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Política e sexualidade: notas sobre o combate ao preconceito contra os homossexuais

Sexuality and politics: notes on combating prejudice against homosexuals

RESENHA

Política e sexualidade: notas sobre o combate ao preconceito contra os homossexuais

Sexuality and politics: notes on combating prejudice against homosexuals

Leandro Castro Oltramari

Universidade do Sul de Santa Catarina, Palhoça, Brasil

Prado, M. A. M. & Machado, F. V. (2008). Preconceito contra homossexualidades: hierarquia da invisibilidade. São Paulo: Cortez. 144p.

Cada vez mais nosso país tem se reportado a discussões sobre a temática da homossexualidade, principalmente após a tramitação do projeto de Lei nº 1.151 sobre a união civil entre pessoas do mesmo sexo, que está desde 1995 estagnado no congresso nacional. Isto demonstra que essa discussão não é tão tranquila de ser realizada, mesmo em um país cujo senso comum é a ideia de "democracia sexual" em relação às normas sexuais.

A temática da obra de Marco Aurélio Prado e Frederico Machado é atual e instigante, pois reúne a discussão sobre o preconceito contra a homossexualidade e as conotações políticas da luta por direitos sociais no Brasil. Marco Aurélio Prado é Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e professor da Universidade Federal de Minas Gerais; desenvolve pesquisa sobre temáticas como identidades sociais junto aos Núcleos de Pesquisa em Direitos Humanos e Cidadania LGBT e Psicologia Política, além de produzir diversas publicações em Psicologia Social.

Frederico Machado foi orientado por Prado em seu Mestrado, realizado na Universidade Federal de Minas Gerais e concluído no ano de 2007, intitulado Muito além do arco-íris: a constituição de identidades coletivas entre a Sociedade Civil e o Estado. Além disso, o autor tem publicações na área dos estudos sobre homossexualidades e foi psicólogo do Centro de Referência em Direitos Humanos e Cidadania de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, de Belo Horizonte.

Os autores iniciam sua obra apresentando suas concepções sobre identidade social e a relação com a sexualidade. Já na introdução, eles abordam a sexualidade humana como um jogo complexo entre o "eu" e o "nós". Ou seja, um jogo social. Vale ressaltar que essa perspectiva é bastante atual, principalmente após a publicação no Brasil, em 2006, de Uma interpretação do desejo, o primeiro livro de John Gagnon, o qual apresenta a sua noção de roteiros sexuais, que denota uma concepção de sexualidade eminentemente constituída a partir das sociabilidades.

Essa concepção é fundamental para a compreensão da tese central da obra dos autores, que é a relação entre a produção das invisibilidades quanto à homossexualidade, geradas a partir do preconceito social. A partir disso, surge nas relações sociais um jogo interessante de visibilidade e invisibilidade. O argumento é de que o preconceito produz uma inferiorização da sexualidade homossexual, criando-se aquilo que os autores chamam de "cidadania subalterna", que é um perigoso lugar ocupado por essa população, quando se trata de uma sociedade democrática.

Para fazer a defesa dos argumentos, os autores dividiram sua obra em seis capítulos. No primeiro, intitulado "Homossexualidade e sociedade: tensões entre o público e o privado", eles afirmam que o espaço público no Brasil é hierarquizado e fortemente autoritário, principalmente em relação à sexualidade homossexual. Eles exemplificam isso com o grande número de assassinatos de homossexuais, maior que em outros países. Estes dados são já exaustivamente notificados pelo Grupo Gay da Bahia e demonstram a impunidade em casos de morte de homossexuais no Brasil. É feita uma análise dessas formas de violência através daquilo que os autores chamam de heterossexualização da vida sexual no Brasil; isso porque, através desta normatização, a medicina e a ciência fizeram com que vários comportamentos sexuais fossem discriminados e considerados como "anormais". Eles apontam, a partir da leitura sobre a homossexualidade, aquilo que Foucault (1999) já denunciava com sua categoria de biopolítica: que também a sexualidade, na Modernidade, passa a ser utilizada como um controle do Estado. Aliás, Foucault é uma referência constante na obra desses autores, principalmente com a sua noção clássica de poder.

Uma das questões sobre as quais os autores discorrem é a noção de identidade. Definida de forma interessante, foge de clássicos utilizados principalmente na psicologia social, o que pode representar um avanço ao desenvolvimento do conceito nessa área. Para eles, a identidade é uma articulação de uma multiplicidade de discursos e práticas sociais que envolvem tanto aspectos simbólicos, como aspectos materiais e concretos da realidade. A identidade não pode ser entendida como algo estável, como algo pronto, mas sim como um processo de identificação em curso. ... Este processo se faz através da articulação cognitivo-emocional que os indivíduos em interação social produzem dos significados e contextos disponíveis, levando a um posicionamento social relativamente estável e provisório que se ancora em auto-atribuições sociais, que definem sentimentos de pertença grupal e de reconhecimento social. (Prado & Machado, 2008, p.18)

Para compreender a identidade homossexual, o conceito de política é retomado, pois, segundo os auto-res, é tão utilizado que perdeu sua especificidade. Para eles, este é o cruzamento fundamental para a compreensão das relações do preconceito contra homossexuais no Brasil. Para isso, são analisados três aspectos para a discussão sobre o conceito de política:

a) A política é percebida como um conjunto de regulações entre o Estado e instituições que sustentam a sociedade civil.

b) A política tem relação com os caminhos antagônicos escolhidos pelos grupos sociais.

c) A política é uma forma de uniformização de costumes e práticas sociais. (Prado & Machado, 2008, p. 11)

Essa conceituação é fundamental para a constituição da homossexualidade como uma não-heterossexualidade que cria aquilo que os autores chamam de "cidadania subalterna". Isso porque a homossexualidade tem uma relação conflituosa entre a experiência privada e a pública. Ou seja, ela é vivida nas relações privadas e é omitida nas relações públicas, o que enfraquece politicamente seu reconhecimento.

Assim, no espaço público a identidade homossexual acaba se fragilizando, pois instituições sociais - escola e família, entre outras - formam estratégias de "controle da sexualidade", que causam uma invisibilidade da homossexualidade. Os autores afirmam que o preconceito está baseado em uma naturalização das diferenças sexuais. Por isso as organizações dos homossexuais lutam pela visibilidade.

O segundo capítulo, intitulado "Homossexualidades na história: alguns discursos sobre as sexualidades", inicia apontando a dificuldade de conceituar o termo homossexualidade. Por isso, é feita uma breve retrospectiva histórica sobre o conceito, mas que não chega a impressionar devido a alguns outros autores e obras já o terem apresentado. Inclusive os próprios autores citam Jurandir Freire e Costa (1992) e sua clássica obra sobre a homossexualidade, intitulada A inocência e o vício, como uma de suas referências nesse trabalho.

Prado e Machado, a partir desse breve histórico, apontam que a homossexualidade atravessa períodos históricos e sempre existiu, não necessariamente com essa denominação. Ressaltam que as principais mudanças nas representações sobre homossexualidade se deram a partir da década de 60. Eles apontam que, desde então, estudos têm sido desenvolvidos sobre as supostas causas da homossexualidade, os comportamentos homoeróticos e a homocultura, além de pesquisas sobre saúde sexual, principalmente quanto à AIDS/DST. Ainda assim, as dimensões políticas da homossexualidade e as implicações dos direitos civis não foram muito contempladas nesses estudos, especialmente no que concerne às questões identitárias.

Na discussão sobre identidade sexual, os autores apontam para a necessidade de compreender a sexualidade como um fenômeno que envolve desde aspectos biológicos até sociais. Para isso, a sexualidade é abordada através do que eles citam como três paradigmas da sexualidade:

a) Modelo de sexo único - Aborda a relação entre atividade e passividade, construída a partir do século XIX. Eles revelam que tanto a hetero quanto a homossexualidade foram criadas e consolidadas na história ocidental.

b) Modelo de dimorfismo sexual - São apresentados os argumentos que, a partir dos séculos XVIII e XIX, foram importantes para a constituição das diferenças entre masculinidade e feminilidade, e principalmente entre a heterossexualidade e a homossexualidade, ancorados na ciência.

c) Modelo da diversidade sexual - Houve, a partir do século XX, uma derrubada da hegemonia dos estudos sobre sexualidade, principalmente em relação à homossexualidade, numa perspectiva de desnaturalização da heterossexualidade. Anthony Giddens é citado e chama de "revolução sexual" o elemento que podemos identificar como contracultura, contrastando uma série de valores sociais que mudaram a visão sobre homossexualidade.

Aqui não fica exatamente bem explicitada a perspectiva na qual os autores se pautam para a discussão sobre a sexualidade. Apesar de no início da obra eles sugerirem que a sexualidade é uma sociabilidade com conotações políticas, aqui parece que essa defesa se desfaz, e os autores retomam padrões conceituais mais usuais sobre a sexualidade.

No terceiro capítulo, intitulado "Fragmentos de um campo de estudo: gênero, queer e diversidade sexual", os autores analisam como a homossexualidade se constitui em um lugar de discriminação, principalmente através de setores mais conservadores da sociedade. Para isso, indicam que os anos 80, devido ao processo de democratização, foram importantes para que homossexuais tivessem uma compreensão mais plena da sua sexualidade e superassem a ideia de desvio ou mesmo perversão. Eles apontam que a epidemia daAIDS foi um ponto que deu visibilidade ao movimento gay, mas, por outro lado, atrelou-o ainda mais à ideia de doença.

Prado e Machado apontam que, a partir do advento da AIDS, iniciou-se uma longa discussão teórica sobre qual terminologia utilizar para conceituar os comportamentos de pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo. Eles revelam que esse debate acabou denunciando determinadas lutas políticas, pois a discussão identitária muitas vezes apresenta um relativismo do ponto de vista conceitual quanto à homossexualidade e à AIDS. E essa é uma das questões que muito tem atribulado essas discussões. Por exemplo, a autora Cristiana Bastos (2002), em sua obra Ciência, poder, acção: as respostas à Sida, aponta exatamente que a epidemia de AIDS fez com que o movimento gay constituísse uma identidade social muito mais engajada que em outros momentos históricos.

Aliás, a discussão sobre a identidade homossexual realmente parece ser ainda palco para grandes debates. Os autores mesmos denotam essa polêmica, citando o antropólogo Luis Mott, o qual propõe que a homossexualidade se constitui como identidade pautada em uma orientação sexual que produz um posicionamento político e uma visão de mundo. Ele questiona, por exemplo, a denominação HSH (homens que fazem sexo com homens), utilizada inclusive pelo Ministério da Saúde para as pesquisas sobre comportamento sexual, dizendo que essa nomenclatura é aversiva aos homossexuais. Nesse capítulo, os autores aproveitam para deixar claro que defender uma identidade sexual homossexual faz com que se criem hierarquias de sexualidade. Portanto pode-se notar que a encruzilhada teórica ainda segue.

Sobre a categoria gênero, Prado e Machado revelam que, mais que um conceito, essa é uma forma de compreender "uma relação de poder". Aqui eles claramente denotam a influência de Foucault em seus pensamentos e quando revelam que as discussões de gênero e homoerotismo nem sempre andaram juntas. Também acusam a própria Academia de manter uma concepção binária e heterossexista sobre a sexualidade, o que impediu que pudessem relacionar antes essas discussões. Eles apontam que realmente a diversidade conceitual é causada principalmente por limitações teóricas, as quais não se apropriam, por exemplo, de discussões de classe ou mesmo étnicas que são importantes para o tema em questão. Apesar disso, revelam que a aproximação dos estudos de gênero e GLBT têm avançado principalmente por causa dos estudos queer. Esses estudos têm como nome importante a pesquisadora Judith Butler, principalmente por apresentar o conceito de performance que ultrapassa as dimensões essencialistas da sexualidade. Ela aborda aspectos da discursividade da sexualidade principalmente quanto à sua performatividade, conceito muito utilizado pela teoria queer. Sua grande contribuição é mostrar que o sexo e o gênero não podem ser compreendidos de uma forma binária.

No quarto capítulo, intitulado "Preconceito, invisibilidades e manutenção das hierarquias sociais", o preconceito é considerado uma importante forma de manutenção das diferenças e hierarquizações entre grupos sociais, o que muitas vezes faz com que essas diferenças expliquem o ódio e a violência de um grupo sobre o outro. Os autores, em poucas palavras, conseguem materializar a operacionalidade do preconceito: "o preconceito nos impede de identificar os limites de nossa própria percepção da realidade" (Prado & Machado, 2008, p. 67).

Segundo Prado e Machado, o preconceito desempenha um papel fundamental ao impedir que as hierarquizações se transformem em política, pois no âmbito da sexualidade ele produz, por exemplo, a invisibilidade da homossexualidade. Os autores revelam que a estratégia do preconceito é naturalizar as formas de desqualificação de modo que elas não pareçam injustiças e sejam aceitas como padrões normativos. O preconceito se estrutura principalmente nas práticas cotidianas e sociais, mas também através das políticas públicas. Pode-se identificar isso na demora da aprovação do projeto de lei de Marta Suplicy, sobre a união estável entre homossexuais, que ainda tramita no congresso nacional.

Para compreender o preconceito, Prado e Machado fazem uma leitura interessante a partir de autores como Henri Tajfel e sua teoria da categorização social. Apesar de não avançarem muito além daquilo que a obra do referido autor já revelava, eles apontam que o preconceito é um processo psicossocial, que acaba justificando o comportamento criminoso nos casos de violência homofóbica, devido a esse estar protegido sob esta égide social da invisibilidade desses grupos sociais. Por isso eles afirmam que a politização dos movimentos sociais é uma das estratégias de combate do preconceito. Assim, as paradas gays, bem como outros movimentos, são estratégias de publicização que engendram um enfrentamento ao preconceito.

O quinto capítulo, intitulado "Entre o cotidiano e avenidas: movimentos sociais GLBTs", aborda como a modernidade e a democratização trouxeram um processo maior de liberdade e autonomia em todas as instâncias, inclusive na sexual. Os movimentos sociais homossexuais se encontram no que a teorização contemporânea identifica como novos movimentos sociais. Esses surgem em contraposição aos chamados movimentos sociais tradicionais, que abordam as relações políticas da sociedade civil com a lógica da separação entre as classes, a partir da leitura marxista.

Para os autores, os novos movimentos sociais são aqueles que conseguem perceber a importância das relações de dominação simbólicas, além das conhecidas relações de classes estruturais. Apesar disso, os autores ressaltam que não se pode desqualificar a importância das relações entre Estado e Sociedade, para também não se reduzir à discussão liberal de que o sujeito é o único responsável por todas as mazelas que a ele são referidas.

Os autores, nesse capítulo do livro, fazem um bom resumo listando instituições internacionais que foram significativas para a constituição do movimento GLBT. Eles apontam que algumas instituições norteamericanas foram extremamente importantes para aquilo que futuramente foi chamado de Liberação Gay (Gay Liberation), entre elas a The Daughters of Bilitis e a Mattachine Society. Ainda apontam para fatos interessantes, como o surgimento das famosas Gay Pride, que nasceram de um levante homossexual no dia 28 de junho de 1969, quando um grupo de policiais entrou em um bar de frequentação homossexual em Nova York. Além disso, fazem uma retrospectiva sobre o movimento homossexual brasileiro, apontando importantes instituições - como o Grupo Somos de afirmação homossexual de São Paulo - precursoras da luta pelos direitos no Brasil. Na parte final, os autores fazem um interessante levantamento de filmes, instituições e sites que remontam desde motivações acadêmicas até militantes, para quem quiser saber mais sobre a temática.

Apesar de apresentar uma abordagem bastante importante sobre a discussão que realmente é necessária nos dias atuais, devido ao elevado número de casos de violência contra homossexuais, configurados como atos homofóbicos, a obra oscila em diversos momentos entre uma abordagem histórica da homossexualidade e a discussão propriamente dita sobre o preconceito contra a homossexualidade. A tese central é interessante e provoca novos estudos, pois compreende que o preconceito é um inviabilizador político da homossexualidade. Todavia, ainda assim, a obra não chega a desenvolver importantes desdobramentos, como discutir teoricamente a homossexualidade e o preconceito em relação a ela, a partir de outras matrizes teóricas que os próprios autores apontam, como a teoria queer, por exemplo. A principal contribuição dessa obra talvez seja a aplicação, principalmente para iniciantes, não somente no estudo sobre preconceito, mas também para saber mais sobre a militância GLBT.

Recebido em: 22/01/2009

Aceite em: 23/07/2009

Leandro Castro Oltramari é graduado em Psicologia pela Universidade do Vale do Itajaí (1997), mestre em Psicologia (2001) e Doutor em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (2007). Professor titular da Universidade do Sul de Santa Catarina. Endereço: Rua das Azaleias, 1660, Bosque das Mansões. São José/SC, Brasil. CEP 88108-400. Email: leandrooltramari@gmail.com

  • Bastos, C. (2002). Ciência, poder, acção: as respostas à Sida Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.
  • Costa, J. F. (1992). A inocência e o vício: estudos sobre o homoerotismo Rio de Janeiro: Relume Dumará
  • Foucault, M. (1999). Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (M. E. Galvão, Trad.). São Paulo: Martins Fontes.
  • Gagnon, J. (2006). Uma interpretação do desejo: ensaios sobre o estudo da sexualidade (L. R. da Silva, Trad.). Rio de Janeiro: Garamond.
  • Prado, M. A. M. & Machado, F. V. (2008). Preconceito contra homossexualidades: hierarquia da invisibilidade São Paulo: Cortez.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2010
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