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O campo político de FHC

The political field of Fernando Henrique Cardoso

Resumos

O artigo pretende mostrar que, embora o sociólogo presidente Fernando Henrique Cardoso tenha sido severamente criticado por ter abandonado suas antigas idéias e ter se entregado à ditadura do mercado, um balanço de seu primeiro mandato, além de ser claramente positivo, situa-o no domínio de centro-esquerda, o que faz esperar que sua segunda presidência poderá representar, para o Brasil, o renascimento da vida social e política.

mobilização social; economia global; liberalismo; capacidade de ação política; democracia


This article intends to show that the socialist and president FHC, even having being severely criticized for having abandoned his old ideas and having turned to be part of the market dictatorship, in a balance of his first mandate, has not only a clearly positive mandate, but also situates him in the middle-left domain, which makes us expect that his second presidency can represent the reborn of the social and political life in Brazil.

social mobilization; global economy; liberalism; capacity of political action; democracy


DOSSIÊ FHC 1º GOVERNO

O campo político de FHC

The political field of Fernando Henrique Cardoso

Alain Touraine

Diretor de Estudos da EHESS - Paris

Tradução de Maria das Graças S. Nascimento

RESUMO

O artigo pretende mostrar que, embora o sociólogo presidente Fernando Henrique Cardoso tenha sido severamente criticado por ter abandonado suas antigas idéias e ter se entregado à ditadura do mercado, um balanço de seu primeiro mandato, além de ser claramente positivo, situa-o no domínio de centro-esquerda, o que faz esperar que sua segunda presidência poderá representar, para o Brasil, o renascimento da vida social e política.

Palavras-chave: mobilização social, economia global, liberalismo, capacidade de ação política, democracia.

ABSTRACT

This article intends to show that the socialist and president FHC, even having being severely criticized for having abandoned his old ideas and having turned to be part of the market dictatorship, in a balance of his first mandate, has not only a clearly positive mandate, but also situates him in the middle-left domain, which makes us expect that his second presidency can represent the reborn of the social and political life in Brazil.

Keywords: social mobilization, global economy, liberalism, capacity of political action, democracy.

A política não é a ação de uma vontade soberana sobre uma situação maleável; esta imagem só pode corresponder a regimes autoritários e se destrói por si mesma, pois os resultados de um tal voluntarismo são sempre opostos aos fins proclamados. A política é, ao contrário, um esforço para intervir num conjunto de limitações interiores e exteriores de todas as ordens, de modo a alargar o campo do possível, ou seja, a diminuir o peso destas limitações. O mais importante, na análise de uma política, é, portanto, avaliar a capacidade de ação política. Esta capacidade é tanto mais fraca quanto os atores sociais, políticos e outros são, ao mesmo tempo, mais fortes e mais autônomos; ela é mais forte, ao contrário, quando a autoridade do poder é exercida sobre uma sociedade fraca, em crise, até mesmo perturbada. É por isto que as situações revolucionárias, nas quais o poder político parece dominado pelos movimentos sociais, são, ao contrário, mais favoráveis à formação de um Estado forte, já que a sociedade está mais em crise do que em ação, e os atores políticos ou sociais particulares são ao mesmo tempo fracos e pouco autônomos, pois que se trata de uma crise geral. O que nos leva a uma constatação clássica. Sem democracia, o Estado é mais forte; na democracia, ele é muito fraco; a ponto que certos liberais ou marxistas sonharam com uma redução extrema do Estado, o que deixaria o papel principal aos atores e sobretudo às contradições do sistema econômico. Façamos aqui a hipótese, que tentaremos utilizar e a respeito da qual tentaremos argumentar, de que o Brasil contemporâneo é um país de fraca capacidade política, exceto em situações de crise extrema.

Esta formulação parece paradoxal. A história do Brasil não é, ao contrário, desde os inícios da República, a de um Estado que unifica um território vasto muito diversificado? Excelentes análises mostraram o fracasso da construção de uma democracia liberal nos anos 20 e a frouxa predominância de um Estado modernizador autoritário, mais que liberal, sob Vargas, assim como sob a ditadura militar. A única exceção notável foi a presidência de Juscelino Kubitchek, já que depois dele assistiu-se a uma rápida decomposição do poder. Este Estado forte conduziu com decisão uma política de industrialização que acelerou a urbanização, mas também a distância entre a cidade e o campo, os ricos e os pobres, que outrora no Brasil eram freqüentemente fisicamente próximos uns dos outros, não somente nos domínios rurais, mas que se expressava também pela presença de favelas no centro das grandes cidades. Os anos 70 viram um país em grande expansão suportar desigualdades sociais cada vez maiores. O lento retorno à democracia não mudou a situação e o Brasil não empreendeu uma luta ativa contra a desigualdade. Foi mesmo uma liberalização mal controlada e roída pela corrupção a que predomina durante a presidência de Fernando Collor. Esta situação, agravada por uma inflação que se aproximava de uma hiper-inflação, foi herdada por FHC.

Quando ele foi eleito presidente da República, o Brasil estava fraco. A abertura liberal da economia foi feita em condições desastrosas. A situação diante da qual o Brasil se encontrava nada tinha contudo de particular; era a mesma de quase todos os países. Depois da Segunda Guerra Mundial, os regimes de reconstrução nacional apoiavam-se sobre um forte movimento de integração, ao mesmo tempo em que, no mundo inteiro, surgiram conflitos sociais, num momento em que a economia internacional estava desorganizada e numerosos países se encontravam numa situação de extrema fragilidade, em particular os novos países nascidos da descolonização, que estavam quase sem recursos. Este período durou relativamente pouco tempo. No início dos anos 70, encerrou-se o crescimento na União Soviética, e, durante este decênio, os países ocidentais industrializados deram prioridade para a abertura dos mercados internacionais. Vinte anos mais tarde, pode-se dizer que a resistência do voluntarismo do pós-guerra cessou em toda parte. O que não quer dizer que o mundo instalou-se de modo durável numa sociedade de mercado, mas antes que vivemos a formação lenta e difícil de novos atores sociais e políticos capazes de limitar os efeitos dos mercados internacionalizados, e de combinar a abertura da economia mundial com a manutenção ou criação de garantias sociais e de uma diversidade cultural real no nível internacional ou local. Na América Latina, certos países tomaram claramente a via liberal. Foi o caso da Bolívia, depois da hiper-inflação e o retorno ao poder de Victor Paz Estensoro, como também do Chile, que só obteve resultados positivos a partir de 1983-1984. Outros resistiram a esta evolução geral, seja por incapacidade de colocar em causa uma economia administrada - que foi durante muito tempo o caso da Argentina e, de maneira muito diferente, da Venezuela - seja pela força que o modelo nacionalista e voluntarista havia adquirido. Foi em parte o caso do México; foi sobretudo o caso do Brasil, já que o milagre brasileiro, pilotado pelo Ministro Delfim Neto, tinha sido fundado sobre intervenções políticas.

O Brasil conheceu pois o movimento geral de globalização e portanto de abertura da economia, apoiando-se em forças econômicas importantes, sobretudo as empresas de São Paulo, mas sem que fosse transformado o conjunto da sociedade e, em particular, o próprio setor público e, sobretudo, a representação geral pela sociedade de seu próprio desenvolvimento.

O recuo do voluntarismo de Estado liberou dois tipos opostos de forças sociais. O primeiro é formado pelas elites regionais. Elas haviam sido mais ligadas ao poder de Estado no Brasil do que no Peru, por exemplo, ou no México, pois os coronéis eram mais ligados ao poder central do que os monales ou os caciques de outros países. O segundo tipo, ao contrário, é formado pela classe média ligada ao Estado, que tinha sido a grande beneficiária da política nacional popular, e que sofreu os efeitos negativos da nova política econômica do Estado. São estas categorias médias ligadas ao Estado, mais do que as categorias populares sobre as quais pesam as grandes desigualdades que mais se opõem ao abandono do voluntarismo de Estado, que são e permanecem ligadas a uma ideologia que os franceses denominam republicanista ou soberanista. Mais fraco ainda, e há muito tempo no Brasil, foi o voluntarismo revolucionário da guerrilha, brutalmente destruído pelo regime militar a partir do AI-5 de 1968. O Brasil, portanto, saiu do modelo dirigista do pós-guerra mais do que entrou numa sociedade liberal capaz de grandes iniciativas. Vem daí o fracasso de várias tentativas de reforma monetária e da luta contra a inflação. No lugar do voluntarismo de Estado, fora de uma crise grave, só pode existir, numa democracia, um sistema de relações políticas centrado sobre instituições representativas e que assegure uma ligação aceitável entre o poder do Estado e o Parlamento e entre o Parlamento e as forças sociais, quaisquer que sejam suas formas de organização. Este modelo ideal, que correspondeu muito bem ao sistema político britânico e também às sociais-democracias européias, pode ser modificado em dois sentidos. O primeiro o aproxima do modelo americano que, por um lado, é caracterizado por um poder presidencial forte e sobretudo por um poder de controle constitucional, e, por outro, por um poder monetário, que asseguram um elo direto entre as diversas forças sociais e econômicas e o Presidente, enquanto o Congresso assegura uma ligação, que é freqüentemente fraca, entre o Estado e a sociedade, influenciada por lobbies e por pressões dos interesses locais. Mas este sistema presidencial supõe uma grande capacidade de ação dos atores sociais e em particular econômicos, o que compensa largamente a fragmentação da vida política. O segundo, ao contrário, distancia-se do modelo "central" por uma pressão mais direta das forças sociais sobre o Estado e em particular sobre o Parlamento. É um modelo muito europeu, no qual as noções de direita e de esquerda indicam uma forte ligação entre atores sociais e representantes políticos. Mas, no período recente, este laço enfraqueceu-se muito, a ponto que alguns chegaram a pensar que não havia mais diferença entre políticas de esquerda ou de direita, o que certamente não corresponde à realidade, mas indica uma crise séria deste modelo político.

O que caracteriza a situação brasileira é que a capacidade de ação política do Presidente não somente não foi fortalecida, mas foi mesmo enfraquecida pela fragmentação tanto dos atores políticos quanto dos atores sociais. Mesmo que não exista no Brasil nenhuma tendência importante para um regime autoritário, pode-se dizer que a sociedade política brasileira oferece melhores apoios a um dirigente autoritário do que a um dirigente democrático. A comunicação entre o Estado e as demandas sociais encontra dois obstáculos principais. Primeiro a fragmentação e a instabilidade do mundo político, onde quase não existem partidos organizados e autocontrolados. O PFL é o que está mais próximo de ser um partido; o PMDB é o que está mais distante. Esta fraqueza acarreta uma surpreendente mobilidade dos eleitos, que passam em grande número de um partido para outro durante uma mesma legislatura. Esta situação é aparentemente favorável ao Presidente, que não encontra resistência em partidos fortes; de fato, ela diminui a capacidade de decisão política já que ele deve - como ocorre também nos Estados Unidos -assegurar-se de uma maioria, obtendo não o acordo global de um partido, mas antes o apoio, freqüentemente frágil, dos candidatos eleitos preocupados sobretudo em defender interesses locais. O próprio PT age pouco como um partido e mais como uma coalizão de forças de oposição que se agrupam cada vez mais em torno dos candidatos possíveis à próxima eleição presidencial, como Lula ou Tarso Genro.

Em segundo lugar, a capacidade de ação política diminuiu por causa da fraca integração da própria sociedade. Por mais que a integração territorial tenha progredido e que tenham sido criados e fortalecidos pólos de desenvolvimento fora de São Paulo, a integração social é fraca - desigualdades sociais muito fortes, existência de uma população marginalizada, precarizada ou excluída nas cidades e no campo. Os progressos importantes realizados durante a primeira presidência de FHC não impediram que o acesso à educação seja ainda muito desigual, e os contrastes nas situações urbanas ainda impressionantes .

Este fenômeno não é apenas brasileiro, mas é preciso medir sua importância para este país assim como para muitos outros. As categorias "não integradas" - quer se trate de desempregados e dos que dependem de rendimentos precários, dos participantes de uma economia criminosa ou, inversamente, daqueles que vivem numa economia global mais do que numa sociedade nacional - representam uma parte importante da população. Há um terço de século os intelectuais latino-americanos, em particular argentinos mas também brasileiros, já debatiam e disputavam entre si para saber se aqueles que chamamos de marginais formam um exército de reserva da força de trabalho ou um fenômeno mais global e mais permanente. Foi esta segunda interpretação que se impôs. Não para satisfazer-se com o conteúdo vago e ambíguo da palavra marginalidade mas, ao contrário, porque a análise deslocou-se das relações de trabalho para o modo de desenvolvimento; em termos mais concretos, ela se deslocou da sociedade industrial para o que é mais propriamente o capitalismo, sobretudo internacional e financeiro, que orienta a mudança econômica e social em função dos interesses dos acionistas. É impossível examinar qualquer ação política sem dar uma importância central a esta transformação. Nós não temos mais face a face um patronato e uma classe operária - ou, pelo menos, esta relação é cada vez menos central - mas sim uma recentralização da atividade econômica em torno do lucro mais do que da produção ou da repartição de bens. A cena sócio-política esvaziou-se; ao invés de se falar em patrões, fala-se da globalização; ao invés de exploração, fala-se de exclusão. Todo juízo que se refere ao conflito de classes como um eixo central da política tornou-se exterior à realidade e não nos informa mais. Em contrapartida, é legítimo nos perguntarmos se a oposição entre a direita e a esquerda foi substituída por aquilo que alguns denominam pensamento único, ou seja, a subordinação dos principais dirigentes políticos ao poder mundializado dos capitalistas, sejam eles oriundos da esquerda ou da direita, expressão que designa tanto fundos de pensão sindicais quanto operações propriamente especulativas. Mas devemos rejeitar imediatamente esta tese, como o fazem aliás os eleitores que não se dividem ao acaso entre os partidos, e que, mesmo se a abstenção freqüentemente aumenta, consideram sua escolha importante e representativa de seus interesses. De maneira mais realista, constatamos que a cena social está mais vazia do que no passado, ao mesmo tempo em que a capacidade de ação política enfraqueceu-se. A impressão do "vazio" social e político, assinalada por muitos, é justa. Os problemas são visíveis por toda parte, na violência metropolitana ou na pobreza ou desemprego, mas, entre estes fatos e sua expressão política há uma vasta distância que aumenta ao invés de diminuir. As ciências sociais no Brasil - assim como no Chile, que estiveram por muito tempo associadas graças ao CEPAL - foram o centro de criação de idéias, de pesquisas, de debates sobre o Continente, entre os economistas e os antropólogos, tanto quanto entre os sociólogos. Hoje em dia, entretanto, as ciências sociais no Continente e, em particular, no Brasil, fazem-se ouvir menos. O Chile está quase silencioso e, mesmo se o México é mais criador de idéias, a inovação intelectual no Brasil parece mais fraca do que antes, e, assim como em outros lugares, tem-se a impressão que os intelectuais reagem mais como categoria socioprofissional do que como analistas. Este juízo deve ser relativizado pois diversas universidades elevaram claramente o seu nível. O Rio de Janeiro tem ganho vida neste domínio assim como em outros, e São Paulo permanece bem equipado. Fica contudo o fato de que, como em quase todos os lugares nos anos 90, os intelectuais no Brasil estão na defensiva; eles denunciam, freqüentemente de modo justo, as violências, as desigualdades ou o enriquecimento de alguns, mas não definem claramente as causas destas situações nem como elas evoluem, nem sobretudo qual é a margem do possível e as condições de transformação de situações consideradas como inaceitáveis.

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Impõe-se uma conclusão: a passagem de sociedades "inner-directed" para sociedades "other-directed" para falar como Riesman, de sociedades orientadas "hacia adentro", para falar como o CEPAL, para sociedades orientadas para fora, pela ação de empresas econômicas internacionais e redes financeiras, fez com desaparecessem os atores sociais e políticos voltados para o interior, ou seja, que acreditam na possibilidade de transformações sociais internas, e os substituiu por uma mistura pouco integrada de denúncia global, de defesa de interesses particulares ou locais e por uma separação quase completa entre os intelectuais e a política. O que o FMI pensa tornou-se muito mais importante do que aquilo que os universitários dizem.

Última observação: sabemos, entretanto, que esta representação não é inteiramente justa e que em todas as grandes crises regionais pelas quais passamos nos últimos vinte anos as causas nacionais e os remédios nacionais sempre tiveram uma importância extrema. Pode-se falar da queda do rublo em agosto de 1998 sem falar da impotência do poder russo para controlar a economia de seu país? Os japoneses não são os principais responsáveis pelo fato da bolha financeira que se formou em seu país ter estourado e causado desastres? No caso brasileiro, também, seria superficial lançar toda a responsabilidade sobre os movimentos especulativos internacionais. A sobrevalorização do real com suas conseqüências sobre o comércio exterior e as taxas de juros explica-se por razões internas e em particular pelo medo do governo e dos experts de que uma desvalorização acarretasse uma nova onda de inflação que não seria contida e conduziria a perturbações graves. Os capitais nacionais e estrangeiros analisam as situações nacionais e regionais de maneira objetiva, mas seu comportamento, em geral de recuo, pode agravar uma crise nacional e amplificar suas conseqüências por um efeito de dominó. O que caracteriza todas as graves crises nacionais recentes é que elas foram acompanhadas por uma consciência da impotência nacional, da incapacidade de prever a crise e de enfrentá-la. Ao passo que a experiência histórica mostra que, ao contrário, nestas crises os governos poderiam ter agido para reajustar mais ou menos rapidamente uma situação ameaçadora. A ação do Presidente Zedillo no México certamente não impediu as categorias populares e médias de pagarem o preço alto do reajuste econômico; pelo menos, este reajuste foi obtido. No Japão, depois de numerosos apelos internacionais, o governo decidiu apoiar os pedidos. Existe um contraste surpreendente entre a consciência da impotência da maior parte dos países e sua procura por responsabilidades exteriores, de um lado, e, de outro, da capacidade real dos governos nacionais para tomar decisões, de um tipo ou de outro, que têm efeitos importantes, positivos ou negativos, sobre a vida econômica nacional. Esta fraqueza - freqüentemente até mesmo esta ausência de capacidade de definir o possível e de intervir - em geral conduziu a crises econômicas acompanhadas de ruptura social, desencadeadas por uma inflação que sempre se transformava em hiper-inflação ou chegava a níveis suficientemente elevados para desorganizar a sociedade. Se a queda do Chile autoritário em 1981 nos lembra que uma ditadura militar não é proteção contra um fracasso econômico, o caso da Bolívia ou da Argentina mostraram a possibilidade de uma intervenção nacional, enquanto o caso do México e em parte o do Brasil mostraram a extrema importância de garantias internacionais dadas aos países ameaçados. É difícil encontrar um exemplo de país que tenha elaborado uma política de reajuste sem ruptura. O Brasil foi o caso mais distante desta capacidade de ação autônoma. Bem recentemente, a Argentina, mergulhada na catástrofe econômica, soube reerguer-se ao preço de um grande aumento do desemprego, mas levou a efeito várias reformas profundas que dão à sua economia chances bem melhores do que no passado. O Brasil fracassou por diversas vezes em sua luta contra a inflação. Provavelmente, porque se esforçou para procurar na própria sociedade os remédios para a crise, para lutar contra a inflação. Esses fracassos mostraram a incapacidade da sociedade para agir sobre si mesma e de modificar suas próprias condutas. Os planos que obtiveram êxito, por mais distintos entre si que tenham sido, tiveram como traço comum o de organizar-se em torno de medidas técnicas, não propriamente sociais, antes de tudo monetárias, e, portanto, impondo-se ao país inteiro, independentemente das proposições, em geral fracas, dos atores políticos. A planos tecnocráticos impostos, como dizem muitos, juntam-se aqueles impostos pelo FMI. Esses juízos, mesmo se estão longe de corresponder à maioria dos casos, insistem muito justamente sobre o fato de que os planos que permitiram ao país recuperar-se e vencer a inflação foram aceitos por países em grande crise e em geral com a oposição ou a reticência dos atores sociais, pois essas crises se situavam para além da capacidade de ação política e social. Tais crises, e é preciso repeti-lo, tinham causas mais interiores do que exteriores.

No Brasil, como na Argentina, a principal medida foi a de criar uma nova moeda ligada ao dólar, para impedir a dolarização selvagem da economia. Este método de choque pôs um fim à inflação, o que acarretou no Brasil uma grande redistribuição de renda em favor de categorias pobres e periféricas, já que a inflação era para elas um imposto esmagador, enquanto as categorias que dispunham de recursos e, portanto, de uma poupança maior protegiam-se da inflação utilizando-se das escalas móveis. O Nordeste e os pobres puderam aumentar o seu consumo e o Presidente FHC recebeu um grande apoio da opinião que correspondia mais ao sucesso de um plano do que à vitória de certas forças políticas e sociais. Durante a primeira presidência FHC, o verdadeiro Presidente foi o Real, muito eficaz no início e apoiado pelas categorias populares, enquanto as classes médias públicas estavam reservadas ou hostis em relação a um governo que queria reformar, ou seja, reduzir as vantagens relativas destas categorias. Situação que pode parecer paradoxal: FHC, acusado de traição contra o povo pela sua aliança com um partido de direita, foi apoiado pelas categorias populares e criticado ou rejeitado por uma fração importante e crescente das classes médias assalariadas. Mas, o sucesso do Plano Real não criou por si mesmo condições interiores nacionais que teriam permitido ao país transformar-se, por não conhecer uma nova crise e aumentar pois sua capacidade de ação sobre si mesmo. É aqui que o balanço do período que corresponde à primeira presidência FHC se torna negativo. O fim da inflação não acarreta reformas suficientes para permitir à economia brasileira viver com uma taxa de câmbio tão forte e empreender reformas profundas. O que se observa, e que foi tão freqüentemente descrito, é que o real logo foi supervalorizado, o que fez com que diminuíssem as exportações e aumentassem as importações. Inquietos com este desequilíbrio, os capitais começaram a se afastar e foi preciso para retê-los propor-lhes taxas de juros tão altas que ameaçavam a capacidade nacional de investimento e que, por conseqüência, enfraqueceram a economia brasileira. O Mercosul, ao contrário, foi, durante este período, pouco afetado, pois as duas moedas, o austral (peso) e o real, eram mantidas paralelamente a uma taxa de câmbio próximo da conversão com o dólar. O que reforça minha análise anterior é que, durante muito tempo, o Brasil recusou-se a desvalorizar pelo medo de uma onda de inflação e porque a estabilidade da moeda era a principal razão da confiança do povo no Presidente. O reino do real lhe dava, em princípio, uma grande liberdade de ação, já que a estabilidade monetária lhe valia um forte apoio popular. Mas, entretanto, ao final desta primeira presidência explode uma grave crise, de alcance internacional, acompanhada de uma outra crise mais diretamente interior, a da revolta dos governadores. Mesmo no momento atual, no qual o Brasil mostrou que saía mais depressa do que o previsto da crise monetária, da alta extrema das taxas de juros e da baixa do produto nacional, a opinião brasileira tornou-se fortemente hostil ao Presidente e a fraqueza da moeda aumentou por causa de fortes pressões vindas do interior. O balanço deste período, todavia, está longe de ser negativo. O aparelho de Estado foi modernizado, a educação de base fez grandes progressos e os mecanismos de redistribuição de créditos para a educação em favor dos estados e dos municípios pobres foram postos em ação. As empresas, sobretudo as industriais, confrontadas a condições de câmbio muito desfavoráveis, reagiram, pelo menos parcialmente, e o Brasil permanece claramente como um país industrial no qual as exportações de tecnologias avançadas são mais elevadas do que as de café.

Mas estes resultados, aparentemente positivos, não impedem que as duas grandes fraquezas que assinalei se agravem ou se mantenham. O Presidente pôde, no meio da crise, tomar medidas para diminuir os déficits públicos, mas elas ainda são insuficientes e os Estados ainda gastam demais em relação às suas rendas, do mesmo modo que o sistema de aposentadorias é ao mesmo tempo pesado e muito desigual. O exemplo italiano mostra que é possível mas muito difícil modificar as condições de trabalho e de aposentadorias do setor público. A crise dos Estados endividados, incapazes de cumprir suas obrigações internacionais e voltando-se contra o Estado Federal, mostrou ao mesmo tempo a má gestão administrativa do setor público e a vontade de alguns governos e sobretudo do antigo Presidente Itamar, que FHC havia apoiado fortemente ao lançar o Plano Real, de atacar o Presidente. A capacidade de ação deste último permanece fraca e a campanha levada pelo Presidente para sua reeleição diminuiu mais esta capacidade. O PSDB, que é chamado de partido do Presidente, é fraco e dividido. O PT é forte, porém mais dividido ainda; o PMDB é quase apenas uma etiqueta eleitoral. Todas estas situações fortalecem o PFL, a ponto que é em suas fileiras que se encontrava o sucessor possível do Presidente, cujo prematuro desaparecimento não somente enfraqueceu o clã Magalhães, como também deixou incerto o futuro da política brasileira, embora, é verdade, assegurado ainda por vários anos.

Mas, o enfraquecimento mais importante da capacidade de ação política vem do fracasso das políticas de integração social em todos os níveis. O mais visível, neste país que se tornou amplamente urbano, é a miséria e sobretudo a violência urbana. A população as vive de modo cada vez mais difícil, tanto que os políticos e as polícias locais são sempre colocados em questão. As violências sofridas pelas crianças de rua, dos maus tratos aos assassinatos, não são fatos novos nem mais extremos do que aqueles que Buñuel mostrava no México ou os que concerniam os meninos de Bogotá. Mas esta miséria e esta violência tornaram-se mais pesadas nas cidades como São Paulo, onde o desemprego aumentou, e são cada vez menos aceitas num país no qual os lugares de modernidade e de riqueza são numerosos e espetaculares. Numa frase célebre, FHC disse que o Brasil não era um país pobre, mas injusto. Esta injustiça vai além de extremas desigualdades; ela significa que uma parte importante da população está excluída da produção e do consumo modernos. O fim da estabilidade monetária destruiu aquilo que a população considerava sua principal proteção. A angústia e a revolta estão, pois, aumentando, o que diminui ainda mais a capacidade de ação do sistema político. Mesmo se as comunidades de base, a teologia da libertação e o extremo radicalismo político estejam em recuo, em particular por causa do fim do modelo soviético e cubano, a consciência de que uma parte da população é, ao mesmo tempo, sacrificada e não representada é muito difundida. Ela dificilmente se exprime em termos políticos ou sindicais, mas é difusa e manifesta-se sobretudo pela perda de confiança no governo.

O Brasil não parece estar à procura de uma terceira via à moda inglesa ou alemã, mas, ao contrário, existe uma polarização crescente entre, de um lado, os que participam da sociedade mundializada, e, de outro, os que são por ela rejeitados. Entre os dois, as classes médias, que estavam largamente apoiadas sobre o Estado, estão cada vez mais descontentes com uma política da qual se consideram vítimas.

É possível inverter esta situação e criar no Brasil uma forma particular de terceira via, tão freqüentemente mencionada na Europa? Os intelectuais não parecem dispostos a criar uma tal ideologia. Eles dividiram-se em dois grupos. Alguns se profissionalizaram ou mesmo, mais raramente, estão perdidos na máquina complexa de economia mundializada; outros estão dilacerados entre a nostalgia dos combates passados e sua vontade de sair deste passado sem olhar para trás, com os olhos baixos, às vezes sofrendo, às vezes procurando no novo Presidente um bode expiatório, às vezes defendendo simplesmente os interesses de sua categoria profissional, que julgam estar sendo ameaçados. Os que se esforçam para compreender o que se passa, em tal ou qual parte do mundo, sobretudo nos últimos dez anos, sentem que mergulham seu olhar num buraco negro. Procuram atores da história, vencedores ou vencidos, dominados ou dominantes, e não vêem nenhum. Vêem apenas redes de informação, defesas identitárias, consumações vazias de sentido ou a pobreza que não conduz à revolta: estas são as quatro partes da sociedade que conseguimos extrair do vazio sobre os qual estamos inclinados. O barulho nos atordoa, mas não escutamos nenhuma voz, como escutamos ainda as vozes desaparecidas de Jan Pallach ou de Che Guevara, ou como vemos ainda o homem de camisa branca de Tien-an-Men ou Vinícius Caldeira Brandt torturado em São Paulo. Vivemos um eclipse de história, e o ato mais inteligente que podemos praticar, dizem muitos, é o de aceitar nossa impotência, rejeitar tanto a ideologia otimista da globalização quanto a ideologia mentirosa do apelo às massas populares, que se tornaram fantasmáticas.

Tendo chegado a este ponto, que parece distante da análise que me foi pedida, devo dizer que creio ao contrário ter-me aproximado dela. Em nome de que, em nome de qual sentido da história, qualquer um de nós pode dizer que conhece atores que não vê, e que pode falar em seu nome? É para evitar que ouçamos juízos tão arbitrários que vou tão longe. É possível e necessário analisar os mecanismos de uma crise econômica e financeira, os processos de decisão política, os interesses dos Estados Unidos e da Fundo Monetário Internacional, mas devemos também pensar a situação brasileira, assim como outras situações, a partir de atores sociais, de suas demandas, de seus conflitos e sobretudo de sua capacidade de agir. Ora, esta é, no conjunto, tão fraca que é quase impossível detectar a existência de atores sociais. Não há senão a extrema repressão que abafa as vozes e estamos mesmo convencidos que conseguimos sempre ouvir a voz de um Spartacus, de um negro clandestino ou de um fuzilado. Mas estamos num momento no qual as ideologias, as representações, as palavras, dissolveram-se e no qual um mundo puramente econômico, onde as informações circulam em tempo real, faz com que desapareçam as vozes e os atores sociais. Existem sons, gestos, gritos, mas eles não formam mais frases, e, quando acreditamos decifrá-las, é como se reaprendêssemos uma língua desaparecida. É certo que não existe silêncio completo e durável das sociedades; mas no final de um século XX dominado por discursos, ideologias, sistemas de uma força excepcional, ensurdecedora, vivemos um momento - que só pode ser muito breve - no qual só ouvimos o ruído dos buldozeres que evacuam as ruínas deste universo sonoro e onde não percebemos o barulho fundo das miríades de informações que são trocadas a cada instante, e que não se referem mais a atores sociais do que o fazem as ondas do mar.

O que nos conduz à nossa interrogação central: há ainda um espaço e um tempo do possível? Mais concretamente, os dirigentes políticos, econômicos e intelectuais ainda têm uma responsabilidade? E, se possuem um certo espaço de escolha, eles decidiram bem ou mal? Não falo aqui daqueles que denunciam os poderosos em nome de um discurso que outros já denunciaram e nem daqueles que não crêem senão na ação econômica racional. A questão é: como se pode restabelecer a comunicação entre uma economia cada vez mais mundializada, instituições políticas nacionais ou locais e as demandas ou protestos sociais e culturais? Tudo parece vir do alto, enquanto embaixo só se vê confusão e violência. Trata-se de saber se podemos encontrar sentido embaixo e transmiti-lo para o alto, ampliando o mais possível o campo do político.

Meu juízo é que FHC, absolutamente consciente do desaparecimento dos antigos discursos e muito afastado da ilusão liberal - segundo a qual os problemas se resolvem tanto melhor quanto menos neles se intervém - quis estender o possível, ou seja, reconstruir o político e mesmo construir a democracia num país que tinha permanecido freqüentemente distante dela. Esta opinião pode surpreender, já que se critica o sociólogo-Presidente por ter abandonado suas idéias e aceitado a ditadura do mercado. Para explicar o erro desta crítica e minha própria interpretação, é preciso examinar a história intelectual e profissional de FHC.

O pensamento político da América Latina foi dominado, durante quase meio século, não pela oposição entre liberais e intervencionistas mas pela oposição entre duas versões da teoria da dependência. Esta noção, com efeito, fornecia de uma maneira evidentemente pertinente uma análise da realidade latino-americana, da dualização entre a economia e as sociedades. Os teóricos "radicais" da dependência afirmaram que ela era tão grande e tão completa pelas manipulações dos dominadores, sobretudo estrangeiros, que não poderia haver ação social "consciente e organizada". Indo ainda mais longe, os teóricos e práticos do Foco revolucionário e das guerrilhas não acreditaram senão na ação de vanguardas móveis, cuja eficácia parecia ter sido demonstrada pelo sucesso de Fidel Castro em Cuba, e das quais Che Guevara havia sido o mártir apaixonadamente admirado. Nenhum movimento de massas é possível, dizem os radicais, pois as massas são corrompidas pela demagogia, pelos políticos do aparelho ou por agentes corruptos estrangeiros. As instituições democráticas não merecem nenhuma confiança pois são factícias ou corrompidas. A espada deve encontrar a falha na couraça; a Kalanichnikoff deve estourar a malha mais fraca da dependência. Este pensamento e as ações por ele animadas nunca foram dominantes, bem ao contrário, mas foram amplamente aceitos, em particular pelos intelectuais e os jovens que queriam uma revolução ao mesmo tempo necessária e impossível, um movimento popular libertador, mas que nunca se aproximaria do poder e de suas tentações. Este pensamento e estas ações tiveram e guardam uma forte realidade histórica, pois são formadas em sociedades nas quais uma parte importante da população é proletarizada, excluída, privada de terras e de direitos, população de colonizados ou de excluídos. A América Latina foi marcada em todas as partes de seu corpo por esta paixão pela ação impossível, pela mistura entre análises que pretendiam ser objetivas e um espírito de sacrifício extremo, pela crença portanto numa ação sem autor, numa salvação dada aos homens marcados por um pecado original, confinados numa sociedade que os reprime, pune e engana. Este pensamento foi particularmente forte na Argentina e no Uruguai, na Venezuela, México e Guatemala. Em Cuba, ele se impôs rapidamente afastando o movimento de massas de 26 de julho, que era forte sobretudo em Havana. No Brasil, este pensamento exerceu também uma grande influência sem contudo conseguir se impor.

Pois foi no Brasil e no Chile, unidos pela presença de muitos exilados brasileiros, que se expressou com mais força o que podemos chamar de teoria política - e portanto não radical - da dependência. E foi FHC quem, diretamente ou associado a Enzo Faletto, exprimiu-a de modo mais forte. Em nome de um raciocínio simples e forte: sim, a dependência é uma dimensão que está sempre presente em nossa existência, mas, as relações de classe também estão sempre presentes bem como o conflito entre a integração nacional e os poderes locais. A vida social e política é tridimensional; e como seus eixos se cruzam ao invés de serem paralelos, existe sempre, em torno de seu cruzamento, um espaço político, autônomo, espaço do possível e da decisão. Esta autonomia do político, esta afirmação do possível me parece ter sido de maneira constante, e até hoje, a principal afirmação intelectual de FHC, e sua formação marxista explica em boa parte este conteúdo de seu pensamento. Aqueles que deploram a transformação de um intelectual marxista num político liberal sustentam um discurso que combina em poucas palavras todos os erros e contra-sensos possíveis. De início - é a observação mais simples - porque, exceto em regime autoritário, o pensamento de um intelectual não pode transformar-se em programa político. Este deve obter uma maioria e o voto popular nunca corresponde a uma idéia, mas a alianças complexas e à expressão de interesses e convicções muito diversas. Em seguida, porque não se pode situar uma política a não ser no interior de um espaço político e de um espaço do possível. Um intelectual ou um ativista que contestam o conjunto de uma situação não podem ser considerados como de esquerda ou extrema-esquerda se não querem mais referir-se ao sistema de decisões possíveis. Eles fecham-se, seja na extrema-direita, seja na extrema-esquerda, o que é bem diferente.

A partir desta constatação principal, a fraca capacidade política do Brasil atual, como se pode analisar o uso que dela se fez durante a primeira presidência de FHC? Ouvimos falar em Third Way na Grã-Bretanha, na Alemanha, e, em certa medida, na Itália, mas não na França, na qual a "esquerda plural" se define de modo diferente e onde se ouviu um Cohn Bendit opor a terceira esquerda à terceira via. Outros governos, como o de Aznar na Espanha, declaram-se de direita, mas suas práticas não estão muito longe das políticas do tipo inglês. O Chanceler Schröder representa bem a instabilidade, a fragilidade de uma ação rejeitada de um lado pelo patronato e seus aliados partidários do modelo americano, e, de outro, por uma parte importante do SPD, apoiado sobre o DGB e também pelos verdes, eles mesmos divididos entre "fundis" e "realos".

Pode-se estabelecer uma tipologia comparável na América Latina? E onde situar FHC nesta tipologia e em relação à tipologia européia? Estas duas questões exigem respostas que é preciso formular claramente antes mesmo de justificá-las. Em primeiro lugar, o espaço do possível é muito mais limitado na América Latina do que na Europa e, em segundo lugar, no espaço do possível no Brasil, FHC situa-se no centro, ou no centro-esquerda, e não no centro-direita. É permitido àqueles que têm uma concepção diferente da esquerda dizer que a ação de FHC, julgada segundo seus critérios pessoais, é uma política de direita. Mas aqui estamos no domínio da opinião, e não no da análise.

A primeira afirmação é a mais importante, razão pela qual abordo o tema da fraca capacidade de ação política nas democracias latino-americanas desde o início deste texto. A fragmentação da sociedade, as desigualdades no próprio interior das grandes categorias sociais (por exemplo, os salários na indústria), a importância do que se denomina agora o "precariato", para distinguir do salariato, vêm completar a fraqueza do sistema político que é muito grande no Brasil, menor no Chile ou até mesmo na Argentina, mas que é um traço dominante do Continente. Os países parcialmente desenvolvidos, como o são o Brasil, o México ou a Índia, são ao mesmo tempo muito dependentes dos mercados financeiros internacionais, muito divididos em grupos regionais ou de interesses, dispõem às vezes de uma administração pública insuficiente; tudo isto limita a capacidade de ação do Estado. No caso brasileiro, esta fraqueza é aumentada pela forte realidade de um Estado Federal, enquanto que o federalismo mexicano concentra mais poder e recursos nas mãos do governo central. A importância das empresas públicas é também - como na França ou na Itália - um elemento de enfraquecimento de um Estado que se torna responsável de uma má gestão freqüente. Contudo, o Brasil deu tanta importância ao setor público que hoje em dia ainda a Petrobrás não é equivalente à Pemex e que, antes da privatização, a Vale do Rio Doce era considerada como uma empresa dinâmica. A dissociação entre a sociedade política e a sociedade econômica é muito grande apesar de uma forte participação eleitoral. Um número cada vez maior de interesses é associado ao funcionamento da economia internacional e, inversamente, muitos pobres e excluídos dependem mais de poderes locais, legais ou ilegais, do que do Estado central. Enfim, já se falou das razões que levaram os intelectuais a procurar reduzir, mais do que ampliar, o campo das políticas possíveis. Mas, o mais importante é, ao contrário, que o Brasil é um país relativamente firme sobre si mesmo, em grande parte por causa da dimensão de seu território e de seu mercado interno, o que é uma das explicações para o fato feliz de que a desvalorização não tenha desencadeado uma nova inflação. A grande maioria dos brasileiros continua a viver num espaço mais brasileiro do que mundial. A diferença é grande em relação ao México, sobretudo depois da entrada em vigor da NAFTA, como também à Argentina, país tradicionalmente exportador e que conheceu, depois do plano Cavallo, reformas estruturais muito mais rápidas do que o Brasil. A importância do Brasil como grande potência econômica explica o temor que sua crise monetária inspirou no sistema financeiro internacional; mas o Brasil não é, não mais do que o Japão, um país determinado pelo exterior. Observação inseparável daquela que já foi feita e que parece ir no sentido oposto: a margem do possível no Brasil é limitada, com efeito; mas por razões mais internas do que externas.

Resta definir mais concretamente este campo dos possíveis a fim de situar a primeira presidência FHC. As observações precedentes indicaram que este campo era mais reduzido na América Latina do que na Europa -como era também mais fraco - e que seu ponto de equilíbrio é pois "a direita", mais próxima ainda dos programas liberais do que na Europa. De fato, a tendência mais forte em todos os países cuja economia foi durante muito tempo dominada pelo Estado é a abertura, a liberalização, a privatização, enquanto as posições de "esquerda" se situam fora de prumo, ou até mesmo, como na quase totalidade do Continente, são marginalizadas. Dizer que FHC vendeu sua alma ao aliar-se ao PFL, portanto, à direita, é um estranho equívoco. Pois é exatamente a centro-direita que era e ainda é a solução mais possível para a América Latina, ou seja, a prioridade dada à eliminação das barreiras, à abertura e à competitividade da economia mundial. O que só vem a reforçar a posição dos que, diferentemente dos precedentes, reconhecem o peso político importante do PFL, mas assinalam que ele não é muito liberal quando se liga a um Estado do qual quer utilizar a política de liberalização em seu próprio favor. A posição de centro é aquela que dá prioridade ao fortalecimento do Estado, aperfeiçoando o seu funcionamento e ao mesmo tempo diminuindo seus encargos, ou seja, fazendo uma reforma administrativa. Esta prioridade dada ao fortalecimento do Estado é verdadeiramente "centrista", no sentido em que este fortalecimento é um objetivo necessário para todos os países, todos ameaçados pela desagregação de sociedades divididas entre a mundialização da economia e a fragmentação de uma sociedade da qual uma parte importante está na informalidade, tanto de maneira legal ou para-legal, quanto no campo ilegal - o do contrabando, do tráfico de armas e sobretudo de droga. Cardoso compartilha com muitos dirigentes do Continente a convicção da necessidade e da extrema dificuldade de uma reforma do Estado que exige tocar no estatuto da função pública e no sistema de aposentadorias. Não é aceitável considerar uma tal política como dirigida aos interesses da maioria e, ao mesmo tempo, considerá-la reacionária. Pode-se, ao contrário, considerar que os países da América Latina, e o Brasil em particular, têm necessidade tanto de uma transferência de recursos das categorias médias para as categorias pobres quanto de uma taxação fiscal mais importante e mais eficaz sobre as rendas elevadas. Mas, uma política de centro-centro viria um pouco tarde pois esta classe média pública ou apoiada pelo Estado já perdeu grande parte de seus recursos e de sua influência. O que explica seu descontentamento, em particular contra FHC, acusado de querer enfraquecê-la mais ainda. Esta categoria social tinha sido o elemento principal da aliança entre classes médias e populares que definia os regimes nacional-populares. Na realidade, só uma parte das classes populares entrava nesta aliança - a que, no Brasil, era protegida pelas leis sociais - e, da mesma maneira, apenas as classes médias direta ou indiretamente associadas ao Estado haviam participado ativamente neste tipo de regime. Atualmente, estas categorias perderam muito terreno, por razões ao mesmo tempo políticas - durante a ditadura militar - e econômicas. Podemos pois nos perguntar se o tema da reforma do Estado não recebe uma prioridade artificial e não serve senão para cobrir o poder crescente das empresas ligadas mais diretamente ao mercado do que ao Estado. Isto é o que pensam aqueles que, numerosos, classificam o governo FHC como de centro-direita, para não dizer de direita.

Em que pode consistir a vertente centro-esquerda deste espaço político reduzido? Digamos, de início, que não há política de esquerda na América Latina e que há mesmo poucos pretendentes ao exercício de uma tal política. O Uruguai é um dos raros países onde um partido político afirma sua vontade de romper com uma política de acordo com os dois grandes partidos cuja aliança se situa com efeito na centro-direita. Esta declaração, que pode parecer brutal, é apenas a conseqüência do que foi dito: o laço entre as forças sociais populares organizadas e certos partidos políticos quase não existe em nenhum lugar. Considerar, no México, o PAN como de direita, o PRI como centro e o PRD como esquerda é um equívoco, como mostram as pesquisas atuais sobre o acordo entre o PAN e o PRD, ou ainda a semelhança entre os meios pelos quais os diferentes partidos utilizam, quando podem, os recursos do Estado. Centro-esquerda, portanto, e não esquerda.

O argumento que situa FHC na centro-esquerda porque durante sua presidência o fim da inflação melhorou o nível de vida popular e portanto diminuiu as desigualdades sociais e regionais não é válido, já que a razão de ser do Plano Real era a luta contra a inflação, e que a melhora do nível de vida popular foi uma conseqüência importante e desejada deste plano, mas não sua causa explicativa. Contudo, esta classificação de FHC na centro-esquerda me parece exata, mas por razões menos diretas e menos maciças. Tony Blair considera-se de centro-esquerda porque quis acabar com a política puramente liberal de Madame Tatcher e seu fraco sucessor. Ele proclamou a grande necessidade de dar prioridade aos problemas da educação e da saúde; podemos ter nossas reservas quanto à apreciação da política inglesa real, que continua a dar uma forte prioridade às exigências da economia internacional. Mas não se pode negar a diferença, muito bem percebida pelos eleitores ingleses, entre Tony Blair e seu predecessor. FHC agiu, em situações em que era tão mais simples levar a efeito uma política de pura liberalização, mantendo uma política que permitia aos atores sociais apoiarem-se no Estado. Deve-se mencionar, por exemplo, a política de Paulo Renato no domínio da educação; mas, antes de tudo, a possibilidade de reconstruir um sistema aberto, ou seja, democrático, de decisões políticas e sociais, que seja melhor no final da presidência do que no seu começo. Nada foi resolvido, mas as relações com a CUT melhoraram e sobretudo o PT, apesar das divisões, torna-se lentamente, muito lentamente e muito parcialmente, um partido de governo. Muitos homens políticos brasileiros, no Rio como em Brasília, em Porto Alegre e em outras cidades, falam da urgência de reorganizar a vida política no quadro da nova política econômica. Aqueles que classificam FHC entre os de direita ou mesmo que o acusam de traição possuem uma linguagem sem conteúdo já que não existe um só país no mundo que feche sua economia aos fluxos internacionais. Podemos ficar indignados com as privatizações, mas deve-se dizer que o governo Leonel Jospin na França é um governo de direita porque privatiza, e considerar Massimo D'Alema, ex-dirigente comunista italiano como um renegado porque aplica o Tratado de Maastricht? Seria suficiente reconhecer que num período de vida política e mesmo de grande pressão econômica exterior, FHC não escolheu a mesma política do Presidente Menem, por exemplo, para lhe atribuir este lugar na centro-esquerda que lhe é recusado com violência por aqueles que permanecem ligados, de maneira estimável mas irrealista, a um quadro de análise que não existe mais há vinte anos. Para melhor compreender este julgamento, não o consideremos como um juízo de valor. Pode-se considerar que a política argentina, em particular depois do plano Cavallo, permitiu uma transformação mais rápida e mesmo que deu mais certo do que a do Brasil. A imagem de FHC liberal em sua ideologia e em sua ação está longe da realidade. De modo mais justo, poderíamos assinalar que todos os aspectos de um desenvolvimento "hacia adentro" ainda existem no Brasil, país onde numerosas fronteiras avançam, frentes de produção se deslocam rapidamente, país que é muito menos o do café do que o foi nos anos anteriores. Para o melhor e para o pior, economicamente, burocraticamente, culturalmente e politicamente, este país permanece muito mais voltado para si mesmo do que para grandes horizontes. Pode-se mais facilmente compará-lo aos Estados Unidos pela importância predominante de seu mercado interno do que à Inglaterra vitoriana. O que explica o fraco espaço político deixado a um candidato de direita à Presidência, como era o caso de Paulo Maluf, cuja influência era reduzida fora de São Paulo. Acrescentemos enfim que no Brasil, como em outros países do Cone Sul que sofreram ditaduras militares, um programa de direita aparece retrospectivamente em oposição ao movimento democrático que finalmente triunfou.

Mas não criemos mal-entendidos. Esta reconstrução política e social é agora cada vez mais possível, ao mesmo tempo que necessária. Mas, ela ainda não foi realizada. Contudo, o juízo que se refere à primeira presidência de FHC deve ser orientado pela seguinte observação: o Brasil, no momento do Plano Real, era obrigado a levar uma política técnica que, de fato, deixava para mais tarde o tratamento dos grandes problemas sociais. Estes problemas não foram resolvidos, mas o Brasil agora efetuou uma mudança de época histórica. Não somente saiu do voluntarismo civil ou militar, não somente escapou de uma política fortemente liberal seja à maneira de Salinas, seja à maneira de Fujimori, mas começou a reconhecer que seus principais problemas são internos e, portanto, que as soluções a serem encontradas devem sê-lo no país, e pelo jogo das reivindicações sociais e das iniciativas políticas. Certamente, os atos essenciais desta Presidência ainda consistiram em acabar com os perigos prementes, por meio de uma ação governamental e sem mobilização popular. A crise monetária que explodiu no final da Presidência havia sido retardada, pois o governo temia, ao desvalorizar a moeda, desencadear a inflação que havia sido tão difícil de controlar, e ainda temia quebrar o pacto de confiança que havia sido estabelecido entre o Presidente e o povo. Se esta crise foi, no total, tão rapidamente superada, foi por causa da força da economia brasileira, cujo mercado interno é bastante forte para limitar a dependência em relação ao dólar; foi também e sobretudo porque a comunidade financeira internacional manifestou sua confiança em FHC, única personalidade latino-americana que dispunha de um grande crédito pessoal junto aos dirigentes financeiros e políticos. Seria paradoxal não reconhecer que esta Presidência abriu-se com uma queda vitoriosa da inflação e fechou-se com a limitação e o controle de uma crise de causas profundas e sobretudo nacionais, mas que poderia transformar-se em crise mundial.

Estes fatos mostram a que ponto a capacidade de ação política do Brasil permanece limitada e mesmo teria podido reduzir-se mais ainda. Parece-me todavia que no Brasil, como antes no México e amanhã provavelmente no Chile, impõe-se enfim a idéia de que a sorte do país depende, antes de tudo, de sua própria capacidade de elaborar e de levar a efeito uma política e, portanto, de ampliar e reorganizar a vida política. O trajeto a ser percorrido é longo e difícil, como havia sido depois da guerra a passagem do desenvolvimento orientado para o exterior ao desenvolvimento voltado para o interior. O caminho inverso, a abertura das fronteiras e o fim do intervencionismo de Estado, pode ser operada mais brutalmente, mas ao preço de uma grande decomposição das forças políticas, deste enfraquecimento da capacidade da ação política que é o tema central deste texto. É impossível afirmar que o balanço da primeira presidência, deste ponto de vista, seja claramente positivo; mas é importante de início afirmar que ele não é negativo, enquanto que poderia tão facilmente sê-lo. O que conduz a formular a hipótese de que a segunda presidência pode ser a do renascimento da vida social e política, logo, do aumento da capacidade de escolha e de ação políticas. Este renascimento só produzir-se-á se, em todos os níveis da sociedade, formarem-se novos atores. Mas, à medida que eles se formarem encontrarão diante de si uma situação muito mais favorável à ação, graças à gestão e ao governo FHC.

O que supõe uma grande reabertura do campo político, associada a uma grande capacidade de mobilização social. Não é concebível que o silêncio mundial dure muito tempo ainda. É certo que ele durará se as reivindicações forem recobertas por declarações repetitivas contra a globalização como outrora contra o imperialismo. Mas o aumento das desigualdades, o desemprego e a precariedade, a predominância dos interesses financeiros sobre todos os outros fatores de produção não podem, após um longo período de decomposição das ideologias, não fazer nascerem reivindicações, críticas mais amplas, contra-projetos de governo. A margem de ação possível, eu repito, é mais estreita na América Latina do que na Europa, o que explica o silêncio de Cuhautemoc Cárdenas no México, ou a abertura muito liberal do candidato socialista à presidência do Chile, Ricardo Lagos. Mas estas ações bastante limitadas e que parecem mesmo sem brilho, ganham relevo quando as comparamos às de seus adversários políticos, em particular no caso chileno. No Brasil, como aliás na França - mas não na Itália - um dos fatores que limitam a evolução do centro para a centro-esquerda é a força, por certo declinante, mas ainda importante, dos quadros de pensamento e de ação de uma esquerda que permanece ligada ao período da guerra fria, pelo menos em sua condenação em bloco de uma situação econômica da qual ninguém contudo acredita que se possa sair, mas que se pode certamente transformar. É esta fraqueza atual dos atores sociais que explica também que o MST, que foi no começo um movimento social, tenha passado rapidamente para o controle de dirigentes políticos e religiosos mais ligados a uma contestação global do que a uma ação propriamente social. Mas, no mesmo momento, o ressurgimento das reivindicações se faz mais pela luta contra a desintegração social do que por uma contestação geral do sistema econômico mundial. A violência e a insegurança, o desemprego e as diferenças extremas entre as rendas, que atingem os mais fracos, ameaçam também a própria nação. É esta defesa social da nação, mais distante possível de qualquer nacionalismo, que será e já é o tema das novas reivindicações. É o caso também do México, onde as ONGs proliferaram desde o terremoto de 1985 e os escândalos que foram denunciados nesta ocasião. A eleição triunfal de Cárdenas no distrito federal deveu-se a este tipo de inquietudes e reivindicações. A marcha do MST organizada em abril de 1997, e que chegou em Brasília no dia 17, tinha mostrado uma grande integração entre os temas da reforma agrária e os do emprego e da justiça, que figuravam no mesmo plano no movimento. De seu lado, o movimento nacional dos meninos e meninas do Rio de Janeiro chamou a atenção para a crise urbana e o emprego. A opinião pública brasileira e internacional foi muito sensível a estas ações, assim como ficou impressionada pelo livro de fotografias de Sebastião Salgado sobre os camponeses - com o apoio de Chico Buarque e textos de José Saramago. Mesmo se a maior parte das ONGs urbanas são sustentadas por fundos estrangeiros, pode-se concluir com Maria Glória Gohn1 1 Os sem-terra, ONGs e cidadania. São Paulo, Cortez, 1997. , que o tema da cidadania tornou-se central nos movimentos populares. Transformação profunda: ao invés de rebeliões armadas que se consideravam a serviço das categorias menos favorecidas, vê-se a formação de movimentos de massa que se associam a uma vontade de democratização de todo o país, ao mesmo tempo que a afirmação dos direitos das categorias desfavorecidas. Pode-se aqui fazer uma aproximação com os movimentos indígenas do Norte do Continente, e, em particular, com o movimento zapatista de Guapas, que é o contrário mesmo da guerrilha já que associa a defesa dos povos maias à democratização da política mexicana. A fragilidade deste movimento não o impediu de suscitar em torno dele um vasto movimento de apoio mexicano e internacional. O Brasil, durante muito tempo, foi definido pelos geógrafos como um arquipélago; ele torna-se um continente. Seus problemas internos de integração são cada vez mais importantes e, conseqüentemente, a ação política dos dirigentes é considerada como cada vez mais indispensável para resistir às ameaças internas e externas que pesam sobre o país. Não subestimemos a crescente integração do território associada a um vivo movimento de urbanização que de início conduziu à constituição de grandes megalópoles e que, mais recentemente, no interior do Estado de São Paulo em particular, conduziu ao grande desenvolvimento de cidades médias do interior.

Estas tendências à integração - e a consciência de sua necessidade - não são somente os produtos da ação do Presidente, mas convergem com a vontade de reforçar em Brasília o poder central diante de uma autonomia ampla demais dos estados e municípios que acaba por deixar ao encargo do estado federal as más gestões locais sendo responsável também por atos de violência. Muito tardiamente, mas agora de modo acelerado, o velho Brasil, aquele da aliança entre o poder central e os grandes chefes provinciais é substituído por uma integração maior do país, ao mesmo tempo que sua economia se integra mais à economia internacional.

A evolução do Brasil durante a segunda presidência de FHC far-se-á provavelmente no sentido de uma abertura do campo político associado a um ressurgimento das ações sociais coletivas e conseqüentemente de um fortalecimento necessário da capacidade política do país, em particular do Presidente. Do mesmo modo que se compreende facilmente aqueles que condenam FHC porque ele está cada vez mais afastado da principal tradição da esquerda latino-americana - constatação exata, mas que pode ser tanto debitada quanto creditada ao Presidente - assim também deve-se assinalar que FHC, durante sua primeira presidência, não encorajou absolutamente o vazio social ou político. Constatação menos limitada quanto pode parecer, já que o Brasil, como outros países, sofre de um atraso político, ou seja, de uma confrontação de ideologias e de práticas políticas antigas com um capitalismo profundamente transformado em todos os seus aspectos e em todos os seus níveis. Esta constatação é compartilhada pela grande maioria dos analistas. Pouco importa que uns façam suas críticas aos dirigentes do poder, outros às redes financeiras internacionais, outros ainda às forças nacionais de oposição. Estas divergências de interpretação não atingem a unidade profunda das análises. Pode-se censurar FHC, como todos os dirigentes políticos oriundos da esquerda, por ter situado sua ação num sistema econômico internacional aberto e não controlado, numa palavra, num sistema capitalista. Com efeito, vivemos, há dez ou vinte anos, dependendo do país, um novo período do capitalismo triunfante, e seria natural que se formassem novos movimentos sociais e políticos anticapitalistas, se definimos bem o capitalismo como um modo de desenvolvimento comandado pela autonomia e mesmo a dominação dos detentores de capitais em relação a todas as formas de intervenção públicas que têm outras finalidades que não são o fortalecimento deste capitalismo. Mas é preciso que a crítica de um modelo mundial de desenvolvimento se transforme em pressões em favor de reformas sociais internas. O que não foi feito quase em nenhum lugar mas que é indispensável em toda parte. Um dirigente de centro-esquerda é aquele que cria as condições favoráveis a esta mobilização "hacia adentro". No final do primeiro grande período de triunfo do capitalismo na Europa do século XIX, surgiu, sobretudo nos países latinos, um radicalismo político que se inspirava nas idéias da Revolução Francesa, mas que afastou-se cada vez mais do movimento operário nascente. Da mesma maneira hoje em dia, os discursos inspirados nas ideologias do movimento operário são cada vez mais deslocados em relação às realidades econômicas e ao mesmo tempo em relação às novas reivindicações sociais e culturais, seja que estas se refiram ao emprego, à desigualdade das mulheres, à defesa do meio ambiente ou às minorias. A América Latina em seu conjunto conheceu constantemente o que Marx criticava na França do século XIX: a ilusão política. A predominância extrema da iniciativa política sobre a mobilização social explica a crise profunda das formas e das forças de oposição sociais e políticas, a diminuição da capacidade de intervenção política em todos os Estados, o enfraquecimento marcante do papel dos intelectuais assim como dos sindicatos. Tudo o que fizer a crítica e a análise desta fraqueza da ação política é justificado, mas tudo o que tende a agravar mais ainda esta fraqueza em nome de discursos e programas sem relação com o campo de ação possível deve ser criticado mais fortemente ainda. Se faço um juízo mais favorável do que outros sobre a primeira presidência de FHC é porque, durante estes anos, o Brasil se aproximou do realismo político sem ceder às ilusões liberais nem aos discursos denunciadores rituais. Pouco a pouco, a sociedade brasileira toma consciência de si mesma. A conjuntura poderia levar a fraqueza política a um ponto extremo e colocar em perigo a democracia, como se vê em vários países do Continente. FHC nunca cedeu a tais tendências; sua presidência, que, talvez, foi menos sua do que do real, vai permitir à segunda presidência ver se reconstituir a ação social e política, da qual, aliás, não é certo que o Presidente atual seja o beneficiário.

O que eu quis mostrar aqui é a necessidade de avaliar um governo, um regime e um Presidente em função da capacidade de ação dos quais eles dispõem e julgá-los antes de tudo a partir dos efeitos favoráveis ou desfavoráveis de sua ação para o aumento desta capacidade de intervenção política. É deste ponto de vista, distante de qualquer julgamento ideológico tanto quanto independente de uma avaliação puramente econômica, que o balanço da primeira presidência de FHC me parece "globalmente positivo", o que não está em contradição com o julgamento inverso daqueles que avaliam esta presidência seja do ponto de vista de suas convicções tradicionais, seja do ponto de vista do funcionamento do sistema econômico. Mas o papel da sociologia, assim como da ciência política, é o de analisar os personagens, as instituições e os autores coletivos do ponto de vista de seus efeitos, positivos ou negativos, sobre a capacidade da sociedade de agir sobre si mesma.

Recebido para publicação em agosto/1999

  • 1
    Os sem-terra, ONGs e cidadania. São Paulo, Cortez, 1997.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Out 1999

    Histórico

    • Recebido
      Ago 1999
    Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
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