RESENHAS
Guilherme Paiva de Carvalho Martins1 1 . Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte - UERN. E-mail: guimemartins@gmail.com
de TOURAINE, Alain. Pensar outramente: o discurso interpretativo dominante (Rio de Janeiro: Vozes, 2009)
Com as mudanças oriundas do desenvolvimento e da difusão das tecnologias de comunicação, baseadas na microeletrônica, novos modos de interação e situações sociais inusitadas exigem de pesquisadores/as das Ciências Sociais uma retomada da reflexão sobre a relação entre indivíduo e sociedade. Na Sociologia, a abordagem de questões concernentes à problemática do sujeito, bem como o tema dos movimentos sociais, ou da subjetividade, quase sempre foi alvo de críticas tanto por parte das teorias funcionalistas quanto do positivismo.
Propondo a formulação de categorias conceituais para dar conta da análise da ação social na contemporaneidade, o sociólogo francês Alain Touraine, no livro Pensar outramente, apresenta um desafio para a pesquisa sociológica: tratar a questão do sujeito como o enfoque central das Ciências Sociais. Discutindo os conceitos de modernidade, consciência, subjetivação e individuação, Touraine concebe uma sociologia do sujeito.
O livro é subdividido em duas partes. Na primeira, Touraine aborda o discurso interpretativo dominante, perspectiva que prevaleceu como paradigma nas Ciências Sociais. Tomando como referência esse paradigma, as pesquisas sociológicas enfatizaram, principalmente, temáticas relacionadas ao trabalho e ao lucro capitalista a partir de uma visão macrossocial. A influência de um discurso interpretativo dominante é visível, sobretudo, nas construções teóricas das Ciências Sociais. O discurso interpretativo dominante sustentou a "perda de sentido das realidades históricas" (p. 12). Essa perspectiva aparece, por exemplo, na teoria da dependência na América Latina, que sustenta a inviabilidade da ação e das reformas sociais, bloqueando a renovação do pensamento social.
Baseado, principalmente, no positivismo, de acordo com o qual, a Modernidade caracteriza-se pela suplantação da religião e das referências aos atores e atrizes sociais, o discurso interpretativo dominante desconsiderou a visão dos indivíduos na análise dos fenômenos sociais. A liberdade do indivíduo é vista como um princípio irrelevante para a pesquisa sociológica. Tal paradigma considera a sociedade como uma organização funcional que submete atores e atrizes sociais a mandos e desmandos de estruturas. Seguindo esse raciocínio, condiçõesexteriores, fixadas pela estrutura social, direcionam as condutas de pessoas que não possuem nenhuma autonomia ou reflexividade. Daí, a irrelevância de analisar a consciência individual e a dimensão da subjetividade.
O discurso interpretativo dominante é entendido como um "conjunto de representações que constitui uma mediação, mas sobretudo a construção de uma imagem de conjunto da vida social e da experiência individual" (p. 25), associada a um poder econômico ou político. Os efeitos do discurso interpretativo dominante podem ser observados, no meio intelectual, em diversos países, como é o caso da influência do funcionalismo de Parsons, nos Estados Unidos, do marxismo, na França, ou da teoria da dependência, na América Latina. Com o predomínio do discurso interpretativo dominante evidencia-se a ideia de "uma sociologia sem atores e sem sujeitos" (p.40), já que o indivíduo se submete ao sistema de dominação, enquanto fatores externos determinam a sua conduta, constituindo um obstáculo para uma compreensão mais abrangente dos fenômenos sociais.
A ideologia liberal relaciona-se com o discurso interpretativo dominante na medida em que, no capitalismo, mulheres, colonizados/as, trabalhadores/as e crianças são submetidos/as a relações de poder que reproduzem desigualdades de gênero, raça e etnia. Na teoria de Marx, por exemplo, os indivíduos se subordinam "à lógica do sistema capitalista" (p. 57), baseada na divisão de classes. No entanto, na sociedade contemporânea, os/as assalariados/as não podem mais ser tratados/as a partir do conceito de classe social, já que as formas de resistências ao poder, os riscos de desemprego, as alianças políticas e os planos sociais dificultam a caracterização do sujeito a partir dessa categoria conceitual. Ao investigar as pressões exercidas por empregados/as ao patronato, que resultaram em negociações em torno da defesa de direitos trabalhistas, a sociologia do trabalho questionou o determinismo econômico e evidenciou as resistências dos/as trabalhadores/as às relações de dominação.
De acordo com Touraine, a obra Vigiar e punir, de Michel Foucault é, muitas vezes, vista como representante do discurso interpretativo dominante. Contudo, questões suscitadas por essa obra e a fase em que Foucault trabalhou com a temática da subjetividade evidenciam uma contraposição ao paradigma funcionalista. Foucault concedeu um espaço central para o sujeito em suas pesquisas, sobretudo, nas investigações concernentes ao tema da sexualidade. O conceito de subjetivação implica em resistências às relações de dominação impostas aos sujeitos. Por isso, Foucault é considerado, por Touraine, como um barqueiro que, ao enfatizar a ideia de sujeito e os modos de subjetivação, direciona a investigação sociológica para a reflexão sobre a perspectiva de atores e atrizes sociais.
Os movimentos sociais e a reivindicação de determinados grupos pelo reconhecimento de direitos e modos de subjetivação repercutem na atual conjuntura, reforçando a necessidade de um deslocamento da análise sociológica em direção à questão do sujeito. Assim, a reflexão passa dos sistemas para os indivíduos, entendidos como sujeitos. Touraine propõe introduzir a perspectiva do indivíduo na investigação sociológica, sem desconsiderar a importância de fatores econômicos e sociais. A mudança de paradigma nos leva a observar a dimensão da subjetividade na análise da ação social.
Na segunda parte do livro, Touraine trata das concepções de modernização, modernidade e individuação. Touraine parte da hipótese de que o modelo europeu de modernização, conduzido pelo domínio da natureza por meio da técnica e da ciência, dirigida por uma elite que inferiorizou trabalhadores/as, mulheres e crianças, encontra-se em fase de decadência. O desenvolvimento econômico ameaça a subsistência do planeta, exigindo um controle mais rigoroso da economia.
A análise da modernidade possibilita uma compreensão mais clara da ideia de sujeito. A partir da noção de universalidade, foi desenvolvida, na modernidade, uma concepção do sujeito como aquele/a que detém direitos universais. O universalismo está fundado em dois princípios básicos: a razão que conduz a racionalidade científica e o reconhecimento dos direitos individuais. Além dos princípios citados, na modernidade observa-se a separação entre a subjetividade e o mundo objetivo. O conceito de modernidade remete a Baudelaire e à noção de que o universal estaria presente no instante. Com o Iluminismo, a modernidade passou a ser concebida a partir do universalismo da razão. A partir daí, atribuiu-se um novo significado ao conceito de cidadania. Para Touraine (2009, p. 74), "o universalismo da cidadania deve sempre ser situado acima de todas as pertenças comunitárias". Todavia, a modernidade não se apresenta de forma homogênea no mundo, havendo uma pluralidade de modelos de modernização.
O processo de globalização e o aperfeiçoamento das tecnologias de comunicação não representam o fim da modernidade, mas a inauguração da nova modernidade. Para Touraine, não vivemos o fim da modernidade, mas uma nova fase da modernidade, marcada pela presença, cada vez mais acentuada, do sujeito. A afirmação da liberdade de escolha é essencial na nova modernidade. Escolher a religião, ou ter o direito de se converter a outra seita religiosa, é um princípio básico da liberdade individual. Assim, a modernidade não existe sem o sujeito e o indivíduo não existe sem a referência à modernidade. Portanto, a modernidade não representa a suplantação da religião, já que, nas sociedades contemporâneas, observa-se o retorno da espiritualidade, o aparecimento de diversas comunidades religiosas e a retomada da questão referente ao sentido da vida.
Com a finalidade de "preservar o lugar do sujeito humano dentro da realidade e nas análises sociais" (p. 82), a sociologia do sujeito propicia a compreensão de fatores como a exploração, a dominação e a libertação, além de questões concernentes às resistências dos indivíduos às relações de poder. A consciência de si como sujeito é um pressuposto para o reconhecimento dos outros, enquanto a individuação combina a perspectiva do indivíduo com a visão da sociedade. Por sua vez, a subjetivação constitui a "descoberta do sujeito a partir do indivíduo empírico" (p. 144), relacionando-se com a reflexividade. Nos direitos humanos, podemos reconhecer o indivíduo como sujeito que tem a capacidade de refletir sobre si mesmo/a, ou seja, como aquele/aquela que tem consciência de si. Nesse sentido, consciência significa "a presença num indivíduo, ou num grupo de indivíduos, de representações de si que carregam nelas julgamentos de valores morais sobre as condutas deste indivíduo ou deste grupo" (p. 142), daí o seu caráter universal.
As pesquisas qualitativas de Touraine (2007) sobre as mulheres evidenciam como elas almejam "construir-se a si mesmas como mulheres" (p. 86). Em suas pesquisas, Touraine utiliza a intervenção sociológica como procedimento metodológico. Essa técnica de pesquisa "consiste em substituir o estudo à distância dos atores e das situações pelo estudo da relação entre o pesquisador e o ator" (p. 97). Seguindo tal procedimento, Touraine propôs que as mulheres mostrassem como elas se representam a si mesmas a partir de suas próprias experiências de vida. A sociologia do sujeito propicia o exame crítico da situação vivenciada por atores e atrizes sociais. "A intervenção do sociólogo reenvia o grupo a ele mesmo, o ajuda a conquistar a imagem de si", mediante "o exame crítico" de situações vivenciadas no cotidiano, atores e atrizes conseguem "se avizinhar da consciência de seus próprios engajamentos" (p. 137).
No Feminismo, a afirmação das mulheres como sujeitos possibilitou a luta pelo reconhecimento de direitos. Por isso, Touraine sustenta que, na atualidade, "a categoria que melhor carrega o sujeito é aquela das mulheres, já que, mais do que qualquer outra categoria, elas por longo tempo viram rejeitado seu direito à subjetividade" (p. 161). As mulheres iniciaram o processo de construção de si mesmas como sujeitos. Desse modo, "o tema da situação atual das mulheres ocupa um lugar central na análise sociológica" (p. 197). A sociologia das mulheres e do feminismo aparece como uma temática de destaque na sociologia do sujeito.
Touraine conclui que, na nova modernidade, a ideia de sociedade é substituída pela noção de sujeito pessoal. A nova modernidade é caracterizada pela passagem de uma sociedade baseada na visão econômica para uma sociedade que toma como referência uma visão cultural, ou uma sociedade de comunicação. A partir das reflexões sugeridas por Touraine, observamos a importância de questionarmos qualquer forma de visão determinista nas Ciências Sociais.
Levando em consideração a pluralidade cultural das sociedades, é difícil considerar a universalidade dos direitos humanos. Por prender-se a uma identidade, o indivíduo tem dificuldade em reconhecer o outro como sujeito. É difícil relacionar o universalismo da cidadania e dos direitos humanos com a diversidade cultural que caracteriza o mundo. A rejeição e a xenofobia são fenômenos que demonstram a dificuldade em reconhecer os outros como sujeitos. Todavia, a proposta de uma sociologia do sujeito é fundamental para uma compreensão mais abrangente da problemática que envolve a relação entre indivíduo e sociedade, suscitando reflexões sobre as dimensões da subjetividade e da objetividade.
- TOURAINE, Alain (2007) O mundo das mulheres. Tradução de Francisco Morás. Petrópolis, RJ: Vozes.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Mar 2012 -
Data do Fascículo
Dez 2011