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ARTE, MEMÓRIA, SUJEITO: BANDEIRAS NA PRAÇA GENERAL OSÓRIO 1968 / BANDEIRAS NA PRAÇA TIRADENTES 2014* * Uma primeira versão, mais sintética, deste texto foi publicada na revistaCult , n. 197, dez. 2014, pp. 47-50. As autoras agradecem à equipe do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica pela colaboração na pesquisa que deu origem a este ensaio, e a Moacir dos Anjos por sua cuidadosa escuta

ART, MEMORY, SUBJECT: FLAGS AT GENERAL OSÓRIO SQUARE 1968 / FLAGS AT TIRADENTES SQUARE 2014 - RIO DE JANEIRO (RJ)

Resumo

O ensaio apresenta o happening Bandeiras na Praça General Osório, realizado no Rio de Janeiro em 1968, e descreve a proposta curatorial e os trabalhos artísticos que compõem a sua retomada em 2014, na exposição Bandeiras na Praça Tiradentes, analisando o que na arte contemporânea delineia-se como um trabalho de memória, em uma verdadeira construção política do sujeito e da história.

Palavras-chave:
Arte Contemporânea; Memória; Sujeito; História

Abstract

This essay presents the happening Flags at General Osório Square, which took place in Rio de Janeiro in 1968, and describes the curatorial proposal and the works of art that compose its resume in 2014 for the exhibition Flags in Tiradentes Square, analyzing contemporary art in its facet of labor of memory that constructs both subject and History.

Keywords:
Contemporary Art; Memory; Subject; History

Bandeiras na Praça General Osório

Em um dia quente e ensolarado de fevereiro de 1968, às vésperas do carnaval, ohappening Bandeiras na Praça General Osório reuniu no Rio de Janeiro artistas como Nelson Leirner, Flávio Mota, Carlos Scliar, Hélio Oiticica, Marcelo Nietsche, Carlos Vergara, Rubens Gerchman, Glauco Rodrigues, Anna Maria Maiolino, Petrina Checcacci e Cláudio Tozzi. Entre as bandeiras feitas para a ocasião e penduradas em varais ou em árvores estava a famosa seja marginal / seja herói , de Hélio Oiticica, assim como Alta tensão,de Anna Maria Maiolino, com uma caveira branca no centro de uma espécie de alvo para exercícios de tiro. O estandarte amarelo de Samuel Szpiegel trazia a satírica inscrição Para Governador Geral Vote em Tomé de Souza , sob o perfil da figura histórica do século XVI. O evento contou com a participação da bateria da Mangueira, escola de samba da qual Hélio Oiticica era passista, e a Banda de Ipanema que há apenas poucos anos havia feito sua estreia. Alguns dias depois, os artistas voltariam a ocupar a praça, pondo à venda bandeiras e gravuras e lançando o germe da feira que até hoje ocupa o local aos domingos, alinhando-se a um movimento de auto-organização e saída dos espaços institucionais comuns à época.

As pessoas presentes na praça - dentre as quais estaria Leila Diniz, segundo relatam - talvez pudessem apenas prever as proporções que o terrorismo de Estado tomaria a partir de então no país. Algumas semanas mais tarde, a morte do estudante Edson Luís Lima Souto em conflito com a Polícia Militar, em frente ao restaurante universitário Calabouço, no Rio de Janeiro, deflagraria uma série de protestos populares duramente reprimidos pelo regime. Em 26 de junho de 1968, a Passeata dos Cem Mil, realizada no centro da cidade, traria em meio à imensa massa humana faixas de tecido com palavras de ordem como "Abaixo a Ditadura. O Povo no Poder"como mostra uma famosa foto de Evandro Teixeira, então fotógrafo do Jornal do Brasil . Em reação às manifestações populares, o general Costa e Silva decretaria em dezembro o Ato Constitucional nº 5, que mergulharia o país nos chamados Anos de Chumbo.

Como mostram fotos do mesmo Evandro Teixeira, publicadas no Jornal do Brasilem 18 de fevereiro de 1968, Bandeiras na Praça General Osório aconteceu em clima festivo, sem qualquer intervenção policial, apesar de parte das bandeiras trazerem mensagens de cunho político. Talvez a presença do samba e a proximidade do carnaval tenham circunscrito essa ação na categoria de festa popular, impedindo que sua potência de manifestação política fosse notada pela malha invisível da repressão. Acontecimentos como esse, na fronteira entre festa e manifestação, arte institucionalizada e expressão popular, habitualmente não chegam a ter lugar na historiografia oficial. Eles não deixam, contudo, de ter uma incidência política em sentido ampliado, ao mesmo tempo que dão testemunho do desejo de disseminação da arte na vida e na sociedade que a produção artística brasileira assumiu a partir da segunda metade dos anos de 1960.

Como no evento de 1968, a arte com alguma frequência aproxima-se do carnaval e da potência de outras manifestações populares espontâneas, produzindo brechas no tempo/espaço cotidianos e dissolvendo suas fronteiras institucionais em prol de sua afirmação como ação ético-política na cultura. Ao lado de manifestações artísticas e obras que veiculam discursos políticos mais explícitos, parece-nos importante assinalar na arte contemporânea uma potência de questionamento dos próprios limites nos quais tradicionalmente se localiza a atuação política. Fazendo pulsar a presença do sujeito na cultura, a arte pode fazer surgir zonas efêmeras de indefinição, nas quais se redefine a própria noção de política.

Retomando bandeiras

Trazer à memória o acontecimento de 1968 e reativar seu caráter híbrido, contestatório, foi o objetivo da exposição Bandeiras na Praça Tiradentes, realizada de outubro a novembro de 2014, no Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (CMAHO), no centro histórico do Rio de Janeiro. A concepção curatorial da exposição, de Izabela Pucu, buscava retomar, no esteio dos protestos recentes, iniciados em junho de 2013, a força do evento de 1968, recolocando em pauta as ligações entre arte e outras manifestações sociais, mais explicitamente políticas. Em um amplo trabalho de pesquisa, foram recuperadas informações e fotografias do eventode 1968, revelando obras e documentos antes dispersos em arquivos institucionais e particulares. Dentre elas, destaca-se a página de contato com 36 fotos feitas por Evandro Teixeira, encontradas no Centro de Pesquisa e Documentação do Jornal do Brasil. A folha era identificada como "Festa das bandeiras". Além de consistirem em um testemunho fundamental, as imagens de Teixeira foram importantes instrumentos de identificação dos participantes e de recuperação e réplica de algumas das bandeiras, as quais haviam sido esquecidas por seus próprios autores.

Sete dos estandartes originais foram localizados e expostos. Outras sete bandeiras foram reproduzidas a partir das imagens e documentos de época, enquanto alguns dos trabalhos presentes não puderam ser localizados - como foi o caso das bandeiras de Ana Letícia, Carmela Gross, Luís Gonzaga, Maurício Nogueira Lima, Solange Escosteguy e Vera Ilse Monteiro. Além desse levantamento iconográfico, a pesquisa incluiu entrevistas - com Carlos Vergara, Nelson Leirner, Anna Bella Geiger e Pietrina Checcacci -, que foram gravadas e editadas em filmes que integraram a exposição. As diferentes narrativas, feitas de lembranças e fantasia na mesma medida, desvendam diferentes facetas dessa história, com singulares nuances.

Anna Bella Geiger, que esteve presente no evento, conta que, por medo, decidiu não mostrar a bandeira que havia feito. Já Pietrina Checcacci, cujos estandartes retratam, com ironia e traços típicos da nova figuração, a Família brasileira , O censor, e O político , afirma não ter vivenciado aquele momento como uma clara situação de repressão. Refugiada em sua produção pessoal, cuja autonomia produziu uma espécie de espaço de alienação, ela relata uma sensação de liberdade que contrasta com o testemunho dos demais artistas. As diferenças existentes no testemunho dos artistas parecem-nos dignas de nota na reconstrução histórica da ditadura militar no país, lembrando a complexidade da articulação entre subjetividade e fato histórico.

Em seu depoimento, Carlos Vergara conta que, em 1968, havia uma peculiaridade no meio cultural que foi especialmente atacada pelo poder na ditadura. Nele se integravam não apenas representantes de todas as artes - cinema, literatura, teatro, artes visuais -, mas também intelectuais, professores e universitários de diversas áreas. Além da censura, dos constantes cortes e proibições, o modo de vida que caracterizava esse meio artístico-intelectual foi frequentemente estigmatizado. Como afirmava Gilberto Velho, quando não se podia acusar diretamente as pessoas de subversão, elas eram perseguidas por seu modo de vestir, corte de cabelo, pelo fato de não terem um emprego fixo, por suposto uso de drogas ou homossexualismo declarado, em nome dos "bons costumes" e da "família brasileira". Para Velho (1977, p. 32), "essas acusações e esse processo de estigmatização tinham um caráter eminentemente político", uma vez que desse mesmo mundo partiam críticas contundentes ao sistema vigente. O sociólogo nota que, paradoxalmente, aquela pressão que buscava isolar os grupos pensantes teve como consequência um crescente "sentimento de nós, em áreas antes separadas e distanciadas pela especialização profissional" (Velho, 1977, p. 32).

Em uma proposta curatorial como Bandeiras na Praça Tiradentes,a arte cumpre, sem dúvida, o tradicional papel cultural e histórico que os museus lhe vieram assegurar: trata-se de recuperar um acontecimento artístico (e as obras que dele fizeram parte) e, com ele, de retratar determinado momento histórico. Nessa vertente, a exposição obedece exatamente à lógica da tarefa de memória como mostração do arquivo histórico e eventualmente de desvelamento do que foi recalcado no processo histórico. Mas ela vai além, buscando atualizar o passado no presente e, nessa fricção, transformar ambos. Os protestos de 2013 foram, assim, o fundo no qual a centelha do acontecimento de 1968 pôde reacender, confirmando aquilo que diria Walter Benjamin: "O passado só se deixa fixar, como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido" (Benjamin, 1994BENJAMIN, W. 1994 [1940]. "Sobre o conceito de história". In: BENJAMIN, W.. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política7. ed. São Paulo: Brasiliense.[1940], p. 224). O passado só se fixa como tal em um momento presente: aquele no qual esse passado vibra e pode ser reconhecido. O presente não cessa de reverberar eventos passados, dando-nos a chance de atualizá-los e, em um verdadeiro trabalho de memória, fazer com que se tornem história.

Sujeito e memória

O presente nunca está sozinho, nunca se dá a ver como tal, em sua imediaticidade - nele permanecem sombras e cores do que já se passou. O passado, por sua vez, continua a pulsar, pois não basta que uma vez ele tenha ocorrido - é necessário que ele se dê novamente mais tarde, après coup , retroativamente. De acordo com a teoria freudiana do trauma, são necessários ao menos dois momentos distantes no tempo para fixar a efetividade de um acontecimento. Em sua primeira incidência, a experiência fica encapsulada, como não vivida, à espera. Ela pulsa, clama por se repetir, e ressoa mais tarde, em um segundo momento. Esse instante poderá enganchar-se ao primeiro evento, esquecido, marcando tal experiência como efetiva. Esse dispositivo temporal do trauma - o da repetição em busca da própria experiência - é o motor escondido de todo trabalho de memória.

Não bastam os fatos: devemos nos apropriar ativamente de nosso próprio passado. Por isso, um evento atual pode fornecer a centelha para que (re)conheçamos - em nós - um passado necessário, indispensável ao presente. "Existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa", como dizia Benjamin (1994BENJAMIN, W. 1994 [1940]. "Sobre o conceito de história". In: BENJAMIN, W.. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política7. ed. São Paulo: Brasiliense., p. 223). Eventos pretéritos pulsam ainda, misturados ao cotidiano, quase imperceptíveis; eles estão à espera do gesto de memória que fará deles história. Os fatos ligados à repressão e ao regime de terror vigente no Brasil nos anos de 1960-70 são exemplos pulsantes de eventos desse tipo: eles nos convocam ainda, no presente, e o trabalho artístico (no qual cabe incluir a tarefa de curadores e produtores, nesse sentido) pode assumir e transmitir tal convocação a um público mais amplo. Cabe a cada um optar por atender ou não a tal chamado, prestando-se ou não a tal encontro. Seja como for, "alguém na terra está à nossa espera", como lembra poeticamente Benjamin ao arrematar a citação anterior.

Bandeiras na Praça Tiradentes tentou justamente promover e disseminar tal encontro, pondo em pauta, especialmente, vivências da ditadura que ainda pulsam, atuais, à espera de elaboração e nos incitam a novas (re)construções do passado. Nesse sentido, o artista Carlos Vergara optou por apresentar, ao lado do estandarte de 1968 - que traz uma torneira da qual escorre uma líquida bandeira do Brasil sobre um rosto -, outra peça semelhante, mas transformada por conter um fundo negro em lugar do branco original. "Quis fazer uma alusão aos black blocs ", disse o artista em entrevista à jornalista Mariana Filgueiras. "A mensagem, no fundo, é a mesma: devemos repensar o Brasil, um novo Brasil saindo da torneira, menos militar e mais bem-humorado" (Filgueiras, 2014FILGUEIRAS, M. 2014. "Mostra resgata bandeiras originais de Oiticica, Scliar e Vergara e refaz happening histórico de 1968". O Globo , 3 out. 2014. Disponível em: <Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/mostra-resgata-bandeiras-originais-de-oiticica-scliar-vergara-refaz-happening-historico-de-1968-14117672 >. Acesso em: 29 out. 2014.
http://oglobo.globo.com/cultura/artes-vi...
). Um banho de Brasil: "Yankees go home", diz Vergara na entrevista que integrava a exposição.

Para convocar um interessante cruzamento espaço-temporal, a mostra incluiu ainda um trabalho do artista brasileiro Antonio Dias, da geração de Vergara e dos demais participantes do evento de 1968. O Projeto Bandeira para o Povo foi descrito por Antonio Dias, que se encontrava em Nova York, em carta enviada ao crítico de arte e militante político Mario Pedrosa. Seria sua contribuição para o acervo do Museu da Solidariedade, implantado por uma comissão presidida por Pedrosa em seu exílio no Chile, que recebeu na época doações de artistas e curadores de todo o mundo, em apoio ao governo popular de Salvador Allende. Em carta a Pedrosa, Dias (1972)DIAS, A. 1972. Carta inédita a Mário Pedrosa sobre o Projeto Bandeira para o Povo . Nova York, 17 de fevereiro de 1972. Acervo Museu da Solidariedade Salvador Allende. afirmava seu desejo de que

[...] a bandeira fosse confeccionada aí no Chile e que fosse muito forte como medida, como cor e como altura. Gostaria que fosse uma coisa muito clara, visível para todo o povo. Se vai ser colocada num mastro nos jardins do museu ou num mastro fixo no próprio edifício do museu, isso não tem a menor importância. Basta que seja enorme e visível a todos.

Em um ato nomeado Uma Bandeira, um Memorial, realizado pelo Museu da Solidariedade Salvador Allende, por ocasião do marco de quarenta anos do golpe militar no Chile, em 2013, Dias subtraiu um pedaço equivalente a um sexto da superfície da grande bandeira, de 5 m x 8 m, e dessa bandeira foram feitas 18 réplicas, que foram enviadas a 18 lugares ligados à memória do golpe, dentro e fora do Chile. No dia 11 de setembro, às 10 horas, a bandeira mutilada foi hasteada em todos esses locais.

No Brasil, às vésperas da eleição presidencial de 2014 e cinquenta anos após a tomada do poder pelos militares, a gigantesca bandeira vermelha e mutilada de Antonio Dias podia também ser vista - tanto de dentro do prédio do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica quanto de seu exterior, e até da praça Tiradentes. Sua presença consistia também em uma homenagem a Mario Pedrosa - o homem responsável por politizar o campo da arte no Brasil - no marco dos cinquenta anos do golpe militar de 1964.

Novas bandeiras no tempo

Em 2014, a retomada do evento de 1968 incluiu ainda artistas mais jovens, em especial o Coletivo Norte Comumgrupo que atua nos limites entre arte, produção cultural e ativismo político, durante a residência artística Remixofagia, realizada no Centro Hélio Oiticica por três meses, período no qual os membros do coletivo (Carlos Meijueiro, Roberto Barrucha, Tiago Diniz, Pablo Meijueiro, Gabi Faccioli, Marcell Carrasco, Gê Vasconcellos e João Vitor Santos, entre outros) foram colaboradores essenciais da equipe da instituição no processo de pesquisa e curadoria da exposição. Em uma oficina realizada em parceria com o Coletivo Gráfico, foram confeccionadas doze bandeiras que integraram a mostra. Seguindo uma prática cara ao Norte Comum, ao longo da residência artística foram convidados diversos pensadores para discutir questões como a ideia de ocupação, a permeabilidade entre público e privado e a oposição entre espaço institucional e espaço da rua. Para a abertura da exposição, o grupo construiu estandartes e adereços que foram usados por seus integrantes e pelo público em um cortejo partindo da praça Tiradentes, com a participação da bateria feminina Fina Batucada, do Mestre Riko, e da Bateria Ensandecida do Bloco Carnavalesco e Ponto de Cultura Loucura Suburbanaformado por pacientes do Instituto Municipal Nise da Silveira (antigo Hospital Psiquiátrico Pedro II).

Talvez se possa afirmar que a arte sempre esteve comprometida com uma tarefa histórica, mesmo quando ela não se propunha explicitamente a recuperar eventos passados. Na frequente revisitação de obras de mestres do passado por artistas posteriores, pode-se ver despontar uma explicitação de tal lida com o passado, muito mais do que autorreferência acadêmica ou estratégia didática. O fato de um Pablo Picasso ter em 1957 se ocupado, em uma série de 58 telas, em rever, desmontar e estabelecer novas versões do célebre As meninas (de 1656), de Diego Velázquez, por exemplo, desvela o trabalho artístico como remontagem singular de elementos alheios, de modo múltiplo e infinito e convocando uma temporalidade que é a do só-depois , da retroação como força construtiva.

Criando brechas no espaço/tempo do dia a dia, toda imagem ou proposição artística refere-se sempre a outras imagens, palavras e fatos atuais e passados, incitando a um rearranjo dos mesmos em um presente muito complexo. Nesse sentido, a arte é trabalho de memória, como vimos com Benjamin e Freud: não se trata de conhecer o passado tal como ele de fato aconteceu, mas sim de se apropriar de uma reminiscência e dela , com ela , fazer arte - brecha na qual se entrecruzam tempos e espaços, convidando-nos a uma experiência por vir.

Tal processo de retomada histórica engaja o historiador em seu desejo, conformando aquilo que a psicanálise chama "fantasia" ou fantasma. A fantasia edita os eventos temporalmente, tomando-os em uma narrativa própria. Nela, "o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une", como diz Freud (1976FREUD, S. 1976 [1907]. "Escritores criativos e devaneio". In: FREUD, S..Obras psicológicas completas v. IX. Rio de Janeiro: Imago. [1907], p. 153). No infinito trabalho de narração da memória, o fio condutor é dado pelo desejo, esse errático e mais ou menos obscuro índice do sujeito. A apropriação dos fatos implica sempre, portanto, torções mais ou menos sutis e transformações singulares, ao sabor do movimento do desejo.

Em seu trabalho de memória, a arte explicita e explora tais torções, chamando-nos a uma retomada desejante e transformadora de nosso próprio presente. E ressalta algo fundamental: o fato de que tal trabalho implica o estabelecimento de um laço com o outro, pois se trata da retomada de elementos que vêm do outro - como bem demonstra Picasso ou Waltercio a partir da obra-prima de Velázquez. No processo histórico, a lembrança individual está de saída imbricada à memória como processamento coletivo dos fatos. Como terreno cultural privilegiado de compartilhamento, a arte lida com a memória de modo a nela fazer pulsar o sujeito, convocando sua potência de torção e transformação das narrativas já cristalizadas. Ela demonstra que a fantasia não se opõe à história como algo individual bem delimitado em contraste com o coletivo, mas consiste sempre em um labor de apropriação do que vem de fora, mas é íntimo - éêxtimo , no neologismo de Jacques Lacan (1997LACAN, J. 1997. "A ética da psicanálise". In: LACAN, J.. O seminário. Livro 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.). É uma tarefa de cada um a de transformar o passado - de um povo, de um país etc. - em sua história. Talvez a arte nos lance um convite a tal singularização da história - e, portanto, à sua pluralização, em trabalhos de memória múltiplos, a se refazerem infinitamente entre os homens.

A arte (re)construindo o sujeito

O artista Gustavo Speridião foi convidado a idealizar uma bandeira para a mostra a partir do trabalho seja marginal / seja herói , de Hélio Oiticica. A serigrafia de 1968 traz sobre essa inscrição a imagem do corpo de Alcir Figueira da Silva, reproduzindo a fotografia que já havia aparecido no B44 Bólide Caixa nº 21 , de 1966-67. Silva estava sendo alcançado pela polícia após ter roubado um banco, e preferiu suicidar-se a se entregar.

Antes da figura de Alcir, Oiticica já havia utilizado em um bólide uma fotografia do corpo do bandido Cara de Cavalo, que havia se tornado muito conhecido como símbolo "daquele que deve morrer" e "morrer violentamente" - o que envolveria, como denuncia Oiticica em um texto de 1968, um "gozo social". Cara de Cavalo matara em um tiroteio o detetive Milton Le Cocq, líder de um grupo clandestino de policiais que caçava bandidos. Para vingar o policial, seus colegas executaram o bandido com mais de cinquenta tiros, inspirando o surgimento do chamado Esquadrão da Morte. Alcir Silva, por sua vez, seria um anti-herói anônimo, condenado à incomunicabilidade. Ambos representariam a "denúncia de que há algo podre, não neles, pobres marginais, mas na sociedade em que vivemos" (Oiticica, 2011bOITICICA, H.. 2011b [1968]. "O herói anti-herói e o anti-herói anônimo". SOPRO ,n. 45. Disponível em: <Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/heroioiticica.html >. Acesso em: 31 ago. 2015.
http://culturaebarbarie.org/sopro/arquiv...
[1968]).

Em texto de 1966, no qual explicita sua "posição ética", Oiticica defende "todas as revoltas individuais contra valores e padrões estabelecidos, estagnados, que pregam o 'bem-estar', a 'vida em família', mas que só funcionam para uma pequena minoria". Ele prossegue ligando seu programa poético à intenção de dar "mão forte" a tais manifestações, e afirma que "só um mau-caráter poderia ser contra um Antônio Conselheiro, um Lampião, um Cara de Cavalo, e a favor dos que os destruíram" (Oiticica, 2011aOITICICA, H. 2011a. Museu é o mundo . Organização de César Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Beco do Azougue., p. 84).

Retomando a posição ética de Oiticica, a serigrafia de Speridião apropria-se da imagem do corpo de braços abertos do bandido, acrescentando um policial armado de cada lado, como a arrastá-lo pelo chão, em uma clara alusão aos protestos de 2013 (dos quais o artista participou ativamente, diga-se de passagem). Em uma tirada humorística, o slogan seja marginal / seja herói é substituído por uma citação do artista Carlos Zilio: O único que se libertou com a revolução industrial foi o cavalo . A heroica posição do marginal sacrificado de Oiticica torna-se aqui uma violenta sujeição, mas a paródia dá o troco ao destilar seu humor nas falas dos policiais, que acusam o "elemento" de ter roubado uma imagem do grande Hélio e uma frase de Carlos Zilio.

Nessa transformação da bandeira de Hélio Oiticica, Speridião atualiza e sublinha a violência ao mesmo tempo que a subverte, utilizando-se do humor como tática de resistência e endereçamento ao público. Além disso, as falas atribuídas aos policiais, ao mesmo tempo que explicitam a estratégia apropriativa, colocam incontestavelmente o artista no lugar do próprio marginal/herói. Trata-se de nada menos do que incorporar e assumir, em ato, uma posição político-artística no mundo em que vivemos, construindo para si mesmo um lugar em uma narrativa refeita e retorcida de acordo com estratégias lúdicas e paródicas.

Pós-escrito: infinitas retomadas

As reflexões desenvolvidas até aqui foram em parte apresentadas em novembro de 2014, no evento Memória, Arte e Educação em Direitos Humanos, organizado pela cátedra Unesco de Educação para a Paz, Direitos Humanos, Democracia e Tolerância e o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Na ocasião foi mostrada uma imagem da bandeira de Gustavo Speridião. Durante a discussão que se seguiu, o artista alemão Andreas Knitz, participante do seminário, fotografou a bandeira e a virou de ponta-cabeça, de modo a fazer com que o homem inerte e puxado pelos policiais parecesse surpreendentemente se erguer e, vitorioso, começasse a puxar seus algozes estendidos no chão. Para Knitz, isso mostra que só se realiza um verdadeiro trabalho de memória ao se recolocar em jogo as posições da vítima e do carrasco, de maneira a eventualmente revirá-las e assim chegar a realmente problematizá-las.

Cada trabalho de arte parece, dessa maneira, convocar alguém a dele se apropriar e assim atualizar sua força - fazendo nele mesmo ressoar, a partir daí, a presença pretérita desse gesto transformador.

Bibliografia

  • BENJAMIN, W. 1994 [1940]. "Sobre o conceito de história". In: BENJAMIN, W.. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política7. ed. São Paulo: Brasiliense.
  • DIAS, A. 1972. Carta inédita a Mário Pedrosa sobre o Projeto Bandeira para o Povo . Nova York, 17 de fevereiro de 1972. Acervo Museu da Solidariedade Salvador Allende.
  • FILGUEIRAS, M. 2014. "Mostra resgata bandeiras originais de Oiticica, Scliar e Vergara e refaz happening histórico de 1968". O Globo , 3 out. 2014. Disponível em: <Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/mostra-resgata-bandeiras-originais-de-oiticica-scliar-vergara-refaz-happening-historico-de-1968-14117672 >. Acesso em: 29 out. 2014.
    » http://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/mostra-resgata-bandeiras-originais-de-oiticica-scliar-vergara-refaz-happening-historico-de-1968-14117672
  • FREUD, S. 1976 [1907]. "Escritores criativos e devaneio". In: FREUD, S..Obras psicológicas completas v. IX. Rio de Janeiro: Imago.
  • LACAN, J. 1997. "A ética da psicanálise". In: LACAN, J.. O seminário. Livro 7. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • OITICICA, H. 2011a. Museu é o mundo . Organização de César Oiticica Filho. Rio de Janeiro: Beco do Azougue.
  • OITICICA, H.. 2011b [1968]. "O herói anti-herói e o anti-herói anônimo". SOPRO ,n. 45. Disponível em: <Disponível em: http://culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/heroioiticica.html >. Acesso em: 31 ago. 2015.
    » http://culturaebarbarie.org/sopro/arquivo/heroioiticica.html
  • VELHO, G. 1977. "Vanguarda e desvio". In: VELHO, G. (org.).Arte e sociedade . Ensaios de sociologia da arte. Rio de Janeiro, Zahar.
  • *
    Uma primeira versão, mais sintética, deste texto foi publicada na revistaCult , n. 197, dez. 2014, pp. 47-50. As autoras agradecem à equipe do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica pela colaboração na pesquisa que deu origem a este ensaio, e a Moacir dos Anjos por sua cuidadosa escuta

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Dec 2015

Histórico

  • Recebido
    04 Ago 2015
  • Aceito
    18 Ago 2015
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