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O UNICEF NO BRASIL E AS PRÁTICAS VIZINHAS NA ATUALIDADE

UNICEF EN BRASIL Y PRÁCTICAS VECINOS HOY

UNICEF IN BRAZIL AND TODAY'S NEIGHBORING PRACTICES

Resumo

Este artigo visa pensar, analisar e descrever as práticas do Fundo das Nações Unidas para a Infância, na relação com um campo de vizinhança com outras intervenções de saber e poder voltadas às crianças e adolescentes, no Brasil. Para tanto, realiza uma breve história da atualidade do complexo tutelar articulado pela rede de proteção, garantia e defesa dos direitos oferecida pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância em conjunto com outras entidades, instituições, grupos, comunidades, organizações não governamentais, fundações, bancos, países, universidades, localidades e agências ligadas à Organização das Nações Unidas. Por meio de análises baseadas em Michel Foucault, de Paul Veyne, em Robert Castel e em Jacques Donzelot, analisamos estas práticas cotidianas, no campo da sociedade disciplinar, da biopolítica, da gestão de riscos e do complexo tutelar, na medida em que formam um dispositivo econômico e político que opera na relação sujeito de direitos e sujeito econômico.

Palavras-chave:
crianças e adolescentes; práticas vizinhas; UNICEF

Resumen

Este artículo pretende pensar, analizar y describir el Fondo de las Naciones Unidas para las prácticas de los niños, en relación a un campo vecino con otras intervenciones de conocimiento y poder dirigidos a niños y adolescentes en Brasil. El estudio presenta una breve historia del complejo tutelar hoy articulado por red de protección, la seguridad y la defensa de los derechos previstos por el Fondo para la Infancia de las Naciones Unidas, junto con otras organizaciones, instituciones, grupos, comunidades, organizaciones no gubernamentales organizaciones, fundaciones, bancos, países, universidades, ciudades y organismos relacionados con las Naciones Unidas. A través del análisis basado en Michel Foucault, Paul Veyne, en Robert Castel y Donzelot, analizamos estas prácticas diarias en el campo de la sociedad disciplinaria, la biopolítica, gestión de riesgos y protegemos complejo, en el que se forma un dispositivo económico y político que opera en relación sujeto de derechos y sujeto económico.

Palabras clave:
niños y adolescentes; prácticas cercanas; UNICEF

Abstract

This article aims to think, analyze and describe the practices of the United Nations Fund for Children, in relation to other interventions on the fields of knowledge and power, aimed at children and adolescents in Brazil. The study presents a brief history of today's child protective services articulated by the network of protection, security and defense of rights provided by the United Nations Fund for Children together with other organizations, institutions, groups, communities, non-governmental organizations, foundations, banks, countries, universities, localities and agencies related to the United Nations. Through analyzes based on Michel Foucault, Paul Veyne, Robert Castel and Jacques Donzelot, we analyze these daily practices in the field of disciplinary society, biopolitics, risk management and safeguard of the child protective services, in the way they form an economic and political device that operates in relation to subject of rights and economic subject.

Keywords:
children and adolescents; neighboring practices; United Nations Fund for Children

Este texto visa descrever e analisar algumas práticas do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) e seus efeitos, em termos de vizinhança com determinados saberes e certas relações de poder em exercício. Para tanto, lança mão de alguns conceitos de Michel Foucault e de Paul Veyne, de Robert Castel e de Jacques Donzelot para problematizar tais práticas por meio da sociedade disciplinar, das estratégias biopolíticas, da gestão de riscos e do complexo tutelar. Todavia, Michel Foucault será nosso principal intercessor, no presente artigo. Vale ressaltar que a presente pesquisa faz parte de debates de um projeto de estudo financiado com a bolsa produtividade do CNPQ.

O trabalho realizado está baseado nos pressupostos da história nova, a partir da perspectiva de Foucault, tendo na análise dos documentos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), extraídos da página desse fundo na internet, sobretudo, relatórios e publicações anuais sobre a infância brasileira. Neste texto, analisamos algumas das referidas fontes documentais do Fundo supracitado, selecionadas de um conjunto extenso de relatórios e publicações do UNICEF que temos estudado.

Uma rede de práticas vizinhas é constituída pelo UNICEF, formada por universidades, pesquisadores, movimentos sociais, entidades religiosas e pastorais, organizações não governamentais, fundações, institutos, empresas, ministérios, municípios, estados, conselhos de direitos, associações, assessores, atores e atrizes, cantores e cantoras, jornais impressos, rádios, internet, redes de televisão, livrarias, times de futebol, papelarias e lojas que revendem cartões, entre outros objetos com o nome da agência multilateral.

Entre os saberes acionados pelo UNICEF e seus parceiros como modo de legitimar práticas políticas, estão os seguintes: nutrição, estatística, demografia, economia política, informática, medicina social, psicologia, geografia, educação e administração. Claro que essas disciplinas não são utilizadas em totalidade nas publicações da agência multilateral citada, mas por apropriações e recortes, de acordo com os interesses em jogo no exercício político efetuado pela mesma.

Desde 1946, ano de sua criação, tal organismo multilateral articula politicamente um conjunto de práticas vizinhas para operar de uma maneira mais incisiva e com grande alcance seus postulados e interesses. É evidente que esta rede de articulação ocorre por meio de contínua negociação em fóruns, conferências, assessorias, congressos, audiências públicas, publicações e consultas públicas. Porém, a constituição da rede pode estar sujeita a um consenso já estabelecido em boa parte em termos de legitimidade construída pelo UNICEF, inclusive por esta extensa rede internacional forjada anos a fio.

Michel Foucault e Paul Veyne são apropriados para problematizarmos as práticas vizinhas ao UNICEF

Temos pesquisado, há cerca de dez anos, documentos do UNICEF, no Brasil, esmiuçando estes registros por meio de um trabalho histórico, baseado na genealogia e na arqueologia, em Michel Foucault. A atenção analítica se dá em termos da descrição cuidadosa dos carimbos, cores, siglas, imagens, instituições citadas, tabelas estatísticas anexadas, autores utilizados, recomendações realizadas, avaliações e comparações estabelecidas, destaques de temas, proposição de políticas, textura do papel da publicação, maneira de divulgar os documentos, fontes de financiamentos e instituições que assessoram tal agência em suas práticas sociais.

Foucault (1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder.. Rio de Janeiro: Graal ) declara que a genealogia é pacientemente documentária e, na arqueologia, assinala a ordem do discurso (2004Foucault, M. (2004). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.) formada pelos enunciados de um arquivo como conjunto de práticas discursivas e não discursivas que forjam efeitos e funcionam em imanência e correlação (2009). A escrita da história, para Foucault (1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder.. Rio de Janeiro: Graal ), é também uma prática política e ética, em termos de análise do que se passa no presente e do que nos acontece. É assim que propomos a análise dos documentos do UNICEF, em especial, neste artigo, das práticas vizinhas em rede, compondo um dispositivo formado por leis, arquiteturas, saberes, poderes, subjetividades e registros diversos.

O dispositivo é um conceito, segundo Foucault (2004Foucault, M. (2004). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.), e pode ser também descrito por meio de outro conceito definido como panóptico (1999Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: a história da violência nas prisões Petrópolis, RJ: Vozes.), em que forças são combinadas utilitariamente, para docilizar os corpos e fazê-los produzir por incitação, em jogos de poder e saber em exercício.

Foucault (1999Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: a história da violência nas prisões Petrópolis, RJ: Vozes.) chegou a afirmar que o diagrama da sociedade contemporânea era um agenciamento de forças combinadas e que todas as práticas só são sustentadas por práticas coextensivas que entrecruzam em alianças móveis e dinâmicas. Uma prática é um fazer cotidiano e concreto, tem uma história e pode ser descrita como tal, em termos de tempo e espaço (Veyne, 1998Veyne, P. (1998). Como se escreve a história. Brasília, DF: Editora UNB.).

Paul Veyne era um historiador muito próximo a Michel Foucault e escreve "Foucault revoluciona a história", no livro Como se escreve a história, em 1998; depois, publica o livro Foucault: seu pensamento e sua pessoa, em 2011. Nos dois escritos, assinala as relações de trabalho e delimita conceitos que eram caros aos dois autores, elaborados ao longo da amizade que eles cultivaram por anos. Veyne também registra uma homenagem a Foucault como um tributo pós-morte do filósofo-historiador francês, em 1984 nos dois textos.

Assim, um dos conceitos operadores, conforme Veyne (1998Veyne, P. (1998). Como se escreve a história. Brasília, DF: Editora UNB.) e Foucault (1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder.. Rio de Janeiro: Graal ; 1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber.. Rio de Janeiro: Graal ), era o de práticas que fabricam objetos históricos; em jogos estratégicos de relações raras, singulares, heterogêneas e correlatas, ou seja, vizinhas. Para os dois, as práticas são fazeres operativos uns sobre os outros e são dispersos, contudo, a relação entre esses é contínua, em efeitos móveis de entrecruzamentos ao acaso. Desse modo, mapear as forças que se materializam em práticas concretas vizinhas e correlatas, na história perspectiva, era uma preocupação de Foucault (1979)Foucault, M. (1979). Microfísica do poder.. Rio de Janeiro: Graal e de Veyne (1998)Veyne, P. (1998). Como se escreve a história. Brasília, DF: Editora UNB.. No presente texto, podemos utilizar esse mapa que nos foi legado para analisar e descrever as práticas vizinhas às do UNICEF.

O conceito de panóptico, como usado por Foucault (1999Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: a história da violência nas prisões Petrópolis, RJ: Vozes.), pode ser trazido paralelamente ao de prática vizinha, pois é uma maneira de organizar as forças e sua composição de linhas, leis, arquiteturas e documentos, saberes e poderes em um diagrama resultante de práticas vizinhas. Dessa maneira, o panóptico não era apenas uma arquitetura criada por Jeremy Bentham como planta de uma prisão utilitarista e liberal. O desenho e as fotos desta planta são modos de operar politicamente a produção de corpos disciplinados e de garantir uma mobilidade dos mesmos entre espaços diversos que materializem os mecanismos de vigilância, de exame, de controles do tempo e do espaço e de sanção normalizadora.

Assim, o panóptico é composto pelas tecnologias disciplinares de poder e permite a elas funcionarem como mecanismos em meio aberto e não apenas entre muros. A disciplina é uma tecnologia política que emerge no século XVII e se intensifica com o aparecimento do capitalismo liberal, industrializado e utilitarista. Para Foucault (1999Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: a história da violência nas prisões Petrópolis, RJ: Vozes.), a disciplina visa à constituição de indivíduos úteis, produtivos e dóceis politicamente. Ela é composta por táticas de policiamento das condutas e incitação das mesmas em termos de estratégias de ampliação das habilidades exercitadas, agindo em seu encadeamento e em sua velocidade, maximizando efeitos regulares de poder e de saber sobre os corpos.

A prisão seria um dos espaços de maior intensidade da disciplina, entretanto, em outros espaços e, inclusive em meio aberto, ela também se concretiza, como: na escola, no hospital, na fábrica, no exército, na cidade, na família e no campo da assistência social. A relação entre norma e lei, acontece nas instituições supracitadas, em termos de soberania jurídica (leis) e das práticas disciplinares (normas) em táticas combinadas, que ganham visibilidade e dizeres nas práticas jurídicas e nas adjacências das judiciárias (Foucault, 1996Foucault, M. (1996). A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau.).

A questão colocada na sociedade disciplinar é fazer circular um campo de exercício regular de normas, regras e intervenções contínuas que objetivem modular as condutas e propiciar resistências no mesmo movimento, de força com força, de ação sobre ação. Por isto, não há disciplina sem liberdade, segundo Foucault (1999Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: a história da violência nas prisões Petrópolis, RJ: Vozes.), e sem possibilidade de resistência. Todavia, a sutileza da sujeição disciplinar dificulta uma revolta e a desobediência civil, visto que as promessas desta sociedade são de indução da educação, da saúde, da justiça e do trabalho. Outro aspecto é o fato de as disciplinas serem prescritivas e acionadas como recomendações e não imposições, o que assinala seu caráter de produção e investimento sobre os corpos e não apenas de tentativas de controle social deles.

A relação entre norma e lei, neste aspecto, implica na análise de poder como direito em ato, porém, colonizado pelas normas, na medida em que funciona na prática de poder normalizador também, ou seja, o modo indivíduo anda junto com o sujeito de direitos nesta sociedade (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder.. Rio de Janeiro: Graal ).

Podemos dizer que o UNICEF age na relação entre norma e lei, entre disciplina e soberania jurídica, neste sentido, pois, ao mesmo tempo que prescreve normativas internacionais do direito, em um contexto de Estado Democrático, também recomenda receitas normalizadoras das condutas na minúcia das mesmas, portanto, na lógica disciplinar, e realiza tal relação pela composição de um agenciamento político de práticas vizinhas.

O UNICEF está vinculado ao Sistema das Nações Unidas e constitui uma das redes em que é situada, entre outras agências multilaterais, à Organização das Nações Unidas (ONU). Essas várias instâncias e organismos agenciam intensa mobilização e legitimidade política, além de compartilharem racionalidades e propostas para os países que participam com representações e ratificando pactos, declarações e decisões de conferências mundiais. Cada organismo toma como alvo alguns temas e recorta um segmento da população para gerir, em nome da vida e da segurança.

Por exemplo, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO) visa à educação, à ciência e à cultura; a UNIFEM visa às mulheres e sua condição; o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) atua sobre o desenvolvimento; o Programa das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente (PNUMA) cuida das temáticas do meio ambiente, a Organização Mundial de Saúde (OMS), da saúde, entre outras agências da ONU. Todas foram criadas após a II Guerra Mundial, na reativação da Liga das Nações, forjada após a I Guerra Mundial e visava favorecer a paz e prevenir a realização de novas guerras.

Passado o conflito da Segunda Guerra, foram retomados os esforços de institucionalização política da esfera supranacional. Agora, entretanto, uma postura mais incisiva orientava as ações desencadeadas no âmbito das relações internacionais. Em 1945, ocorre a fundação da Organização das Nações Unidas (ONU) e, a partir disso, a criação de distintos órgãos auxiliares destinados a produzir maior efeito de controle sobre os governos nacionais e os povos. Esse direcionamento passou também pela redação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, oficializada em 1948, documento que abordou dois aspectos importantes: a conjugação de direitos de liberdade e direitos sociais em um único texto de direitos humanos e o estatuto de ferramenta jurídica capaz de pressionar formalmente os Estados nacionais. No campo da infância houve a criação do Fundo das Nações Unidas para a Infância, o UNICEF, em 1946, órgão que marcaria as pretensões supranacionais mais incisivas. Essa agência se instalaria por diversas nações orientando ações assistenciais no plano jurídico, a ONU elaborou uma nova declaração de direitos: a Declaração Universal dos Direitos da Criança, aprovada em 1959. Nela foi inserida a inovadora caracterização de sujeito de direitos para a infância, que traria uma ampliação do escopo dos direitos infanto-juvenis. (Ferreri, 2011Ferreri, M. A. (2011). Psicologia e direitos da infância: esboço para uma profissão recente da profissão no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo., p. 43)

A diplomacia internacional, materializada nestes organismos internacionais e em suas atribuições políticas, é vinculada à gestão da vida por uma economia política do Estado Democrático de Direito, em nome da lei e da ordem. O dispositivo diplomático, na esfera da biopolítica se torna um mecanismo de poder e saber sobre a população e foi descrito e analisado por Foucault (1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber.. Rio de Janeiro: Graal ). A biopolítica se diferencia da disciplina, pois visa ao controle da população e não apenas dos corpos individuais, como é o caso das tecnologias políticas disciplinares.

A biopolítica surgiu na segunda metade do século XIX, trazendo a preocupação com o governo da vida e da saúde, em que fazer viver e deixar morrer passou a ser uma prerrogativa dos Estados Modernos, juntamente com a sociedade e com os saberes da estatística, da geografia, da demografia, da medicina social, da administração e das ciências sociais.

Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes b) afirma que os dispositivos diplomáticos e os militares profissionais surgem como táticas de mediação da concorrência entre os Estados, na tentativa de promoção da paz, e criam elementos biopolíticos de gestão da vida da população, pautados nos mecanismos de segurança internacional, simultaneamente, baseados na governamentalidade. Tais tecnologias são intensificadas com a emergência da Liga das Nações e, posteriormente, da ONU, no século XX. A biopolítica se diferencia do poder disciplinar, porém, ao ser articulado com a disciplina, compôs com o mesmo o dispositivo chamado biopoder (Foucault, 1999bFoucault, M. (1999b). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.).

Contribuições de Jacques Donzelot para pensar as práticas vizinhas ao UNICEF

Para Donzelot (1986Donzelot, J. (1986). A polícia das famílias (2ª ed.). Rio de Janeiro: Graal.), a análise das práticas de proteção e conservação das crianças e adolescentes se dá por meio do entrecruzamento de modelos de assistência, tais como o caritativo, o filantrópico, o médico higienista e a articulação dos três no Complexo Tutelar. As práticas vizinhas são agenciadas por esse Complexo, que atualiza em um dispositivo os modelos anteriores sem substituí-los, mas incluindo-os e articulando-os em uma imensa rede de governo das crianças e dos adolescentes. Nesse aspecto, podemos pensar as práticas do UNICEF na relação de vizinhança no Complexo Tutelar.

Este autor enfatizou que tal Complexo é o próprio efeito da conjugação de um emaranhado de forças entrecruzadas de diferentes equipamentos, entidades, saberes, leis, documentos, modelos de assistência, o que aponta para as práticas vizinhas na condução de uma política ligada ao UNICEF, por exemplo. A preservação da criança é vista como uma janela de oportunidades de realização de cuidado como assistência que investe com prioridade, ao aproveitar potenciais e performances de desenvolvimento.

Os seis primeiros anos de vida são fundamentais para o desenvolvimento integral do ser humano. Por isso, uma das prioridades do UNICEF no Brasil é contribuir para a garantia do direito de cada criança brasileira a sobreviver e desenvolver todo o seu potencial, por meio de um amplo investimento na primeira infância. (UNICEF, 2008, p. 08UNICEF. (2008). Situação mundial da infância 2008Caderno Brasil.. Brasília, DF: Autor )

Está comprovado cientificamente que é na primeira infância que a criança desenvolve grande parte do potencial mental que terá quando adulto. Sendo assim, essa fase constitui-se uma janela de oportunidades. A atenção integral nessa faixa etária influencia no sucesso escolar, no desenvolvimento de fatores de resiliência e auto-estima necessários para continuar a aprendizagem, na formação das relações e da autoproteção requeridas para independência econômica e no preparo para a vida familiar e comunitária. (UNICEF, 2008, p. 08UNICEF. (2008). Situação mundial da infância 2008Caderno Brasil.. Brasília, DF: Autor )

É nesta linha de atuação que o UNICEF também tenta governar a vida do segmento de crianças e adolescentes, na composição que faz de rede com as práticas das instituições vizinhas como dispositivo de governo das condutas. Cuidar da vida e da saúde da população em uma totalidade e, ao mesmo tempo disciplinar os corpos deste segmento em termos de individualização, é um ideário desse organismo multilateral. Sem a rede de práticas, o UNICEF não teria a mesma força de intervenção e nem alcançaria tamanha legitimidade e respeito quando o assunto é proteção de crianças e adolescentes, mundialmente.

Dessa forma, a agência não tem o poder como uma propriedade, e sim opera relações de poder e saber, no âmbito da relação entre normas e leis, em conjunto com outras instâncias e grupos, instituições e países, universidades e bancos, empresas e ONGs de modo a efetuar proposições de cuidado, garantia, defesa e promoção dos direitos da criança e do adolescente.

Outra rede em que o UNICEF atua é dividida em termos de recortes por nações, regiões, estados, localidades, comunidades e territórios. Nesta rede, a dimensão geográfica e política foi organizada pelas lógicas: da segurança, da economia política em composição com o direito internacional, com a diplomacia e com as polícias da saúde e da seguridade. Garantir direitos é impactar o lucro e o produto interno bruto de um país e o desenvolvimento de regiões, locais e comunidades, para o UNICEF.

É evidente que o custo econômico da exclusão e da iniquidade torna os países com forte discriminação de amplos setores menos competitivos no cenário global. Se o Brasil é um país injusto, mais do que um país pobre, o combate às discriminações negativas e a construção da equidade, ou seja, de um desenvolvimento humano mais igualitário, podem melhorar a situação interna, o que logo se evidenciará também no cenário internacional. Quando se percebe que a pobreza, o desemprego, o subemprego, o baixo índice educacional e de acesso aos serviços de saúde sofrem recortes na linha da cor, raça, etnia, gênero, deficiência, idade, urbano/rural, entre outras, a destruição dessas barreiras transforma-se em oportunidade de crescimento marcado pela equidade, gerando uma sinergia e uma disposição diferente para a construção desse projeto de país e para o enfrentamento dos desafios nacionais e internacionais. Investir na valorização da diversidade como justiça social é conferir uma face humana ao desenvolvimento que, sem igualdade de oportunidades, não consegue sair dos patamares atuais também no campo econômico. (UNICEF, 2003, p. 33UNICEF. (2003). Relatório da situação da infância e adolescência brasileiras: diversidade e equidade.. Brasília, DF: Autor )

Esta agência articula-se com saberes e práticas que são justificados pela promoção do bem comum por meio do desenvolvimento econômico e social, materializados em projetos, programas e prescrições de condutas relacionadas a tais metas e objetivos criados em conjunto por grupos que participam de comitês da ONU e do UNICEF.

A biopolítica descrita e definida por Foucault (1988Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber.. Rio de Janeiro: Graal ) é engendrada nesta materialidade de forças do Complexo Tutelar, formulada em indicadores estatísticos, em metas para dez anos e para o milênio, em avaliações de taxas de natalidade, de mortalidade, de vacinação, de adoecimento, de partos cesarianos e naturais, de pré-natal e nutrição, de escolarização e condições de moradia e higiene, entre outros.

Para construir os referidos bancos de dados, a informática e a estatística probabilística são utilizadas como saberes, que subsidiam pareceres de comitês descentralizados da UNICEF, o que confere sua extensão de articulação de práticas vizinhas. Por exemplo, os sistemas representativos e participativos ampliam a rede e sua concomitante força propositiva, na medida em que propiciam articulações que incitam condutas consideradas relevantes para os diversos grupos envolvidos, em aliança, gerando efeitos de proteção mais incisivos.

A gestão de risco em Castel e as relações analíticas com Foucault, Veyne e Donzelot para mapear práticas vizinhas ao UNICEF

Castel (1987Castel, R. (1987). A gestão de riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de janeiro: Francisco Alves.) destacou que a sociedade atual opera uma gestão de risco como uma maneira de realizar a administração social, pautada em pareceres feitos por comitês e disponibilizados para as redes de gerência da população. Os riscos são calculados como fatores que afetam grupos e segmentos como virtualidade a gerir. Os organismos internacionais e instituições de defesa e garantia de direitos têm se articulado por meio da divulgação e apropriação de pareceres sobre riscos feitos por comitês de especialistas com fins de tomada de decisão para tentar proteger populações equitativamente.

Neste sentido, o UNICEF faz parte e se utiliza deste campo de saberes e de poderes de produção de pareceres e de decisões por meio deles, baseadas na gestão de riscos. Os relatórios de tal agência apontam essa preocupação permanente como foco de intervenção. No caso do Brasil, os assessores do UNICEF recomendam o que o país deverá melhorar em seu sistema de monitoramento de violações com a construção de bancos de dados e de pareceres sobre os mesmos para a efetivação da proteção e promoção de direitos de crianças e adolescentes.

Para avaliar a evolução da qualidade de vida das crianças e dos adolescentes, o UNICEF procura melhorar os sistemas de informação. São desenvolvidos indicadores para monitorar os avanços e retrocessos em relação ao desenvolvimento infantil, à educação para inclusão e à cidadania dos adolescentes. Esses indicadores servem para mobilizar os municípios, estimulando-os a dar prioridade às áreas mais carentes. O IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - é um dos principais parceiros do UNICEF nessa área. (UNICEF, 2002, p. 13UNICEF. (2002). Relatório: fazer valer os direitos das crianças e dos adolescentes.. Brasília, DF: Autor )

Os pareceres e estudos de universidades, de organizações não governamentais, de integrantes governamentais, de consultores contratados e dos representantes de movimentos sociais dão elementos para o dispositivo ser acionado e funcionar, ou seja, entram no campo das práticas vizinhas do UNICEF. Como Foucault (1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder.. Rio de Janeiro: Graal ) já nos alertou, as relações de poder e de saber são organizadas em concomitância; ancorando-se umas sobre as outras em efeitos recíprocos. Os pareceres são saberes e seus efeitos são de poder, assim como os poderes são práticas de decisão a partir dos pareceres que produzem novos registros, novos saberes.

O UNICEF usa saberes de várias disciplinas em seus relatórios e monta estratégias de intervenção baseadas em pareceres de especialistas avaliados por comitês que decidem encaminhamentos políticos variados. Esta tática também faz parte de uma rede de práticas vizinhas e se sustentam reciprocamente.

Aqui, já traçamos um diálogo entre Castel e Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes ), a partir do curso Nascimento da Biopolítica como Direito Sistêmico e governamentalização do Estado e da sociedade, pois tal forma de direito operou pela gestão de riscos. Foucault (2008)Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes chega a afirmar que a separação de dois supostos entes definidos como Estado e sociedade civil é apenas um efeito da racionalidade liberal utilitarista e que ambos formam composições e não entidades unitárias em uma lógica binária. Esta declaração é importante para pensarmos as articulações entre: organismos multilaterais, bancos, ONGs, diplomatas, Estados e universidades, assessores, fundações e empresas, comunidades e equipamentos sociais.

Em uma conferência internacional, por exemplo, notamos a participação de representantes de todos esses segmentos. Podemos observar as alianças entre os mesmos e as resistências realizadas na malha de poder e saber em que tais jogos de forças são realizados. Grupos que concordam em um ponto podem discordar em outros, saberes que são usados para legitimar uma decisão podem não servir para outras e integrantes de um mesmo grupo podem entrar em rivalidade e disputa política, dependendo da pauta e das tensões.

Na hora de registrar votos e de os países ratificarem abstenções, representantes poderão atuar para a afirmação de resistência. Mas, ao contrário, poderiam organizar a contagem dos votos a favor e ao contrário de cada assunto apreciado de cada proposta analisada, sinalizando alianças e rupturas. Há grupos e países que poderão ainda fazer ressalvas aos pontos aprovados e assim marcarem seus posicionamentos nos documentos assinados ou não.

Dessa maneira, quando o UNICEF mobiliza a rede que tem contatos, todo este jogo citado no rápido exemplo da conferência poderá se materializar. Sua força política não pode ser definitiva e nem impositiva, e sim deverá ser de incitação e tentativa de articular decisões e de acumular pareceres de especialistas que as subsidiem como jogo de intervenções. Assim, podemos falar de estratégias de governamentalidade, que podem ser definidas como:

o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer essa forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, como forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder.. Rio de Janeiro: Graal , pp. 291-292)

A arte de governar é movida por um complexo tutelar, que articula caridade, filantropia moralizante, medicina higienista e utilitarismo liberal. Donzelot (1986Donzelot, J. (1986). A polícia das famílias (2ª ed.). Rio de Janeiro: Graal.) analisou como tais práticas compõem um dispositivo que promove a tutela pela junção de vários paradigmas de assistência, na atualidade. O conceito de práticas relacionadas em redes foi descrito por Veyne e por Foucault, bem como por Castel para demarcarem um processo político de governar condutas e, no presente artigo, podemos lançar mão desses operadores para tratar da composição de redes de governamentalidade nas vizinhanças de atuações de proteção da criança e do adolescente às praticas de governo do UNICEF.

Esta rede pode ser visualizada pelas alianças do UNICEF, no Brasil, com as pastorais, como a Pastoral da Criança, com o banco Itaú, com jornais e rádios, com ONGs variadas, com universidades públicas e privadas, com fundações, tais como a ABRINQ, entre outras.

Um dos melhores exemplos de parceria entre o setor privado e um órgão das Nações Unidas é a Campanha Criança Esperança. Criada em 1986, por parceria da Rede Globo de Televisão com o UNICEF, a campanha conta com a participação voluntária de Renato Aragão, um dos embaixadores do UNICEF no Brasil, e de artistas populares nacionais. A cada ano, mais de 60 milhões de pessoas assistem ao show Criança Esperança, que, desde a primeira edição, arrecadou cerca de 108 milhões de reais. Os recursos são repassados para instituições não governamentais e governamentais que atendem crianças e adolescentes no País inteiro. (UNICEF, 2002, p. 03UNICEF. (2002). Relatório: fazer valer os direitos das crianças e dos adolescentes.. Brasília, DF: Autor )

A parceria com o Banco Itaú começou há 15 anos com o apoio à venda dos cartões de Natal em quiosques patrocinados pelo Banco e utilização das correspondências do banco para seus clientes. Em 1994, a atuação do banco foi ampliada com a criação de um Plano de Capitalização - PIC Criança - que destina parte de sua receita à melhoria da qualidade do ensino básico no País. (UNICEF, 2002, p. 04UNICEF. (2002). Relatório: fazer valer os direitos das crianças e dos adolescentes.. Brasília, DF: Autor )

A lógica da empresa é trazida para a participação social judicializada e ambas são capitalizadas, passando a funcionar neste complexo tutelar, na articulação entre sujeitos de direitos e sujeito econômico empresarial. Foucault estudou esta racionalidade no curso Nascimento da Biopolítica (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes ) e como ela opera pela demanda de lei e ordem, norma e lei, mercado em combinação com o Estado e a sociedade civil governamentalizados.

O Estado de Direito se torna um prestador de regras para a sociedade empresarial funcionar e comercializar tudo, inclusive os direitos de crianças, a saúde, a educação, a habitação, a participação social etc. Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes ) ressalta que o jogo em evidência é o de interesses em disputa e/ou em aliança, seja em que estatuto for, o mercado deve tirar vantagem com a racionalidade utilitarista do empresariamento, da vida como investimento econômico e político a realizar em cada ato mais cotidiano.

Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), uma criança pobre que frequenta dois anos de educação infantil pode esperar um aumento de 18% em seu poder de compra quando adulto. [...] Portanto, investimentos apropriados na criança reduzem gastos posteriores em saúde e bem-estar social, enquanto ajudam a aumentar a equidade social, os ganhos econômicos e o recolhimento de impostos. Baseados em um estudo de caráter longitudinal feito nos Estados Unidos, especialistas têm afirmado que os investimentos em serviços integrais de desenvolvimento geram US$ 7 de retorno para cada US$ 1 investido. (UNICEF, 2001, p. 17UNICEF. (2001). Relatório: situação da infância brasileira. Brasília, DF: Autor )

Os danos da judicialização são arbitrados por comitês também com seus representantes que deliberam por perícias e pareceres técnicos. A nova moda é a da criação de protocolos para todas as práticas de intervenção e de ativismo. Trata-se de uma captura que tende a criminalizar as resistências e tirar vantagem econômica deste movimento, mesmo quando se avaliam danos, ainda assim, estes são computados por cálculos de custo e benefício.

Assim, decidir sobre a implantação de uma política pública passa a ser uma função de acúmulo de pareceres sobre os riscos e resultados dos investimentos a serem realizados. A suspensão de direitos e/ou efetivação dos já estabelecidos também se realiza nesta cena de economia política neoliberal porque recua no financiamento estatal e busca agenciar captação de recursos e de expertises de várias instituições que não sejam apenas ligadas ao Estado.

O UNICEF encomenda o tempo todo pareceres de assessorias para atualizar suas estratégias e compor suas redes, organizando exames e inquéritos permanentemente. Tais relatórios técnicos auxiliam no próprio funcionamento do mercado concorrencial. A teoria do capital humano é um exemplo desta racionalidade.

É particularmente nítido, no domínio da infância desadaptada, vasto consórcio onde equipes pedagógicas, equipes sociais e equipes médicas, serviços de tratamento a domicílio, dispensários, internatos de colocação familiar, de assistência educativa, de ajuda médico-social precoce, de prevenção em meio aberto, lares para adolescentes a respeito de assistência judiciária disputam mercado. (Castel, 1987Castel, R. (1987). A gestão de riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de janeiro: Francisco Alves., p. 117)

Olhar para crianças e adolescentes, pensando em seu futuro produtivo e nos lucros que darão ou nos prejuízos que trarão à sociedade, implica em analisá-los como capital a receber investimento cada vez mais cedo como uma via de acesso a direitos que sejam benefícios no plano de relações de investimento empresarial.

O Brasil é um país jovem: 30% dos seus 191 milhões de habitantes têm menos de 18 anos e 11% da população possui entre 12 e 17 anos, uma população de mais de 21 milhões de adolescentes. Por isso, é essencial que o Brasil atenda às necessidades específicas da adolescência nas suas políticas. Caso contrário, corre-se o risco de que um grupo tão significativo e estratégico para o desenvolvimento do País fique invisível em meio às políticas públicas que focam prioritariamente na primeira fase da infância e na fase seguinte da juventude. (UNICEF, 2011, p. 05UNICEF. (2011). Situação mundial da infância 2011: adolescência, uma fase de oportunidades.. Brasília, DF: Autor )

Como observado nas análises anteriores, a maioria dos adolescentes brasileiros raramente tem acesso às oportunidades necessárias para desenvolver habilidades, competências, conhecimentos e atitudes essenciais a essa fase da vida. Por isso, mesmo diante de um cenário de escassez de oportunidades, o relatório Situação Mundial da Infância 2011 reforça a ideia de que este é o momento de investir nos adolescentes, já que precisam desenvolver todo o seu potencial para enfrentar os desafios aqui apresentados. (UNICEF, 2011, p. 10UNICEF. (2011). Situação mundial da infância 2011: adolescência, uma fase de oportunidades.. Brasília, DF: Autor )

Assim, entende-se por que o UNICEF calcula cada real usado para atender crianças e adolescentes em seus documentos, sobretudo, quando estes acontecem nos primeiros anos de vida, momento em que tal agência denomina de primeira janela de oportunidades. Neste sentido que Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes ) salientou que o liberalismo não é apenas uma tecnologia de governo, mas também um estilo de vida a materializar. A empresa é a própria criança e, em um segundo momento, o adolescente; nesta visão de capital humano.

Educação é antes de tudo um direito. Além disso, existe uma correlação clara entre a quantidade de anos de estudo e o acesso a melhores oportunidades de renda e, consequentemente, de vida. Um estudo realizado, em 2006, pelo Instituto Futuro Brasil, organização que produz pesquisas sobre a economia brasileira, indica que uma pessoa com ensino fundamental completo ganha, em média, três vezes mais que um analfabeto. (UNICEF, 2009, p. 35UNICEF. (2009). Situação da infância e da adolescência brasileira 2009: o direito de aprender - potencializar avanços e reduzir desigualdades. Brasília, DF: Autor )

Desse modo, a economia se torna uma ciência do comportamento humano, conforme Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes ). O uso de recursos e como são utilizados calculados economicamente é uma forma de gerenciar empresarialmente a vida, em cada um de seus elementos calculáveis por meio de negociações permanentes de custo e benefício. A análise da renda gerada e da maneira de organizar competências para que ela seja uma resultante de cada garantia de direitos da criança e do adolescente se tornou uma missão do UNICEF, em acordo com um conjunto de instituições e governos, bancos e ONGs, fundações e assessorias.

Os custos de dar ao adulto uma segunda chance na vida são muito maiores do que os custos de se prover cuidados no tempo adequado à criança, principalmente em seus primeiros anos de vida. O investimento na criança oferece retornos muitas vezes maior em termos de melhor aproveitamento escolar, maior produtividade e comportamentos positivos ao longo da vida. Serviços sociais básicos de saúde e educação, por exemplo, são investimentos preventivos muito mais efetivos e humanos. (UNICEF, 2001, p. 17UNICEF. (2001). Relatório: situação da infância brasileira. Brasília, DF: Autor )

O que o UNICEF passa a produzir é um sujeito econômico ativo, no mercado em que transformou a proteção da infância em negócio altamente lucrativo. Para tanto, mobiliza o que chama de investimentos educacionais que formarão o capital humano. Os cuidados médicos também se tornaram alvo de cálculos e de um mercado da saúde, que se inicia até mesmo na manipulação genética, antes de uma criança nascer. As práticas culturais se tornaram estímulos a oferecer em um banco de patrimônios calculados economicamente e socialmente.

O terceiro capítulo do relatório analisa o impacto de questões emergentes na adolescência, argumentando que investir no desenvolvimento dos adolescentes torna-se ainda mais urgente ao considerarmos que a essa geração caberá encontrar soluções para os desafios da contemporaneidade, como a crise financeira mundial, o desemprego estrutural, a mudança climática que gera degradação ambiental, a urbanização e migração, o envelhecimento das sociedades, a pandemia do HIV/AIDS. (UNICEF, 2011, p. 03UNICEF. (2011). Situação mundial da infância 2011: adolescência, uma fase de oportunidades.. Brasília, DF: Autor )

Foucault declara, no curso Nascimento da Biopolítica (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes ), que a este jogo denominado de inovação e tecnologia foi acrescido o do plano dos direitos, em especial o das crianças e adolescentes e o da gestão de seus familiares. Por isto, o UNICEF também visa regular a família em seus mínimos atos, recomendando prescrições de condutas para que ela alcance resultados de impacto no PIB do país, forjando saberes e os usando utilitariamente, passou a ser um empreendimento rentável, sobretudo quando tais discursos se tornam reivindicações de direitos mediante várias práticas em redes de atendimento.

A ascensão global da sociedade civil poderia levar à compreensão de que está havendo uma mudança no poder dos Estados para entidades não estatais de todos os tipos. Trata-se, na verdade, de uma tendência a novo modelo de relação entre Estado e sociedade. (Vieira, 2001, p. 141Vieira, L. (2001). Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização. São Paulo: Record.)

Esta é a tônica da política de crescimento e desenvolvimento dos países hoje, qual seja, transferir e/ou compartilhar responsabilidades com outros agentes não estatais, que implica em ruptura com o liberalismo do Estado de Bem-Estar Social, financiador das políticas sociais para o contexto neoliberal, em que o Estado presta regras para o mercado financiar e investir nas políticas que se tornam cada vez mais compensatórias.

É nesta perspectiva que "há um crescente reconhecimento por parte dos atores estatais de que a experiência das ONGs pode servir para informar e aprofundar os processos de estabelecimento de políticas dos governos e das agências da ONU" (Vieira, 2011, p. 126Veyne, P. (2011). Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.). Nesse cenário, o UNICEF também atua com o Estado em rede com as ONGs e associações variadas em prol do governo das condutas de crianças e adolescentes.

Contudo, na medida em que muitas ONGs têm parte de financiamento do Estado, recebendo subsídios deste, como defini-las como não estatais? Ou ainda, como pensar a questão da representatividade política quando ONGs internacionais, aliadas a bancos também de outros países, interferem na condução da política de proteção sem terem sido votados pelo povo brasileiro, por exemplo?

O conceito de biopolítica de Foucault (2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes ) nos auxilia quando ele explica que tal racionalidade opera pela regulação da população mais que pela condução do povo, isto é, mais pela economia política do que pela visão de sujeito de direitos. Também é interessante que Foucault delineia que, na biopolítica, o Estado é governamentalizado, ou seja, ele se torna uma realidade compósita, em meio a uma multiplicidade de práticas de governo das condutas, exercidas por inúmeros atores que não se restringem à figura de uma unidade política estatal.

Neste aspecto, o UNICEF também não foi eleito por nós para nos governar ou para cuidar das crianças e adolescentes brasileiros, e mesmo assim o faz, ocupando, inclusive, estruturas de prédios públicos, como é o caso da sede desta agência em Brasília, que está instalada em um dos prédios do Ministério da Saúde.

Também podemos ainda destacar, com Donzelot (1986Donzelot, J. (1986). A polícia das famílias (2ª ed.). Rio de Janeiro: Graal.), que este movimento de rede do UNICEF com tantas instituições revela o funcionamento do Complexo Tutelar, na atualidade das práticas de proteção, garantia e defesa de direitos das crianças e adolescentes. A problemática da tutela instaura uma dimensão de controle social em relação com a de cuidado e defesa, o que é um paradoxo para nós indagarmos em termos de seus efeitos cotidianos.

E, no que tange à gestão de riscos estudada por Castel (1987Castel, R. (1987). A gestão de riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de janeiro: Francisco Alves.), há também uma resposta a este cenário e a estas questões colocadas nele, pois a preocupação cada vez maior com as crianças e adolescentes pelo UNICEF e por esta rede de entidades se tornou preventiva com o princípio de proteção integral ancorado nos mecanismos de segurança para impedir guerras e para realizar investimentos futuros, quando a infância caminhar para o mundo adulto.

Considerações Finais

Após esta série de argumentos e escritos analíticos, podemos afirmar que o Fundo das Nações Unidas para a Infância age em rede de práticas vizinhas, acionando técnicas disciplinares, biopolíticas, de gestão de riscos e sustentadas em um complexo tutelar.

É na mesma teia de relações diagramáticas que a resistência a tais mecanismos poderá se materializar ou não, na medida em que as relações de poder e de saber são organizadas e movimentadas como articulação de embates e confrontos de forças, nem sempre convergentes.

Movimentos centrífugos e centrípetos podem se dar nesta rede de práticas vizinhas, resultando em configurações diversas, nos mapas das existências e do efetuar das práticas cotidianas. De qualquer forma, é relevante observar como a esfera dos direitos se tornou capturada pelo mercado e pelas preocupações securitárias mais voltadas para a segurança mundial e não necessariamente para o campo de garantias de direitos por si só.

As práticas descritas são tecidas na formação de uma rede que funciona como um dispositivo de governamentalidade, composto por práticas concretas, raras, singulares, correlatas e históricas. Esse processo forja modos específicos de proteger crianças e adolescentes por meio de uma articulação, em que o UNICEF opera um lugar estratégico de agenciador dos mesmos sem, contudo, ser o protagonista, uma vez que o que ele faz é incitar e modular a cadeia de efeitos, acompanhá-los e organizá-los em um diagrama móvel.

Assim, a conservação de crianças e adolescentes tem história e se atualiza como objeto que é efeito de práticas, sendo que, na atualidade, o UNICEF conseguiu criar uma rede de alianças táticas que ampliam sua legitimidade na proteção internacional de direitos por meio de um Direito Sistêmico, portanto, diagrama de relações de gestão de riscos, disciplinares, panópticas, biopolíticas e que formam um Complexo Tutelar.

Agência de fomento

CNPQ - Processo: 301592/2012-8.

Referências

  • Castel, R. (1987). A gestão de riscos: da antipsiquiatria à pós-psicanálise. Rio de janeiro: Francisco Alves.
  • Donzelot, J. (1986). A polícia das famílias (2ª ed.). Rio de Janeiro: Graal.
  • Ferreri, M. A. (2011). Psicologia e direitos da infância: esboço para uma profissão recente da profissão no Brasil. São Paulo: Casa do Psicólogo.
  • Foucault, M. (1979). Microfísica do poder.. Rio de Janeiro: Graal
  • Foucault, M. (1988). História da sexualidade I: a vontade de saber.. Rio de Janeiro: Graal
  • Foucault, M. (1996). A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau.
  • Foucault, M. (1999). Vigiar e punir: a história da violência nas prisões Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Foucault, M. (1999b). Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes.
  • Foucault, M. (2004). A ordem do discurso. São Paulo: Loyola.
  • Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica.. São Paulo: Martins Fontes
  • Foucault, M. (2008b). Segurança, território e população.. São Paulo: Martins Fontes
  • UNICEF. (1998). A infância brasileira nos anos 90. Brasília, DF: Autor.
  • UNICEF. (2001). Relatório: situação da infância brasileira. Brasília, DF: Autor
  • UNICEF. (2002). Relatório: fazer valer os direitos das crianças e dos adolescentes.. Brasília, DF: Autor
  • UNICEF. (2003). Relatório da situação da infância e adolescência brasileiras: diversidade e equidade.. Brasília, DF: Autor
  • UNICEF. (2008). Situação mundial da infância 2008Caderno Brasil.. Brasília, DF: Autor
  • UNICEF. (2009). Situação da infância e da adolescência brasileira 2009: o direito de aprender - potencializar avanços e reduzir desigualdades. Brasília, DF: Autor
  • UNICEF. (2011). Situação mundial da infância 2011: adolescência, uma fase de oportunidades.. Brasília, DF: Autor
  • Veyne, P. (1998). Como se escreve a história. Brasília, DF: Editora UNB.
  • Veyne, P. (2011). Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
  • Vieira, L. (2001). Os argonautas da cidadania: a sociedade civil na globalização São Paulo: Record.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Set 2015
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2016

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2013
  • Revisado
    07 Dez 2013
  • Aceito
    19 Dez 2013
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