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Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano

RESENHAS

Caleb Faria Alves, Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano. Bauru, Edusc, 2003, 344 pp.

Ferdinando Martins

Doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo

Em artes plásticas, a expressão just milieu é utilizada para fazer referência aos pintores que ficaram no meio do caminho entre as manifestações acadêmicas do século XIX (do neoclássico às vertentes do impressionismo) e as vanguardas do início do século XX. Entende-se que o que caracteriza a produção desses artistas é um certo descolamento das discussões em torno do fazer artístico da "arte pela arte", o qual, por sua vez, teria engendrado debates no campo cultural, possibilitando assim o surgimento da crítica de arte como a conhecemos hoje, mas sem fazer eclodir, no entanto, qualquer reação suficientemente febril e virulenta para romper com a tradição. Como toda definição, a expressão pode tornar-se um lugar-comum ou um conceito guarda-chuva, capaz de abrigar generalizações que não dão conta das particularidades de cada caso.

O livro Benedito Calixto e a construção do imaginário republicano, de Caleb Faria Alves, vem justamente tratar da singularidade de um artista que é, tradicionalmente, arrolado na "longa lista de pintores englobados pelo termo just milieu" (p. 277). Para tanto, o autor veste-se de uma armadura conceitual extraída da sociologia francesa, fortalecida com contribuições vindas da fotografia, da arquitetura, do urbanismo, da etnologia, da ciência política e da história intelectual. Alves arregimenta conhecimentos diversos, costurando-os com o que Maria Arminda do Nascimento Arruda chama, no prefácio da obra, de "fina artesania" (p. 17).

O resultado não poderia ser menos denso. Mesmo operando com um recorte específico, o livro traça um panorama das mudanças ocorridas no campo das artes plásticas no Brasil entre a Proclamação da República e a Semana de Arte Moderna de 1922, datas que contemplam as transformações verificadas desde a débaclê da Academia Imperial de Belas Artes, que com a República passa a ser chamada de Escola Nacional de Belas Artes, até o evento no Teatro Municipal de São Paulo, que alinhou as aspirações de certos artistas da vanguarda brasileira com os eflúvios modernistas que emanavam da Europa.

Acompanhando a trajetória do pintor e historiador santista Benedito Calixto, Caleb Faria Alves revê a concepção existente de que a arte, nesse período, caracteriza-se por uma continuação do academismo nos mesmos moldes do ensino ministrado na Academia Imperial. O autor analisa como, nessa ocasião, a cidade de São Paulo se consolida como um dos principais mercados nacionais de obras de arte, ao mesmo tempo em que ocorrem mudanças com relação aos temas, à formação dos artistas, às fontes de financiamento e às maneiras de apreciar e consumir a produção artística. Nesse sentido, o pesquisador volta-se contra autores que afirmam que a República no Brasil não produziu uma estética própria nem buscou redefinir politicamente o uso da já existente.

Para Alves, a criação do Museu Paulista erige-se como marco fundante das mudanças acima elencadas, caudatárias em larga medida das proposições gerais do positivismo: "A República estava sendo construída a partir do receituário positivista. Calixto [...] conhecia as máximas positivistas e procurou propagandeá-las" (p. 295). Mesmo admitindo que na época a sociedade brasileira ainda não tivesse atingido o seu grau máximo de evolução, Calixto concebe o vitral do Palácio da Bolsa de Café em Santos como um libelo progressista que traduz a esperança em um país que caminha a passos largos para a sociedade da ordem almejada por Comte. Esse vitral é o último trabalho de fôlego empreendido pelo artista. Até chegar a ele, Caleb Faria Alves traça um percurso que vai do início da trajetória do pintor santista na carreira artística até o reconhecimento entre seus pares na fase madura.

O capítulo 1, "Ingressando na carreira artística", traz uma reconstrução minuciosa da biografia do pintor, relatando as mudanças no cenário paulista, a falta de capital cultural e social de Calixto e as flutuações do artista diante dos diferentes tempos do modernismo em São Paulo. Sua origem poderia relegá-lo a simples ilustrador ou, quando muito, a artesão, porém o livro nos mostra como a proximidade com os clubes dramáticos faz com que o pintor seja reconhecido pela sociedade santista, o que lhe aufere certo grau de distinção que possibilita sua vinda para São Paulo. Além disso, pequenos trabalhos propagandísticos fazem com que o artista se aproxime de comerciantes e políticos de Santos, o que lhe garante um aumento de capital social. Caleb Faria Alves distancia-se o suficiente para perceber as estratégias e os cálculos empreendidos por Calixto. Em São Paulo, ele se aproxima de Grimm e do desafio da pintura ao ar livre. A ousadia lhe confere uma aura vanguardista e lhe rende o prêmio de viajar à França nos inícios da década de 1880.

O capítulo 2, "Um caiçara em Paris", é um pouco problemático. O autor busca mostrar como o pintor refletiu o aprendizado realizado na França, mas parece que o ano passado na Academie Julian foi em vão. Em vez disso, Caleb Faria Alves atribui um peso muito maior à movimentação interna da Academia, em especial ao debate em torno de Manet e Courbet. Aqui caberia uma análise mais apurada dos quadros. Mais adiante, no capítulo 3, o autor destaca o abandono do fini como estratégia de oposição ao ensino acadêmico. Esse procedimento, no entanto, deve ter sido aprendido por Calixto na sua passagem pela França, uma vez que é traço distintivo da pintura de Manet e de outros impressionistas. O pesquisador afirma, todavia, que "não fazia sentido ser mandado diretamente à Europa por um barão do café, partindo do Estado berço do partido republicano, para seguir exatamente os mesmos passos dos agraciados com as bolsas de estudo concedidas pelo Governo Imperial; não fazia sentido, tampouco, se filiar a uma escola em franca oposição à república burguesa, sendo ele mesmo um protegido da burguesia paulista ascendente" (p. 122). Nesse momento, a obra centra-se no fato de Calixto ter sido financiado por barões do café e deixa de lado a movimentação interna do campo das artes plásticas, cujas mudanças nem sempre acompanham a conjuntura político-econômica. O capítulo carece, ainda, de uma definição mais precisa do naturalismo, sem a qual é impossível depreender algum significado sociológico para os termos "acadêmico", "romântico" e "realista".

No capítulo 3, "As fissuras da Academia", Alves polariza a discussão em torno das figuras emblemáticas de Pedro Américo e Victor Meirelles. A polarização é um procedimento válido como recurso explicativo, mas não reflete a complexidade do momento histórico e muito menos as relações internas do campo das artes plásticas. Por essa razão, o autor lança mão de outros temas que relativizam a discussão. Em especial, trata da posição da pintura de paisagem na hierarquia acadêmica, da emergência de um imaginário que valora positivamente as figuras do caipira e do caiçara, do gosto burguês pela cópia e da consolidação de São Paulo como pólo artístico da República, em oposição à centralidade do Rio de Janeiro durante o Império. Além disso, o texto traz ricas análises de quadros como Independência ou morte, de Pedro Américo, e Inundação da várzea do Carmo, do próprio Calixto.

No quarto e último capítulo, a discussão volta-se para as "Imagens da transformação", quando Calixto, já pintor maduro, desempenha um papel ativo na consolidação de um ideal republicano que inventa uma tradição para o Brasil a partir do Estado de São Paulo. É nessa fase que o pintor volta para as marinhas e, na pintura histórica, ganha relevância a paisagem da Serra do Mar. Seus trabalhos adquirem maior complexidade e valor, o que Caleb Faria Alves atribui a um novo estatuto do moderno característico das primeiras décadas do século XX. O colecionismo e a gestão de Taunay no Museu Paulista são determinantes para novas abordagens da história do Brasil, e Calixto submete seu trabalho artístico a suas pesquisas como historiador. No entanto, os novos hábitos visuais que já chegavam ao Brasil, em especial os decorrentes da pintura impressionista, relegam o artista a uma posição menos nobre no campo cultural.

É em função desse desvio — a perda de prestígio no interior do campo das artes plásticas — que Caleb Faria Alves constrói sua tese: o mérito do autor está em mostrar as contradições internas do campo, ao mesmo tempo em que relativiza essa movimentação em função da conjuntura político-econômica. O autor destaca que, mais do que um ideal republicano, Calixto tem uma maneira paulista de ver o Brasil, e os desdobramentos desse ato fundador marcam grande parte da discussão sobre as artes plásticas no país durante o século XX.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2007
  • Data do Fascículo
    Jun 2004
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