RESUMO
Os hospitais psiquiátricos, por muitos anos, foram utilizados como local de exclusão dos denominados loucos. Posteriormente, surgiu a reforma psiquiátrica como movimento social com objetivo principal de desinstitucionalização. Esse movimento estende-se até os dias atuais. Este estudo teve como objetivo discutir a prática da desinstitucionalização através da experiência com morador de hospital psiquiátrico. Pode-se evidenciar que a desinstitucionalização desenvolvida com ética e profissionalismo dentro da reabilitação psicossocial e de uma visão de clínica ampliada é complexa, é multifacetária, necessitando de diferentes abordagens e olhares em diferentes meios, com objetivo comum e utópico.
PALAVRAS-CHAVE:
Desinstitucionalização; Saúde Mental; Serviços de Saúde Mental; Alta do Paciente
ABSTRACT
Psychiatric hospitals for many years were used as a place of exclusion of so-called crazy. Later came the psychiatric reform, as a social movement with the main objective of deinstitutionalization. This movement extends to the present day. This study aimed to discuss the practice of deinstitutionalization developed through experience with a resident of a psychiatric hospital. It was shown that the deinstitutionalization developed with ethics and professionalism in psychosocial rehabilitation and an expanded vision of clinic is complex. Also, it is multifaceted, requiring different approaches and perspectives in different ways, but with a common goal and Utopian.
KEYWORDS:
Deinstitutionalization; Mental Health; Mental Health Services; Patient Discharge
Introdução
A reforma psiquiátrica
Os hospitais surgiram não com o papel de instituição médica, mas de um serviço assistencial dando hospedagem a todos os necessitados, utilizando-se para isso de um suporte religioso. No século XV, os hospitais psiquiátricos passatam a exercer um papel social ao tornar as ruas limpas e as sociedades livres dos sujeitos que não condiziam com os estereótipos elencados como normais pelas culturas locais, e geralmente considerados não confiáveis ou, até mesmo, perigosos (AMARANTE, 1995AMARANTE, P. Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, jul./set. 1995, p. 491-494.; WACHS; MALAVOLTA, 2005WACHS, F.; MALAVOLTA, MA Pode ser a oficina de corporeidade uma alternativa terapêutica na saúde mental? Boletim da Saúde, Porto Alegre, v 19, n. 2, jul./dez. 2005, p. 13-20.; LANCETTI; AMARANTE, 2006LANCETTI, A.; AMARANTE, P. Saúde mental e saúde coletiva. In: CAMPOS, G.W.S. et al. Tratado de saúde coletiva. Sâo Paulo:Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, p. 61 5-634.; AMARANTE, 2007AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.; BARROS; BICHAFF, 2008BARROS, S.; censo psicossocial dos moradores de hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo. Sâo Paulo: FUNDAP/Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo, 2008.170 p.).
Também, no Brasil, anteriormente a década de 1980, os portadores de doença mental, e denominados alienados, não possuíam liberdade devido à ausência de Razão. Não sendo possuidores de tal Razão, eram segregados ao serem retirados de seu meio e enviados para Hospitais com caráter asilar, onde eram institucionalizados juntamente com delinquentes e desajustados, pobres e necessitados, resultando em um isolamento social e consequente exclusão (WAIDMAN; ELSEN, 2005; LANCETTI; AMARANTE, 2006LANCETTI, A.; AMARANTE, P. Saúde mental e saúde coletiva. In: CAMPOS, G.W.S. et al. Tratado de saúde coletiva. Sâo Paulo:Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, p. 61 5-634.).
Em meados do século XIX, iniciam-se os movimentos contrários ao encarceramento, que buscavam a modificação no modelo de atendimento aos portadores de transtornos mentais, através de comunidade terapêutica, centro de atendimentos comunitários, modelo de cooperativas, e outros. Entretanto, esses esforços permaneceram aprisionados ao manicômio, tendo esse como referencia na rede de cuidados. (LANCETTI; AMARANTE, 2006LANCETTI, A.; AMARANTE, P. Saúde mental e saúde coletiva. In: CAMPOS, G.W.S. et al. Tratado de saúde coletiva. Sâo Paulo:Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, p. 61 5-634.).
Um marco determinante ocorreu com o fechamento do hospital psiquiátrico de Trieste na Itália, onde a partir de 1971 os indivíduos considerados alienados são alocados em espaços com assistência, não apenas medicamentosa, e em ambiente onde o desenvolvimento da subjetividade e a reinserção social fossem possíveis. Iniciou-se, assim, um amplo movimento de desinstitucionalização dos loucos, e que posteriormente iria fomentar o surgimento da posterior reforma psiquiátrica (BARROS; BICHAFF, 2008BARROS, S.; censo psicossocial dos moradores de hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo. Sâo Paulo: FUNDAP/Secretaria de Estado da Saúde do Estado de São Paulo, 2008.170 p.; LANCETTI; AMARANTE, 2006LANCETTI, A.; AMARANTE, P. Saúde mental e saúde coletiva. In: CAMPOS, G.W.S. et al. Tratado de saúde coletiva. Sâo Paulo:Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, p. 61 5-634.).
A reforma psiquiátrica surge dentro da história do tratamento em saúde mental, onde os alienados deixam de ser o objeto de tratamento através de um modelo apenas biomédico, passando a ser tratados como sujeitos em sofrimento e que necessitam de um olhar mais amplo em seu cuidado. Esse movimento é caracterizado com o fato dos sujeitos deixarem de ser chamados de pacientes, sendo denominados então de usuários.
Com o decorrer desse movimento que se iniciou no Brasil ao final da década de 1980, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, e através do movimento denominado reforma psiquiátrica, surge a mudança das ideias de atendimento, excluindo a prática dentro do modelo manicomial, e buscando alternativas extra-hospitalares para o cuidado, gerando muitas vezes a desospitalização, mas não a desinstitucionalização (FERREIRA, 1996FERREIRA, G. De volta para casa, prática de reabilitação com pacientes crônicos em saúde mental. In: PITTA, A. (Org). Reabilitação psicossocial no Brasil. Sâo Paulo: Editora de humanismo, ciência e tecnologia, 1996.; LANCETTI; AMARANTE, 2006LANCETTI, A.; AMARANTE, P. Saúde mental e saúde coletiva. In: CAMPOS, G.W.S. et al. Tratado de saúde coletiva. Sâo Paulo:Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, 2006, p. 61 5-634.).
A prática de desinstitucionalização vem sen do transformada através do tempo, modificando o conceito inicial que consistia apenas no fechamento do hospital psiquiátrico, para um conceito mais amplo e complexo do que apenas essa saída do espaço do hospital (FERREIRA, 1996FERREIRA, G. De volta para casa, prática de reabilitação com pacientes crônicos em saúde mental. In: PITTA, A. (Org). Reabilitação psicossocial no Brasil. Sâo Paulo: Editora de humanismo, ciência e tecnologia, 1996.). Corroborando essa ideia, Amarante (1995)AMARANTE, P. Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, jul./set. 1995, p. 491-494. assevera que a desinstitucionalização não é apenas um processo administrativo, mas um processo ético. Também Wachs e Malavolta (2005, p.17)WACHS, F.; MALAVOLTA, MA Pode ser a oficina de corporeidade uma alternativa terapêutica na saúde mental? Boletim da Saúde, Porto Alegre, v 19, n. 2, jul./dez. 2005, p. 13-20. referem que "não basta destruir os hospitais psiquiátricos, é preciso também desconstruir os manicômios mentais".
O processo de desinstitucionalização
No processo de desinstitucionalização do hospital psiquiátrico e reinserção social temos a presença da família e de todo sofrimento proveniente do adoecimento de seu ente. Esse vínculo familiar é uma variável importante a ser considerado quando da construção, implementação e desenvolvimento do projeto terapêutico individual (BARROSO; BANDEIRA; NASCIMENTO, 2007BARROSO, S.M.M.; BANDEIRA, M.; NASCIMENTO, E. Sobrecarga de familiares de pacientes psiquiátricos atendidos na rede pública. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 34, n. 6, nov./dez. 2007, p. 270-277.). Consequentemente nos sujeitos com longo período de internação, o fortalecimento do vínculo com a família é essencial para que se possa evitar o fenômeno denominado de porta giratória, ou seja, o retorno do sujeito à internação hospitalar, O trabalho tem que ser desenvolvido pelos profissionais da saúde em parceria com a família, com o grupo social ao entorno, e os demais atores que permeiam o processo de saúde-doença (SARACENO, 1996SARACENO, B. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: PITTA, A. (Org). Reabilitação psicossocial no Brasil Sâo Paulo: Editora de humanismo, ciência e tecnologia, 1996.; BARROSO; BANDEIRA; NASCIMENTO, 2007BARROSO, S.M.M.; BANDEIRA, M.; NASCIMENTO, E. Sobrecarga de familiares de pacientes psiquiátricos atendidos na rede pública. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, Rio de Janeiro, v. 34, n. 6, nov./dez. 2007, p. 270-277.).
A reinserção social usualmente é realizada com o auxílio da reabilitação psicossocial, sendo essa a ferramenta terapêutica para alcançar de maneira plena essa reinserção. Outro fator imprescindível é objetivação da cidadania plena como meta utópica final do desenvolvimento do plano terapêutico. Conforme Saraceno (1996)SARACENO, B. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: PITTA, A. (Org). Reabilitação psicossocial no Brasil Sâo Paulo: Editora de humanismo, ciência e tecnologia, 1996., a utilização de uma meta final utópica é necessária para manter a expectativa elevada, assim como para gerar uma atenção ético/técnica constante no acompanhamento.
O trabalho de reabilitação psicossocial implica em um fazer ético que auxilie o sujeito na busca de sua autonomia para transpor limitações em seus afazeres cotidianos, sendo essas limitações decorrentes de transtorno mental severo e persistente (PITTA, 1996PITTA, A. Reabilitação psicossocial no Brasil. Sâo Paulo: Editora de humanismo, ciência e Tecnologia, 1996.). O que é corroborado por Saraceno (1996)SARACENO, B. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: PITTA, A. (Org). Reabilitação psicossocial no Brasil Sâo Paulo: Editora de humanismo, ciência e tecnologia, 1996. ao colocar a reabilitação psicossocial como uma estratégia de modificação do estado em que se encontra o sujeito, de um cenário de 'desabilidade' para um oposto, de 'habilidade'.
Segundo Pitta (1996, p. 124)PITTA, A. Reabilitação psicossocial no Brasil. Sâo Paulo: Editora de humanismo, ciência e Tecnologia, 1996., "Em seu sentido instrumental a Reabilitação Psicossocial representa um conjunto de meios (programas e serviços) que se desenvolvem para facilitar a vida de pessoas com problemas severos e persistentes de Saúde Mental". O autor ainda relata que a reabilitação psicossocial não foca a atenção na doença, pois a doença é um objeto da medicina. A reabilitação é o resgate das capacidades para gozo dos plenos direitos e demais vantagens inerentes a toda pessoa (PITTA, 1996PITTA, A. Reabilitação psicossocial no Brasil. Sâo Paulo: Editora de humanismo, ciência e Tecnologia, 1996.).
Esses conceitos e sua utilização estão implícitos dentro dos preceitos constitutivos da Clínica Ampliada, sendo ela um compromisso de responsabilidade no atendimento do sujeito, uma reformulação do trabalho prestado, buscando ampliar o olhar sobre o sujeito a ser atendido. Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2009, p. 10BICHAFF, R. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.),
[..] o diagnóstico pressupõe uma certa regularidade, uma repetição. Mas para que se realize uma clínica adequada é preciso saber, além do que o sujeito apresenta de igual o que ele apresenta de diferente, de singular, inclusive, um conjunto de sinais e sintomas que somente nele se expressam de determinado modo. (BRASIL, 2009, p. 12BICHAFF, R. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.).
No caso da saúde mental, mais especificamente do morador de hospital psiquiátrico, a Clínica Ampliada vem através da perspectiva da busca de autonomia. Não apenas de autonomia com significado de terminar com alguma dependência, mas sim de promover que a pessoa consiga ampliar sua capacidade de lidar com suas limitações e possa gerar maior independência (CAMPOS; AMARAL, 2007CAMPOS, G.W.S.; AMARAL, M.A.A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teóricooperacionais para a reforma do hospital. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4, ago. 2007, p. 849-859.).
A Clínica Ampliada é uma proposta de reorientação dos saberes, responsabilidades e práticas através da modificação da atenção individual e coletiva, buscando trabalhar o sujeito e seus laços sociais. Propõe incorporar nos seus saberes e práticas não somente a questão epidemiológica e biológica, mas também o contexto social e subjetivo do sujeito ou grupo, não enfocando a doença no lugar do sujeito, e por isso sendo considerada a clínica do sujeito (NUNES et al., 2008NUNES, M. et al. A dinâmica do cuidado em saúde mental: signos, significados e práticas de profissionais em um Centro de assistência psicossocial em Salvador, Bahia, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, jan. 2008, p. 188-196.; CAMPOS, 2001CAMPOS, R.O. Clínica: a palavra negada - sobre as práticas clínicas nos serviços substitutivos de Saúde Mental. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 25, n. 58, mai/ago. 2001, p. 98-111.).
Então, esse conceito de Clínica Ampliada tende através da mudança do objeto e do objetivo, a mudança da prática terapêutica. Busca constituir uma articulação entre diferentes enfoques, facetas e disciplinas que contribuem nos processos de trabalho em saúde, ou seja, não se restringe ao trabalho da clínica tradicional, padronizada, mas estende seu o foco através da valorização de outras práticas terapêuticas (CAMPOS; AMARAL, 2007CAMPOS, G.W.S.; AMARAL, M.A.A clínica ampliada e compartilhada, a gestão democrática e redes de atenção como referenciais teóricooperacionais para a reforma do hospital. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 12, n. 4, ago. 2007, p. 849-859.; BRASIL, 2009BICHAFF, R. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Clínica ampliada e compartilhada Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Política Nacional de Humanização da Atenção e Gestão do SUS. Brasília: Ministério da Saúde, 2009.).
Metodologia
Este trabalho teve o objetivo de apresentar o processo de desinstitucionalização realizado com morador de hospital psiquiátrico com diagnóstico de esquizofrenia crônica e com longo período de internação. Mais que isso, visou apresentar as peculiaridades provenientes desse processo e discuti-las dentro de uma visão crítica, mas principalmente ética.
Dessa maneira, trata-se de um estudo de caso do tipo relato de experiência, com delineamento longitudinal. Também cabe frisar que não houve financiamento da produção do presente estudo, assim como conflito de interesses.
Aspectos éticos
Este estudo está em conformidade com os princípios contidos na Resolução n° 196/96 do Conselho Nacional de Saúde e foi aprovado por comitê de ética. Os dados foram coletados após o sujeito, seu responsável e a equipe que lhe atende terem sido informados sobre os procedimentos e objetivos do estudo, e terem consentido através da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, ficando uma cópia deste documento para os mesmos.
Breve histórico prévio à institucionalização
O sujeito referido neste trabalho, e que denominaremos de G.A.K., é proveniente da área urbana de um município com grande quantidade de imigrantes italianos e alemães, com distância aproximada de 150 km da capital do estado do Rio Grande do Sul. Na época em que o sujeito ainda residia nessa cidade, a mesma possuía sua economia baseada principalmente em dois setores, na agricultura e na indústria. A indústria apresentava-se em amplo crescimento, com destaque para as metalúrgicas. Também possuía uma rede de ensino bem estruturada, contando com escolas de ensino fundamental, médio, superior, e educação especial.
É o segundo filho de uma família cuja prole era composta por um total de oito, sendo divididos cm seis indivíduos do sexo masculino e dois femininos, O pai encontrava-se falecido quando da institucionalização, enquanto a mãe exercia o papel de dona de casa. Todos os integrantes deste núcleo familiar residiam no mesmo lar, dividindo espaço no terreno com familiares maternos.
Familiares relatam que previamente ao momento da institucionalização do sujeito, era inexistente o conhecimento de diagnósticos de doenças psiquiátricas nos demais membros da família. Entretanto, após a internação, em 2009, também conforme relato de parentes, já havia diagnósticos de patologias como depressão e bipolaridade em irmãos, sobrinhos, e outros familiares.
O sujeito da pesquisa teve desenvolvimento 'normal' até um incidente onde foi agredido fisicamente. Este episódio desencadeou uma série de 'problemas' e de uma sequência de atendimentos e internações no serviço de saúde mental da região. Ainda assim, seguiu estudando, porém em escola pública de ensino especial. Nesta mesma instituição teve oportunidade de realizar prática laboral através de trabalho manual para uma empresa da própria cidade. Possuía dificuldade de aprendizagem, mas conseguia evolução na aprendizagem, assim como frequentar a escola e se relacionar com os demais harmoniosamente.
Sua internação decorre de uma situação específica, onde em determinado momento houve um incêndio de grande proporção na residência de sua família, e que no momento foi encarado pela família e comunidade como resultado de um surto psicótico. Este episódio obteve grande repercussão na mídia da época, e culminou no decreto do juiz da comarca a que pertencia, em favor de sua institucionalização em hospital psiquiátrico. Seu ingresso acabou ocorrendo no ano de 1983, onde se apresentava com 17 anos de idade.
Como já apontado, esse episódio fora descrito como um possível surto psicótico. Entretanto, esta hipótese pode ser amplamente questionada ao levar em consideração o discurso posterior do sujeito. G.A.K. já se apresentava nessa época como tabagista, e em relatos a profissionais do hospital à partir de 2009, descreve que houve sim um acidente, porém não decorrente de surto, mas sim de um descuido (não intencional), e que sua agitação durante o incêndio não decorria de delírios, mas de ansiedade e medo pela situação ali instalada.
Todavia, na época do incidente os familiares não conseguiram enxergar dessa maneira, e devido ao desconhecimento e preconceito acerca da doença tinham medo de seu ente. Dessa forma, restou recorrer aos serviços de saúde existentes e respectivamente ao manicômio.
O atendimento no Hospital Psiquiátrico
Com o advento da reforma psiquiátrica, das novas diretrizes políticas, e consequentemente das novas práticas em saúde mental desenvolvidas no país, ao final da década de 1990, foi desenvolvido na instituição um trabalho longo e progressivo de desospitalização. Este processo culminou no encaminhamento para um residencial terapêutico que recebeu também outros moradores provenientes do hospital psiquiátrico. Na ocasião, a permanência nesse local durou aproximadamente três anos, mas não teve sustentabilidade devido a inúmeros fatores individuais (que não serão abordados no presente trabalho, mas que foram relevantes para a reconstrução do plano terapêutico), gerando seu retorno ao serviço de moradia interna do hospital.
Com o retorno para dentro dos muros do hospital psiquiátrico, manteve-se o suporte e o enfoque na reabilitação psicossocial, sendo atendido por profissionais de diferentes áreas do conhecimento. Buscava-se, dessa maneira, trazer alívio ao seu sofrimento psíquico, mas concomitantemente auxiliar a busca de sua autonomia e reingresso de forma harmoniosa na sociedade através de uma futura nova tentativa de inserção no serviço de moradia.
Entre outras atividades, foi reiniciada dentro do hospital a prática laboral, realizan do atividade na horta do hospital, onde diariamente pelo turno da manhã auxiliava os profissionais no plantio, no cuidado e na colheita de produtos orgânicos, para uma possível comercialização e/ou consumo próprio. Essa atividade propiciava dinheiro (que ficava sob sua guarda), para ser trabalhado, junto aos profissionais responsáveis pelo seu atendimento, os aspectos relacionados à compra de produtos de seu interesse, e o manuseio do dinheiro.
O projeto terapêutico e o processo de desinstitucionalização
No ano de 2008, apresentou-se com o diagnóstico de esquizofrenia crônica, tendo sintomatologia residual não produtiva. Estava, na época, com 43 anos, sendo que 26 deles decorridos dentro do âmbito hospitalar. Nesse momento, o projeto terapêutico foi reavaliado pelo grupo de profissionais presentes na unidade naquele momento. Nesse período, ampliou-se as possibilidades de atendimento, e com o desenvolvimento de um trabalho mais direcionado e efetivo, foi possível evidenciar uma expansão do repertório de habilidades que consequentemente auxiliou a maximizar o nível de autonomia do sujeito.
Muitas atividades foram realizadas em área interna do hospital, mas outras tantas, e com efetivo proveito, foram realizadas na parte externa ao hospital. Conseguiu-se utilizar dos anseios do sujeito para, a partir desses, juntar com o saber profissional de cada área do conhecimento, para com as experiências individuais ali apresentadas alcançar mais degraus e ficar ainda mais próximo do objetivo que é amplo e sempre utópico.
Tendo cm vista as possibilidades de evolução do caso e apostando na criação e reconstrução de subjetividade do sujeito partindo da posição ética ao considerar as ideias do sujeito e colocá-lo como coautor de seu projeto, levou-se cm consideração a história de vida, as vontades, os apontamentos, e demais demandas que emergiram através do sujeito e deste frente aos atores envolvidos diretamente e indiretamente no decorrer da elaboração e execução do projeto.
Foi desenvolvido como objetivo então a desospitalização juntamente com a desinsitucionalização do hospital psiquiátrico, através de um processo lento e gradual com desfecho final de seu retorno para sua cidade natal, onde reside a quase totalidade de seus parentes, e local de desejo em voltar a residir. Para isso, era sabido devido a experiências prévias da equipe, e dos demais atores envolvidos neste projeto a imensa diversidade de elementos presentes e relacionados diretamente com o contexto do trabalho a ser desenvolvido.
Trabalhou-se, então, sob a ótica da clínica ampliada em diferentes âmbitos, ou seja, não somente focando o indivíduo, mas ampliando esse olhar para seu meio (local de moradia no momento), sua família, o serviço de atenção mental da cidade (tanto equipe técnica como sujeitos atendidos), a equipe do hospital, o meio social em que seria inserido, assim como assuntos legais (ex.: curador(a); programa 'de volta para casa',...). Estes elementos foram citados separadamente aqui, mas na prática são muito próximos e de difícil delimitação c/ou divisão, pois um interfere no outro.
O trabalho diretamente com o indivíduo, através da prática da reabilitação psicossocial por equipe multidisciplinar, havia sido iniciado anteriormente, e seguiu através de ideais utópicos de resultados, fomentando assim um trabalho com ganhos (resultados) contínuos e com menor chance de estagnação dessa evolução. Talvez esse seja o trabalho mais árduo, não por uma dificuldade de conseguir resultados positivos, pelo contrário, o crescimento é maior que o esperado pelos profissionais, mas por ser utópico, e estar sempre almejando mais do que se tem no momento e do que se pode alcançar em curto prazo, tem a característica de não cessar.
Em relação à família, podemos ver que não apenas essa específica, mas tantas outras possuem relações complexas de serem analisadas com seus entes portadores de sofrimento psíquico, e são pontos chaves na construção do planejamento do plano terapêutico. No presente caso, o desligamento do vínculo familiar quando da internação e toda a situação ocorrida (incêndio da residência familiar) ainda aparecem presentes no imaginário de toda a família.
A proximidade ou afastamento do seio familiar também gera ansiedade no sujeito e necessita ser trabalhada continuamente ao longo de todo o acompanhamento, e não de modo transversal ou em algumas situações. Entretanto, o inverso também é verdadeiro, a proximidade do ente com o sujeito que outrora fora intitulado e rotulado como 'louco' e que necessitava de enclausuramento traz sentimentos e lembranças diversas em seus familiares, lembranças e rótulos que precisam ser desconstruídos, construídos e reconstruídos novamente.
A desconstrução de algum rótulo e/ou preconceito ocorre em momentos não específicos ou programados, pois não há um roteiro exato de como os fenômenos irão ocorrer. No presente caso, um episódio foi relevante na mudança dos conceitos da família frente ao sujeito. Isso ocorreu quando o sujeito, em determinado momento com a família, dentro das atividades incluídas no plano terapêutico, traz espontaneamente à mãe, pela primeira vez, sua visão sobre o incidente. Nesse momento, muitos medos e preconceitos são desfeitos. É gerada assim uma nova visão do indivíduo pela sua família, e construída uma nova relação, mais próxima e afetuosa.
Fica evidente que essa instituição (família) necessita de suporte através de escuta, acolhimento e troca de conhecimentos para poder lidar com as situações que surgem. O retorno traz uma sobrecarga emocional e isso não pode ser negado ou mascarado, com o risco de um fracasso caso sejam velados pensamentos e sentimentos. A desresponsabilização ou impedimento da família de cuidar de seu ente com sofrimento psíquico é uma construção social que o movimento da Reforma Psiquiátrica permanece tentando transformar. Muitas famílias com integrante portador de sofrimento mental não se julgavam capazes de cuidar desses, e tinham seus parentes institucionalizados, como no presente caso.
Na transferência para outro atendimento temos mais um no do tratamento, pois sabemos que o Sistema Único de Saúde (SUS) muitas vezes não possui a capacidade de atender a toda a demanda decorrente do indivíduo, tendo em vista que é necessária a existência de residencial terapêutico, assim como vaga nesse. Além de equipe para um acompanhamento que não seja apenas medicamentoso, mais que desenvolva um trabalho dentro da ideia da Clínica Ampliada.
Essa transferência é realizada lentamente, através de atividades pontuais com o sujeito, tanto dentro do âmbito hospitalar, quanto juntamente aos novos dispositivos de saúde para on de será referenciado. Atividades simples, como visitas e passeios, mas promotoras de imenso impacto no fomento do vínculo com esse novo lugar. Pode-se ainda citar, como exemplo, a relação do sujeito com o espaço físico onde irá residir, que foi trabalhado de diferentes maneiras, entre elas através da implicação desse na construção do seu espaço, ocorrido nas escolhas, decisões, compras, organizações, etc.
O acompanhamento da família por parte da equipe do dispositivo de saúde mental da cidade também foi algo bem discutido e elaborado, porque o vínculo da família com a equipe dos dispositivos de saúde está diretamente vinculado ao processo de desinstitucionalização. E, como já citado, a intersetorialidade é um obstáculo, pois a relação entre os serviços de saúde não deve ser conduzida apenas através de documentação de referência ou contrarreferencia, mas para um resultado satisfatório passa por muita troca pessoal.
Não somente na relação com os serviços extra-hospitalares, mas, também, de diferentes formas dentro do próprio serviço ocorrem obstáculos. Um fator relevante é o da existência de correntes de pensamentos divergentes que podem gerar discussões produtivas, mas também efeitos contrários, dependendo de como se dá essa situação. Interessante pensar que os profissionais da equipe possuem um mesmo objetivo, ou seja, a melhor qualidade de vida e bem-estar, tendo em vista os anseios do indivíduo. Todavia, o que é pensado como melhor por um profissional muitas vezes não é o considerado melhor pelo outro.
Então, ter a capacidade de desenvolver o trabalho com a influência de posições de diferentes atores, e não retroceder ou cessar esse processo é imprescindível e demanda habilidades que surgem e se aprimoram na prática do diálogo como o diferente, e cm alguns momentos com o contrário.
Ainda é importante analisar que muitos vínculos são formados através do atendimento em saúde mental entre os sujeitos envolvidos (paciente, trabalhador, familiares e outros). Sentimentos são gerados ao longo dos tratamentos. Ainda mais quando o sujeito está sobre a tutela da equipe, sem o acompanhamento direto da família. Cria-se em alguns trabalhadores o sentimento de responsabilização não só profissional, mas algo próximo ao maternal. E, quando há a necessidade do rompimento, no presente caso devido ao processo de desinsitucionalização, há o aparecimento de novos sentimentos, sentimentos de ansiedade e medo nos profissionais. Medo de que o outro profissional que irá tornar-se responsável pelo atendimento não consiga realizar o zelo da mesma forma, ou melhor. Ansiedade de saber que mudanças e acontecimentos estarão a surgir na vida desse sujeito e o profissional que sempre esteve ao seu lado não estará ali para ver, escutar, auxiliar e zelar.
Considerações Finais
O processo de desinstitucionalização, evidenciado no presente trabalho não se apresenta apenas como uma descapitalização, pois não se restringiu à simples atividade de retirar o indivíduo do âmbito hospitalar. Exercendo, dessa maneira, uma função modificadora das práticas, das relações e das concepções institucionalizantes no atendimento em saúde mental, iniciando dentro de uma instituição totalitária (hospital psiquiátrico) e que culminou com o encaminhamento para serviços substitutivos a este.
Para chegar a esse final, foi necessário utilizar ferramentas e instrumentos preconizados pela literatura e, mais que isto, foi necessário forte empenho e corresponsabilização pelos profissionais envolvidos. Trabalhou-se com demanda intensa emergente de diferentes sujeitos e situações, demonstrando que o caminho é repleto de obstáculos a serem perpassados; entretanto, ao longo de todo o trajeto construído na prática, os resultados são gratificantes e enriquecedores, tanto para os profissionais, quanto para o sujeito.
O presente manuscrito não contém a descrição de um protocolo, mas sim de um projeto singular para esse indivíduo, não possuindo procedimentos padronizados para sua efetiva concretização, pois a desinstitucionalização é algo próprio de cada indivíduo e contexto, e para tanto exige um projeto singular. Também não possui outra maneira de ser desenvolvido efetivamente, senão dentro de uma visão de Clínica Ampliada, buscando o aporte de conhecimentos provenientes de diferentes áreas do conhecimento, da transdisciplinariedade e da intersetorialidade.
Todo esse contexto e essa complexidade inerentes ao trabalho desenvolvido na desinstitucionalização auxiliaram também os profissionais das mais diferentes áreas do conhecimento a ampliar seus olhares frente à doença mental, reforçando a necessidade do empenho pela continuidade das práticas de cuidado em consonância com o legado da reforma psiquiátrica brasileira. Almejando assim, a não estagnação e acomodação dos trabalhadores frente práticas de cuidado, mas da reconstrução contínua da prática junto às experiências do dia a dia, das políticas públicas atuais, e dos conhecimentos científicos produzidos.
Por fim, cabe ressaltar que o processo de desinstitucionalização quando desenvolvido com ética e profissionalismo dentro do processo da reabilitação psicossocial e de uma visão de clínica ampliada é complexo, é multifacetário, necessitando de diferentes abordagens e olhares em diferentes meios, mas com um objetivo comum e utópico. Assim, é possível alcançar resultados não apenas satisfatórios para o indivíduo que necessita da atenção do serviço de saúde, mas que muitas vezes fazem a diferença na vida da pessoa, de suas famílias, e da sociedade.
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Suporte financeiro: Não houve
Referências
- AMARANTE, P. Saúde mental e atenção psicossocial 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
- AMARANTE, P. Novos sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, jul./set. 1995, p. 491-494.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
18 Ago 2023 -
Data do Fascículo
Apr-Jun 2012
Histórico
-
Recebido
Nov 2011 -
Aceito
Jul 2012