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RAÇA E INTERSECCIONALIDADE NA TRADUÇÃO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA UMA ÉTICA NO FAZER TRADUTÓRIO

RACE AND INTERSECTIONALITY IN TRANSLATION: SOME CONSIDERATIONS FOR AN ETHICS IN TRANSLATING

RESUMO

A discussão realizada neste artigo está fundamentada na convicção de que a tradução de textualidades negras nos seus vários formatos exige atenção às especificidades dos contextos a serem traduzidos. Nesse sentido, para que não se reproduza a violência do apagamento a que essa população foi exposta, a tradução desses escritos deve ser feita de modo a buscar estratégias que não apaguem a cultura refletida no texto-fonte e levem à elaboração de traduções éticas. Por meio da análise da obra de Oyèronkẹ́ Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota. e recorrendo a leituras na área de estudos da tradução e estudos de raça, busca-se aqui evidenciar a necessidade da realização de pesquisas e leituras sobre raça em momentos anteriores à atividade tradutória concreta, como parte da formação de futuras tradutoras. No Brasil, a invisibilização da população negra, a falta de tradutoras negras, o racismo e a colonização do pensamento devem ser superados para que cada vez mais a mediação realizada pela tradução reforce a voz dos segundos textos, denominação de Mbembe (2014) para os escritos que se contrapõem à versão ocidental sobre o negro (primeiros textos). Espera-se, portanto, contribuir para a reflexão sobre o importante e ativo papel que tradutoras de textualidades negras têm: o de cuidar para que seu trabalho não suprima a força da cultura e intelectualidade negra, negando-se a perpetuar o que Carneiro denominou como epistemicídio (CARNEIRO, 2011CARNEIRO, Sueli. (2011). Racismo, Sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro.).

Palavras-chaves:
tradução ética; textualidades negras; raça; estudos da tradução; interseccionalidade

ABSTRACT

The discussion in this article is based on the conviction that translating black textualities in their various formats requires attention to the specificities of the contexts to be translated. In this sense, in order not to reproduce the violence of erasure to which this population has been exposed, the translation of these writings must be carried out in such a way as to seek strategies that do not erase the culture reflected in the source text, leading therefore to the elaboration of ethical translations. By analyzing the work of Oyèronkẹ́ Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota. and resorting to readings in the field of translation studies and race studies, we seek to highlight the need for researches and readings about race prior to the actual translation activity, as part of the training of future translators. In Brazil, the invisibilization of the black population, the small number of black translators, racism and the colonization of thought must be overcome so that the mediation performed by translation may reinforce the voice of the second texts, denomination given by Mbembe (2014) to writings that oppose the western version of the black (“first texts”). We hope, therefore, to contribute to the debate on the important and active role translators of black textualities have: they must make sure that their work does not suppress the strength of black culture and intellectuality. By doing so, they avoid perpetuating what Carneiro called “epistemicide” (CARNEIRO, 2011CARNEIRO, Sueli. (2011). Racismo, Sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro.).

Keywords:
Ethical Translation; Black Textualities; Race; Translation Studies; Intersectionality

INTRODUÇÃO

A tradução de um texto proveniente de uma cultura marginalizada, isto é, de uma literatura marginalizada, como afirma Tymoczko (1995)TYMOCZKO, Maria. (1995). The Metonymics of Translating Marginalized Texts. University of Oregon, Duke University Press: Comparative Literature, v. 47, ed. 1, p. 11-24., impõe reflexões específicas à sua tradutora1 1 Durante todo esse trabalho, a palavra tradutora é uma escolha política, funcionando como um feminimo genérico. A escolha é feita, mas sabe-se que o gênero é fluído e que ele não existe para estabelecer papéis sociais em algumas sociedades. Há corpos que apresentam os gêneros binários, mas há aqueles que não se identificam com nenhum dos dois, como acredita Preciado (2014). O “a” é grafado no final da palavra tradutora, leitora, autora, brasileira, negra(s), mas o importante é a ideia de que o gênero não pode ser fixo e sua leitura depende do momento e espaço social analisado, segundo Oyěwùmí (1997). . Essa noção é importante porque a existência do epistemicídio como “extermínio do conhecimento do outro, através da definição do que é saber/ conhecimento válido e do que não é”, como elucidado por Nascimento (2019NASCIMENTO, Gabriel. (2019). Racismo Linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo Horizonte: Letramento., p. 13) e Carneiro (2019), é fato na história conhecida do povo africano traficado para o Brasil. Tendo consciência disso, quem traduz textualidade negra deve ter um cuidado especial para não cometer epistemicídio ou, nas palavras de Meschonnic (2010), promover o apagamento da cultura a qual se pretende conhecer. Essas textualidades negras são consideradas aqui o tipo de texto escrito sobre a pessoa negra, com particularidades sonoras, temáticas e visuais que tratam sobre resistência, mas também sobre estéticas que expressam o orgulho do ser negra por sua religiosidade, sexualidade e origens (LIMA, 2009LIMA, Carina Bertozzi de. (2009). “Literatura Negra - uma outra história. Terra roxa e outras terras”. Revista de Estudos Literários, 17-A, p. 67-77. Disponível em: http://www.uel.br/pos/letras/terraroxa Acesso em: 21 maio 2020.
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, p. 72). Além disso, compreende-se que a textualidade negra faz parte de um conhecimento que contrapõe a ideia universalizante, objetiva, de ser e se localiza a partir de tempo e espaços particulares, contrapondo pontos de vistas ocidentais sobre o Negro (SOUZA, 2017SOUZA, Raquel de. (2017). Salvo-Conduto. Entrevista cedida à Denise Carrascosa. In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 187-211.; MBEMBE, 2014).

Segundo Pereira e Anchieta (2015)PEREIRA, Fernanda Alencar; ANCHIETA, Amarílis. (2015). “Escritores Nigerianos no Brasil: Tradução de um sistema literário em formação.” In: SOUSA, Germana Henriques Pereira de (org.). História da Tradução: ensaios de teoria, crítica e tradução literária. Campinas, SP: Pontes Editores, p. 197-233., há no mercado editorial brasileiro uma grande recepção de obras vindas do continente africano, especialmente da Nigéria. Para as autoras, há um crescente interesse nessas obras, que, no entanto, são publicadas como algo exótico e com generalizações dessas culturas. Para demonstrar esse problema, as duas pesquisadoras dão exemplos de Notas de Tradução (N.T.s) retiradas de “O mundo se despedaça”, de Chinua Achebe (2009)ACHEBE, Chinua. (2009). O mundo se despedaça. Tradução deVera Queiroz da Costa e Silva. São Paulo: Companhia das Letras., em que se tenta explicar a cultura igbo tomando por referência os Peuls, também conhecidos como “fulas” ou “fulanis”. A questão é que esses povos não são habitantes do lugar referido pela obra de Achebe (PEREIRA; ANCHIETA, 2015PEREIRA, Fernanda Alencar; ANCHIETA, Amarílis. (2015). “Escritores Nigerianos no Brasil: Tradução de um sistema literário em formação.” In: SOUSA, Germana Henriques Pereira de (org.). História da Tradução: ensaios de teoria, crítica e tradução literária. Campinas, SP: Pontes Editores, p. 197-233.). Apesar dessa incongruência, de explicações que tomam uma cultura por outra, que acreditam em uma África una, está em curso uma mudança ou abertura do mercado editorial brasileiro a textos que exigem atenção para o aspecto racial. Nesse sentido, é abordada aqui uma preocupação que deve haver durante a tradução de textos de autoras negras e seus contextos racializados, uma prática de fundamental importância para as traduções desses textos.

É com o desafio de trabalhar com uma cultura marginalizada que se depara, por exemplo, uma possível tradutora2 2 Esse texto foi escrito antes da publicação da primeira tradução para o português de Oyěwùmí (1997). Por isso, aqui, o “possível tradutora” está relacionada com uma tradução futura desse texto. , para o português brasileiro, de textos como o de Oyèronkẹ́ Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota.3 3 Esta obra foi traduzida pela primeira vez para o português brasileiro pelo tradutor wanderson flor do nascimento (nome escrito em letras minúsculas) no início do ano de 2021. Veja em Oyěwùmí (2021). . Embora publicado em inglês, por autora educada em inglês e iorubá, o livro The invention of women: making an african sense of western gender discourses é uma produção nigeriana, com tudo o que essa qualificação pode significar em termos de entrelaçamentos culturais, conflitos coloniais e questionamentos decoloniais4 4 Uma explicação breve, de acordo com Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016, p. 16), é que os pesquisadores do projeto decolonial procuram provincializar o conhecimento europeu e toda forma de conhecimento que se pretende universalizante. Como as ideias coloniais estão impregnadas no trabalho da academia, o pensamento decolonial objetiva produzir um conhecimento que parta da visão do oprimido e que rejeite o ponto de vista dos cânones europeus e estadunidenses. . A autora se dedica a contar os motivos de o gênero binário (homem e mulher) não ter sido construído na sociedade pré-colonial iorubá, da cidade nigeriana de Ọ̀yọ́, um tema que, sem dúvida, mostra-se relevante tanto para os Estudos de Tradução - já que a autora revela que traduções do iorubá para o inglês e foram assimiladoras - quanto para as diversas áreas conectadas aos estudos de gênero e raça. Por isso, seu texto será utilizado aqui como exemplo e representante de uma textualidade negra.

Nesse espaço, considera-se que a luta da população negra na área da tradução, como é sugerido por Souza (2017)SOUZA, Raquel de. (2017). Salvo-Conduto. Entrevista cedida à Denise Carrascosa. In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 187-211., é por mais tradutoras negras, pela existência de mais disciplinas que tratem responsavelmente de temas presentes em textualidades negras e pela necessidade do comprometimento de pessoas que estejam traduzindo esses textos. Assim, o que se quer é a presença de pessoas conscientes da grande responsabilidade em traduzir textos de autoras negras, a qual vai muito além da necessária competência linguística. Há, nesse tipo de tradução, referência a outras vivências e ideologias, a vidas complexas cujas reais experiências foram brutalmente apagadas da história oficial do Brasil. Dessa forma, não se trata de uma escolha acerca de levar ou não tal fato em consideração, mas de um compromisso ético com a cultura que se quer traduzir.

Na tentativa de fomentar um diálogo sobre a tradução de textualidades, como a de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota., este artigo está dividido em seções que se complementam. Na primeira, apresenta-se o pressuposto das discussões feitas no artigo, que mostra a necessidade de pesquisa cuidadosa para a tradução de textos de culturas mais desconhecidas ou apartadas da realidade brasileira e como esse encontro exige de uma tradutora negociações de sentido feitas com base em outras lógicas que não a racional ocidental. Isso, como visto na seção, tem implicações que interferem na elaboração dos textos escritos por autoras negras, os chamados segundos textos5 5 Mbembe diz que os segundos textos seriam a resposta aos chamados primeiros textos. Os primeiros textos são definidos pelo autor como sendo a “Consciência ocidental do Negro” (MBEMBE, 2014, p. 58). Os segundos textos diriam, então, a verdade sobre o Negro e o autor desses textos seriam os próprios Negros, ou seja, esses textos representam o que o “Negro diz de si mesmo”(MBEMBE, 2014, p. 59). Aqui o gênero das palavras “autor” e “Negro” foram mantidos. (MBEMBE, 2014).

A segunda seção está orientada para o fato de que descolonizar o pensamento é algo que exige esforço e que, por conta do racismo arraigado na sociedade brasileira, essa tarefa passa por uma busca que ainda não tem se realizado por via institucional da universidade, mas por um protagonismo e comprometimento de uma tradutora para com a cultura originária da autora a ser traduzida. Nesse sentido, o proativismo de estudantes negras da área de tradução, que formam coletivos para trabalharem questões de raça na universidade, traz imprescindível contribuição ao fazer tradutório de uma tradutora integrante desses grupos.

Já na terceira seção, descrevem-se, a partir de experiência tradutória com o texto de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota., maneiras ou estratégias que permitem uma aproximação a uma ética de tradução que respeita a necessidade de diálogo entre as culturas envolvidas. O intuito de utilizar essa forma dialógica - entre tradutora e obra, por meio de comentários - é o de chamar a atenção para aspectos específicos do texto. Esses aspectos são escolhidos e definidos pela tradutora no momento da pesquisa sobre a obra, anterior ao traduzir.

Na quarta seção, o objetivo é destacar que a tradução de textualidades negras demanda um tipo de pesquisa particular e, por isso, deve ser fortalecida dentro da academia e no âmbito de cursos de formação de tradutoras. Essa discussão é seguida, enfim, pela conclusão do artigo.

1. A TRADUÇÃO DE TEXTOS DE AUTORAS NEGRAS

Movendo-se pela consciência da necessidade de ir contra os estereótipos e a invisibilização da história da população negra no Brasil é que, a partir do lugar de tradutora negra de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota., com letramento constante em raça, procura-se demonstrar aqui a dificuldade existente em entender o contexto da sociedade iorubá durante a pré-colonização inglesa, característica existente em traduções de culturas diferentes das ocidentais. Ter essa noção é relevante porque, no Brasil, não se aprendem as histórias sobre o continente africano, menos ainda sobre a África pré-colonial. Dessa forma, essa exposição tem um compromisso ético e vem no sentido de refletir sobre os percalços existentes na trajetória de uma pessoa negra da diáspora que se compromete e tem a responsabilidade em transmitir histórias que podem mudar a própria vida e a de uma população que constitui a maioria da população brasileira - cerca de 55% da população se autodeclara negra6 6 Desse número, 46,5% são pardos e 9,3 % são pretos, de um total de 99% da população. (IBGE, 2019IBGE. (2019). Desigualdades raciais por raça ou por cor no Brasil. Estudos e Pesquisas, Informação Demográfica e Socioeconômica. n. 41. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf Acesso em: 21 maio 2020.
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, p. 1). Outro ponto importante é evidenciar as complexidades existentes durante a tradução de um texto em que a tradutora é uma pessoa branca, mesmo tendo letramento em raça.

Traduzir é aprender com o outro a partir de uma transformação sentida quando a tradutora se abre para o que é dito no texto-fonte, conforme orientam autores como Tymoczko (1995)TYMOCZKO, Maria. (1995). The Metonymics of Translating Marginalized Texts. University of Oregon, Duke University Press: Comparative Literature, v. 47, ed. 1, p. 11-24. e Meschonnic (2010). A ação de traduzir e o texto traduzido apresentam um valor educativo tanto para a tradutora quanto para a leitora do texto. Um exemplo disso está no fato de que, durante a pesquisa que se faz para realizar a tradução, a tradutora acaba passando por processos pedagógicos, como ocorre, por exemplo, na pesquisa para a tradução de termos novos. Consequentemente, não apagar a cultura do texto deve ser uma tarefa imprescindível para quem está ciente da responsabilidade de traduzir textualidades que representam o pensar um mundo diferente da forma ocidental, como é o caso, por exemplo, da cultura pré-colonial iorubá para uma pessoa brasileira. Dessa forma, não apagar a cultura do texto seria estar o mais atenta possível à política de pensamento que cada escritora deixa transparecer em seu texto (MESCHONNIC, 2010).

Há um valor em se dedicar muito mais atenção em textos de outras culturas que não a ocidental durante o processo tradutório. Segundo Campos (2017CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155., p. 119), “é vital pensar no meu local de fala; é vital externar as dificuldades que tenho traduzindo textos de um autor negro, pelo fato do meu processo subjetivo ter sido construído como uma mulher branca, heteronormativa”. Por isso, para essa autora, que é uma tradutora branca traduzindo subjetividades negras, há uma preocupação ética no momento de traduzir Langston Hughes, um poeta negro que escreve em Black English.7 7 Há uma discussão em torno de o Black English ser uma língua ou uma linguagem informal. O fato é que ele é utilizado pelos afro-americanos como forma de afirmação. Conforme Campos (2017), o Black English é uma língua que se diferencia do inglês padrão e que já é estudada há mais de 40 anos. As pesquisadoras da tradução, durante o fazer tradutório, ao se depararem com esse tipo de inglês, devem saber que o desconforto faz parte da ética desse trabalho. Assim, é o desconforto que faz com que

Campos se sinta viva e atenta no momento de realizar suas traduções (CAMPOS, 2017CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155.). Com base nessa noção, seja quem for a tradutora, uma desconfiança sempre presente pode ser indício de maior atenção no texto e no fazer tradutório.

A tradução de uma obra como a de Oyèronkẹ́ Oyěwùmí apresenta um modo diferente do ocidental de pensar o mundo. Por isso, essa tradução deve levar em consideração a grande carga de informação da outra cultura, como é apontado por Tymoczko (1995)TYMOCZKO, Maria. (1995). The Metonymics of Translating Marginalized Texts. University of Oregon, Duke University Press: Comparative Literature, v. 47, ed. 1, p. 11-24.. Com base na noção lefeveriana de reescrita ou refração (LEFEVERE, 1992LEFEVERE, André. (1992). Translation, Rewriting, and the Manipulation of Literary Fame. London: Routledge.), a autora nos lembra de que toda tradução é uma forma de reescrita e de que qualquer escrita é, na verdade, uma reescrita. Assim, um texto marginalizado, porque é pertencente a uma cultura marginalizada, faz parte do recontar a história dessa cultura a que está ligado. No entanto, o traduzir desse texto jamais resultará nos mesmos significados supostamente presentes no texto a ser traduzido, pois nem a história contada sobre essa sociedade nem as referências ou as metonímias8 8 Um exemplo de metonímia dado por Tymoczko (1995) é o de que, para que o efeito de um mito seja eficaz, no momento da contagem desse mito para a cultura alvo (diferente da que o criou), a sociedade leitora deverá pelo menos ter noção do que seja um mito. Se esse conhecimento não existe, as construções de sentidos que envolvem a criação do mito contado se perdem. utilizadas pela autora do texto-fonte são conhecidas pela cultura alvo. O texto de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota. deve ser observado mais atentamente a fim de que a tradução não contenha mais sentidos de mundo da cultura alvo que da cultura fonte.

Nessa linha, vale apontar que, ainda segundo Tymoczko (1995)TYMOCZKO, Maria. (1995). The Metonymics of Translating Marginalized Texts. University of Oregon, Duke University Press: Comparative Literature, v. 47, ed. 1, p. 11-24., a ciência cognitiva sugere que as pessoas ouvem histórias diferentes e as transformam, enquadrando-as nos padrões que elas já estão acostumadas a ouvir. Esse é um perigo eminente e que se potencializa no Brasil no momento de traduzir um texto sobre raça, já que a história do país por vezes apagou, e muitas vezes adequou para os seus interesses, a história do povo negro e a de seus ancestrais. Seja na historiografia oficial, seja na mídia, seja no cotidiano, os registros sobre a presença e resistência negra quando não foram omitidos, foram deturpados (GARCIA, 2007GARCIA, Renísia Cristina. (2007). Identidade Fragmentada: um estudo sobre o negro na educação brasileira: 19932005. Brasília: INEP, Ministério da Educação, 111 p. Disponível em: https://download.inep.gov.br/publicacoes/diversas/temas_interdisciplinares/identidade_fragmentada_um_estudo_sobre_a_historia_do_negro_na_educacao_ brasileira_1993_2005.pdf Acesso em: 7 fev. 2022.
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).

2. O APRENDIZADO SOBRE RAÇA COM VISTAS A UMA TRADUÇÃO ÉTICA

A ética da tradutora é pensada aqui como sendo uma sequência de ações realizadas antes e durante a tradução, a fim de evitar estereotipia, exotização, racismo linguístico9 9 Racismo materializado por meio da língua e que é reproduzido pelo intelectual na sua escrita (NASCIMENTO, 2019). e apagamento da cultura do texto a ser traduzido (CAMPOS, 2017CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155.; MESCHONNIC, 2010; TYMOCZKO, 1995TYMOCZKO, Maria. (1995). The Metonymics of Translating Marginalized Texts. University of Oregon, Duke University Press: Comparative Literature, v. 47, ed. 1, p. 11-24.). Para o aprendizado ou letramento em raça, o principal ponto a ser observado nos tópicos trazidos é a necessidade de a tradutora estar atenta para os efeitos da introjeção de aspectos racistas que possam se apresentar na tradução de textualidades negras. Contra a reprodução desses aspectos racistas na tradução, apenas as experiências de leituras de textualidades negras ou sobre a história não ocidental do povo negro é o que pode tornar uma tradutora preparada para esse trabalho.

O convívio sistemático com invisibilidades e deturpações sobre a participação da pessoa negra na história do Brasil, parte de um projeto político nacional e de negação da cultura negra brasileira (FILICE, 2011FILICE, Renisia Cristina Garcia. (2011). Raça e Classe na Gestão da Educação Básica Brasileira: a Cultura na Implementação de Políticas Públicas. Editora Autores Associados.), torna-se um elemento dificultador do processo tradutório que atinge a todas as tradutoras. Assim, uma tradutora negra deve também ter desconfiança, como ressalta Campos (2017)CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155., para não transformar os sentidos do texto naquilo em que já conhece. O fato de viver a sua subjetividade de uma forma heterossexual, ocidental e pautada na democracia racial não pode significar projetar estas percepções sobre o texto-fonte. Além disso, não pode haver a superposição de dada percepção de negritude sobre outras. A própria descolonização de seu pensamento, atividade necessária também para indivíduos negros, é um trabalho realizado pouco a pouco, mas que deve ser feito de uma maneira contínua. Os silenciamentos, as histórias inventadas e as imagens sobre a população negra foram tão trabalhadas para criar uma inferioridade e não existência do indivíduo negro que, sem se dar conta, a pessoa pode reproduzir ideias colonizadas, que são tão fortes, porque são, muitas vezes, a única história dada a conhecer. Dessa forma, é a desconfiança e o respeito ético pela cultura de um povo que devem prevalecer na busca pelo conhecimento da história, considerando as assimetrias e marcadores de raça, gênero, localidade, todos pensados numa perspectiva interseccional imbricada (CARNAÚBA; FILICE, 2019CARNAÚBA, Raíssa Araújo; FILICE, Renísia Cristina Garcia. (2019). A interseccionalidade de gênero, raça e classe em políticas públicas no caso de grávidas adolescentes. Revista Calundu, v. 2, p. 42-60.).

Se a intenção for a de traduzir outras subjetividades, como a do povo negro brasileiro, a de povos africanos, indígenas e outros, o mergulho nas singularidades desses povos é incontornável para uma compreensão mais fidedigna do contexto originário da produção em análise. Vale lembrar que coletivos, como o Movimento Negro e o movimento de mulheres negras, por exemplo, estão reunidos por um bem comum, um projeto de nação em que não haja racismo, sexismo e outras atrocidades que recaem sobre esta população. Entretanto, em meio a esta unidade focada na luta antirracista, existem subjetividades diversas (COLLINS, 2017COLLINS, Patricia Hill. (2017). “On violence, intersectionality and transversal politics.” Journal of Ethnic and Racial Studies, v. 40, ed. 9, p. 1460-1473. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/01419870.2017.1317827 Acesso em: 24 out. 2019.
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). Nesse percurso, a tradução se apresenta como interativa e dinâmica e exige da tradutora o despir-se de preconceitos e verdades pré-concebidas. Com isto, é notório o caráter pedagógico potencializado quando o ato de traduzir provém de um mergulho numa cultura diferente da cultura que traduz.

Para Figueiredo (2017FIGUEIREDO, Angela. (2017). “Descolonização do conhecimento no século XXI.” In: SANTIAGO, Ana Rita. et al. Descolonização do conhecimento no contexto afro-brasileiro. Cruz das Almas, BA: UFRB, p. 79-106., p. 101), “os coletivos negros, criados dentro dos espaços universitários, ajudam a socializar as experiências e encontrar saídas coletivas”. A referência a esses coletivos se conecta à complexidade imputada à tradutora no contato com o mundo diverso do texto de origem, a ser interpretado. Esses coletivos compõem o quadro pedagógico citado e são cruciais para a trajetória de uma tradutora negra marcada pela formação universitária. Pois, em uma cultura em que os currículos dos cursos superiores ainda são formados quase que exclusivamente por narrativas de histórias de pessoas brancas, escritas por homens brancos, torna-se difícil compreender as subjetividades negras e suas diferentes experiências, se não for por meio de pesquisas autônomas e com o auxílio desses grupos. Quando acontece o incômodo por causa da consciência do não conhecimento pela cultura alvo, a tradutora negra acaba refletindo sobre o desconhecimento sobre a sua própria experiência de mulher negra. Nesse sentido, a consciência do seu pertencimento racial pode fazer com que a tradutora negra procure entender o que se passa em sua vida, e sua possibilidade de entendimento se torna mais real quando ela participa desses coletivos negros.

Esses grupos, que, na maioria das vezes, são formados por várias pessoas insatisfeitas com a visão social que se tem sobre elas, com os conteúdos euro-americanos centrados e racializados, tornam-se espaços de trocas de pessoas negras que se embasam em autoras negras e buscam escrever também a sua própria história. Uma das insatisfações que estudantes negras encontram quando começam a estudar a sua história é, por exemplo, a comparação realizada entre a construção da raça no Brasil e nos Estados Unidos. Esse fato é, entretanto, considerado por Figueiredo (2017)FIGUEIREDO, Angela. (2017). “Descolonização do conhecimento no século XXI.” In: SANTIAGO, Ana Rita. et al. Descolonização do conhecimento no contexto afro-brasileiro. Cruz das Almas, BA: UFRB, p. 79-106. como mais cruel no Brasil:

A partir da década de 1970, pesquisadores afro-americanos (HANCHARD, 2001) e alguns ativistas negros passaram a considerar que o racismo no Brasil é pior do que aquele existente nos Estados Unidos, já que a dinâmica racial no Brasil impossibilitou que os negrosmestiços desenvolvessem uma consciência racial (FIGUEIREDO, 2017FIGUEIREDO, Angela. (2017). “Descolonização do conhecimento no século XXI.” In: SANTIAGO, Ana Rita. et al. Descolonização do conhecimento no contexto afro-brasileiro. Cruz das Almas, BA: UFRB, p. 79-106., p. 87).

Diante dessa realidade, a possibilidade de realizar pesquisas sobre raça, e ao mesmo tempo, viver as experiências de negritude nos espaços universitários brasileiros, torna-se uma forma de contornar a impossibilidade da construção de uma consciência racial, resultante do racismo por denegação presente na sociedade brasileira. Esse tipo de racismo é uma categoria freudiana que se estabelece quando o sujeito, embora construindo o seu desejo, pensamento e seus sentimentos recalcados, nega que os tenha (UCPA, 2018UCPA (Org.; Ed.). (2018). Lélia Gonzalez: Primavera para as rosas negras. Lélia Gonzalez em primeira pessoa. União dos Coletivos Africanos (UCPA), Diáspora Africana.). Em países em que há esse tipo de racismo, como no Brasil, a assimilação, a miscigenação e a teoria da democracia racial estão presentes socialmente, parecendo contrapor, o tempo todo, os aspectos racializados da cultura (GONZALEZ, 2018GONZALEZ, Lélia. (2018). “A categoria político-cultural da Amefricanidade.” In: UCPA (Org.; Ed.). Lélia Gonzalez: Primavera para as rosas negras. Lélia Gonzalez em primeira pessoa. União dos Coletivos Africanos (UCPA), Diáspora Africana, p. 321-342., p. 324). Por conseguinte, a pessoa negra não consegue perceber o seu potencial enquanto negra em função de dinâmicas discriminatórias em curso. Assim, desfazer essas ideias na cabeça do sujeito colonizado é um trabalho que, segundo Gonzalez (2018)GONZALEZ, Lélia. (2018). “A categoria político-cultural da Amefricanidade.” In: UCPA (Org.; Ed.). Lélia Gonzalez: Primavera para as rosas negras. Lélia Gonzalez em primeira pessoa. União dos Coletivos Africanos (UCPA), Diáspora Africana, p. 321-342., deve passar também por um olhar sobre a formação hierárquica da história das sociedades espanholas e portuguesas. É nesse imbróglio cultural que se insere, no caso do Brasil, diferentes autoras negras, que escrevem em um país cujo imaginário é formado por ideias europeias, que elege uma população branca como superior, que não dá lugar para a latinidade. A negação ou afirmação da raça pode estar presente na escrita e precisa ser considerada pela tradutora.

Gonzalez (2018)GONZALEZ, Lélia. (2018). “A categoria político-cultural da Amefricanidade.” In: UCPA (Org.; Ed.). Lélia Gonzalez: Primavera para as rosas negras. Lélia Gonzalez em primeira pessoa. União dos Coletivos Africanos (UCPA), Diáspora Africana, p. 321-342. chama de “Améfrica Ladina” a possibilidade de se afirmar as raízes africanas e indígenas. A intelectual postula ser necessário haver uma nova epistemologia pensada pelos que nascem e vivem na Améfrica. Defende ainda que essa nova epistemologia venha de experiências negras que são permeadas pelo racismo, o que também é advogado por Mbembe (2014) com sua ideia do devir negro do mundo. O autor acredita que a população negra deve fazer contraponto ao que ele chama de primeiros textos, que são os textos com as ideias, as imagens, as vozes e os pensamentos criados sobre uma população que os europeus queriam dominar. Fazer isso seria como tirar a capa externa e entender a cultura, os valores e as perspectivas racializadas submersas em narrativas negras. Portanto, como resultado e em oposição ao que ocorre com os primeiros textos, essas vozes negras se expressam no que Mbembe denomina como segundos textos, em narrativas que seriam

[…] simultaneamente gesto de autodeterminação, modo de presença em si, olhar interior e utopia crítica. Este segundo texto é uma resposta a outra categoria de interrogações colocadas à primeira pessoa do singular: “Quem sou eu?” “Serei eu, em boa verdade, quem dizem que eu sou?”. “Será verdade que não sou nada a não ser isto - a minha aparência, aquilo que se diz e se quer de mim?” “Qual é o meu verdadeiro estado civil e histórico?” Se a consciência ocidental do Negro é um julgamento de identidade, este texto segundo será, pelo contrário, uma declaração de identidade. Através dele, o Negro diz de si mesmo que é aquilo que não foi apreendido; aquele que não está onde se diz estar, e muito menos onde o procuramos, mas antes no lugar onde não é pensado. (MBEMBE, 2014, p. 58-59).

De acordo com Mbembe (2014), a população negra deve escrever uma história que contraponha o que foi criado para ela. Essa ideia é corroborada por Figueiredo (2017)FIGUEIREDO, Angela. (2017). “Descolonização do conhecimento no século XXI.” In: SANTIAGO, Ana Rita. et al. Descolonização do conhecimento no contexto afro-brasileiro. Cruz das Almas, BA: UFRB, p. 79-106., para quem devem ser reconhecidos os diversos saberes existentes, incluindo os saberes da população negra. Da mesma maneira, na visão de Gonzalez (2018GONZALEZ, Lélia. (2018). “A categoria político-cultural da Amefricanidade.” In: UCPA (Org.; Ed.). Lélia Gonzalez: Primavera para as rosas negras. Lélia Gonzalez em primeira pessoa. União dos Coletivos Africanos (UCPA), Diáspora Africana, p. 321-342., p. 332), as negras devem afirmar a particularidade de suas experiências na América como um todo sem deixar de lembrar as suas ligações com a África. Por isso, as negras seriam amefricanas e seriam o que são hoje, a partir da história que se inicia desde antes do Atlântico, já que a subjetividade negra é formada desde um processo começado em África até a definição, se é que ela existe, do que é ser brasileiro.

Como há uma dificuldade no contato com a história da África pré-colonial (LIMA, 2016LIMA, Hanna Karoline Macedo de. (2016). A importância de trabalhar o ensino da história e da cultura afro-brasileira e africana em sala de aula. Monografia (Graduação de Licenciatura Plena em Pedagogia). Cabaceiras, Paraíba: UFPB. Disponível em: https://repositorio.ufpb.br/jspui/bitstream/123456789/3403/1/HKML26012017.pdf Acesso em: 21 maio 2020.
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), aumenta a complexidade no processo de entender para traduzir, no caso do exemplo aqui utilizado, o contexto da sociedade iorubá durante a pré-colonização inglesa, apresentado no livro de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota.. Esse texto é também dificultado para a tradução feita pela sociedade ocidental por conta de sua não percepção das ideologias experienciadas pela população africana. A mesma dinâmica de incompreensão sobre si mesma, que pode acarretar sobre uma possível tradutora negra brasileira, insere-se no estranhamento em relação à sociedade iorubá. Isso se dá porque não aprendemos a história da África pré-colonial, inclusive, não temos acesso às referências textuais que a autora do texto-fonte tem. Nesse sentido, uma tradutora consciente das armadilhas do racismo e da sua repercussão no que diz respeito à falta de informação sobre a história de países africanos, e da responsabilidade que existe na tradução de textos sobre raça, deve ter em mente que

[a] tradução não ocupa um lugar neutro nas Américas, declarou um crítico estudioso dos estudos da tradução e eu concordo. Nosso pensamento sobre tradução, sejamos atores públicos ou estudiosos, não pode ignorar esta imbricação de raça, oportunidade e idiomas. Não deveríamos ignorar o impacto da escravidão colonial, do “Jim Crow” (leis segregacionistas do Sul dos Estados Unidos anteriores aos movimentos pelos direitos civis), apartheid, ou teorias científicas racistas de aprendizagem e conhecimento sobre a prática e o estudo da tradução, ou sobre o que é selecionado para tradução. Temos de dialogar sobre isso e transgredir aqueles limites artificiais, em publicação, nas salas de aula… e nas feiras internacionais de livros. (AUGUSTO, 2017AUGUSTO, Geri. (2017). “Reflexões para uma práxis negra transnacional.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 31-60., p. 44).

Esses limites artificiais têm relação com o que André Lefevere chama de patronagem,10 10 Patronagem, para Lefevere, “é o que será entendido como algo como os poderes (pessoas, instituições) que podem promover ou dificultar a leitura, a escrita e a reescrita da literatura” (LEFEVERE, 1992, p. 16). Na patronagem, segundo o mesmo autor, também há o envolvimento de aspectos ideológicos, econômicos e de status como características que podem ajudar ou não na publicação de uma obra. que designa as relações existentes que levam um livro a ser ou não traduzido em um sistema literário. Reconhece-se assim que as decisões sobre o que deve ser traduzido e sobre como esse material selecionado deve ser traduzido não são em absoluto neutras e têm relevância para os Estudos da Tradutora11 11 Esses “Estudos da Tradutora” seriam realizados por meio da análise de “Notas da tradutora”, prefácios realizados por tradutoras ou qualquer texto em que a tradutora escreva sobre uma tradução realizada. Nos “Estudos da Tradutora”, o foco é a tradutora e sua formação técnica, social e as influências que a forma (CHESTERMAN, 2014, p. 40). O termo “Estudos da Tradutora” e “Notas da Tradutora” são uma adaptação do termo usado na tradução para o português do texto de Chesterman. . Admite-se nesses estudos que o texto traduzido apresenta ideologias partilhadas pela tradutora. O transgredir limites artificiais também se deve ao não debate sobre raça em salas de aula durante toda a vida acadêmica de uma tradutora, que é o motivo de, como foi citado anteriormente, estudantes universitárias procurarem coletivos negros para o estudo de raça e, consequentemente, criarem laços de significado com seu pertencimento racial.

Conforme Raquel de Souza (2017)SOUZA, Raquel de. (2017). Salvo-Conduto. Entrevista cedida à Denise Carrascosa. In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 187-211., há outro problema importante. O indivíduo negro não tem muitas chances de aprender uma língua estrangeira no Brasil, que é comumente ministrada em cursos particulares (BORGES; GARCIA-FILICE, 2016BORGES, Rovênia Amorim; GARCIA-FILICE, Renísia Cristina. (2016). A língua inglesa no Programa Ciência sem Fronteiras: paradoxos na política de internacionalização. Internationalization in Higher Education: Agendas, partnerships and knowledge. Interfaces Brasil/Canadá, Revista Brasileira de Estudos Canadenses, v. 16, p. 72-101. Disponível em: file:/// tmp/mozilla_gardenia0/7516-28273-1-PB-1.pdf Acesso em: 07 fev. 2022.). Essa dificuldade estrutural faz com que tradutoras negras sejam uma raridade no país. De acordo com Souza, se um indivíduo negro conseguisse investir no aprendizado de uma língua estrangeira, haveria grande probabilidade de ele usar esse conhecimento para a não aceitação da imposição cultural. Esse acesso a uma literatura vasta antirracista e contra hegemônica, contra a colonização do pensamento, levaria a estudante a selecionar obras mais comprometidas com as lutas antirracistas. Portanto, se houvesse mais tradutoras negras, haveria maior possibilidade de terem mais vínculos com a população negra e suas demandas, por causa da sua hiperconsciência de condição vilipendiada, e assim poderiam fazer mediações tradutórias mais responsáveis a respeito dessa realidade racializada.

Outro ponto relevante desse debate é que o produto final traduzido sofre várias interferências na mediação realizada pela tradutora, como é o caso, citado anteriormente, dos tradutores de Langston Hughes, que, segundo Campos (2017)CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155., traduziam o Black English do autor para um português “incorreto”. Assim, os “Estudos da Tradutora” (CHESTERMAN, 2014) são um assunto também relevante para a análise de raça na tradução. Pensando nisso, conforme Salgueiro (2014)SALGUEIRO, Maria Aparecida Andrade. (2014). Traduzindo literatura da diáspora africana para a língua portuguesa do Brasil: o particular, o pós-colonial e o global. FAPERJ., essa construção social do Outro, sendo esse Outro o ser negra, acaba por influenciar a escrita do texto traduzido. Assim, se há um personagem cujo inglês falado é o Black English, por exemplo, as tradutoras em geral comumente escolhem traduzir esse inglês para um português que não representa a norma culta, mas uma forma “incorreta”, não condizente com a gramática normativa da língua. Ou seja, as visões de raça das tradutoras são incorporadas no texto traduzido, o que gera o risco de aspectos importantes de uma construção literária do texto se perder nessa passagem do inglês para o português (CAMPOS, 2017CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155.). É bom lembrar que o Black English foi desenvolvido nas grandes cidades e que o português afro-brasileiro12 12 “O português afro-brasileiro designa aqui uma variedade constituída pelos padrões de comportamento linguístico de comunidades rurais compostas em sua maioria por descendentes diretos de escravos africanos que se fixaram em localidades remotas do interior do país, praticando até os dias de hoje a agricultura de subsistência. Muitas dessas comunidades têm a sua origem em antigos quilombos de escravos foragidos e ainda se conservam em um grau relativamente alto de isolamento.” (LUCCHESI; BAXTER; RIBEIRO, 2009, p. 32). é mais falado por quilombolas na Bahia e está mais presente na área rural. No meio urbano, as variações são incontáveis e incorporam diferentes influências indígenas, europeias, americanas e também africanas.

Dessa forma, é no sentido de apresentar uma nova história comprometida e transformadora originada por vozes e experiências negras, que uma tradutora negra consciente da raça deve buscar ter uma maior sensibilidade para a história racial do país. Verificar informações sobre as marcas de oralidade e visualidade na escrita e na fala, e aumentar a pesquisa sobre a população negra para não reproduzir estereótipos é fundamental para se ter uma tradução ética que busque respeitar diferentes textualidades de pessoas negras. Aqui, chama-se atenção para o caso de Lélia Gonzalez, que aprendeu francês e traduziu obras de psicanálise (RATTS; RIOS, 2010RATTS, Alex e Rios, Flávia. (2010). Lélia Gonzalez. São Paulo: Selo negro., p. 32). Se as obras que traduziu tivessem sido mais visibilizadas, seria fácil revivê-las por uma retradução, por exemplo. Porém, como há uma cultura no país de invisibilização da tradutora em geral, parece válido afirmar que, com base na situação social da mulher negra, a invisibilização é maior quando se trata das tradutoras negras. Logo, outro interesse de uma tradutora negra deve estar ligado às demandas das mulheres negras, que são os sujeitos mais apagados da história, haja vista sua situação real de ocupantes dos lugares mais subalternos da sociedade brasileira.

Consta que as mulheres negras, ao fazerem suas demandas e reivindicarem o reconhecimento de sua existência, desenvolveram a ideia de interseccionalidade nos Estados Unidos. Porém na década de 1980, Lélia Gonzalez já apresentava essa perspectiva de análise, contudo sem essa denominação (AKOTIRENE, 2018AKOTIRENE, Carla. (2018). O que é Interseccionalidade? Belo Horizonte-MG: Letramento, Coleções Feminismos Plurais., p. 29). A interseccionalidade é a ideia de que raça, gênero, sexo, sexualidade, geração, território, e outras categorias de análise acabam moldando as opressões vividas por um grupo de pessoas, no caso, as mulheres negras. Segundo Collins (2017)COLLINS, Patricia Hill. (2017). “On violence, intersectionality and transversal politics.” Journal of Ethnic and Racial Studies, v. 40, ed. 9, p. 1460-1473. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/01419870.2017.1317827 Acesso em: 24 out. 2019.
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, a interseccionalidade de opressões interfere também na violência sofrida, que é, inclusive, característica comum presente nos vários tipos de opressão. Para Akotirene (2018)AKOTIRENE, Carla. (2018). O que é Interseccionalidade? Belo Horizonte-MG: Letramento, Coleções Feminismos Plurais., todas as opressões são interceptadas pelas estruturas de poder, por isso não existe uma opressão maior que a outra, ou seja, não há hierarquia entre elas. Nesse sentido, a interseccionalidade significa não perder de vista os aspectos da raça que podem estar muito marcados, potencializados, em uma discriminação por conta da geração de uma pessoa, do território ou do gênero, por exemplo. Conforme Akotirene (2018)AKOTIRENE, Carla. (2018). O que é Interseccionalidade? Belo Horizonte-MG: Letramento, Coleções Feminismos Plurais., Kimberlé Crenshaw, a primeira autora que cunhou o termo “interseccionalidade”, trata as várias opressões como sistemas que constroem desigualdades e discriminação fazendo com que mulheres vivam posições sociais segundo a raça, classe, sexualidade e geração, entre outros. Para Crenshaw, políticas públicas específicas e ações do governo também podem oprimir fazendo um movimento ao longo dessas categorias de análise.

De acordo com Akotirene (2018)AKOTIRENE, Carla. (2018). O que é Interseccionalidade? Belo Horizonte-MG: Letramento, Coleções Feminismos Plurais., Kimberlé Crenshaw trouxe uma grande contribuição para a análise da realidade das mulheres negras. Porém, existem algumas críticas muito relevantes ao conceito de interseccionalidade, entre as quais a de que essas várias opressões já nascem interseccionais e não se apresentam como, por analogia, ao cruzamento de ruas que se encontram somente em um ponto. Ou seja, a intersecção das opressões não acontece apenas em um momento da vida. A condição de negra e a condição de mulher, para citar apenas esses dois aspectos, são determinantes de experiências que serão moldadas por machismo e sexismo desde sempre, sendo que essas vidas vilipendiadas estarão retratadas nas narrativas de mulheres negras, assim como estão presentes na narrativa das tradutoras negras.

3. ESTRATÉGIAS TRADUTÓRIAS PARA UMA TRADUÇÃO ÉTICA

As estratégias tradutórias são as ações realizadas quando já se está traduzindo ou as ações que foram planejadas para o momento tradutório. Para começar com as estratégias tradutórias, no texto de Costa (2016)COSTA, Claúdia de Lima. (2016). “Gender and Equivocation: Notes on Decolonial Feminist Translations.” In: HARCOURT, Wendy (ed.). The Palgrave Handbook of Gender and Development: Critical Engagements in Feminist Theory and Practice. Palgrave Macmillan, p. 48-61., a autora defende a não dualidade entre razão e natureza, apresentadas em textos como o de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota.. Segundo Costa (2016)COSTA, Claúdia de Lima. (2016). “Gender and Equivocation: Notes on Decolonial Feminist Translations.” In: HARCOURT, Wendy (ed.). The Palgrave Handbook of Gender and Development: Critical Engagements in Feminist Theory and Practice. Palgrave Macmillan, p. 48-61., para culturas indígenas andinas, essa separação entre razão e natureza não existe, e as montanhas sagradas, por exemplo, influem muito no protesto social dessas comunidades. Essa divisão levaria somente ao desaparecimento da diversidade existente entre os mundos. Em vista disso, Costa sugere diminuir o uso da razão ocidental, no momento de traduzir textos de culturas como as indígenas andinas, já que existem diferentes maneiras de compreender os diferentes mundos.

Voltando ao texto de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota., a interpretação de Costa (2016)COSTA, Claúdia de Lima. (2016). “Gender and Equivocation: Notes on Decolonial Feminist Translations.” In: HARCOURT, Wendy (ed.). The Palgrave Handbook of Gender and Development: Critical Engagements in Feminist Theory and Practice. Palgrave Macmillan, p. 48-61. pode ser relacionada ao uso dos termos “anafemale” e “anamale”, empregados pela autora nigeriana para se referir à mulher e ao homem respectivamente. Os termos poderiam ser traduzidos como “fêmea anatômica” e “macho anatômico”, já que “ana” vem de “anatomia”, porém, tendo em vista a assonância e a aliteração presentes nos termos em inglês, uma boa sugestão de tradução seria “anafêmea” e “anamacho”, mesmo considerando que, para os ocidentais, o uso das palavras “macho” e “fêmea” possa passar a sensação de algo animalesco, grosseiro. Usar os termos “anafêmea” e “anamacho” é enfatizar que a tradução deve estar atenta aos sentidos de mundo da cultura fonte e não da cultura alvo e que os sentimentos da cultura fonte são outros, diversos daqueles da cultura ocidental, no caso, a do Brasil.

Outro ponto a ser destacado como alternativa para o momento da tradução é o conceito de thick translation ou tradução densa, citado por Campos (2017)CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155. e desenvolvido pelo ganês Kwame Anthony Appiah. A tradução densa é uma tradução que aponta para uma responsabilidade maior da tradutora, pois traria informações culturais, sociais e linguísticas construídas pelo texto-fonte e seria mais representativa do que produzem os enunciados, indo além da dificuldade imposta pela busca de “equivalentes”13 13 O termo “equivalente” é um termo controverso na área de tradução e foi problematizado por várias autoras da área. Neste trabalho, o termo está mais voltado para a interpretação sociolinguística de que a tradutora deve ficar atenta aos aspectos sociolinguísticos e culturais trazidos pelo texto a ser traduzido. em uma tradução, por exemplo. Para Appiah (1993)APPIAH, Kwame Anthony. (1993). “Thick Translation”. Post-Colonial Discourse, The Johns Hopkins University Press: Callaloo, v. 16, n. 4, p. 808-819., o trabalho tradutório é muito maior que apenas colocar em relevância aspectos linguísticos do texto, pois a tradutora pode se deparar com situações, no momento tradutório, que não se limitam a pensar o sentido de uma palavra.

Para Campos (2017)CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155., a tradução densa de Appiah traria a ideia de estrangeirizar14 14 Estrangeirizar significa o mesmo que levar a leitora ao tempo e lugar da história do texto a ser traduzido. Neste caso, a leitora obteria mais informações e conhecimento sobre a cultura e contexto do texto-fonte. Domesticar é o contrário; a domesticação seria trazer o texto para o tempo e local da leitora. Ao domesticar um texto, eliminando informações e trocando informações, a leitora leria um texto com características mais familiares a sua cultura (BRITTO, 2012, p. 60-62). Domesticação e estrangeirização foram conceitos desenvolvidos por Lawrence Venuti (1995) com base nos dois métodos de tradução criados por Friedrich Schleiermaher (SCHLEIERMACHER, 2010, p. 57). o texto, que é a estratégia tradutória que gera texto com caráter educativo para a leitora. Um exemplo de estrangeirização acontece quando a tradutora deixa palavras em iorubá no texto traduzido para o português para que a leitora se depare com essas palavras e, se tiver curiosidade, busque os seus significados e tenha maior consciência da existência do iorubá. Mais que isso, a estrangeirização serve para que a leitora verifique que o iorubá, e toda a carga de significado que ele carrega, é uma forma de ver o mundo que pode ser familiar ou não à realidade da leitora. Assim, em uma tradução estrangeirizadora, a presença de palavras em iorubá no texto de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota. deve se repetir no texto traduzido. A pedagogia entre a cultura iorubá e a brasileira, por exemplo, é, para Campos (2017)CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155., uma ação que deve ser realizada por meio de notas e comentários15 15 Segundo Torres (2017), todo e qualquer tipo de comentário já é uma crítica em si ao texto fonte. Um diálogo com o texto fonte, uma explicação sobre ele, um elogio, um comentário sobre os aspectos linguísticos ou uma crítica negativa são textos críticos ao texto fonte. críticos sobre a cultura fonte no texto de chegada. Essas notas e comentários, como afirma Seligmann-Silva (2018)SELIGMANN-SILVA, Márcio. (2018). O local da diferença: Ensaios sobre memória, literatura, arte e tradução. 2. ed. São Paulo: Editora 34, p. 167-204., são um trabalho totalmente autônomo da tradutora, pois é resultante de uma pesquisa e de uma crítica realizadas pela própria tradutora. Enfim, a tradução densa seria importante “não para conduzir a uma interpretação verdadeira e definitiva do texto, mas sim para levar a leitora a esse local pedagógico que também é político” (CAMPOS, 2017CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155., p. 137).

Outra autora que parece concordar com as ideias de Campos (2017)CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155. é Maria Tymoczko (1995)TYMOCZKO, Maria. (1995). The Metonymics of Translating Marginalized Texts. University of Oregon, Duke University Press: Comparative Literature, v. 47, ed. 1, p. 11-24.. As metonímias presentes em um texto, para a pesquisadora, são percebidas quando, por exemplo, a escritora reproduz um conto tradicional e essa narração faz com que a ouvinte reconheça algumas partes referenciais do conto. Textos como o de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota. apresentam grande carga de informação cultural, e a tradutora deve escolher os aspectos de informação literária nos quais deve focar na sua tradução. Dessa forma, a opção da tradutora é procurar um formato de tradução que possa passar a grande quantidade de informações do texto fonte para o texto traduzido, o que é comumente alcançado com a adição de comentários. Para Tymoczko (1995)TYMOCZKO, Maria. (1995). The Metonymics of Translating Marginalized Texts. University of Oregon, Duke University Press: Comparative Literature, v. 47, ed. 1, p. 11-24., é por isso que as primeiras traduções de textos como esses são, habitualmente, realizadas como um trabalho oriundo de pesquisa universitária, pois é em uma universidade que se fará traduções mediadas por uma série de instrumentos paratextuais16 16 Instrumentos paratextuais são comentários da tradutora, entrevistas, notas e qualquer outro texto em que haja referência ao seu trabalho tradutório. Esse conceito de paratextos é desenvolvido por Genette (2009). que servirão para explicar as metonímias do texto fonte. Mesmo assim, todas as tradutoras, mesmo as pesquisadoras de universidades, devem escolher aspectos da relação metonímica entre o texto e o sistema literário ou entre o texto e a cultura para priorizar na tradução. Logo, para Tymoczko (1995)TYMOCZKO, Maria. (1995). The Metonymics of Translating Marginalized Texts. University of Oregon, Duke University Press: Comparative Literature, v. 47, ed. 1, p. 11-24., sempre haverá uma escolha por quais informações a tradutora deve, e considera importante, manter no texto traduzido.

O texto da socióloga Oyèronkẹ́ Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota. trata da construção de uma categoria anatômica chamada mulher, com papéis sociais de gênero, que foi tardia na sociedade iorubá. Para ela, a construção de gênero e da mulher não é socialmente realizada em todas as sociedades e um exemplo disso é a realidade pré-colonial da cidade de Ọ̀ yọ́, na Nigéria. Em seu livro, Oyěwùmí (1997OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota., p. 158) dá ênfase à construção de pronomes da língua iorubá. Os pronomes de terceira pessoa “ó” (pronome informal) e “wọ́n” (pronome formal) se distinguem de acordo com a idade. O pronome, wọ́n, sem gênero, é usado para se referir sempre à pessoa mais velha da relação e indica respeito. Somente as pessoas mais velhas podem chamar outras pessoas pelo nome próprio e, em uma conversa, uma relação social, é necessário distinguir quem é o mais velho. Já o pronome ó é informal, mas sem gênero. Outro ponto importante é que ser mais velho não é sinônimo de privilégio, mas de responsabilidades. Sendo assim, as diferenças anatômicas entre macho e fêmea na linguagem iorubá não são relevantes, mas os iorubás podem deixar claro essas diferenças, caso seja necessário, como explica o trecho abaixo:

Em inglês, à pergunta: “Quem estava com você quando foi ao mercado?” Alguém poderia responder: “Meu filho”. À mesma pergunta em iorubá, alguém responderia: Ọmọ mìi (minha criança ou descendente). Somente se a anatomia da criança for diretamente relevante ao tema em questão, poderia a mãe iorubá acrescentar um qualificador, assim: “Ọmọ mìi ọkùnrin” (minha criança, o macho). (OYĚWÙMÍ, 1997OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota., p. 42, tradução nossa).

Dessa forma, o conhecimento sobre os pronomes em iorubá se faz importante, mas a tradução dos pronomes sem gênero para o português representa dificuldade considerável, já que esse tipo de pronome não existe em português. Talvez esse seja um momento de acrescentar uma nota tradutória ao texto e também o de considerar deixar os pronomes no original (sem uma tradução no texto traduzido). O texto alvo perde muito do que seria não designar pessoas pelo gênero como acontece com a língua iorubá. Estes são aspectos da tradução que revelam a importância da pesquisa sobre cultura e raça e que adquirem diferente dimensão ética, a depender da tradutora.

4. POSSÍVEL FUTURO PARA A CONTRIBUIÇÃO DOS ESTUDOS DE RAÇA NA TRADUÇÃO

Como visto, a tradução é um processo complexo e cheio de desafios e isso não seria diferente quando é considerado o contexto da raça. Raquel de Souza (2017)SOUZA, Raquel de. (2017). Salvo-Conduto. Entrevista cedida à Denise Carrascosa. In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 187-211., em entrevista dada a Denise Carrascosa, menciona que não entende o motivo de pensarem que a tradução de textos de literatura negra, ou de textos em que a subjetividade negra está presente, não exija conhecimento específico na área. Para ela, textos que expressam a subjetividade negra expressam experiências de dor, de resistência e de pedidos por justiça social. Sendo assim, para ela, e repete-se aqui, a pergunta que fica é

[c]omo é que eu posso pensar nesse projeto de tradução do Atlântico Negro em função das hierarquias de classe no Brasil, em que as pessoas que conseguem ter a formação acadêmica para trabalhar na área de tradução são justamente os herdeiros da Casa-Grande?” (SOUZA, 2017SOUZA, Raquel de. (2017). Salvo-Conduto. Entrevista cedida à Denise Carrascosa. In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 187-211., p.193).

Como pensar um projeto que pode ajudar a redefinir a história da população negra no Brasil, se quem traduz é o privilegiado de uma sociedade branca e heteronormativa, o chamado herdeiro da Casa-Grande? Esse traduzir o Atlântico Negro significa traduzir as várias narrativas de quem teve de fazer essa travessia forçada. Para a tradutora Souza (2017)SOUZA, Raquel de. (2017). Salvo-Conduto. Entrevista cedida à Denise Carrascosa. In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 187-211., a experiência do Atlântico Negro pode ser teorizada pelo feminismo negro, um conhecimento que é localizado. No entanto, para pesquisadores brancos, o conhecimento deve ser objetivo, e esse fato não encontra toda uma teoria que nasce a partir dessas narrativas negras. Ou seja, há um caráter contraditório que pode estar imbricado no texto traduzido, a depender da tradutora e sua noção de objetividade ou subjetividade textual.

Há ainda um outro aspecto ligado ao conhecimento localizado expresso em narrativas negras. Para Raquel de Souza (2017)SOUZA, Raquel de. (2017). Salvo-Conduto. Entrevista cedida à Denise Carrascosa. In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 187-211., além de não ser objetivo, esse conhecimento pode ser considerado técnico, pois traduzir textos de representatividade negra é falar das várias etnicidades e culturas complexas, o que faz parte de uma linguagem que é específica (ou especializada ou de especialidade). Assim sendo, pensando em raça como conhecimento específico, e também pensando que não há um currículo de cursos de tradução com contribuições de mulheres e homens negros e indígenas, sejam latinoamericanas(os) ou africanas(os), com a mesma representatividade que a de europeus, o debate de raça em salas de aula em cursos de tradução das universidades públicas brasileiras, por exemplo, precisaria considerar essa área como uma área técnica específica, como é aludido por Souza (2017)SOUZA, Raquel de. (2017). Salvo-Conduto. Entrevista cedida à Denise Carrascosa. In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 187-211.. Além de disciplinas voltadas ao estudo e à prática de tradução de textos jurídicos, econômicos e literários, por exemplo, deveria haver a possibilidade de estudantes receberem preparação para trabalharem com textos que trazem a raça como debate, incorporando uma abordagem interseccional de gênero, classe, geração, territórios e outros significantes. É por isso que um projeto de tradução de livro como o The invention of women: making an african sense of western gender discourses, de Oyèronkẹ́ Oyěwùmí, é um projeto que passa pela vivência da tradutora negra, pelas leituras de autoras negras e também pela presença dessa tradutora em coletivos negros universitários, espaços de troca e fortalecimento identitário.

É importante lembrar também que, em universidades que não se comprometem com a implementação de políticas educacionais, com inspiração no Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 (BRASIL, 1996BRASIL. Lei 9.394/1996, de 20 de dezembro de 1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, seção 1, p. 27833, 23 dez. 11996. PL 1258/1988.), que determina o ensino de História da África, da Cultura Afro-Brasileira e Indígena, alterado pela lei 10.639/2003 (BRASIL, 2003BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Brasília, DF, seção 1, p.1, 10 jan. 2003. PL 259/1999.) e pela lei 11.645/2018 (BRASIL, 2018) na educação básica (que precisaria se estender à educação superior em função das demandas apontadas), a única opção que resta a quem quer e precisa de letramento em raça é compor grupos de estudos e pesquisas entre estudantes negras universitárias. Essas estudantes se encontram, fora das horas de aula, para discutir temáticas raciais. Por ser o Brasil o país com a maior população negra fora do continente africano, cerca de 55% da população, é evidente a gravidade desta lacuna na formação de profissionais na área de tradução. Se as coisas continuarem como estão, a descolonização permanecerá sendo um projeto de parte da população negra e não fará parte da formação de tradutoras.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há uma urgência, dentro do campo dos Estudos da Tradução, por uma conscientização da raça como necessária para se traduzir escritas negras. Nesse sentido, este artigo traz a discussão de noções preliminares relevantes para a tradução de textos produzidos por escritoras negras. Reconhece-se a necessidade de maior aprofundamento a partir de estudos de caso, talvez com análises de traduções já realizadas. Essas considerações se mostram imprescindíveis dentro do contexto de uma ética de tradução voltada para o traduzir de textualidades negras, uma ação que tem como objetivo contribuir para a descolonização do pensamento nas várias áreas do conhecimento e que é realizada por tradutoras conscientes da raça, cientes de que desfazer ideias e representações subalternas deve ser um trabalho constante.

Nesse sentido, foi objeto do artigo o conceito de interseccionalidade que também compõe o fazer tradutório da tradutora negra, pois se compromete em chegar o mais próximo possível da situação contextual do texto-fonte, com vistas a contribuir para uma autorreflexão e transformação da situação das mulheres negras no Brasil. Parte-se do princípio que a interseccionalidade orienta para uma prática racialmente consciente. Ou seja, a tradutora deve ficar atenta para a tradução quando vários sistemas de opressão como raça, gênero, classe, geração, e outras assimetrias, se encontram. De fato, a tradução é reveladora do conhecimento que a tradutora possui acerca da realidade da mulher negra, assim como das ideologias que a tradutora transmite, conscientemente ou não, no texto final que elabora.

Outro aspecto relevante a ser respeitado na tradução de autoras negras é o fato do quanto as mulheres negras provocam a abertura para o diferente, para outras culturas, haja vista o vocabulário diferente que criam a fim de tornar possível a visualização de uma sociedade diversa, que não a euro-americana centrada. Existe também uma dificuldade para a tradutora que já tem sensibilidade acerca do assunto, pela sua vivência ou percurso de autopesquisa, em obter, dentro de cursos de tradução, formação compatível com um projeto tradutório de texto pertencente às narrativas afrodiaspóricas. Dessa forma, noções de invisibilização da história do povo negro e da história não universalizante e não eurocentrada, com foco no espaço, tempo e contextos que se distanciam da ideia positivista de necessidade de distância do objeto em nome da neutralidade, carecem de metodologias interativas e da contribuição de diferentes abordagens antirracistas e antissexistas (CARNAÚBA; FILICE, 2019CARNAÚBA, Raíssa Araújo; FILICE, Renísia Cristina Garcia. (2019). A interseccionalidade de gênero, raça e classe em políticas públicas no caso de grávidas adolescentes. Revista Calundu, v. 2, p. 42-60.). Essas ações são necessárias para o trabalho de tradução de uma textualidade negra.

Assim, neste artigo, chegou-se à sugestão de que uma tradução ética e responsável de textos que guardam um sentido de mundo tão diferente do ocidental deve ser realizada por meio de comentários críticos ao texto-fonte, que revertem também a lógica da invisibilidade da tradutora. No caso das tradutoras negras, esses comentários têm o condão de revelar a presença de quem tem sido em muitos aspectos invisibilizada ou silenciada. Os comentários são produto do trabalho autônomo da tradutora, que, por meio de estudos e pesquisas de cunho pedagógico, consegue estabelecer diálogos com o texto-fonte. Podem acompanhar um processo de escrita de tradução estrangeirizadora, a qual também gera uma leitura educativa para quem lê o texto traduzido. Por fim, o artigo se ocupa de denunciar a realidade brasileira e como essa realidade se reflete nas salas de aula de cursos de tradução em nível universitário, em que não há o debate de raça e que não consideram o tema um assunto específico que mereça atenção institucional.

  • 1
    Durante todo esse trabalho, a palavra tradutora é uma escolha política, funcionando como um feminimo genérico. A escolha é feita, mas sabe-se que o gênero é fluído e que ele não existe para estabelecer papéis sociais em algumas sociedades. Há corpos que apresentam os gêneros binários, mas há aqueles que não se identificam com nenhum dos dois, como acredita Preciado (2014). O “a” é grafado no final da palavra tradutora, leitora, autora, brasileira, negra(s), mas o importante é a ideia de que o gênero não pode ser fixo e sua leitura depende do momento e espaço social analisado, segundo Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota..
  • 2
    Esse texto foi escrito antes da publicação da primeira tradução para o português de Oyěwùmí (1997)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (1997). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Editora: University of Minnessota.. Por isso, aqui, o “possível tradutora” está relacionada com uma tradução futura desse texto.
  • 3
    Esta obra foi traduzida pela primeira vez para o português brasileiro pelo tradutor wanderson flor do nascimento (nome escrito em letras minúsculas) no início do ano de 2021. Veja em Oyěwùmí (2021)OYĚWÙMÍ, Oyèronkẹ́. (2021). A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Traduzido por wanderson flor do Nascimento. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo..
  • 4
    Uma explicação breve, de acordo com Bernardino-Costa e Grosfoguel (2016BERNARDINO-COSTA, Joaze; GOSFOGUEL, Ramón. (2016). “A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios”. Decolonialidade e perspectiva negra (Dossiê). Brasília: Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 15-24., p. 16), é que os pesquisadores do projeto decolonial procuram provincializar o conhecimento europeu e toda forma de conhecimento que se pretende universalizante. Como as ideias coloniais estão impregnadas no trabalho da academia, o pensamento decolonial objetiva produzir um conhecimento que parta da visão do oprimido e que rejeite o ponto de vista dos cânones europeus e estadunidenses.
  • 5
    Mbembe diz que os segundos textos seriam a resposta aos chamados primeiros textos. Os primeiros textos são definidos pelo autor como sendo a “Consciência ocidental do Negro” (MBEMBE, 2014, p. 58). Os segundos textos diriam, então, a verdade sobre o Negro e o autor desses textos seriam os próprios Negros, ou seja, esses textos representam o que o “Negro diz de si mesmo”(MBEMBE, 2014, p. 59). Aqui o gênero das palavras “autor” e “Negro” foram mantidos.
  • 6
    Desse número, 46,5% são pardos e 9,3 % são pretos, de um total de 99% da população.
  • 7
    Há uma discussão em torno de o Black English ser uma língua ou uma linguagem informal. O fato é que ele é utilizado pelos afro-americanos como forma de afirmação. Conforme Campos (2017)CAMPOS, Paula. (2017). “Descobrindo uma Tradutora ou por uma tradução responsável e ética.” In: CARRASCOSA, Denise (org.). Traduzindo no Atlântico Negro: Cartas Náuticas Afrodiaspóricas para Travessias Literárias. Salvador, Bahia: Editora Ogums, p. 119-155., o Black English é uma língua que se diferencia do inglês padrão e que já é estudada há mais de 40 anos.
  • 8
    Um exemplo de metonímia dado por Tymoczko (1995)TYMOCZKO, Maria. (1995). The Metonymics of Translating Marginalized Texts. University of Oregon, Duke University Press: Comparative Literature, v. 47, ed. 1, p. 11-24. é o de que, para que o efeito de um mito seja eficaz, no momento da contagem desse mito para a cultura alvo (diferente da que o criou), a sociedade leitora deverá pelo menos ter noção do que seja um mito. Se esse conhecimento não existe, as construções de sentidos que envolvem a criação do mito contado se perdem.
  • 9
    Racismo materializado por meio da língua e que é reproduzido pelo intelectual na sua escrita (NASCIMENTO, 2019NASCIMENTO, Gabriel. (2019). Racismo Linguístico: os subterrâneos da linguagem e do racismo. Belo Horizonte: Letramento.).
  • 10
    Patronagem, para Lefevere, “é o que será entendido como algo como os poderes (pessoas, instituições) que podem promover ou dificultar a leitura, a escrita e a reescrita da literatura” (LEFEVERE, 1992LEFEVERE, André. (1992). Translation, Rewriting, and the Manipulation of Literary Fame. London: Routledge., p. 16). Na patronagem, segundo o mesmo autor, também há o envolvimento de aspectos ideológicos, econômicos e de status como características que podem ajudar ou não na publicação de uma obra.
  • 11
    Esses “Estudos da Tradutora” seriam realizados por meio da análise de “Notas da tradutora”, prefácios realizados por tradutoras ou qualquer texto em que a tradutora escreva sobre uma tradução realizada. Nos “Estudos da Tradutora”, o foco é a tradutora e sua formação técnica, social e as influências que a forma (CHESTERMAN, 2014, p. 40). O termo “Estudos da Tradutora” e “Notas da Tradutora” são uma adaptação do termo usado na tradução para o português do texto de Chesterman.
  • 12
    “O português afro-brasileiro designa aqui uma variedade constituída pelos padrões de comportamento linguístico de comunidades rurais compostas em sua maioria por descendentes diretos de escravos africanos que se fixaram em localidades remotas do interior do país, praticando até os dias de hoje a agricultura de subsistência. Muitas dessas comunidades têm a sua origem em antigos quilombos de escravos foragidos e ainda se conservam em um grau relativamente alto de isolamento.” (LUCCHESI; BAXTER; RIBEIRO, 2009LUCCHESI, Dante; BAXTER, Alan; RIBEIRO, Ilza. (orgs.). (2009). O Português Afro-Brasileiro. Salvador: EDUFBA., p. 32).
  • 13
    O termo “equivalente” é um termo controverso na área de tradução e foi problematizado por várias autoras da área. Neste trabalho, o termo está mais voltado para a interpretação sociolinguística de que a tradutora deve ficar atenta aos aspectos sociolinguísticos e culturais trazidos pelo texto a ser traduzido.
  • 14
    Estrangeirizar significa o mesmo que levar a leitora ao tempo e lugar da história do texto a ser traduzido. Neste caso, a leitora obteria mais informações e conhecimento sobre a cultura e contexto do texto-fonte. Domesticar é o contrário; a domesticação seria trazer o texto para o tempo e local da leitora. Ao domesticar um texto, eliminando informações e trocando informações, a leitora leria um texto com características mais familiares a sua cultura (BRITTO, 2012BRITTO, Paulo Henriques. (2012). “A tradução de ficção”. In: BRITTO, Paulo Henriques. A tradução literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 59-75., p. 60-62). Domesticação e estrangeirização foram conceitos desenvolvidos por Lawrence Venuti (1995)VENUTI, Lawrence. (1995). The Translator’s Invisibility: A history of translation. London, New York: Routledge. com base nos dois métodos de tradução criados por Friedrich Schleiermaher (SCHLEIERMACHER, 2010SCHLEIERMACHER, Friedrich Daniel Ernst. (2010). “Sobre os diferentes métodos de tradução”. Tradução de Celso R. Braida. In: WERNER, Heidermann. (org.). Clássicos da Teoria da Tradução. 2. ed. Florianópolis: UFSC/Núcleo de Pesquisa em Literatura e Tradução, p. 39-101., p. 57).
  • 15
    Segundo Torres (2017)TORRES, Marie-Hélene Catherine. (2017). “Por que e como pesquisar a tradução comentada?” In: FREITAS, Luana F.; COSTA, Walter Carlos; TORRES, M. (orgs.). Literatura Traduzida: Tradução comentada e comentários da tradução. Transletras, v. 2, p. 15-35., todo e qualquer tipo de comentário já é uma crítica em si ao texto fonte. Um diálogo com o texto fonte, uma explicação sobre ele, um elogio, um comentário sobre os aspectos linguísticos ou uma crítica negativa são textos críticos ao texto fonte.
  • 16
    Instrumentos paratextuais são comentários da tradutora, entrevistas, notas e qualquer outro texto em que haja referência ao seu trabalho tradutório. Esse conceito de paratextos é desenvolvido por Genette (2009).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2020
  • Aceito
    13 Dez 2021
  • Publicado
    14 Fev 2022
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