberana de garantir a ordem interna e externa, por todos os meios; enquanto mártir, está sujeito à morte e à aceitação voluntáriado sup1icio, do sacrifício

Ao contrário do herói grego, cuja morte é o sacrifício para romper o destino, anunciando a vitória sobre a ordem mítica dos deuses – guardiães de um antigo direito —, e que promete um novo estado de coisas, a morte do Príncipe barroco é prova de impotência e desamparo, e traz as marcas e os indícios da condenação ao poder: o martírio, o corpo despedaçado, o tirano sacrificado. O destino é onipotente. Assujeita a criatura à ordem de ferro da natureza. Sem transcendência, não anuncia nenhuma ordem nova. O mártir é tirano no controle de suas próprias paixões, transmudando natureza em anlinatureza, em história petrificada. Dilacerado na fronteira entre dois mundos, a condição do príncipe/criatura – fragilidade e vulnerabilidade – é atravessada pela melancolia, pelo luto e, sobretudo, pela hesitação – acedia –, "a sombria indolência da alma". Espécie de "hamletismo político", entre o domínio da natureza e a sujeição à natureza, entre "ser e não ser".

Seu tempo é o ciclotímico eterno retorno. Sem bela morte imortalizadora, â maldição perpetua-se: a vida e prolongada pelas aparições espectrais e, por vezes, como em Hamlet – personagem icônica para vários autores da época, inclusive Schmitt e seu "hamletismo político" –, a ação é deflagrada pelos próprios espectros. Seu registro é noturno, pois a meia-noite é o tempo do retorno ao ponto de partida. É a hora da curva ciclotímica.

Schmilt, o jurista-mor, o Kronjurist do decisionismo, da governabilidade e do Estado total qualitativo, parece ter servido de inspiração à outra personagem central do barroco: ao lado e à sombra do Príncipe, o Conselheiro, "cortesão intrigante" que assessora o governo de mão forte e afasta ameaças internas e externas. Diferencia amigo de inimigo, com um saber que pode se voltar e se volta contra o Príncipe pois, por fidelidade aos homens e à governabilidade, pode trair o Príncipe, que "em seu voluntarismo arrogante quer um Estado imutável, para além do destino e da natureza", ponderando a diferença entre estabilidade e imutabilidade. Conhecedor dos homens e de suas paixões, a quem manipula, também conhece a fragilidade do Príncipe enquanto criatura. Leal, combate a catástrofe; traidor, é a própria personificação da catástrofe. Também o Conselheiro, tal qual ò Príncipe, exerce estoico controle das paixões. No limite, é um santo. O cortesão intrigante, Schmitt, subjuga a criatura que é o outro corpo do Príncipe, para salvá-la da história através do poder.

Virtudes e vícios principescos, assim como manobras e maquinações políticas do Conselheiro, lidam com a arte de governar, de conservar o poder e evitar maus conselhos sobre conquista e remoção de rivais. O drama é intriga, verdadeira trama de catástrofes, criada e tecida pelo Conselheiro, visando governabilidade, enquanto a corte, "covil de assassinos, um lugar de traição". O Conselheiro, tem o caráter ambíguo da soberania/tirania espiritual, do controle das paixões do Príncipe e de suas próprias paixões, do cuidado de si, cuidado do Príncipe, cuidado dos súditos; nisso funda-se a sua dialética. O espírito confirma-se no poder, no exercício da ditadura que exige "rigorosa disciplina interna e inescrupulosa atividade externa". A um tempo lealdade e conspiração.

O paralelo não termina por aqui: a corte barroca, enquanto Reichstag – Parlamento –, locus da salvação secular, sinaliza a intemporalidade paradisíaca perdida. Também sujeita às investidas da natureza, torna-se fonte de ingovernabilidade, seja pela "conversa sem fim", seja pelo formalismo das decisões acordadas a "portas fechadas", tornando-se pois, lugar do vício e do crime. Espaço da conspiração e da rebeldia, provoca a guerra civil, fazendo da corte/Reichstag o inferno, "o lugar da eterna tristeza". No palco/corte/Reichstag, em que as vozes extraparlamentares são as que governam, desdobra-se um espetáculo lutuoso destinado a enlutados, imersos no grande desamparo da orfandade, sem apelo aos deuses.

A alegoria ataca a história que não quer mudanças e que se serve da exceção, como forma irracional/extrarracional da imutabilidade. As personagens, trama e cenário, embora caracterizadas pelos extremos, "um pólo, a história, como natureza cega; o outro, a antrhistória, como história naturalizada", não passam de imanências num universo secularizado. Eterno retorno, recomeço perpétuo. Fantoches nas malhas de ferro de uma história tornada segunda natureza, o barroco é a restauração religiosa da Contra-reforma: é secularização sem transcendência. Vida e salvação profanas, o barroco é "habitado pela antecipação da catástrofe, (não) a messiânica que consuma a história, mas a do destino, que o aniquila" .

É o absolutismo como regime de exceção que retorna na modernidade, exigindo um estatuto constitucional que garanta pacificação e prosperidade. Restaurador da ordem, sua "vocação utópica" é substituir a incerteza da história pela lei de ferro que naturaliza/petrifica a, história instaurada pela vontade do Príncipe. O estado de exceção impõe freios, paralisa e altera a temporalidade, instalando a eternidade onde antes havia secularidade.

A sala do trono é alegoria do cárcere; a alcova, da sepultura; a grinalda de espinhos, da coroa; a harpa, do machado do carrasco. Todas elas alegorias da condenação do Príncipe ao poder, à soberania, à decisão, à exceção. Ao contrário do símbolo, que vê a história na perspectiva transfiguradora da redenção, a alegoria mostra a ruína como fragmento morto, como restos de vida, depois que a história/natureza exerceu sobre ela seus direitos. A alegoria barroca diz morte e significa história.

A salvação que parece transcendencia é ilusão. D's

A história natural implantada pela vontade/decisão do Príncipe está na origem do barroco. Assim, salvar o Barroco é recompor/ressignificar as ruínas e ressuscitar os mortos, como o Anjo da História, o Anjo Barroco que Benjamin discute na suas teses sobre o conceito de história, representa a cintilância que metamorfoseia o morto no vivo. Nossas ruínas, análogas às do barroco, são internas: "o tirano e o mártir vivem entre nós... o luto é nosso elemento".

O Príncipe, o soberano, aquele que decide na e sobre a exceção, representa o progresso da Aufklärung kantiana: em suas mãos o acontecimento, como um cetro, e coisificado, fundado no direito constitucional, no art. 48. É o novo modelo de defesa da inviolabilidade absoluta do soberano, que revela o incomensurável abismo que separa os dois corpos do rei. Impossibilitado de fugir da condenação ao poder, imortalizado o corpo monacal, o locus da exceção da condição principesca está no corpo frágil do rei criatura, corpo de sacrifício e corpo de martírio.

Para Schmitt o sentido do Estado de exceção se perdeu, sobretudo devido ao desejo obsessivo pela transcendência perdida; com a secularização – espécie de racionalismo teológico –, "o direito de exceção deixa de ser direito". É justamente nesta obsessão pela transcendência que se inscreve a hermenêutica do excesso que vê na exceção a forma de tornar o desamparo suportável, embora se trate de glorificação pagã. Do lado "inteiramente mau" do soberano, o terror; do "inteiramente bom", o sacrifício, tão caro à república. A exceção investe o soberano com traços de tirania, mesmo quando as circunstâncias não o exigem. Não seria esta uma astucia do Conselheiro, a fim de reauratizar o degenerado tirano, reassegurar o corpo divino, e evitar sua rendição ao corpo criatura? É o príncipe de Maquiavel que irrompe, destruindo-se e destruindo a corte: sucumbe ao próprio delírio de poder, vítima do abismo de sua própria desmedida.

A antítese entre o poder do governante e a capacidade de governar, por conta dos dois corpos do rei, é resolvida, assim, pela condenação à soberania: diante da indecisão do soberano, do hamletismo político, "o Príncipe, que no estado de exceção tem a responsabilidade de decidir, revela-se...quase inteiramente incapaz de fazê-lo. ... o que se manifesta não é tanto a soberania... como a arbitrariedade brusca de uma tempestade afetiva, sempre mutável, na qual os personagens oscilam como bandeiras rasgadas". A soberania/exceção é meio de superação da tensão/hesitação do corpo, violável do poder.

Na criação/destruição do tirano está a força sacrossanta de sua função, a contradição onipotência/abjeção. Se falhar como pessoa e como governante, sua queda "é também um julgamento que atinge os próprios súditos". No limite, a condenação à soberania tem por finalidade resguardar o povo. Tratar-se-ia de mais uma astucia do Conselheiro? A virtu não está no sacrifício pelo coletivo, mas "na inviolabilidade abstrata da pessoa física e na integridade da carne e do sangue". A atividade histórica se confunde com as maquinações de conspiradores em prol da conservação do poder, não movidos por qualquer convicção revolucionária.

A corle/Reichstag é décor do processo e a alma/corpo é o mecanismo sincronizado que impõe ritmo aos dois mundos e aos dois corpos: um tempo em que se inscreve a vida dos homens e um tempo das astucias do Conselheiro e dos atos do Príncipe que, "como um deus que governa, intervém na exceção e media/normaliza os negócios do Estado.".

Enquanto a exceção do barroco representa aqui o estado de exceção do art..48, segundo a interpretação discricionária de Schmitt, em Benjamin, na Teses sobre a História, ressignificada, ela representa ruptura e revolução: "a tradição dos oprimidos nos ensina que o "estado de exceção" em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade...nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção".

Essa hermenêutica do excesso reproduz-se em outras dimensões constituintes do poder/saber: no direito, na justiça, na moral. No contexto do pacto social do moderno Estado de direito, democrático e liberal, numa espécie de genealogía do direito, em que "a relação elementar da ordem jurídica é a de meios e Tins, Benjamin desconstrói o monopólio estatal da violência, tendo por alvo o fim do Estado (e do direito).

A lei liberal, essencialmente promoção da paz e da vida, antes de mais nada, é garantia de liberdades e de direitos individuais. Critério do processo civilizador, o monopólio estatal da violência pressupõe, antes do pacto, um indivíduo com direito à violencia, de jure e de facto. Revisitado pelo darwinismo, sugere Foucault, este monopólio termina desembocando no racismo de Estado como legitimação do homicídio numa sociedade em que vida e pacificação são a norma.

O Estado de direito, diz Benjamin, proíbe a obténção de fins naturais através da violência porque o que em mãos do Estado garante a ordem e a regulação internas, em mãos do indivíduo, torna-se uma ameaça à própria ordem jurídica. Assim, o Estado legaliza e perpetua a violência não para proteger fins legais, mas o próprio direito e a si mesmo.:No caso limite, na exceção, o monopólio é garantido através do argumento da legítima defesa, quando a violência é ultima ratio contra a ameaça à ordem: quando interna, a greve e, quando externa, a guerra.

Aos olhos do Estado, o direito de greve, não é direito de exercício da violência, mas de se subtrair à violência exercida pelo patrão. Embora não violenta, a greve pode suscitar violência, em legítima defesa. Aos olhos do operário, entretanto, o exercício da greve é um direito enquanto meio para atingir fins. No conflito Estado/operário, este reivindica o direito de greve, enquanto aquele o declara abusivo. Na greve, diz Benjamin, o Estado teme não um ataque violento, mas a transformação das relações de poder entre ele e o trabalhador.

A greve política fortalece o Estado .social democrata, "fortemente centralizado e disciplinado, fórmula da revolução alemã.passada", que é preciso eliminar. A greve revolucionária, embora vise aniquilar o Estado, não é violenta, pois pretende o retorno ao trabalho caso deixe de ser compulsão do Estado. Pretende subverter: a "greve geral marca...sua indiferença para os ganhos materiais da conquista... ela se propõe suprimir o Estado que foi, com efeito, a razão de ser dos grupos dominantes". Assim, a greve como "ruptura de relações" e meio puro, desprovido de violência, embora o Estado a qualifique abusiva, e declare, então, o regime de exceção: trata-se de uma conduta que corresponde ao exercício de um direito, reconhecido, mas qualificada como violenta.

Lembrando a crítica de Schmitl de que a democracia termina por destruir a própria democracia, Benjamin argumenta que o uso do direito de destruir a ordem de direito, mesmo que passivamente é, sem dúvida, uma forma de pressão. Quando o direito criminaliza a greve, trata-se de "contradição de fato na situação do direito e não uma contradição lógica do próprio direito".

O jusnaturalismo legitima-se pela adequação a fins naturais, sem colocar em questão a sua violência que, enquanto fim, leva ao caminho do terror. O juspositivismo, ao contrário, critica os meios, sem levar em conta os fins pois a violência, quando exercida, está nos meios. Esta, para Benjamin, esta é uma antinomia irredutível. É pois preciso, para sair deste círculo, deste cul-de-sac, criticar a dupla função da violência, a que funda o direito, bem como e. a que o conserva. "É preciso provocar o (verdadeiro) estado de exceção para romper a continuidade histórica da violência". O uso da violência para fins jurídicos garante, não a justiça ou o cumprimento das leis, mas o próprio direito. O direito positivo que lida com a conformidade dos meios e é "cego à incondicional idade dos fins", institui duas medidas: uma violência legítima, sancionada e outra ilegítima. Ao fazê-lo, a legitimidade fica restrita e reduzida à legalidade.

Para Benjamin é impossível transformar o Estado: sua negação do Estado é radical. Jusnaturalismo e juspositivismo não resolvem a questão da violência como origem do direito. E é justamente na paz, quando se celebra o fim de um conflito, que a violência como fim natural se revela: Gewalt, expressão da força e do exercício de violência, cumpre assim seu "ciclo" histórico, impondo seu domínio na forma do direito.

Na guerra, vale o mesmo princípio que na greve: a cerimônia de paz é marca e sanção da vitória, para o "reconhecimento de um novo direito" que prolonga a violência da guerra. Trata-se da violência fundadora do direito, onde o militarismo .confirma o uso compulsório da violência como meio, a serviço dos fins jurídicos do Estado e onde o serviço militar obrigatório é um agente conservador do direito. A violência conservadora do direito é extremamente ameaçadora; não tanto pela intimidação que produz como por sua perpetuação.

A pena de morte, "poder sobre vida e morte na forma de ordem jurídica", traz à tona a origem violenta do direito, cujo objetivo não é punir á violação, mas estabelecer o novo direito, tornando visível a promiscuidade no coração do direito: o imbricamento da dupla função da violência, fundadora e conservadora do direito, ainda mais forte na instituição de proteção do Estado, a polícia, que baixa decretos, quando o Estado não mais garante juridicamente seus próprios fins.

A violência fundante autorepresenta-se até que outras violências reprimidas retornem, fundando um novo direito, rumo a um novo declínio. É na ruptura deste círculo de fundação/suspensão/climinação do direito — na ruptura da violência de Estado, da exceção (no sentido de repetição e não de autenticidade, como uma exceção desauratizada) –, que se instaura não uma nova ordem, mas uma nova era.

Direito e justiça percorrem caminhos absolutamente diferentes.Enquanto fundante do direito, a violência está necessária e 'intrínsecamente atada aos fins fixados: a fundação de direito., fundação poder/violência é pois seu princípio mítico, eternamente reproduzido. A justiça, por outra parte, é o princípio divino do fim.

O eterno retorno aparece na substituição do direito por direitos que com ele rivalizam. A Gewalt expressa no mito a eterna repetição do mesmo. O mito fecha a história no seu contrário, na necessidade ciclotímica, no retorno à origem violenta. Todo contrato implica uma violência possível. O parlamento de Weimar, diz Benjamin, é um "espetáculo deplorável", por ter perdido a memória das forças revolucionárias às quais deve sua existência.

Ao direito, campo da "infelicidade e da culpa", da eterna repetição do ciclo mítico, tempo do destino, opõe-se irredutivelmente a justiça, "tempo da redenção". Só a violência divina – "pura e direta/imediata" pode se sobrepor à mítica, na medida em que não instaura um novo direito.

É pela absoluta diferença entre as duas que a política que quer derrubar a ordem da violência jurídica, apenas pode fazê-lo como política dos meios puros, que não transforma, mas destrói o direito; que não pretende a reforma, mas a revolução.

Para Benjamin, a resolução não violenta do conflito só é possível na dimensão privada, pois "a cultura do coração dá meios puros". O conflito político nunca é solucionado através de meios puros, não violentos, pois que sempre desemboca em contrato e compromisso. E mais, "quando a consciência da presença latente da violência dentro de uma instituição jurídica se apaga, esta entra em decadência", renovando as relações perigosas entre o direito e a violência. É o caso do Reichstag de Weimar, pois "falta-lhe o sentido do poder instituinte de direito...por isso não consegue tomar decisões dignas desse poder, mas compromissos de forma supostamente não violenta...o impulso que leva a fazer acordos sem compromisso não parte dele mesmo, mas vem de fora, do impulso contrário".

As soluções por meios puros na esfera pública, o judiciário, abalado e decadente, termina em sua própria criminalização, produzindo violência em reação. E por isso que o Estado, fragilizado, teme enfrentar o direito de greve, preferindo inibir as ações violentas.

No limite, está aí a passagem de hostes para inimicus – um da esfera pública, outro da privada, que Schmitt deixara em aberto. O Estado, através do direito, temendo sofrer ações violentas, institui fins. A fim de "forçar um acordo" e para evitar que os trabalhadores sabotem os meios de produção, a greve que, em sentido amplo, nada tem de violento, é criminalizada. Como vemos, produz novo oxímoro: a construção do crime para salvar o direito. Entretanto, diz Benjamin, para tal decisão é preciso um poder fora da ordem do direito: "quem decide sobre a legitimidade dos meios e a justiça dos fins não é a razão, mas o poder do destino, e quem decide sobre este, é D's" (Critique:171), exatamente no lugar em que Schmitt teria colocado o soberano, "aquele que decide a exceção".

A paz verdadeira – não a paz mítica –, é "redenção", é a "vinda do Justo". Confrontada com a violência que se prolonga no direito, "a não-violência só pode ser messiânica:... legalidade que o pensamento dialético deve infringir – transgredir – dando o salto tigrino para fora desta legalidade" (Matos, 1995:45). A violência dos oprimidos contra os opressores, é violência pura, não mediada, diferenciando-se da que tem o monopólio da legalidade, da verdade e do direito e que reaparece, de forma terrível, nos casos de exceção (que de fato não o são) (Matos, 1995:44).

A religiosidade e redenção messiânicas de Benjamin e seu registro revolucionário devem ser entendidas enquanto secularização judaica do retorno a uma condição paradisíaca, enquanto em Schmitt milagre e transcendência é questão de governabilidade: é para o povo, que só entende milagres e mão forte.

Enquanto a exceção de Schmitt se dá numa temporalidade espacializada e contínua – tempo/espaço do poder –, em Benjamin ela aparece como tempo/espaço da transgressão, que "introduz um novo calendário, cujo dia primeiro funciona como acelerador histórico do tempo", atualizando os "dias de recordação". O tempo a contrapelo da história é tempo da apocatástese, da salvação de todos em todos os tempos, que destrói o passado sem retorno e o futuro enquanto continuidade, pois a vinda do Messias é incontrolável, o que dá ao presente uma dimensão descontínua: um presente carregado de passado. Passado "citável", no tribunal da história, passível de julgamento.

A temporalidade da exceção benjaminiana, "presente que não é transição", dura o instante/repente de uma cintilância (Teses:230). Ao materialista histórico cabe garimpar o "excedente de significado" no interior do passado, único e irrepetível. A temporalidade da repetição, ora como "eterno retorno do mesmo", o destino, ciclo mítico nunca rompido e nunca liberto, ora como "o agora carregado de passado", a tradição, que se refere à "humanidade liberada".

A tragédia moderna, lamenta Benjamin, é a perda da memória do passado como ápice de atualização em um átimo, que rompe o presente, pois as revoluções instauram uma nova concepção de tempo: são aceleradores históricos. Assim a tragédia atual do Parlamento – alusão de Benjamin contra as táticas da social-democracia – é o esquecimento de sua própria origem, a revolução de 1919. A história deve ser rememorada como massacre, a memória como redenção e transcendência; a continuidade é sempre a história dos vencedores, em que a "celebração" e a comemoração ocultam os átimos revolucionários.

A revolução é o verdadeiro estado de exceção. Opõe-se a ela o mito, caracterizado na modernidade pela evolução das forças produtivas, pela compulsão à reprodutibilidade técnica, que se impõe no capitalismo como ciclo perpétuo do idêntico na novidade – no "tempo homogêneo e vazio" em que a idéia da classe oprimida como "sujeito do conhecimento histórico" foi sempre inaceitável, como afirma nas teses sobre a história. O progresso é assim o eterno retorno da catástrofe, um presente no qual o tempo se imobiliza, como processo sem fim, transformado em certeza prescritiva do dever ser, na forma da constituição civil e da paz perpétua, "processo essencialmente automático, percorrendo, irresistível, uma trajetória em flecha ou espiral".

Na sua crítica à social-democracia e à crença na inevitabilidade da revolução proletária Benjamin fala de um "tempo saturado de agoras": é a filosofia da história como teoria da repetição. No entanto, interessa mais a experiência da ruptura que "faz explodir do continuum da história", a agoridade, "absolutamente presente", num salto tigrino em direção ao passado, "sob o céu livre da história", do que as transformações objetivas que ela traz.

O agora benjaminiano é salto, é choque, é brecha. Sua determinação está nos sujeitos que constróem a história, nos heróis. Quando realizada pela classe dominante, a história dos vencedores é repetição; quando realizada pelos oprimidos, é revolução. É preciso alterar os relógios para brecar o tempo e o envelhecimento da experiência. Nas lutas contra o fascismo que petrificou e aniquilou a história e contra a social democracia que transformou a sociedade sem classes em telos definitivo e inevitável, há que romper com o óbvio, posto que a revolução não é objetivo final do progresso e sim ruptura de um processo sem fim.

A alegoria barroca, em sua melancolia, visualiza o homem na fronteira entre a história natural do capitalismo e o começo da libertação messiânica: entre a realidade mítica e a messiânica, entre natureza e transcendência, entre petrificado e redimido.

Para cicatrizar as feridas, é preciso esquecer redimindo, é preciso lembrar. O esquecimento, assim como o historicismo dos vencedores, é recalque do passado. Parodiando Rancière, a exceção benjaminiana não recorre à voluntas externa e soberana, mas ao revolucionário; àquele cuja voz, até então ruído, torna-se fala.

Como a repetição do ciclo mítico está na substituição de um direito por outro, numa perpetuação da violência, a exceção benjaminiana não rivaliza com o direito. Pacificação, compromisso, legalidade, não são pináculo moral mas sua perversão: "sua origem, como a de tudo o que é grande sobre a terra, foi banhado em sangue". É a lei autorizando e regulando a violência, de forma que vence aquele que delas se apodera, inclusive da exceção.

A secularização, enquanto perda do pai e erosão da autoridade, desembocou na metáfora do naufrágio, do crepúsculo dos Deuses, caracterizada pela angústia e pelo desalento; a racionalização do mundo tornou a história um projeto orientado para o futuro. É o cálculo, a previsão, o controle. É a razão instrumental manifestada na sucessão alternada de catástrofes e estados de "normalidade". É a modernidade nascendo em ruínas, fragmentada.

A condição do saber tecnológico que expropria o homem da experiência, é sua redução a sujeito-objeto. A relação entre ele e o mundo dá se agora na inferioridade, pelo simulacro, pela representação da representação, sem vínculo com a experiência, tal qual a romantização da política do Estado liberal de direito para Schmitt e a condição de aceleração da reprodutibilidade para Benjamin. Na secularização do princípio cristão da inferioridade a experiência é substituída pela ratio, pela mensuração e pelo cálculo, numa lógica semelhante ao eterno retorno do barroco, de tolhimento do universo simbólico e sua representação por simulação.

Na construção do saber/poder que fala da guerra como "exceção" e eleva a paz como "normalidade", o progresso é atributo e medida do processo civilizador. Entretanto, esta é a viagem sem volta "do progresso à entropia" que absorve, abocanha e aniquila o "espaço da experiência". Secularização e libertação, paradigmas de auto-afirmação, transferem a soberania do Estado ao indivíduo. A secularização produz o desencantamento como prognose dramática de uma nova escravidão.

Mas a formalização e a racionalização do normativo no tempo secular não resolve a questão da redenção. Benjamin, com a ruptura da normatividade, trabalha com os extremos, com o excesso, com a transgressão do significado e a superação dos limites do estado de exceção como verdade do estado normal, com o paradoxo. "Nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção", a redenção, a apocatástese.

Benjamin compartilha com Schmitt a noção de secularização como proposta de retorno à teologia política. Comum entre eles, a intervenção que suspende o continuum legalidade/serialidade/normatividade, acometido de tendência entrópica. Distingue-os, no entanto, a ruptura do tempo histórico: o Messias que passa pela "porta estreita", contrapondo-se à grandiosidade da representação do Catolicismo Romano do soberano.

Para ambos a secularização é metáfora da modernidade. Enquanto categoria analítica, é a teoria cíclica do progresso/decadência/progresso, expressando a angustia da uma história renaturalizada e petrificada, do desencantamento e da racionalização do mundo.

A revolução, inerente ao conceito de secularização é polivalente: revolução da direita ou revolução conservadora, remete a retorno e restauração. É a revolução como "mudança de acordo com a lei", espécie de "expressionismo revolucionário" – com deformações possíveis ao invés de transformações. Correlato moderno de progresso, instaura o desenvolvimento, o crescimento e a expansão, colonizando o "revolucionário" e tornando-o fator estabilizador. Porção de modernidade não laicizada, que não rompeu com a transcendência, num movimento revolucionário conservador, traduz a velha ordem, mantendo-lhe temporal idade e ritmos, metamorfoseando sua raízes pagãs, judaicas e cristãs, para um tempo histórico mundano, racional, libertário.

Neste sentido, milagre e revolução não necessariamente se vinculam à oposição entre racionalidade e irracionalidade: no capitalismo, cujo mercado se auto-regula e se equilibra – mercado da racionalidade weberiana, da adequação de meios a fins –, evidencia-se o cálculo e o controle na superação das crises, ao transformá-las em crises cíclicas e, ao mesmo tempo, apontando para a "saída" fora do sistema, no domínio do excepcional, a fim de evitar a ruptura.

À imanência liberal, Schmilt opõe exterioridade, vontade de decisão: "admitir um sentido de ruptura do que superficialmente se designa como 'irracionalidade' implica igualmente a ditadura, mas também soberania e absolutismo", como escreve ao discutir a concepção de razão de Estado em Meinecke. A exceção pertence ao imprevisível, vincula-se à predestinação. Se o novo é a exceção, como quer Schmitt, então o Estado em regime de exceção, é modernidade em ato. Modernidade que se excede a si mesma, que é exceção e excesso de si mesma: produtora de irracionalidade, que antropofagiza a ruptura, transformando-a em crise cíclica, superável.

O decisionismo de Schmitt implica o conceito cristão de Deus, como representação da desordem e do caos que só podem ser transformados em lei por pura decisão. Exceção e decisão vêm na soberania – no limite, na pura voluntas legitimada –, o antídoto à competição entre as mercadorias – o mercado liberal – e entre os discursos – o Parlamento, que reduzem o único ao intercambiável. A decisão soberana excede e ultrapassa o mercado, ao mesmo tempo em que garante sua estabilidade, superando suas crises. Assim, o soberano schmittiano iguala-se a Deus, não só pela suspensão das regras como por sua "incomensurabilidade, singularidade qualitativa e irredutibilidade ao cálculo neutro de um processo de troca infinita", na formulação de Martin Jay.

A redução do único ao intercambiável remete à crítica da exceção que se tornou mercadoria banalizada, normalidade. Ao transformar o excepcional em produto em série, em novidade, em natimorto, o liberal, obcecado por segurança, pretende "banir a exceção do mundo", cego à irrevogabilidade do conflito como condição humana: "soberanos decidindo a exceção são necessários devido à natureza das relações humanas".

Para Schmitt, o liberal despreza o milagre/decisão soberana, porque ele exclui Deus do mundo, mesmo que acreditando na sua existência. O liberal, diz ele na Teologia Política, quer um Deus sem ação, um rei desprovido de poder, "que reine mas não governe", ou seja, um administrador.

Teísmo político que inclui imanência e transcendência: o poder de constituir e a potestas de suspender, o Estado de exceção revela o próprio âmago da soberania.

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Deixando assentarem-se esses vestígios do passado, assustadoramente familiares no desamparo que ora vivemos, numa sociedade em que justiça, ordem e liberdade ficam reduzidas à escolha discricionária do Conselheiro ou são relegadas à dimensão divina do milagre, cabe perguntar se não estaríamos testemunhando, no atual Estado de direito, o fim da autonomia, da liberdade e da justiça enquanto valores?

Tendo em mente que a hermenêutica do excesso aqui construída – seja considerando a questão da governabilidade, seja a da eliminação do Estado – desvela a violência como valor que atinge em cheio a liberdade, em última instância, trazendo como oxímoro desta revisitação à primeira democracia alemã, de um lado, violência/liberdade/entusiasmo e, de outro, força/repressão/governo.

Trata-se, pois, agora, de considerar a hermenêutica do excesso, esta arqueologia da exceção um instrumento paradigmático e transportá-la para a análise das relações entre os poderes da atual democracia de direitos e seus oxímoros, na tentativa de construir uma genealogía da exceção.

Mas esta é uma outra história, que fica para uma próxima vez.

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    1Die Konservative Revolution in Deutxchland 19I8-1932:En Handbuch (Darmstadt, Wissenchaftliche Bucligesellschaft. 1989.
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  • 2
    , Schmitt diagnostica a prioridade da norma e sua despolitização como mecanismos de cerceamento da atuação do Estado: submeter a política ao império da lei é confirmar que a "sociedade encontra a sua ordem em si mesma", na sua formulação em
    O conceito do político.
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  • 4
    /Príncipe é imanência no tempo ciclolímico, oposto ao tempo imprevisível da irrupção que explode o
    continuum da história. Entretanto, esse tempo acaba sendo alcançando no barroco, "além dos próprios limites", transgredindo, por conta da alegoria que extrai pela violência "um fragmento de intemporal idade, semelhante ao historiador dialético que extrai do
    continuum da história linear um passado oprimido". É o freio da brecha, apenas tornado visível.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Maio 2010
    • Data do Fascículo
      2001
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