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Análise fenomenológica de depoimentos escritos: apresentando e discutindo uma possibilidade

Phenomenological analysis of written report: presenting and discussing a possibility

Resumos

Apresenta-se um procedimento de análise fenomenológica, cujo instrumento de coleta de dados foi o depoimento escrito. Pretende-se defender o uso de tal instrumento, através de reflexões acerca de sua validade e sobre a sistematização e a coerência de sua aplicação no âmbito da pesquisa fenomenológica.

pesquisa fenomenológica; análise fenomenológica; depoimento escrito


This article presents a procedure on phenomenological analysis, whose data instrument was written report. It claims and defends the use of this instrument through reflections about its validity, and about the systematization and the consistency of its application on the ambit of phenomenological research.

phenomenological research; phenomenological analysis; written report


ARTIGOS

Análise fenomenológica de depoimentos escritos: apresentando e discutindo uma possibilidade

Phenomenological analysis of written report: presenting and discussing a possibility

Shirley Martins de Macêdo

RESUMO

Apresenta-se um procedimento de análise fenomenológica, cujo instrumento de coleta de dados foi o depoimento escrito. Pretende-se defender o uso de tal instrumento, através de reflexões acerca de sua validade e sobre a sistematização e a coerência de sua aplicação no âmbito da pesquisa fenomenológica.

Palavras-chave: pesquisa fenomenológica; análise fenomenológica; depoimento escrito.

ABSTRACT

This article presents a procedure on phenomenological analysis, whose data instrument was written report. It claims and defends the use of this instrument through reflections about its validity, and about the systematization and the consistency of its application on the ambit of phenomenological research.

Key words: phenomenological research; phenomenological analysis; written report.

O presente texto consiste numa apresentação e numa reflexão do procedimento de análise dos dados da nossa dissertação de mestrado (Macêdo, 1998). Seu principal objetivo é legitimar a análise fenomenológica de depoimentos escritos, desde que respeitados os parâmetros de sistematização e a coerência metodológica de uma pesquisa fenomenológica.

A dissertação

O principal objetivo foi compreender fenomenologicamente vivências da relação terapêutica tais como descritas por clientes que se encontravam em processo terapêutico na terapia centrada no cliente. No decorrer da realização da dissertação, devido ao contato singular com os dados no nosso procedimento de análise, outro objetivo surgiu: traçar um panorama das vantagens e desvantagens da realização de uma compreensão fenomenológica de vivências a partir de um contato pesquisador sujeito intermediado pela palavra escrita.

Coletamos depoimentos escritos de clientes via correio. Encaminhávamos uma carta pedindo a cada um que tentasse entrar em contato com a experiência de ser cliente daquele terapeuta e descrevesse, o mais detalhadamente possível, como era a relação entre os dois, se possível dando exemplos de momentos significativos que ele vivenciou nesta relação (pergunta disparadora). Esta carta era entregue ao cliente pelo próprio terapeuta, que nos enviava de volta o depoimento também via correio. Considerando aspectos éticos do setting terapêutico, optamos por não ter acesso direto ao cliente, com receio de interferir diretamente na sua relação com o seu terapeuta.

Considerações sobre relação terapêutica

A relação terapêutica constitui um imbrincamento de subjetividades, cuja característica básica é ser esta intersubjetividade a mola de engajamento do processo de ajuda. Assim, consideramos que só podemos compreender algumas nuanças deste processo a partir apenas de um dos parceiros da relação (ou seja, a partir do terapeuta ou do cliente) se consideramos que os dois compartilham alguns significados emergidos no contexto da psicoterapia.

Desta forma, como pano de fundo da dissertação, esteve a idéia da relação terapêutica como uma realidade socialmente construída (Berger & Luckmann, 1966), não uma realidade permeada por padrões sociais, mas uma realidade relacionalmente construída, ou seja, construída com base em significados compartilhados entre as pessoas.

Consideramos, então, que, face-a-face com o terapeuta, no contexto intersubjetivo da psicoterapia, o cliente pode apreender um vivido que é compartilhado pelos dois. Havendo, na relação estabelecida entre eles, um intercâmbio contínuo entre as expressividades de ambos, o que o terapeuta é, sua forma de se relacionar, e certas características subjetivas que ele possui, podem ser acessíveis ao cliente.

Acreditamos que a percepção do cliente da realidade da psicoterapia está relacionada, em certo grau, com a realidade em si mesma, ou seja, acreditamos que a percepção subjetiva dele tem um grau de ressonância da realidade objetiva. Não se trata, aqui, de uma mera avaliação que ele possa fazer do terapeuta e da abordagem teórica de trabalho deste, mas sim de uma percepção possibilitada por uma vivência relacional significativa que é compartilhada por ambos.

Cain (in Cainet alli,1989) e Thorne (in Cain et alli, 1989) salientam a importância de se confiar em dados da relação terapeutacliente fornecidos pela experiência subjetiva do cliente. Mas acrescentamos, aqui, que para que dados como estes sejam confiáveis, é necessário que o cliente possua um grau considerável de conscientização da realidade (um dos critérios sugeridos por nós aos terapeutas), ou seja, que em seu processo vital corrente haja uma integração entre experiência, consciência e comunicação. Por outro lado, a perspicácia do pesquisador para apreender os significados comunicados por este sujeito torna-se de crucial importância na confiabilidade de um estudo deste âmbito, no sentido de se ter o máximo de cuidado para não realizar, por exemplo, uma análise da vivência relatada por um cliente considerando o relato enquanto dado objetivo da realidade compartilhada entre este e o terapeuta, já que um relato, mesmo podendo revelar nuanças de uma realidade objetiva, é uma construção subjetiva do sujeito.

A pesquisa fenomenológica está voltada para significados, para o vivido. Para ser sistemática e coerente com seu objeto de pesquisa, ela deve respeitar certos parâmetros, que lhe forneçam validade científica. Peterson (1994) propõe ao pesquisador fenomenológico vários critérios de pesquisa, alguns dos quais julgamos relevantes para serem destacados aqui: a) ser metodologicamente criativo e seguir a pesquisa criticamente; b) considerar sua subjetividade como podendo ser desenvolvida e articulada para prover as muitas formas de acesso aos resultados; c) estar consciente da não possibilidade de permissão destes resultados refletirem seus interesses e pressuposições, já que o estágio inicial de uma boa pesquisa fenomenológica envolve a imersão e o engajamento do pesquisador com o fenômeno de interesse; d) realizar um nível de análise diferente da análise das ciências naturais, suspendendo os pressupostos sobre a natureza do fenômeno a ser estudado; e) não apenas catalogar temas ou idéias, mas possibilitar uma visão e uma articulação da experiência estudada como constitutivas de significados, desenvolvendo uma clara avaliação de como o fenômeno se desdobra, e procurando ilustrar passo-a-passo os vários estágios de suas reflexões.

Respeitando tais critérios, a metodologia utilizada na dissertação foi permeada por uma criatividade crítica, onde procuramos, constantemente, observar os pontos positivos e negativos, reformulando, aperfeiçoando, buscando uma forma mais sistemática de lidar com a palavra escrita, já que a pesquisa fenomenológica privilegia o contato interpessoal do pesquisador com o sujeito. Tivemos cuidado especial em recorrer à nossa subjetividade como instrumento facilitador do nosso contato com os depoimentos, sem deixar que ela distorcesse os dados. Procuramos suspender os conhecimentos prévios que tínhamos sobre o tema e sobre a área da psicologia clínica investigada (ACP), e especificar claramente os passos de análise que percorremos.

Como tivemos acesso à relação terapêutica através do depoimento do cliente? O esquema abaixo ilustra a nossa postura enquanto pesquisadores:

Estudamos a relação terapêutica indiretamente a partir do depoimento do cliente, que,

por compartilhar esta relação com o terapeuta, pôde descrevê-la, permitindo-nos compreender alguns aspectos da mesma. Portanto, na relação entre nós e o depoimento, tentamos nos aproximar do fenômeno de estudo (relação terapêutica) e produzir significados a partir da descrição do cliente sobre sua vivência.

Acreditamos ter sido possível compreender os significados destas vivências, não por serem exclusivos da terapia, mas por serem vivências humanas, ricas de significados humanos e, enquanto humanos, encontramo-nos em condições de nos abrir a estes significados, com todo cuidado que esta forma de conhecer a experiência do outro requer.

Ashworth (1996) defende que, mesmo que o empreendimento de uma pesquisa fenomenológica requeira a todo tempo a redução eidética de teorias, dados de pesquisa ou qualquer pressuposição que impeça o pesquisador de se abrir ao fenômeno e compreendê-lo tal como ele aparece, há algo que não se pode reduzir e ideticamente: o fato do pesquisador e do sujeito estarem num mundo de interação social, envolvidos numa reciprocidade de perspectivas. Para ele, estes elementos são os pré requisitos essenciais à interação pesquisador sujeito e à compreensão do fenômeno do mundo da vida do sujeito pelo pesquisador, frisando que não é que este fenômeno seja facilmente expresso, mas, admitindo-se reciprocidade de perspectivas, admite-se compreensibilidade.

Parece-nos que o que Ashworth chama de mundo da interação social e reciprocidade de perspectivas são semelhantes, respectivamente, ao que Berger & Luckman(1966) designam como realidade da vida cotidiana (realidade da vida do sujeito no mundo) e compartilhamento de significados, que foram pressuposições centrais do nosso estudo. Assim, nossa subjetividade, enquanto formada por significados compartilhados com o cliente (por exemplo, somos humanos, fazemos terapia) foi um instrumento que permitiu acesso ao vivido deste sujeito.

O sentido e os significados de um depoimento escrito

Consideramos um depoimento (discurso) escrito uma obra (de arte) de seu autor. Ele diz algo além do que está escrito, ou seja, além daquilo que o autor intencionava dizer, pois seus significados serão presentificados na relação que o leitor estabelecer com ele. Ao nos depararmos com esta obra e deixarmos nos tocar por ela, retomamos à nossa natureza eminentemente humana, o que torna possível o encontro entre nossa intencionalidade e a do autor do depoimento (Dartigues, 1992). Para isso é preciso uma abertura ao conhecimento sensível do mundo, que não é intelectual coisificador, mas vivencial-presentificador, ou seja, não coisificamos um depoimento escrito como objeto de estudo, mas vivenciamos e presentificamos para nós os seus significados.

Quando nos abrimos desta forma à intenção do outro, não buscamos verdades, mas, possibilidades desta intenção. O conhecimento que resulta disto é uma tentativa de compreensão do fenômeno animado por esta intenção.

Na dissertação, buscando produzir significados sobre a vivência da relação terapêutica a partir das descrições dos clientes, consideramos que seus depoimentos revelariam a peculiaridade de sua vivênciada relação terapêutica. Portanto, partindo de depoimentos descritivos de experiências, feitos pelos próprios sujeitos que as vivenciavam (Giorgi, 1985), consideramos os significados enquanto sentidos (Giorgi, 1989), para compreendermos a estrutura do fenômeno da vivência da relação terapêutica por eles.

Análise fenomenológica X análise de discurso

Nicolacida-Costa (1994), ao escrever sobre análise de discurso, enfatiza que esta tem uma diversidade de objetivos, dependendo da disciplina que a utiliza (sociologia, lingüística, psicologia etc), e que ela não é nada mais que um conjunto de diferentes metodologias para analisar diferentes tipos de discursos, a partir de diferentes posturas epistemológicas que pretendem objetivos diversos. A autora propõe, então, que existam diferentes concepções de análise de discurso, umas mais próximas e outras mais distantes do núcleo lingüístico. Nestas últimas ela situa a análise de discurso para investigar discursos cotidianos, usada, na maioria das vezes implicitamente, por pesquisadores das ciências humanas e sociais que se valem de questionários, observações, entrevistas etc. Para a autora, aos pesquisadores de tais ciências""falta a própria consciência de que suas investigações estão quase sempre imersas em material discursivo"(p.326).

E uma das razões disto seria que tanto pesquisadores, cientistas sociais ou humanos quanto os lingüistas são excelentes analistas de discurso, pois todos sabem, "ao menos intuitivamente, como interpretar o que (Ihes) é dito em função não somente das formas lingüísticas utilizadas, mas também em função de quem disse o que, quando e onde. E, se (se sabe) interpretar os mais variados discursos aos quais (se é) exposto (no) dia-a-dia é porque (se possui) categorias, oriundas da (própria) visão de mundo, que (...) permite fazê-lo"(op.citgrifos da autora).

Só que quando estes profissionais passam do domínio da intuição cotidiana para o da investigação científica, parece que se esquecem desta capacidade interpretativa, e não lançam mão dela para "ir muito além daquilo que é expresso numa frase, palavra ou expressão" (p. 327). Assim, eles acabam fazendo "uma análise implícita de discurso, que em pouco se distancia da análise intuitiva"(op.cit grifos da autora), da qual se utilizam para interpretar os discursos aos quais eles estão expostos no seu cotidiano.

Acreditamos que esta análise implícita de discurso ocorreu no nosso trabalho. No entanto, a análise fenomenológica, já que privilegia o movimento intuitivo do pesquisador enquanto acessibilidade ao sentido da experiência que é relatada pelo sujeito da pesquisa, e que nos permite integrar intuição cotidiana com investigação científica, torna mais fácil não esquecermos desta "fantástica capacidade interpretativa" (palavras da autora à p. 327), mesmo que tomemos o discurso, seja ele falado ou escrito, como base de nossas compreensões.

Defendemos esta idéia porque o instrumento que utilizamos permitiu, a partir do nosso movimento intuitivo,entrarmos em contato com a intenção significativa do autor da obra, o cliente, através de sua descrição escrita. Sabemos, contudo, que o nosso envolvimento existencial com o sentido de sua experiência, viabilizado pelo seu depoimento, apontou apenas possibilidades intencionais, mas isto não invalida os resultados encontrados, pois o próprio método fenomenológico considera que: um fenômeno tem diversas possibilidades de ser; e que quanto mais próximo um contato entre a consciência do pesquisador e a consciência do sujeito da pesquisa, uma "possibilidade de ser" advém de um encontro intersubjetivo entre as duas consciências (Dartigues, 1992). E este encontro, acreditamos, é específico de uma análise fenomenológica, e não de discurso.

A pesquisa fenomenológica com depoimentos escritos

Em levantamento bibliográfico, constatamos uma escassez de pesquisa fenomenológica com depoimentos escritos. Aqui situamos alguns estudos, destacando que nossa análise foi feita basicamente tendo em vista o contato singular com os depoimentos dos sujeitos de nossa pesquisa.

Ao escrever sobre as origens históricas da pesquisa fenomenológica em psicologia, Cloonan (1995) fala sobre os trabalhos de MacLeod (1907-1972), que propôs a feromenologia como propedêutica da psicologia. Uma das pesquisas de MacLeod consistiu em analisar as memórias de Kitchum escritas em um diário que se transformou no livro Ruhleben (1965) sobre o período em que este foi prisioneiro num campo alemão durante a primeira guerra mundial. MacLeod pretendia uma análise da realidade social vivida por Kitchum e declarou ter realizado uma abordagem "mais ou menos" fenomenológica quando analisou a motivação do autor do livro. Segundo Cloonan (1995), esta análise foi "muito menos que mais" fenomenológica, pois na aplicação do seu método, MacLeod não apresentou os passos concretos do seu procedimento de análise. Assim como em outras pesquisas, MacLeod privou seu trabalho desistematização, impedindo o avanço da pesquisa fenomenológica em psicologia.

Não foi possível, contudo, ter acesso a tal estudo. Recorrendo à bibliografia nacional, encontramos dois estudos de Forghieri (1989 e 1993) com depoimentos escritos, mas estes estudos também levaram em consideração o contato direto que a autora estabeleceu com os sujeitos da pesquisa. Em 1989,ela investigou a vivência de frustração pessoal intensa, e em 1993,a vivência de bem estar e contrariedade, ambos os estudos realizados com dez pós- graduandos de psicologia. Alguns aspectos do nosso procedimento de análise, apresentado mais adiante, têm referência direta aos passos utilizados por Forghieri nestes estudos.

A análise fenomenológica da dissertação

No decorrer de uma análise fenoinenológica, é a partir do contato com o fenômeno investigado que os passos concretos de análise são especificados (Giorgi, 1985). O pesquisador segue passos dependendo não só da postura inicial que ele adota, mas, e principalmente, dependendo do seu contato com o sujeito da pesquisa, com o seu depoimento, e de todo o processo que vai se encadeando na medida em que ele vai analisando este material. Portanto, esta não é uma forma de pesquisa que deva ser seguida ao pé da letra. Este trabalho apenas mostra uma possibilidade, que foi coerente com o tema, conosco, com o nosso contato com os sujeitos e com os depoimentos e até, porque não, com o nosso "jeito de ser" pesquisador.

A estrutura subjacente a esta pesquisa correspondeu àquela que Amatuzzi (1996) propõe como delineamento das etapas percorridas pelas pesquisas fenomenológicas de tendência empírica (como, por exemplo, os trabalhos de Giorgi, Forghieri e Gomes):

a) uma sintonização com o todo do vivido;

b) um encontro dos elementos experienciais; e

c) uma síntese ou articulação final.

Passos de análise e de concretização do estudo

Modificamos a operacionalização das metodologias propostas por Giorgi (1985) e Forghieri (1989 e 1993), devido à natureza e à aplicação do material que tínhamos em mãos, que, obviamente, diferiram dos utilizadas por eles, aproximando-se , no que concerne à análise do conjunto total dos depoimentos, do critério metodológico da fenomenologia estrutural proposto por Gomes (1989). Seguimos estes passos:

1) Como propõe Forghieri (1989 e 1993), num primeiro momento houve um envolvimento existencial do pesquisador com o depoimento do cliente. É um contato profundo com o texto e a vivência revelada por ele, independentemente de construções teóricas sobre o tema investigado. Isto é equivalente ao primeiro passo proposto por Giorgi (1985), onde, lendo quantas vezes fosse necessário o depoimento, procuramos entrar em contato com toda a descrição da vivência, com a finalidade de obter um sentido global da mesma. Tentamos nos abrir ao contato de maneira espontânea e experiencial, pré- reflexiva, e não a partir de uma atitude intelectualizada (Amatuzzi, 1996). Este primeiro passo foi uma impregnação do relato. Nele, ainda não interrogamos sobre o sentido da vivência do cliente da relação com o seu terapeuta, apenas procuramos apreender esta vivência como um todo. Interessante, aqui, foi um sentimento de estar entrando em contato com a pessoa do próprio cliente, mesmo que este contato tenha sido intermediado por sua escrita. Procuramos sentir, a fundo, sua experiência, não sua pessoa, mas sentimos que, de certa forma, o depoimento revelava a sua pessoa, ao estabelecer relação com o terapeuta.

2) Num segundo momento, após ler várias vezes o depoimento, pensávamos sobre ele. Colocávamos o depoimento "de lado" e, a partir de um movimento intuitivo, redigíamos hipóteses retiradas do contato com o texto, tendo em foco o fenômeno da vivência da relação terapêutica pelo cliente. Da apreensão imediata anterior com o todo do depoimento, tentamos compreender como ele respondia aos nossos objetivos. As hipóteses redigidas foram denominadas Hipóteses Intuitivas Preliminares. O estabelecimento destas hipóteses se constituiu a partir: da nossa memória (não num sentido de reflexão, mas de lembranças de significados que tiveram sentido para nós, significados estes contidos nos símbolos, ou seja, expressos no discurso (ver Amatuzzi, 1996); do nosso movimento intuitivo e da nossa produção de significados ("orientação de sentido" - Amatuzzi, 1989: p.136 - do que ocorreu em nós, face ao depoimento) possibilitada por nossa intuição. Estes significados produzidos são significados para onde os símbolos e signos contidos no depoimento apontavam para nós, mas que não necessariamente estavam expressos nele. Neste momento, obviamente, ocorreu o que Forghieri (1993) chama de distanciamento reflexivo, no entanto o movimento intuitivo ainda estava bastante presente mas como a própria autora destaca, o envolvimento existencial e o distanciamento reflexivo estão interrelacionados e não completamente separáveis.

3) Num terceiro momento, testamos nossas hipóteses, voltando novamente ao depoimento e buscando frases que representassem nas. Tendo em vista critérios de validade para pesquisa qualitativa como completude e coerência (Mucchielli, 1991), tentamos, também, interrelacionar todas as hipóteses formuladas para atingir nossos objetivos, ou seja, uma determinada frase poderia representar mais de uma hipótese, complementando-se , confirmando-se e dando coerência à análise. Algumas hipóteses não puderam ser confirmadas e foram alteradas, visto que não tiveram frases que as representassem ou houve frases que as refutaram. Isto também contribuiu para a validação da análise, pois, caso isto não fosse verificado, não estaríamos respeitando o critério de coerência. Notamos, neste passo, que Novos Elementos de Significados surgiram, ou seja, o que ficou marcante para nós a princípio, as nossas hipóteses (as que foram confirmadas e as alteradas), poderiam ser complementadas por outras interrelações entre alguns trechos do depoimento, que não foram apreendidas imediatamente, mas percebidas posteriormente a partir de novos contatos com, e novas reflexões sobre, a relação entre a descrição contida no depoimento e o que havíamos hipotetizado. Assim, respeitamos o critério de completude, isto é, todo o relato foi considerado. Os Novos Elementos de Significado representaram tanto as descrições de significados expressos pelo sujeito quanto novos significados produzidos por nós, agora num nível mais implícito de análise que antes.

4) A partir desta compreensão anterior, num quarto passo, realizamos uma síntese da descrição do cliente procurando integrar as Hipóteses Intuitivas Preliminares confirmadas aos Novos Elementos de Significado surgidos posteriormente.

Em artigo publicado em 1989, Gomes levanta problemáticas que envolvem certas pesquisas qualitativas, cujo rigor, como em qualquer tipo de pesquisa, é variável. Alguns dos problemas mais comuns da pesquisa qualitativo fenomenológica para este autor seriam a determinação da empiria (especificação do dado) e a operacionalidade (delineamento metodológico), os quais têm relação direta com as conclusões, interpretações ou propostas de ação dos pesquisadores. Ele acredita que o pesquisador deve manter o método utilizado em constante avaliação, se quiser considerar com seriedade seus resultados. Situando, dentre as pesquisas qualitativas, aquelas voltadas a desvelar a estrutura de um discurso, propõe critérios que permitam uma forma mais rigorosa de pesquisa, apresentando a fenomenologia estrutural como metodologia que possibilita um maior rigor na análise dos dados, visto a mesma buscar "descobrir na realidade em foco os padrões constitutivos e estáveis, e suas variações transitórias e periféricas... Suas contribuições não restringem ao descritivo mas abarcam indicações de transferibilidade se ações fazem-se necessárias"(102).

Os passos de análise que ele segue, de posse de depoimentos ou entrevistas, são os seguintes: ele identifica e separa os temas abordados nos relatos em unidade de sentido; agrupa os temas em tipologias gerais ou categorias; e descreve os dados emergentes, apresentando uma interpretação estrutural, baseandose em comparações entre os temas unitários e as tipologias gerais. Estes passos envolvem problemas como o que incluir, o que associar, o que não está sendo levado em consideração, o que pode estar sendo transformado, distorcido ou negado. Analisar partes e esfacelá-las pode destruir a narrativa e o seu sentido original, daí que ele propõe uma constante articulação entre texto e contexto.

5) Devido a uma preocupação especial com esta proposta, tendo realizado os quatro passos anteriores com cada depoimento, individualmente, num quinto passo voltávamos constantemente não só às sínteses realizadas, mas a todos os depoimentos, a fim de encontrar invariantes e variantes, ou seja, elementos comuns e incomuns entre os mesmos. Uniformizamos a escrita das sínteses anteriores, sempre voltando aos depoimentos para ampliar as possibilidades de compreensão e dar uma maior sistematização e consistência à análise final. Como houve uma certa dificuldade com a terminologia dos sujeitos, visto os mesmos utilizarem palavras diferentes que pareciam designar a mesma coisa, ou mesmo palavras idênticas para designar coisas diferentes, a uniformização da escrita das sínteses foi feita tendo por base um vocabulário "padrão" elaborado por nós,que facilitou a comparação dos depoimentos. O objetivo neste quinto passo foi buscar a estrutura geral do vivido, no conjunto dos depoimentos analisados, para além das particularidades de cada um.

É importante frisar que, acatando a proposta de Ashworth (1996), em todos os passos de análise, o fenômeno da vivência da relação terapêutica estava sendo compreendido em termos de fenômeno mundano, ou seja, em termos dos próprios sistemas de significados dos clientes e não de acordo com orientações teóricas da ACP aplicada à psicoterapia e julgamentos implícitos de nossa parte. Houve um cuidado especial nosso para reduzir eideticamente os construtos teóricos, e nossas visões profissionais e pessoais sobre o tema, a fim de compreender apenas os significados para os sujeitos. Contudo, as sínteses foram apresentadas em linguagem "psicológica", para que o fenômeno fosse redito de forma homogênea.

Algumas reflexões

De acordo com os resultados encontrados na dissertação, chegamos a algumas conclusões sobre este procedimento de análise fenomenológica, que são colocadas aqui como reflexões:

1. o contato intermediado pela palavra escrita pode ser considerado como um meio viável de investigação fenomenológica, desde que o pesquisador se comprometa com uma proposta eminentemente fenomenológica de pesquisa; considere os aspectos éticos da pesquisa; respeite os sujeitos enquanto pessoas; explique a cada sujeito as intenções da pesquisa ao solicitar seu depoimento; disponha-se ao oferecer qualquer esclarecimento que se fazer necessário ao entendimento de seus objetivos; tenha uma atitude aberta para entrar em contato com o sujeito e com o seu depoimento escrito a partir de uma relação vivencial presentificadora do outro, recorrendo à relação intelectual-coisificador a apenas quando da reflexão sobre os dados; e considere o relato como uma expressão do vivido do sujeito;

2. um depoimento escrito está carregado de significados, desde que a pergunta disparadora coloque o sujeito em contato profundo com a vivência tema da pesquisa;

3. ao descrever sua experiência, o sujeito pode clarificar significados, ao entrar em contato com esta descrição, o pesquisador pode produzir significados, inclusive sobre um sentido implícito que um depoimento escrito revela, pois este instrumento pode abranger todo o significado estrutural da experiência do sujeito; no entanto, o contato do pesquisador apenas com uma descrição escrita se torna limitado (mas não impossível) devido à ausência do contato interpessoal com o sujeito;

4. uma saída para a ausência do contato interpessoal é envolver-se com os depoimentos num primeiro momento entrando em contato com eles, isentando-se de todo conhecimento teórico e de pesquisa, o que permite compreender os sentidos do depoimento que podem, inclusive, ir além do tema pesquisado;

5. dispor apenas de depoimentos escritos requer uma descrição minuciosa para garantir a validade da compreensão fenomenológica, assim, são viáveis as propostas de Gomes, Reck & Ganzo (1988) e Gomes (1989), que destacam três etapas de pesquisa qualitativo- fenomenológica - uma descrição qualitativa, uma análise indutiva e uma compreensão estrutural;

6. às vezes, dispor de uma confirmação dos sujeitos em relação à análise feita pelo pesquisador pode ser necessário para viabilizar uma análise mais precisa; não fizemos isso, mas acreditamos que esta teria sido uma boa alternativa para validar ainda mais nossos resultados;

7. considerar os dados na linguagem do sujeito permite tanto uma descrição válida independentemente da teoria quanto comparações com termos definidos teoricamente;

8. generalizações sobre um tema investigado são possíveis para os resultados obtidos com determinados sujeitos pesquisados, mas atentar para as particularidades de cada um é viável para se perceber se há resultados que possibilitem desafios teóricos sobre este tema.

Diante destas conclusões, defendemos que um depoimento escrito é um instrumento válido para a pesquisa fenomenológica, desde que respeitados os parâmetros metodológicos para a compreensão dos dados contidos nele. Assim, tanto quanto uma entrevista, um depoimento escrito, elaborado e aplicado sistematicamente, possui validade científica e abre espaço a novas questões investigativas no âmbito da metodologia fenomenológica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Jun 2015
  • Data do Fascículo
    Abr 1999
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