Acessibilidade / Reportar erro

“Negro: de bom escravo a traficante”. Contribuições de Clóvis Moura à crítica da Guerra às Drogas no Brasil

“Negro: from good slave to drug dealer”. Clóvis Moura’s contributions to the critique of War on Drugs in Brazil

Resumo

No artigo, discorremos sobre as contribuições de Clóvis Moura para a crítica da Guerra às Drogas (GD) no presente estágio do capitalismo dependente brasileiro. Ao resgatar sua análise sobre a formação social brasileira e a centralidade da questão racial, apreendemos como a GD se produz enquanto mecanismo de barragem ao negro, desde sua faceta mais evidente, por meio de mecanismos de criminalização, encarceramento e extermínio, até a forma como se atrela a outros mecanismos de barragem econômicos, políticos e ideológicos (sendo conformada por eles e os conformando). Nisso, se fundamenta e corrobora a construção histórica do negro como mau cidadão - neste caso, como traficante. Ademais, discorremos sobre como a sociologia da práxis negra mouriana permite apreender - e fomentar - a passagem do negro como objeto da GD a sujeito político de sua crítica e superação, vinculando a luta antiproibicionista à luta de classes, orientada a um horizonte antirracista e anticapitalista.

Palavras-chave:
Clóvis Moura; Sociologia da práxis negra; Guerra às Drogas; Racismo; Formação social brasileira

Abstract

In the article we discuss Clóvis Moura’s contributions to the critique of War on Drugs (GD) in the present stage of Brazilian dependent capitalism. Retrieving his analysis of Brazilian social formation and the centrality of racial issue, we learn how GD is produced as a barrier mechanism for black people, from its most evident facet, through mechanisms of criminalization, imprisonment and extermination, to the way in which it links to other economic, political and ideological dam mechanisms (being shaped by them and shaping them). In this, corroborates the historical construction of black people as bad citizens - in this case, as drug dealers. Furthermore, we discuss how Mouras’ sociology of black praxis allows us to apprehend - and foster - the passage of black people as an object of GD to political agents of its critique and overcoming, linking antiprohibitionism to class fight, oriented towards antiracism and anticapitalism.

Keywords:
Clóvis Moura; Black praxis sociology; War on Drugs; Racism; Brazilian social formation

Introdução

No presente artigo, discorremos sobre as contribuições de Clóvis Steiger de Assis Moura (1925-2003) e sua interpretação sobre a formação social brasileira para a análise crítica da Guerra às Drogas (GD) no estágio atual de desenvolvimento do capitalismo dependente brasileiro. Pontuamos como o proibicionismo e, de maneira mais específica, a GD são importantes mecanismos de barragem ao negro, expressando nossas estruturas classistas e racistas, ao mesmo tempo que as reiterando. Ademais, como procuramos evidenciar no título - uma paráfrase da obra O negro: de bom escravo a mau cidadão? (Moura, 2021) -, argumentamos como um dos mecanismos ideológicos de barragem que perpassam e constituem a GD em nosso país é a construção do negro como traficante, justificando o desenvolvimento de um conjunto de estratégias econômicas, políticas e ideológicas que o subalternizam, segregam, encarceram e fatalizam.

A título de aprofundamento teórico, a GD pode ser entendida como a forma contemporânea do proibicionismo, uma sofisticação e recrudescimento das políticas proibicionistas no atual estágio de desenvolvimento capitalista; a “face mais violenta da proibição” (Lemgruber et al., 202: 10). É germinada em solo estadunidense, em 1971, no governo Nixon, atrelada a toda uma engenharia militar que, por meio da retórica de combate às drogas, se destinava, internamente, ao combate, repressão e encarceramento de grupos e organizações de esquerda e movimento negro e, externamente, à dominação imperialista dos países latino-americanos, caracterizados como produtores e distribuidores de tais substâncias, chancelando assim intervenções militares e demais ações restritivas e de controle. Nesse sentido, desde sua gênese já tinha um evidente conteúdo racista.

Trata-se de um ensaio teórico, aportado analiticamente na produção mouriana, bem como na literatura secundária, em trabalhos acadêmicos que se debruçam sobre sua vida e obra, como forma de aprofundar e contextualizar seus postulados. Sobre a GD, apresentamos dados e sua dinâmica em nossa realidade contemporânea a partir de análises históricas e pesquisas atuais das políticas sobre drogas, resultantes de buscas não sistemáticas. Por fim, o exercício analítico, bem como o seu método, isto é, a forma de apreender a realidade tal como ela se produz, encontram-se afiançados no materialismo histórico-dialético, assim como na análise mouriana. Segundo Marcio Farias (2019FARIAS, Marcio. Clóvis Moura e o Brasil: um ensaio crítico. São Paulo: Dandara, 2019.), ao mesmo tempo em que Moura opera a partir do materialismo histórico-dialético, ele produz uma superação por dentro do próprio marxismo, em especial do marxismo dogmático de sua época, questionando transposições descontextualizadas e formulações hegemônicas de cariz economicista, trazendo à tona o papel do negro enquanto agente de dinamização e transformação da sociedade escravista - e de nossa formação social como um todo.

O resgate de Clóvis Moura aqui operado para analisarmos criticamente a GD se deve à sua importância enquanto sociólogo, historiador, jornalista, poeta, cuja produção teórica, acadêmica, sistematizada numa robusta interpretação da realidade brasileira, acompanhou sua caminhada militante-revolucionária. Analisar a GD pelo prisma mouriano se dá pelo papel do autor na reivindicação da centralidade da questão racial em nossa formação social - algo que pode parecer mais banal no presente, mas que no país da democracia racial nunca foi óbvio, até mesmo para a tradição marxista do pensamento social brasileiro (Farias, 2019FARIAS, Marcio. Clóvis Moura e o Brasil: um ensaio crítico. São Paulo: Dandara, 2019.).

Falar sobre GD nessa sociabilidade é, portanto, falar sobre racismo. O racismo fundamenta a proibição de certas drogas, tanto no plano global, como justificativa da expansão e dominação colonial e imperialista (Carneiro, 2018CARNEIRO, Henrique. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.), quanto internamente, em nossa formação social, como no caso maconha (Saad, 2013SAAD, Luísa Gonçalves. “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no Brasil (c. 1890-1932). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.). Abordar a GD enquanto forma contemporânea do proibicionismo e, nisso, como mecanismo de barragem ao negro em nosso país, é remeter à sua estrutura racista engendrada desde o escravismo, que produz uma ideologia justificatória - e é conformada, dialeticamente, por ela. O racismo moderno, que nasce com o capitalismo - como “arma ideológica de dominação” (Moura, 1994______. O racismo como arma ideológica de dominação. Princípios, n. 34, p. 28-38, 1994.: 28), “um dos galhos ideológicos do capitalismo” (Moura, 1994: 29), “uma ideologia de dominação do imperialismo em escala planetária e de dominação de classes em cada país particular” (Moura, 1994: 29) - acaba por penetrar na totalidade das relações produtivas, na estrutura econômica, de onde emerge. Atua mesmo como mecanismo de hierarquização - pela negação e desumanização ainda mais venal do(a) negro(a) - e o consequente rebaixamento da força de trabalho, orientado à produção e extração de mais-valor, demonstrando como há uma relação dialética entre a estrutura e a superestrutura; neste caso, o racismo como arma ideológica, em tese, no plano superestrutural, incide na estrutura, amalgamado ao antagonismo de classes, absorvido por ele e o conformando, dialeticamente.

Além disso, o resgate mouriano se deve não apenas às contribuições incontornáveis que o mesmo nos fornece para a apreensão de nossa realidade e, nela da GD, de modo a nos subsidiar com armas da crítica para uma práxis militante e revolucionária que, no campo das drogas, significa ser antiproibicionista. Um traço marcante de suas análises é a constatação - e reivindicação - do negro como sujeito político em nossa história, rompendo com análises que o tem, por um lado, como mera vítima, sujeito passivo e, por outro, como responsável por nossas mazelas sociais. Por meio de sua sociologia da práxis negra (Oliveira, 2009OLIVEIRA, Fábio Nogueira de. Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.), é possível captar e não apenas o papel do racismo na GD - e da GD para o racismo - como da práxis negra na superação de tal dinâmica; o negro como negação de um aparato e uma dinâmica social que se volta - objetiva e subjetivamente - à sua barragem, à sua negação.

A faceta mais evidente da GD como mecanismo de barragem ao negro: criminalização, encarceramento e extermínio

Ao abordar a condição precarizada e pauperizada do negro em nosso capitalismo dependente, Clóvis Moura (1988______. Estratégia do imobilismo social contra o negro no mercado de trabalho. Revista São Paulo em Perspectiva, v. 2, n. 2, p. 44-46, Abr.-Jun. 1988.: 46) atentou para a concretização de “um permanente processo de imobilismo social que bloqueou e congelou a população negra e não branca permanentemente em nível nacional”. Processo este que tem o racismo como fundamento, gestado no seio da sociedade escravista1 1 Observamos no desenvolvimento mouriano uma aproximação e concordância com a tese - que tem em Jacob Gorender seu principal expoente - de que a colonização e o período escravista dizem do modo de produção escravista. Há amplo debate no pensamento social brasileiro, mesmo na tradição marxista, acerca das vias de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Citamos as reflexões de Caio Prado Jr. (sentido da colonização) e os desenvolvimentos posteriores de José Chasin (via colonial) e Antonio Carlos Mazzeo (via prussiano-colonial) que, em suas especificidades, defendem o caráter e o sentido capitalista do período colonial e da escravidão, em termos de como o capitalismo enquanto modo de produção totalizante, se entificou particularmente na formação social brasileira. Sobre esse panorama e como Clóvis Moura se situa nele, ver Farias (2019). , mas não sendo superado com o fim da escravidão, sofisticando-se e reatualizando-se por meio de mecanismos de barragem, “manipulados pelas classes dominantes racistas para mantê-lo [o negro] nos últimos estratos da sociedade” (Moura, 1988: 44).

No presente, a GD caracteriza-se como um destes mecanismos de barragem, ao passo que utiliza e se relaciona a outros (conformando-os e sendo por eles conformada). A GD como forma de manutenção de uma hierarquia racial (Ferrugem, 2018FERRUGEM, Daniela. Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.). De maneira mais evidente, temos na e a partir da GD a edificação de todo um aparato repressor, criminalizante e de extermínio que tem um suposto combate às drogas como justificativa, mas que, no fundo, volta-se majoritariamente contra a população negra (também jovem, dos estratos mais pauperizados da classe trabalhadora e periférica), construída ideologicamente como responsável por tais drogas, na forma do traficante. De acordo com Nathália Oliveira e Eduardo Ribeiro,

não é a guerra às drogas que inventa o racismo no Brasil, no entanto, sua ideologia organiza ações estatais de grande impacto com um amplo consentimento social que permite que as vidas negras sigam valendo tão pouco (Oliveira & Ribeiro, 2018OLIVEIRA, Nathália; RIBEIRO, Eduardo. O massacre negro brasileiro na Guerra às Drogas. Reflexões sobre raça, necropolítica e o controle de psicoativos a partir da construção de uma experiência negra. SUR, v. 15, n. 28, p. 35-43, 2018: 39).

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2021), em 2020, 50.033 pessoas foram assassinadas, sendo 76,3% negras, 54,3% jovens e 91,3% homens. A letalidade policial atingiu um patamar recorde - mesmo com a pandemia-, 6.416 pessoas mortas em intervenções policiais, sendo 78,9% negras, 76,2% tendo entre 12 e 29 anos e 98,4% homens. Apesar de nem todas estas mortes serem em decorrência da GD, o tráfico de drogas aparece como o indicador mais frequente no banco de dados - mesmo que este também seja bastante falho.

Nesse sentido, a primeira forma de barragem ao negro decorrente da GD é a sua morte; uma barragem pela fatalização, seja diretamente pelo braço repressivo do Estado ou terceirizada por ele, no bojo das disputas entre as chamadas facções. “Negro se mata primeiro para depois saber se é criminoso é um slogan dos órgãos de segurança” (Moura, 1988______. Estratégia do imobilismo social contra o negro no mercado de trabalho. Revista São Paulo em Perspectiva, v. 2, n. 2, p. 44-46, Abr.-Jun. 1988.). E, mesmo depois de morto, continuam outras formas de fatalização subjetiva (era traficante, criminoso, favelado ou, no fim das contas, negro) como justificativa. Tudo isso diz da sofisticação de um modus operandi de controle pelo extermínio, pelo genocídio da população negra, historicamente operado, mas, também, denunciado pela própria população negra, tendo em Moura um nome incontornável ao reiterar o negro como sujeito político em nossa história, como agente de dinamização (Moura, 2014; Farias, 2019FARIAS, Marcio. Clóvis Moura e o Brasil: um ensaio crítico. São Paulo: Dandara, 2019.; Oliveira, 2009OLIVEIRA, Fábio Nogueira de. Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.).

Devido ao fato de a barragem ao negro pela morte ser mais “visível”, ela deve se aliar a outros meios - não menos sutis -, como a criminalização e o encarceramento. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Brasil, 2022), em fevereiro de 2022 tínhamos 673.614 pessoas presas em unidades prisionais no país, sendo que 207.151 (cerca de 30%) eram provisórias. Ao todo, 383.833 eram negras (pretas e pardas), ou seja, 66,7%. Cabe ressaltar que, nessa porcentagem, não entram 98.434 pessoas, sem informações sobre raça. Dos 724.788 presos com dados de tipificação penal, cerca de 30% (218.255) estavam tipificados na Lei de Drogas, ou seja, associado ao tráfico, sendo a segunda maior causa de aprisionamento, só atrás dos crimes contra o patrimônio. No caso das mulheres, essa porcentagem chegava a 58% (17.513 de um total de 30.199), sendo a principal causa de encarceramento, enquanto no dos homens era de 31,2% (200.742 de 643.415). Cabe ressaltar a ascendência histórica das taxas de encarceramento de negros, mesmo nos marcos “democráticos” da Nova República. Não sendo possível - nem inteligente - controlar “apenas” pelo genocídio, desenvolve-se e sofistica-se um aparato repressivo, de criminalização e encarceramento do negro, tendo a GD como sua mola-mestra.

De acordo com levantamento da Agência Pública (Domenici & Barcelos, 2019DOMENICI, Thiago; BARCELOS, Iuri. Negros são mais condenados por tráfico e com menos drogas em São Paulo. Pública, São Paulo, 6 de maio de 2019. Disponível em: <https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/>. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://apublica.org/2019/05/negros-sao-...
), que analisou quatro mil sentenças de tráfico de 2017 na cidade de São Paulo, a proporção de condenação a negros é maior que a de brancos (71% e 67%, respectivamente). Apesar de a frequência de absolvição ser similar (11% para negros e 10,8% para brancos), quando analisadas as diferenças nas tipificações de “posse de drogas para consumo pessoal”, em que a pessoa é enquadrada como usuária e não como traficante, a diferença “em favor” dos brancos aumenta: 7,7% , em comparação com 5,3% para negros. Para piorar, negros foram processados por tráfico com quantidade inferior de maconha, cocaína e crack. Enquanto com brancos, a mediana de apreensão foi de 85 gramas para maconha, 27 gramas para cocaína e 10,1 gramas para o crack, para réus negros as medianas foram respectivamente de: 65 gramas, 22 gramas e 9,5 gramas. Cabe ressaltar que, segundo os dados do Censo de 2010, 63,9% da população de São Paulo se autodeclarou branca e 34,6% negros (IBGE, 2012), ou seja, quase o dobro, o que reforça a constatação da maior criminalização da população negra.

De acordo com o Levantamento Anual do Sistema de Atendimento Socioeducativo (Sinase) 2017, dos 16.716 adolescentes no Sinase que tinham registro de raça ou cor (sendo que outros 9.393 não tinham registros), 10.532 eram negros, ou seja, 63%. Tráfico e associação ao tráfico de drogas foram o segundo ato infracional de maior incidência (atrás de roubo), sendo o primeiro no caso de adolescentes mulheres (Brasil, 2019). Podemos constatar, então, que a GD já atua como mecanismo de barragem ao negro e à negra desde sua infância e adolescência. Ademais, ao prendê-lo ou matá-lo, sua atuação e função não se refere apenas ao imobilismo social, em termos de ascensão social, mas, em última instância, enquanto barragem da vida, de humanização.

Segundo pesquisa intitulada Um tiro no pé, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (Lemgruber et al., 2021LEMGRUBER, Julita et al. Um tiro no pé: impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. Relatório da primeira etapa do projeto “Drogas: quanto custa proibir”. Rio de Janeiro: CESeC, 2021.), a partir de dados orçamentários de 2017, apenas nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo foram gastos R$ 5,2 bilhões para manter a GD, sobretudo nas favelas e periferias, sendo um pouco mais de R$ 1 bilhão no primeiro e de R$ 4,2 bilhões no segundo. Este montante, além de produzir morte e sofrimento, acentuando a já brutal desigualdade do país, não teve qualquer resultado naquilo que se propôs, ao menos no discurso e na aparência: a extinção do consumo de drogas - nem mesmo a redução. Dessa forma, as pesquisadoras concluem que a proibição das drogas no Brasil é um tiro no pé, custa muito caro e não traz resultado, sendo, portanto, ineficiente.

Entretanto, se deixamos de analisar a GD por sua aparência, isto é, o que formalmente se propõe, e a analisamos em termos do que ela concretamente se propõe (e faz), do seu conteúdo e implicações, em suma, de sua concretude - como mecanismo de barragem do negro -, constatamos que, ao invés de um tiro no pé, estratégia falida ou ineficaz, se trata de uma política extremamente eficiente. Por exemplo, o retorno que o Estado tem de seu “investimento”, em termos da criminalização, do encarceramento e do extermínio da massa sobrante preta, pobre e periférica; o que se economiza ao terceirizar a gestão da vida (e da morte) aos grupos vinculados ao tráfico (que são mantidos e fortalecidos pela própria política proibicionista); os próprios imbricamentos do Estado com o tráfico de drogas e de ambos com o mercado financeiro (que gerencia os montantes do tráfico); os ganhos no plano ideológico (p. ex. a manutenção da narrativa do inimigo interno, individualização das mazelas sociais etc., que trabalharemos a seguir); e a acumulação proveniente do setor da “segurança”, afinal, as armas que matam negros são tão mercadorias quanto as drogas. No próprio relatório, sinalizam que se o objetivo é

submeter minorias raciais ao encarceramento e à violência, tornar o mercado de drogas ilícitas mais lucrativo e alimentar o comércio internacional de armas e munições, é possível dizer que a proibição funciona (Lemgruber et al., 2021LEMGRUBER, Julita et al. Um tiro no pé: impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. Relatório da primeira etapa do projeto “Drogas: quanto custa proibir”. Rio de Janeiro: CESeC, 2021.: 9).

Tudo isso faz da GD uma das experiências mais sofisticadas e exitosas de nossa formação social.

Trata-se da criminalização, do encarceramento e do extermínio de negros e trabalhadores, o que nos leva aos imbricamentos de classe e raça; à divisão social e racial do trabalho, com negros ocupando sistematicamente posições mais precarizadas, como os trabalhos informais ou, mesmo, atividades ilícitas - resultado do peneiramento e dos mecanismos de barragem que tolhem dele uma série de oportunidades. Em consonância a Daniela Ferrugem (2018FERRUGEM, Daniela. Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.), há uma profunda sinergia entre raça e classe na produção da GD, expressando as múltiplas determinações de nossa formação social. Como explicita Gabriel dos Santos Rocha (2021ROCHA, Gabriel dos Santos. Prefácio. In: MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão?, p. 7-11. São Paulo: Dandara, 2021.), a modernização capitalista brasileira se deu “acomodada às estruturas coloniais arcaicas, e manteve a racialização da exploração do trabalho empurrando o negro para os estratos mais precarizados da sociedade de classes”. A própria presença majoritária de negros trabalhando no tráfico reforça que:

[e]m determinada fase de nossa história econômica, houve uma coincidência entre a divisão social do trabalho e a divisão racial do trabalho. Mas, através de mecanismos repressivos ou simplesmente reguladores dessas relações, ficou estabelecido que, em certos ramos, os brancos predominassem, e, em outros, os negros e os seus descendentes diretos predominassem (Moura, 2019______. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.: 102-103).

Soma-se ainda a isso um aparato asilar-manicomial, que é também privativo, numa lógica de mercantilização dos processos de cuidado para pessoas com problemas associados ao consumo de drogas e que vem se reinstitucionalizando e reformulando - mais na aparência que no conteúdo - num contexto de contrarreforma psiquiátrica. Podemos dar como principais exemplos, as comunidades terapêuticas enquanto novos (velhos) manicômios que também se voltam à segregação, ao asilamento e controle, e não de quaisquer pessoas, mas sobretudo de negros e pobres - com chancela estatal, aliás. Inúmeras violências e violações de direitos são cometidas por tais instituições, conforme é fartamente documento tanto em pesquisas de caráter regional, como as conduzidas em Minas Gerais (Secretaria de Saúde do Estado de Minas Gerais, 2016) e São Paulo (Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, 2016), como as nacionais (Conselho Federal de Psicologia, 2011; 2018). Tais instituições de violência, cujo caráter violento não se resume à práticas mais extremadas, mas pela própria lógica manicomial que as rege, mesmo que tergiversem retoricamente - por mais que estas práticas também sejam cometidas por uma parcela significativa das CTs como as pesquisas supracitadas elucidam - ganham terreno e força política ao se passarem por instituições de tratamento, de cuidado, acompanhando a ascensão fundamentalista religiosa e embebidas no pânico social e moral das drogas como males em si; ou seja, a base discursiva da GD. Por isso, conformam mecanismos de barragem ainda mais insidiosos, devido à dificuldade de serem reconhecidos como tal.

A GD, direta ou indiretamente (como no caso do asilamento-manicomialização travestido de cuidado), produz mecanismos de barragem ao negro; a GD e seus braços, suas ramificações como um mecanismo de barragem - atrelado a outros. Ao reiterar e reatualizar mecanismos ideológicos de barragem, historicamente sintetizados na noção do negro como inimigo interno, causa de nossos problemas sociais e, por conseguinte, devendo ser morto ou preso (Moura, 2019______. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.; 2021). Inimigo interno por ser negro e, sendo negro, perigoso, cuja periculosidade aumenta enquanto negro e drogado (cuja doença o retira as faculdades mentais, tornando-o incontrolável) ou negro-traficante, como veremos. De acordo com Moura (1988: 46), “identifica-se o crime e a marginalização com a população negra, transformando-se as populações não brancas em criminosas em potencial”. Assim, para compreender a GD como barragem não apenas ao negro, mas ao negro da classe trabalhadora (mormente pauperizado, periférico e jovem), é necessário analisar como se dá a produção deste como trabalhador no tráfico, mais especificamente como essa produção objetiva se alia à construção ideológica do negro como traficante, justificando sua criminalização, prisão e extermínio.

O trabalho no tráfico como mecanismo de barragem e a construção do negro como traficante

A produção do negro como traficante em nossa realidade diz muito sobre uma série de determinações econômicas, políticas e ideológicas. Passa, primeiramente, por mecanismos econômicos de barragem (Moura, 2019______. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.) ou “mecanismos de direcionamento econômico” que conformam uma “sistemática de peneiramento” (Moura, 2021: 31). Com a passagem sem rupturas da estrutura escravista à sociedade competitiva (o capitalismo dependente brasileiro), forja-se uma condição segregadora - de marginalização, nas palavras de Moura -, em que o negro é sumariamente alijado do mercado formal de trabalho, ou mesmo do informal, como demonstrado no/pelo tráfico. Para o negro, a passagem da escravidão stricto sensu ao trabalho livre assalariado se dá, sobretudo, na forma do desemprego, de atividades informais, esporádicas, quando não ilícitas (como sobrevivência).

De modo a justificar essa situação, cria-se um conjunto de ideias mistificadoras, como a do negro indolente, preguiçoso, mau cidadão, incapaz do trabalho assalariado etc., contrariando a própria concretude do negro como sinônimo dos trabalhos mais exaustivos e superexploratórios; como elemento de dinamização de nossa sociedade - até mesmo por negá-la (Moura, 2014______. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois, 2014.). “Elementos ideológicos de barragem social” (Moura, 2019: 94), que emanam dos mecanismos econômico-políticos de barragem presentes até mesmo na classe trabalhadora, criando clivagens e hierarquizações não só inter, mas intraclasses e contribuindo para empurrar o negro às franjas mais subalternizadas da classe trabalhadora. Logo, a condição de inferiorização do negro diz dessa amálgama objetivo-subjetiva: ele é subalternizado objetivamente, e tal realidade objetiva é subjetivada de maneira mistificadora, sendo expressa idealmente de modo que seja justificada e perpetuada. Ao tirar os grilhões físicos da escravidão, a classe dominante (branca) precisou criar ou remodelar outros grilhões objetivos e subjetivos, como forma de manter tal barragem ao negro.

Conforme atestaram Pedro Henrique Costa, Kíssila Mendes e Ítalo Guedes (2021COSTA, Pedro Henrique Antunes da; MENDES, Kíssila Teixeira; GUEDES, Ítalo de Oliveira. Juventude brasileira e o trabalho no tráfico de drogas: pauperização, precarização e superexploração. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., v. 14, n. 3, e18452, 2021.), em revisão da literatura, em nossa realidade presente o tráfico como trabalho se põe a muitos jovens negros e periféricos como uma das parcas possibilidades concretas de sobrevivência, num contexto de precariedade, pauperização e constante alijamento do mercado formal de trabalho, com o exército industrial de reserva (EIR), a superpopulação relativa na apreensão de Marx (2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.), bem como o grosso da força de trabalho superexplorada - como apreende a teoria marxista da dependência - sendo mormente negros/as. Pesquisas são unânimes em reportar o óbvio: que o trabalho no ciclo das drogas ilícitas é majoritariamente negro, jovem, pauperizado e periférico, cujas forças de trabalho são superexploradas (Costa, Mendes & Guedes, 2021).

O ciclo das drogas, isto é, a produção, comercialização e a realização de tais mercadorias no/pelo consumo, como qualquer atividade produtiva no modo de produção capitalista, requer trabalho humano e dispêndio de força de trabalho como produtora de mais-valor. A base da GD, que é a proibição de determinadas drogas-mercadorias - proibição, aliás, alicerçada em preceitos raciais e racistas (Carneiro, 2018CARNEIRO, Henrique. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.; Saad, 2013SAAD, Luísa Gonçalves. “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no Brasil (c. 1890-1932). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.) -, não faz com que o trabalho para produzi-las e comercializá-las deixe de ser trabalho, apenas que se torne ilegal, com todas as consequências deletérias para quem trabalha: ausência de regulação e, portanto, de um colchão de direitos protetivos mínimo e a violência exacerbada na disputa por tal mercado. Logo, a ilicitude de algumas substâncias, que resulta na ilegalidade de seus ciclos, é útil ao ciclo de reprodução do capital; até porque agrega valor às mercadorias - no caso, às drogas-mercadorias -, e, por conseguinte, ao seu mercado.

Nesse sentido, o caráter de ilicitude do ciclo de determinadas drogas, lido socialmente como mau, é, no seu conteúdo e concretude, bom, no que se refere à reprodução do sistema. Essa dialética bom-mau manifesta-se na forma como os agentes também são lidos socialmente. No caso do negro, é permitido produzir mercadorias, comercializá-las, e, nisso, contribuir para a geração de riqueza, desde que esta não seja apropriada por ele. Contraditória e complementarmente - eis a dialética -, ele é punido por isso, mesmo que não se aproprie do valor produzido por sua força de trabalho, como demonstram tanto os dados sobre a dinâmica de trabalho no tráfico (Costa, Mendes & Guedes, 2021COSTA, Pedro Henrique Antunes da; MENDES, Kíssila Teixeira; GUEDES, Ítalo de Oliveira. Juventude brasileira e o trabalho no tráfico de drogas: pauperização, precarização e superexploração. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., v. 14, n. 3, e18452, 2021.), quanto os de encarceramento em massa e homicídios estatais supracitados que têm na GD seu principal mecanismo.

Assim, o trabalho no tráfico para o negro, ao mesmo tempo que uma possibilidade concreta de manutenção e reprodução social, “impede” ou “tolhe” sua ascensão social ou mobilidade vertical - não só em termos dos parcos ganhos para o grosso dos/as trabalhadores/as, cujas forças de trabalho são superexploradas na base do tráfico, como pelo encarceramento e extermínio. Enquanto na aparência fenomênica se apresenta como possibilidade de ascensão social, acaba por detê-la - com as exceções que, usualmente, são tomadas como regras, universalizadas. Para reforçar o caráter de ruindade, maleficência destas ações, foi necessário acoplá-las a indivíduos igualmente ruins ou, segundo Moura (2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
), maus cidadãos. Da mesma forma, a má condição de tais indivíduos reforça o mau caráter de tais ações - e vice-versa. Ou seja, más atividades para maus indivíduos; atividades más, pois de maus indivíduos; indivíduos maus porque em más atividades.

E tal caráter impeditivo advém do proibicionismo, fundamento da GD e materializado nela/por ela, que tem nela a sua forma contemporânea. Por isso mesmo, não se pode desconsiderar as ramificações e implicações da mesma no âmbito das relações produtivas, no mundo do trabalho, que se plasmam àquelas mais evidentes de barragem pela criminalização, encarceramento e extermínio em massa, como discorremos. É assim que a GD se faz (mais) um mecanismo de barragem ao negro, da mesma forma que plasmada e consubstanciada por outros mecanismos que remetem às particularidades de nosso capitalismo dependente, racista.

Ao ampliar o entendimento do caráter impeditivo do tráfico, conforme Costa, Mendes e Guedes (2021COSTA, Pedro Henrique Antunes da; MENDES, Kíssila Teixeira; GUEDES, Ítalo de Oliveira. Juventude brasileira e o trabalho no tráfico de drogas: pauperização, precarização e superexploração. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., v. 14, n. 3, e18452, 2021.: 16), “as condicionalidades de inserção e trabalho no tráfico, propositalmente contribuem para obstaculizar processos de organização e mobilização destes jovens e, consequentemente, de consciência de classe”. O caráter de barragem, pois, não é apenas à mobilidade vertical ou ascensão social, mas à organização política e emancipação humana. E isso se dá ao canalizar e orientar estratégias e mecanismos de revolta contra a ordem só que, em última instância, se voltam contra os próprios indivíduos ou, no máximo, reiteram mecanismos de ação individuais (e individualistas) e falácias meritocráticas. Para além da satisfação de condições objetivas de vida (conseguir comer, ter lugar para morar, roupas para vestir etc.), o tráfico também cumpre papel de socialização, provê sentimentos de pertencimento, de identificação, ao mesmo tempo que se manifesta como mecanismo de revolta sobretudo a jovens, negros, pobres e periféricos, cuja normalidade da vida se dá na/pela negação de uma vida digna. Ora, há de se esperar que tais indivíduos, como reação, criem ou adotem “mecanismos de defesa específicos para tal estado de coisas, elaborando um verdadeiro código de honra de lealdade entre si e de hostilidade às pessoas, grupos ou instituições que representam as forças de repressão” (Moura, 2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
: 32). “Alguns descarregam esse sentimento de frustração na criminalidade e na agressão pura e simples” (Moura, 2021: 33). No entanto, questionamos se (e em que sentido) tal protesto e revolta via tráfico fortalece ou tolhe o negro enquanto sujeito político e sua capacidade de transformar nossa sociabilidade.

Conforme Moura (2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
), um dos motivos para a marginalização do negro foi o tolhimento da capacidade do escravizado elevar suas lutas no plano da consciência, em decorrência da sua condição de escravizado - era difícil estabelecer outra ordenação social, quando se lutava no dia a dia pela sobrevivência. Nesse sentido, “somente através do espírito de rebeldia, da luta e da reelaboração de comunidades livres, ele conseguia a sua reumanização” (Moura, 2020a: 38). A “sublevação quilombola contra o aparelho repressor” (Moura, 2020a: 39), isto é, contra o Estado escravista, ao se confrontar com todo um aparato de violência, só podia combatê-lo “com uma violência idêntica em sentido contrário”; “o escravo tinha de rebelar-se e de usar a violência contra o aparelho de dominação militar, ideológica e política que o desumanizava como ser” (Moura, 2020a: 39). Porém, o trabalho no tráfico e suas implicações não se voltam à reelaboração de comunidades livres, à emancipação humana, mesmo que se confrontem contra o aparelho repressor estatal.

Ademais, ao considerar a dinâmica de profunda precarização e violência do tráfico, mesmo entendido também como protesto/revolta, que se volta contra o Estado ou agentes estatais, ao invés de uma negação da negação (negação de uma realidade desumanizante, espoliadora de humanidade, de uma condição negada, pela afirmação e resgate de humanidade), tal como as rebeliões da senzala (Moura, 2014______. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois, 2014.; 2020a), na verdade corrobora uma condição oprimida, explorada - até por se tratar de uma disputa mercantil, cuja linha de frente é de trabalhadores em condição de trabalho alienado e superexplorado. A apreensão das múltiplas mediações, determinações e sentidos do tráfico não é, portanto, idealização e romantização do mesmo; apenas um exercício de analisá-lo em sua concretude.

Todo esse processo se atrela também à própria desconsideração da atividade no fluxo das drogas como trabalho, ao passo que reforça, mesmo que inconscientemente, a construção ideológica de que trabalho ruim é sinônimo de mau cidadão: de negro/a. Conforme Moura (2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
: 37), “ruindade e bondade são conceitos criados por uma classe social que detém condições de estabelecer o que é bom e o que é mau, de acordo com os valores e ideias dominantes”. Ao se tratar de construção ideológica, aliás, expressa e justifica no plano das ideias a dinâmica e estrutura de dominação. Temos, assim, a mistificação e inversão da funcionalidade da ilicitude das drogas e seu ciclo, isto é, do quanto são bons para nosso capitalismo dependente e suas classes dominantes (brancas), apesar de maus para a classe trabalhadora, especialmente para os/as trabalhadores/as negros/as.

Na esteira de Moura (2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
), toda esta discussão sobre bom ou mau serve para conhecermos o que está por trás da mesma e sua funcionalidade, retirando a análise e a crítica do âmbito da moralidade, e desfazendo-se de noções dicotômicas/maniqueístas, mas apreendendo dialeticamente as múltiplas mediações que fazem do real concreto, concreto. Em nosso caso, a crítica à GD, que não se produz no vazio, mas cujos chãos históricos são os da formação social brasileira enquanto particularidade do modo de produção capitalista.

Uma ponderação a ser feita diz respeito à noção de marginalidade, de marginalização trabalhada por Moura para caracterizar a situação do negro em nossa realidade2 2 Ao trabalhar com as noções de marginalização, franja ou massa marginal, Moura questiona categorias como EIR ou superpopulação relativa para expressar e explicar especificidades da população negra. Segundo Moura (1983: 133), nossa economia dependente, no pós-Abolição, já sob jugo imperialista, necessitou “de um contingente marginalizado bem mais compacto do que o exército industrial de reserva no seu modelo clássico europeu. Havia necessidade da existência de uma grande franja marginal capaz de forçar os baixos salários dos trabalhadores engajados no processo de trabalho. Essa franja foi ocupada pelos negros [...] Tal fato, segundo pensamos, reformula a alocação das classes no espaço social e o seu significado, estabelecendo uma categoria nova que não é o exército industrial de reserva, não é o lunpenproletariat, mas transcende a essas duas categorias”. . Não discordamos da análise e denúncia operadas pelo autor acerca da condição subalternizada, pauperizada e a marginalidade territorial de uma configuração urbana gentrificada, decorrente da amálgama exploratório-opressiva de nossas estruturas classistas e racistas; de sua condição subalternizada na própria classe trabalhadora, cuja hierarquia da estrutura produtiva o aloca no desemprego ou nas atividades “menos significativas social e economicamente (Moura, 2019: 105); da dupla condição de desumanização enquanto negro(a) e trabalhador(a). Contudo, circunscritos à formação social brasileira, tais processos de “marginalização”, não são marginais, mas centrais; não estão à margem, mas no cerne de nosso desenvolvimento.

Ademais, assim como o negro escravizado e seu trabalho eram elementos de dinamização da estrutura produtiva da economia, no regime escravista, o trabalho assalariado dos negros, nas condições rebaixadas do capitalismo dependente brasileiro, também apresentam funcionalidade dinamizadora da teia produtiva no presente. O fato de se darem em condições degradantes diz, justamente, da particularidade do capitalismo dependente brasileiro e de sua estrutura racista, que carece de produzir tal excedente populacional e se utiliza dele para rebaixar ainda mais as condições de reprodução das forças de trabalho, ao passo que, por estes mecanismos, maximiza a produção e apropriação de mais-valor. Se o racismo opera não apenas interclasses, mas intraclasse de modo a hierarquizar trabalhadores, “pois o interesse das classes dominantes é vê-lo [o negro] marginalizado para baixar os salários dos trabalhadores no seu conjunto” (Moura, 2020b______. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020b.: 215), então, o negro e o racismo - que estrutura a dinâmica produtiva, o mundo do trabalho - não são marginais, não marginalizam o negro; pelo contrário, o subalternizam colocando-o no centro das relações de produção - de maneira subalternizada.

O extermínio não significa que o trabalhador precário negro, enquanto EIR, não tenha utilidade, seja descartável, mas que seu volume é tão grande que mesmo algumas “perdas” não rebaixam tal montante a um quantitativo que anule o seu sentido e o seu papel em nossa dinâmica social. Nesse interregno, descobrem-se maneiras de se lucrar com isso, ao passo que se opera toda uma lógica de controle - até mesmo preventiva - dessa massa sobrante que expressa em si as contradições do sistema, trazendo consigo potencial revolucionário - devido à sua quantidade e às próprias condições de vida. No caso do tráfico de drogas, aliás, o fato de ele ser ilegal e realizado pelo EIR (negro), faz dele produto e alavanca de acumulação capitalista, como apregoou Marx (2013MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.) para as atividades ilícitas e à própria superpopulação relativa. E, num contexto de ofensiva do capital contra a classe trabalhadora, por meio de contrarreformas, não só o tráfico tende a se apresentar como alternativa a um número maior de pessoas (negras, pauperizadas, jovens e periféricas), como a dinâmica do trabalho legal, cada vez mais informal e precária também tende a se assemelhar cada vez mais à do tráfico (Costa, Mendes & Guedes, 2021COSTA, Pedro Henrique Antunes da; MENDES, Kíssila Teixeira; GUEDES, Ítalo de Oliveira. Juventude brasileira e o trabalho no tráfico de drogas: pauperização, precarização e superexploração. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., v. 14, n. 3, e18452, 2021.).

Temos, portanto, a noção de traficante como sinônimo de negro, pauperizado e periférico, como construção ideológica altamente sofisticada na esteira das produções históricas do negro bom escravo e mau cidadão. Do mesmo modo que o termo traz uma conotação negativa que reforça a condição social do negro, justificando e recrudescendo ainda mais sua segregação, criminalização, encarceramento e extermínio, tal conotação negativa também já diz de sua utilização para caracterizar o negro; uma continuidade histórica, em que o “novo” diz da maior complexidade do presente, mas que não se produz do nada, no vácuo: um novo-velho, moderno-arcaico, característicos da formação social brasileira. Se “estabelecer o negro como mau cidadão foi a violência necessária que fundou o projeto republicano e a modernização capitalista no Brasil” (Queiroz, 2021QUEIROZ, Marcos. Clóvis Moura e Florestan Fernandes: interpretações marxistas da escravidão, da abolição e da emergência do trabalho livre no Brasil. Revista Fim do Mundo, n. 4, p. 254-280, 2021: 277), reatualizar e sofisticar tal noção, por meio de novas roupagens - com velhos conteúdos -, serve ao recrudescimento da violência contra o mesmo como normalidade.

Reitera-se o negro como negativo - corolário do branco como positivo - ou adiciona a ele mais tintas de negatividade, ao atrelar sua imagem à do traficante. “Quando se fala do negro brasileiro costuma-se dizer que ele foi ótimo escravo e, atualmente, é péssimo cidadão” (Moura, 2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
: 27), até porque é tudo traficante, conforme o senso comum; ou é traficante porque é mau cidadão - quando se é cidadão. Caso ficasse na passiva espera da morte, aceitando sua condição subalternizada, tudo bem; o problema é buscar emprego, trabalhar, revoltar-se. Não à toa, a noção de traficante colide com a de cidadão; são antagonistas, cujas relações se dão na base da negação uma da outra; se se é um, não se pode ser o outro. Conforme Clóvis Moura:

É visto ainda como mau cidadão negro aquele que vive nas favelas, nos cortiços, nos mocambos nordestinos e se situa nas mais baixas camadas sociais, como operário não qualificado, doméstica, mendigo, biscateiro, criminoso ou alcoólatra. É exatamente aquele segmento descendente do escravo, hoje apenas negro livre, porém que não foi, ainda, incorporado, na sua grande maioria, a não ser formalmente, à sociedade civil atual, como cidadão (Moura, 2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
: 29).

O negro: de objeto da GD a agente de sua superação

A partir do exposto, constatamos que a GD não se volta às drogas-mercadorias, mas às mercadorias que as produzem: as forças de trabalho que têm classe e raça muito bem definidas. Se “[o] racismo brasileiro quer um país ‘eugênico’” (Moura, 1994______. O racismo como arma ideológica de dominação. Princípios, n. 34, p. 28-38, 1994.: 32), ele precisa de meios para isso. A GD é um deles. A nosso ver, o principal em nossa realidade contemporânea; um grande aparato de barragem ao negro, conjugando e reiterando mecanismos de barragem ideológicos, econômicos e políticos. Nada mais sofisticado e eficaz que mecanismos e estratégias impeditivos, cerceadores e eugenistas, sem serem reconhecidos como tal; parafraseando Moura (2019: 109), para quem o Brasil “teria de ser branco e capitalista”, a Guerra às Drogas no Brasil teria de ser negra e capitalista, ou melhor dizendo, contra negros e capitalista.

Assentados na sociologia da práxis negra de Clóvis Moura (Oliveira, 2009OLIVEIRA, Fábio Nogueira de. Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.), em sua historiografia que apreende a dialética radical do negro no Brasil e do Brasil negro (Moura, 2020b), se a GD tem o negro como seu principal objeto, o negro, dialeticamente, se põe como o sujeito de negação e superação da GD. Se a interpretação mouriana sobre a realidade brasileira contribui para que “o negro saia da condição de objeto da história para reaparecer como agente humano e elemento dinamizador da ordem social” (Queiroz, 2021QUEIROZ, Marcos. Clóvis Moura e Florestan Fernandes: interpretações marxistas da escravidão, da abolição e da emergência do trabalho livre no Brasil. Revista Fim do Mundo, n. 4, p. 254-280, 2021: 261), a extração de suas análises e reflexões para a crítica da GD, objetiva que o negro saia da condição de objeto da mesma para reaparecer como agente humano e elemento dinamizador das políticas sobre drogas, passando pela superação da GD.

Nesse sentido, é premente demarcar a importância do protesto negro (e periférico) na crítica à GD e seu caráter classista e racista. Grupos, partidos, políticos, organizações, movimentos sociais, militantes, pesquisadores, as próprias vítimas do genocídio, negros(as) têm permanentemente atuado e denunciado a GD, apontando para a sua superação, numa perspectiva antiproibicionista3 3 Rememoramos Marielle Franco, parlamentar mulher, negra, periférica e socialista, que, pouco antes de ser assassinada, questionou: “Quantos mais vão precisar morrer para essa guerra acabar?”. Citamos também alguns movimentos, como a Iniciativa negra por uma nova política sobre drogas, a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), Rede de Observatórios da Segurança, dentre outras, não descartando também a atuação de variados e destacados militantes e pesquisadores. Certas referências aqui colocadas são de alguns destes atores e iniciativas. . A partir da análise mouriana, entendemos tal movimento como uma necessária e potente forma de aquilombar a luta antiproibicionista, de quilombagem da luta antiproibicionista ou de aquilombamento antiproibicionista. Algumas das próprias alternativas ao proibicionismo e à GD, na forma de propostas de legalização e regulamentação das drogas, têm sido questionadas em termos de suas insuficiências quanto à população negra, quanto ao seu caráter antirracista, como, por exemplo, se pautam medidas de reparação histórica às vítimas e a concessão de anistia a pessoas condenadas por associação ao tráfico no âmbito varejista (Oliveira & Ribeiro, 2018OLIVEIRA, Nathália; RIBEIRO, Eduardo. O massacre negro brasileiro na Guerra às Drogas. Reflexões sobre raça, necropolítica e o controle de psicoativos a partir da construção de uma experiência negra. SUR, v. 15, n. 28, p. 35-43, 2018; Prado, 2020PRADO, Monique. “As bocas de fumo devem ser tombadas?”: o que significa reparação histórica para quem trabalha no narcotráfico? Revista da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, v. 4, n. 4, p. 39-62, 2020.; Ribeiro, Elias & Oliveira, 2020; Telles, Arouca & Santiago, 2018TELLES, Ana Clara; AROUCA, Luna; SANTIAGO, Raul. Do #vidasnasfavelasimportam ao #nóspornós: a juventude periférica no centro do debate sobre política de drogas. Boletim de Análise Político-Institucional, n. 18, p. 107-112. Rio de Janeiro: Ipea, 2018.).

Resgatamos, então, as categorias de grupos diferenciados e grupos específicos trabalhadas por Moura (2019______. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.; 2021) a partir dos conceitos de classe em si e classe para si de Marx. No caso da GD, o negro é tido como seu objeto - e objeto de controle ou de extermínio; uma alteridade genocida, na qual o outro aparece como não ser, negado, objetificado ou como alvo a ser derrubado concretamente. Não por acaso, a sua sinonimização de traficante, bandido etc. Nisso, ele é lido socialmente como grupo diferenciado. Logo, quem não é negro não é bandido, traficante, mau cidadão, ou quem não é bandido, traficante, mau cidadão, não é negro (é branco). Por isso, não é de se espantar as diferenças de tratativas, desde a mídia até o Judiciário e sua recepção pela sociedade, nos casos de tráfico com pessoas negras e brancas. Ou seja, o caráter eugênico, de embranquecimento da GD - expressando de maneira particular o de nossa própria sociabilidade - se mostra não apenas na criminalização, encarceramento e genocídio negro, mas na reprodução e reiteração do branco como sinônimo de não traficante, justamente por ser branco; no máximo, uma pessoa que se desviou de si - nisso, assemelhou-se ou se aproximou ao/do negro - ou foi vítima de quem, de fato, produz e comercializa as drogas: o negro.

Contudo, como forma de sobrevivência, temos visto a passagem do grupo diferenciado ao específico. Segundo Moura:

O grupo diferenciado tem as suas diferenças aquilatadas pelos valores da sociedade de classes, enquanto o mesmo grupo passa a ser específico na medida em que ele próprio sente esta diferença e, a partir daí, procura criar mecanismos de defesa capazes de conservá-lo específico, ou mecanismos de integração na sociedade (Moura, 2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
: 275-276).

No caso do negro, os grupos específicos possuem utilidade de reconhecimento, de identificação, de elevação de consciência acerca de sua condição numa sociabilidade racista e, nisso, de organização coletiva, de sobrevivência, de resistência, impedindo processos de subalternização por completo - ou dirimindo os efeitos da subalternização. Trata-se de uma defesa contra os mecanismos de barragem. Dialeticamente, ao serem subjugados, embarreirados, diferenciados, negam tais movimentos, afirmando-se nas/pelas suas diferenças - a negritude como afirmação positiva -, ao mesmo tempo que vão além: o exemplo histórico mais evidente - e bastante trabalhado por Moura - foram os quilombos, o que o autor, numa análise totalizante, veio a denominar de quilombagem (Moura, 2020a; 2020b).

Na análise sobre a GD, o negro, ao ser seu principal alvo e vítima, se organiza e se põe como seu principal antagonista; coloca-se como o sujeito de denúncia, como negação e resistência à mesma e na mobilização para o seu fim. Com isso, terá reforçado seu caráter de mau cidadão, afinal o bom negro é aquele que não questiona, critica etc. Trata-se, portanto, de reconhecer o caráter racial e racista da GD para que se tenha consciência do caráter racial e racializado de sua negação, de sua superação. Um processo de racialização consciente - até porque já é racializado, mesmo que não se tenha consciência disso - para a desracialização não só da GD, mas da sociabilidade que a produz e é conformada por ela, forjando, uma democracia, de fato, racial e social; uma unidade na diversidade, orientada à emancipação humana.

Para Moura (2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
), o grupo específico possibilita uma elevação de consciência e possibilidade organizativa. Entretanto, como grupo, não é possível concretizar um salto qualitativo em termos da emancipação humana, dos grilhões objetivos e subjetivos não apenas de raça, mas de classe - que se produzem de maneira imbricada. Para isso, os grupos precisam se reconhecer desde suas classes, não havendo necessidade de organização separada, de modo que a força social que dinamize a sociedade seja “a classe oprimida a que o membro de cada grupo específico pertence” (Moura, 2021: 329). O reconhecimento da especificidade, que é especificidade de um todo, ao mesmo tempo que o faz totalidade, enquanto elevação de consciência e mediação para uma consciência de classe para si, de modo que

os membros que visualizaram a sua classe como a unidade fundamental - estrutural e dinamicamente - colocam em segundo plano os grupos específicos aos quais pertencem e passam a viver a realidade, o dinamismo e as lutas de classe. Não mais como negro, mas como operário, assalariado, agrícola, meeiro, etc. Sua consciência passa a exigir uma práxis dinâmico/radical: uma posição política (Moura, 2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
: 330).

Da mesma forma, seguindo a trilha analítica mouriana, grupos específicos que pautem mudanças nas políticas sobre drogas e, por conseguinte, o fim da GD e do proibicionismo, a despeito de sua relevância como grupos específicos, devem procurar vincular-se ao conjunto de lutas e formas organizativas da classe trabalhadora. Trata-se de (re)alocar a crítica à GD, a luta antiproibicionista, no bojo da luta de classes - sem desconsiderar suas nuanças. A análise mouriana sobre a formação social brasileira, desde seu marxismo original, aqui apreendida para a crítica da GD, nos lega que a luta antiproibicionista deve ser, por coerência, antirracista e anticapitalista (e contra quaisquer formas de exploração e opressão).

Por fim, ressaltamos a própria práxis mouriana, como caracterizou sua filha, Soraya Moura (2021MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/c...
, s/p) “um homem da práxis”, sua militância comunista junto a partidos revolucionários, e fora deles, sua importância no/ao movimento negro (França, 2014FRANÇA, Edson. A importância de Clóvis Moura para o movimento negro. Princípios, n. 129, p. 33-36, 2014.), bem como suas múltiplas formas de apreender a realidade e nela atuar, enquanto jornalista, sociólogo, historiador, poeta etc. Novamente, trazendo para a crítica da GD, a práxis mouriana nos ensina a importância de análises totalizantes que rasurem a compartimentalização do saber, e que as formas e as frentes de luta são diversas, dizendo da própria complexidade da realidade, mas, ao mesmo tempo, da potência do ser humano enquanto agente desta mesma realidade.

Considerações finais

No presente trabalho, discorremos sobre as contribuições de Clóvis Moura à crítica da Guerra às Drogas em nossa realidade presente. Desde a sua análise sobre a formação social brasileira, apreendemos como a GD constitui um importante aparato de barragem ao negro, desde sua faceta mais evidente, por meio de mecanismos de criminalização, encarceramento e extermínio, até a forma como se atrela a outros mecanismos de barragem econômicos, políticos e ideológicos (sendo conformada por eles e os conformando), corroborando a construção histórica do negro como mau cidadão - neste caso, como traficante. Por fim, assentados em sua sociologia da práxis negra, debatemos o negro como sujeito político, agente de crítica, negação e superação da GD, vinculando a luta antiproibicionista à luta de classes e orientada a um horizonte antirracista e anticapitalista.

Acreditamos, com isso, demonstrar a pertinência deste incontornável personagem de nossa história e sua validade para o conjunto de lutas no presente. No caso específico da crítica e superação da GD a partir da luta antiproibicionista, evidenciamos como a mesma pode se fortalecer ao se nutrir das armas da crítica mourianas, forjando uma práxis radical, que tome a própria práxis de Moura como fundamento.

Referências

  • BRASIL. Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Levantamento Anual Sinase, 2017. Brasília: Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 2019.
  • ______. Departamento Penitenciário Nacional. Levantamento nacional de informações penitenciárias, 2021. Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen>. Acesso em: 03 Mar. 2022.
    » https://www.gov.br/depen/pt-br/servicos/sisdepen
  • CARNEIRO, Henrique. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.
  • CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Mecanismo nacional de prevenção e combate à tortura. Ministério Público Federal. Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas. Brasília: CFP; MNPCT; MPF, 2018.
  • ______. Relatório da IV Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. Brasília: CFP, 2011.
  • CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO (CRP-SP). Relatório de inspeção de comunidades terapêuticas para usuárias(os) de drogas no estado de São Paulo: mapeamento das violações de direitos humanos. São Paulo: CRP-SP, 2016.
  • COSTA, Pedro Henrique Antunes da; MENDES, Kíssila Teixeira; GUEDES, Ítalo de Oliveira. Juventude brasileira e o trabalho no tráfico de drogas: pauperização, precarização e superexploração. Gerais, Rev. Interinst. Psicol., v. 14, n. 3, e18452, 2021.
  • DOMENICI, Thiago; BARCELOS, Iuri. Negros são mais condenados por tráfico e com menos drogas em São Paulo. Pública, São Paulo, 6 de maio de 2019. Disponível em: <https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/>. Acesso em: 09 Dez. 2021.
    » https://apublica.org/2019/05/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo
  • FARIAS, Marcio. Clóvis Moura e o Brasil: um ensaio crítico. São Paulo: Dandara, 2019.
  • FERRUGEM, Daniela. Guerra às drogas e a manutenção da hierarquia racial. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Programa de Pós-Graduação em Serviço Social, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
  • FRANÇA, Edson. A importância de Clóvis Moura para o movimento negro. Princípios, n. 129, p. 33-36, 2014.
  • FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário brasileiro de segurança pública. São Paulo: FBSP, 2021.
  • INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censo Brasileiro de 2010. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
  • LEMGRUBER, Julita et al. Um tiro no pé: impactos da proibição das drogas no orçamento do sistema de justiça criminal do Rio de Janeiro e São Paulo. Relatório da primeira etapa do projeto “Drogas: quanto custa proibir”. Rio de Janeiro: CESeC, 2021.
  • MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. São Paulo: Boitempo, 2013.
  • MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão? São Paulo: Dandara, 2021.
  • ______. Quilombos: resistência ao escravismo. São Paulo: Expressão Popular, 2020a.
  • ______. Dialética radical do Brasil negro. São Paulo: Anita Garibaldi, 2020b.
  • ______. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.
  • ______. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições e guerrilhas. São Paulo: Anita Garibaldi; Fundação Maurício Grabois, 2014.
  • ______. O racismo como arma ideológica de dominação. Princípios, n. 34, p. 28-38, 1994.
  • ______. Estratégia do imobilismo social contra o negro no mercado de trabalho. Revista São Paulo em Perspectiva, v. 2, n. 2, p. 44-46, Abr.-Jun. 1988.
  • ______. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Afro-Ásia, n. 14, p. 124-137, 1983.
  • MOURA, Soraya. Clóvis Moura: uma biografia. Entrevista online com Soraya Moura [Entrevista concedida a] Jeferson Garcia. Fundação Dinarco Reis, São Paulo, Nov. 2021. Disponível em: <https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia/. Acesso em: 09 Dez. 2021.
    » https://fdinarcoreis.org.br/2021/11/04/clovis-moura-uma-biografia
  • OLIVEIRA, Fábio Nogueira de. Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra. Dissertação (Mestrado em Ciências Jurídicas e Sociais) - Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2009.
  • OLIVEIRA, Nathália; RIBEIRO, Eduardo. O massacre negro brasileiro na Guerra às Drogas. Reflexões sobre raça, necropolítica e o controle de psicoativos a partir da construção de uma experiência negra. SUR, v. 15, n. 28, p. 35-43, 2018
  • PRADO, Monique. “As bocas de fumo devem ser tombadas?”: o que significa reparação histórica para quem trabalha no narcotráfico? Revista da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, v. 4, n. 4, p. 39-62, 2020.
  • QUEIROZ, Marcos. Clóvis Moura e Florestan Fernandes: interpretações marxistas da escravidão, da abolição e da emergência do trabalho livre no Brasil. Revista Fim do Mundo, n. 4, p. 254-280, 2021
  • RIBEIRO, Dudu; ELIAS, Gabriel; OLIVEIRA, Nathália. Justiça de transição como chave pacificadora e reparadora da guerra às drogas. Revista da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, v. 4, n. 4, p. 87-93, 2020.
  • ROCHA, Gabriel dos Santos. Prefácio. In: MOURA, Clóvis. O negro: de bom escravo a mau cidadão?, p. 7-11. São Paulo: Dandara, 2021.
  • SAAD, Luísa Gonçalves. “Fumo de negro”: a criminalização da maconha no Brasil (c. 1890-1932). Dissertação (Mestrado em História Social) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013.
  • SECRETARIA DE SAÚDE DO ESTADO DE MINAS GERAIS (SES-MG). Relatório de vistorias em comunidades terapêuticas do Programa Aliança pela Vida. Belo Horizonte: SES-MG, 2016.
  • TELLES, Ana Clara; AROUCA, Luna; SANTIAGO, Raul. Do #vidasnasfavelasimportam ao #nóspornós: a juventude periférica no centro do debate sobre política de drogas. Boletim de Análise Político-Institucional, n. 18, p. 107-112. Rio de Janeiro: Ipea, 2018.
  • 1
    Observamos no desenvolvimento mouriano uma aproximação e concordância com a tese - que tem em Jacob Gorender seu principal expoente - de que a colonização e o período escravista dizem do modo de produção escravista. Há amplo debate no pensamento social brasileiro, mesmo na tradição marxista, acerca das vias de desenvolvimento do capitalismo brasileiro. Citamos as reflexões de Caio Prado Jr. (sentido da colonização) e os desenvolvimentos posteriores de José Chasin (via colonial) e Antonio Carlos Mazzeo (via prussiano-colonial) que, em suas especificidades, defendem o caráter e o sentido capitalista do período colonial e da escravidão, em termos de como o capitalismo enquanto modo de produção totalizante, se entificou particularmente na formação social brasileira. Sobre esse panorama e como Clóvis Moura se situa nele, ver Farias (2019).
  • 2
    Ao trabalhar com as noções de marginalização, franja ou massa marginal, Moura questiona categorias como EIR ou superpopulação relativa para expressar e explicar especificidades da população negra. Segundo Moura (1983: 133), nossa economia dependente, no pós-Abolição, já sob jugo imperialista, necessitou “de um contingente marginalizado bem mais compacto do que o exército industrial de reserva no seu modelo clássico europeu. Havia necessidade da existência de uma grande franja marginal capaz de forçar os baixos salários dos trabalhadores engajados no processo de trabalho. Essa franja foi ocupada pelos negros [...] Tal fato, segundo pensamos, reformula a alocação das classes no espaço social e o seu significado, estabelecendo uma categoria nova que não é o exército industrial de reserva, não é o lunpenproletariat, mas transcende a essas duas categorias”.
  • 3
    Rememoramos Marielle Franco, parlamentar mulher, negra, periférica e socialista, que, pouco antes de ser assassinada, questionou: “Quantos mais vão precisar morrer para essa guerra acabar?”. Citamos também alguns movimentos, como a Iniciativa negra por uma nova política sobre drogas, a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (Renfa), Rede de Observatórios da Segurança, dentre outras, não descartando também a atuação de variados e destacados militantes e pesquisadores. Certas referências aqui colocadas são de alguns destes atores e iniciativas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Dez 2021
  • Aceito
    14 Mar 2022
Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília Instituto de Ciências Sociais - Campus Universitário Darcy Ribeiro, CEP 70910-900 - Brasília - DF - Brasil, Tel. (55 61) 3107 1537 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistasol@unb.br