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Gabriel Cohn. Weber, Frankfurt: teoria e pensamento social

Cohn, Gabriel. Weber, Frankfurt: teoria e pensamento social. Rio de Janeiro: Azougue, 2017. 272

Gabriel Cohn. Weber, Frankfurt: teoria e pensamento social. Rio de Janeiro, Azougue, 2017. 272 pp.

Walter Benjamin escreveu certa vez que, quando um amigo estimado, culto e elegante lhe enviou seu novo livro, ele se surpreendeu ajeitando a gravata na iminência de abri-lo. É mais ou menos essa a atitude que o mais recente livro de Gabriel Cohn é capaz de suscitar nos seus leitores e leitoras. E não é só a bella figura do professor, de extrema gentileza e civilidade, que provoca essa disposição. A escrita apurada, o rigor teórico e a destreza analítica presentes no livro causam a impressão de que se está diante de um evento importante.

O professor emérito do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo é uma referência central no âmbito da teoria social no Brasil. Conhecido principalmente por seu trabalho sobre a sociologia de Max Weber, Crítica e resignação, publicado pela primeira vez em 1979, Cohn também é autor de textos fundamentais como Sociologia da comunicação: teoria e ideologia (1973) e Petróleo e nacionalismo (1968). Organizador de coletâneas como Comunicação e indústria cultural (1971), Cohn também teve um papel imprescindível na difusão da teoria crítica no Brasil pela via da tradução de inúmeros textos da Escola de Frankfurt, que incluem desafios como o livro Minima moralia, de Theodor W. Adorno. Traço este, aliás, do intelectual completo, de índole democrática, que não se limita à função de pesquisador e que, professor preocupado em garantir aos seus alunos não falantes de alemão o acesso a uma das vertentes mais ricas da teoria social, envolveu-se nessa atividade cada vez menos reconhecida no meio acadêmico que é a tradução. Seu trabalho como tradutor, portanto, e sua posição de intérprete de primeira linha dos mestres de Frankfurt e de Weber, bem como de intelectual do pensamento social brasileiro (como mostra seu livro sobre o petróleo), já seriam mais do que suficientes para incluí-lo na mais reluzente tradição crítica uspiana de Florestan Fernandes e Octavio Ianni. Weber, Frankfurt confirma o seu lugar do lado de seus mentores; paulistas e frankfurtianos.

Todos esses escritos, no entanto, se relacionaram de maneira indireta até aqui, ou melhor, prismática, se quisermos usar uma ideia cara a seu mestre Adorno. Em Weber, Frankfurt, porém, a coisa muda de figura e, mais do que contribuições isoladas às mais variadas áreas, encontramos um programa de pesquisa em teoria social que se desdobra em vários níveis e que permite reunir, sempre de maneira mediada, Ciência Política e Sociologia, Gramsci e Weber, Frankfurt e Brasil, Marx e o século XXI, objetividade científica e normatividade política.

O livro é composto por uma série de textos, alguns já publicados, com reformulações substanciais ou não, e outros inéditos. Esses ensaios, aparentemente desconexos, versam sobre os mais diversos temas: crítica da razão em Adorno e Horkheimer; música e racionalização em Weber; reflexões sobre temporalidade; apontamentos sobre dialética; conceitos weberianos de teoria política; tensões e convergências entre Gramsci e Weber; pensamento social brasileiro e o problema do desenvolvimento; observações sobre civilização, cidadania e barbárie; apontamentos sobre a sociologia; identidades; ideologia; indústria cultural e sociedade da informação. A pluralidade de temas não resulta, contudo, em desordem. Na introdução encontramos a informação de que “há um fio vermelho percorrendo o conjunto” dos textos (p. 10), o que lança certa suspeita de marxismo sobre nosso autor, sensação que vai se condensando ao longo do livro. No entanto, a sutura desse fio vermelho não consiste propriamente numa liga de natureza temática em torno dos conceitos de civilização, cultura, ideologia – como gostaria de sugerir o autor –, mas diz respeito a um projeto mais amplo, no âmbito próprio da discussão do método crítico em ciências sociais.

Teoria social comparada, mas sem leis gerais

A teoria social não é abordada nos textos de Cohn como um mero instrumento. Sob sua pena, ela é um modo de organização do mundo social, o qual se apresenta, por sua vez, como matéria de reflexão e jamais como dado bruto da realidade. Isso significa conferir à prática teórica estatuto de autonomia, o que não envolve bater em retirada em direção ao idealismo, mas, ao contrário, criar a possibilidade de penetrar de maneira incisiva no emaranhado de determinações sociais que constitui a empiria. A teoria social em questão se debruça sobre as fronteiras disciplinares da ciência política, da sociologia, da filosofia e da economia política – o que exige um domínio de diversas linguagens e conhecimentos, assim como rigor na pesquisa teórica. Ao esforço interdisciplinar, soma-se o ímpeto comparativo.

O método comparativo em sociologia tem em sua origem traços positivistas, no sentido do estabelecimento de determinações gerais que regem os fenômenos sociais. Trata-se de um tipo de investigação com vistas a indicar regularidades, deslocamentos e transformações. No âmbito das Ciências Sociais, ele foi uma via encontrada por Émile Durkheim para simular o método experimental, um meio, todavia, de garantir a objetividade do conhecimento científico. Não é esse o tipo de método comparativo mobilizado por Gabriel Cohn em seu conjunto de ensaios. O que temos em mãos se aproxima, em certo sentido, muito mais do uso dos recursos comparatistas em literatura. Talvez poderíamos até falar, com Benjamin, num método comparativo que opera por “constelação”. A comparação apresenta-se menos como recurso e mais como método sistemático; Gabriel Cohn reflete de maneira aderente aos textos, exercita-se em selecionar em cada autor um problema para então mostrar como esse problema ou conceito se insere não somente na própria teoria desse autor, mas como ele pode ser pensado em conjunto com o mesmo tema em outro praticante da teoria social. Cohn relaciona ainda as respectivas teorias ao seu momento histórico e às suas conjunturas políticas e nacionais. Parece fácil, mas não é. Esse exercício percorre todo o livro, mas é executado com maestria na comparação de Weber com Gramsci, um par, à primeira vista, bastante inusitado.

Nesse ensaio, intitulado “Weber, Gramsci e os modernos”, escrito exclusivamente para o livro e, portanto, inédito até então, Cohn percorre temas que atravessam as obras desses autores – e que exigem, pois, um conhecimento completo e transversal das mesmas: “poder como relação e como recurso”, “Economia e política”, “hegemonia e dominação”, “supremacia e Gewalt”, “Estrutura e ordenação da ação”, “desenvolvimento e história”, “classe e luta de classes”. O autor compara ainda o “modo” de cada um praticar teoria social, sendo Weber, de um lado, aquele que se aproxima do tipo “montador”, atento ao atrito entre as várias dimensões da vida social, e Gramsci, de outro, um “construtor”, preocupado com a possibilidade de formação de um conjunto orgânico a partir do qual possa a alta política se realizar.

A intenção é contrastar Weber, o liberal elitista, e Gramsci, o comunista, tendo em conta não só as suas dissonâncias, que não são poucas, mas também possíveis proximidades teóricas e considerando que ambos compartilham de “uma forma de conduta no pensamento e na ação. É que ambos estavam, em todos os momentos e por todos os modos, voltados para os problemas do mundo presente, e de olho no futuro” (p. 95). Trata-se da investigação dos processos de edificação dessas teorias sociais de certa forma engajadas, cada uma a sua maneira. Cohn propõe pensar Weber com Hobbes, tendo em vista sua preocupação com o estabelecimento da soberania nacional (e com a construção da Alemanha como grande potência europeia) e Gramsci com Rousseau, julgando pela importância conferida à formação da soberania popular. Entre eles haveria, contudo, um solo comum em Maquiavel, tocante à preocupação com a constituição de um Estado nacional soberano. Esse tema retorna, aliás, noutro ensaio de vulto: “Soberania e responsabilidade: Weber sobre parlamento e governo”. Mas se o começo do ensaio comparativo se concentra na política, com Hobbes, Rousseau e Maquiavel, o fim encaminha-se para Marx, enfatizando que a política – e Gramsci entra com toda a força aqui, para contestar o pensamento liberal – não pode ser pensada apartada da chamada sociedade civil. Como se pode ver, o caminho percorrido é longo.

Embora reconheça por vezes uma certa vantagem de Gramsci sobre Weber, especialmente por sua capacidade de perceber as relações sociais em movimento, o objetivo do estudo comparativo de Cohn não é desmerecer um autor a favor de outro, mas trabalhar com constructos teóricos nos quais variam os ângulos de abordagem. Isso está presente, por exemplo, na comparação do conceito gramsciano de hegemonia – que trata de pensar a política como sentimento partilhado, a partir de uma sintonia com a formação da vontade – com o conceito weberiano de dominação, que diz respeito à aceitação de uma orientação da conduta, que se configura na obediência. Duas maneiras muito diversas de pensar o problema do consenso, se quisermos. O mesmo se passa com a discussão entre a supremacia (Gramsci) e a Gewalt (Weber).

Nem sempre os conceitos comparados são os mesmos, como quando da análise das teorias weberiana e gramsciana das classes sociais. Na maioria das vezes Cohn mostra como cada um dos autores mobiliza um conceito específico para dar conta de uma mesma questão. Weber, de um lado, recusa a concepção de classe como um “fenômeno total” e a insere na problemática das formas de agregação social e no âmbito da distribuição do poder. O conceito de classe se apresenta, portanto, como “acesso a uma dimensão específica de poder, aquela que é dada pela disposição sobre bens e recursos econômicos” (p. 136). Gramsci, do outro lado, estaria preocupado com a classe “fundamental” capaz de formar uma vontade coletiva e estabelecer seus próprios rumos; trata-se de organizar a totalidade orgânica. Tanto em um quanto em outro, afirma Cohn, a classe é concebida principalmente como ambiente: seja para a formação de lideranças políticas singulares, como em Weber, seja para a formação de uma associação capaz de propiciar programas para a sua organização como totalidade integrada (partido?), como em Gramsci. De resto, tanto um quanto outro ficariam aquém de um certo Marx, para quem o problema da classe não se reduz à sua concepção como agrupamento social e diz respeito, antes, a uma forma social a partir da qual se desdobra a dinâmica social.

Dois polos: Weber – Frankfurt

Gabriel Cohn é um estudioso de Weber, mas não parece ser um weberiano. Quiçá seja essa a razão que explica sua excelente leitura do sociólogo alemão. Mas conforme sugere o próprio título do livro, as reflexões ali presentes, e que variam tematicamente, oscilam entre esses dois polos. De um lado, uma sociologia assentada na ideia de que é impossível a racionalização do mundo como um todo, para a qual as múltiplas esferas de sentido estão o tempo todo em guerra, e que tem como horizonte a construção nacional de uma Alemanha potência (o que será que Weber pensaria de Angela Merkel?). De outro lado, um conjunto de pensadores cujo horizonte político envolve a razão na posse de si mesma, o que significa uma transformação completa da relação entre sujeito e objeto do conhecimento. Razão que deve estar em constante reflexão sobre si mesma, sem engolir nesse processo os seus próprios objetos.

O ensaio que abre o livro aborda justamente esse problema, a relação entre esclarecimento e ofuscação. Cohn demonstra como, ao contrário de muitos autores, especialmente daqueles de orientação habermasiana e honnethiana, Adorno e Horkheimer não viram no nazismo um estado de exceção ou uma patologia social que acometeu uma série de países, mas antes um desdobramento de contradições presentes na própria razão. A essa dinâmica demoníaca, Cohn dá o nome de “dialética da razão e do ofuscamento”: “a razão privada de sua capacidade reflexiva, deixada solta na exacerbação do seu impulso dominador alimentado pela sempre presente ameaça da regressão mítica, gera luzes, sim, mas que ofuscam e levam à cegueira” (p. 17). O raciocínio é contraintuitivo. São as próprias luzes que produzem o ofuscamento e a cegueira, e não a sua falta. O nazismo é o exemplo mais bem-acabado disso: a técnica mais avançada usada com fins de extermínio.

É com base nessa dialética entre razão e ofuscamento que Cohn costura alguns temas muito relevantes no âmbito da teoria crítica: o antissemitismo, a personalidade autoritária e o pensamento em bloco ou ticket-thinking. Mas no que consiste, afinal, o antissemitismo? Ao comentar o excerto da Dialética do Esclarecimento, intitulado “Elementos do antissemitismo”, Cohn sugere uma abordagem inédita. Os “elementos” aqui não dizem respeito a reflexões fragmentárias sobre um tema, mas a “um processo de decomposição de um objeto” (p. 19). Isso significa que o antissemitismo, enquanto modo de conduta, pode ser pensado também – tendo em vista a sua redução a esses elementos básicos – dentro de um quadro maior concernente à ascensão do autoritarismo, presente com toda a força nas sociedades ditas democráticas. O ensaio “As duas faces da indústria cultural”, penúltimo do livro, complementa essa tese, dando ênfase à atualidade do conceito.

O estabelecimento dessa continuidade deveu-se, segundo Cohn, às pesquisas realizadas por Adorno e outros colegas americanos a respeito da “personalidade autoritária” (estas têm a tese da indústria cultural, sem dúvida, como elemento subjacente). Trata-se de uma espécie de Aufhebung do antissemitismo: um processo que o prolonga e o supera, permitindo incluir, ao lado dos judeus, negros, homossexuais, mulheres, comunistas e, no limite, tudo aquilo que se apresente como o outro da sociedade plenamente administrada. O que está em jogo é que, para esse sujeito do ofuscamento, todo objeto se apresentará como alteridade, na medida em que predomina uma configuração da razão que se contenta na dominação do objeto. Assim, “para um sujeito pleno de uma razão também plena, que não se limitasse a projetar luzes, não haveria um corte entre sua diferença e sua semelhança relativamente ao objeto” (p. 20). A razão presa no círculo da dominação produz irreflexão (uma outra face da dominação) e pseudossujeitos (impedidos de se tornarem sujeitos a partir de sua relação mimética com os objetos).

A personalidade autoritária é, desse modo, um produto do rompimento do pensamento com a reflexão. Não se trata de conceder uma explicação psicológica ou sociopsicológica para o fascismo, mas de compreender as determinantes sociais do processo de subjetivação que leva, por sua vez, o indivíduo a assumir formas de conduta fascistas. Um dos traços desse comportamento autoritário diz respeito, por exemplo, ao pensamento por estereótipos, em cuja base estaria a reificação da subjetividade. Cohn comenta detidamente essas passagens chamando a atenção para o modo como Adorno combina os dados coletados pela pesquisa com a teoria social para analisar o fenômeno do antissemitismo como um processo mais amplo, ligado ao próprio capitalismo e que não se reduz às suas manifestações empíricas. Atualmente, esse assunto volta à tona com a ascensão dos movimentos de direita no mundo e os desafios que isso impõe à teoria social. Para aqueles que consideram a palavra “fascismo” uma qualificação genérica que remete ao mesmo tempo a um contexto histórico específico e muito diferente do nosso, o livro de Cohn pode indicar outros caminhos. Para retornar à questão do pensamento por estereótipos (de novo, a indústria cultural é um elemento- chave aqui), Cohn comenta o pensamento em bloco (ticket-thinking) que caracteriza essa irreflexão tipicamente autoritária. Inspirado na ideia das “listas partidárias em que um voto carreia apoio a todos os candidatos inscritos à revelia do eleitor” (p. 25), Adorno teria mostrado como o comportamento fascista está umbilicalmente ligado à aceitação desse pensamento em bloco, ao mesmo tempo contraditório e coeso, do qual nada pode ficar de fora e, mais ainda, contra o qual a argumentação racional se torna impotente. O ticket progressista pouco pode contra o ticket fascista, pois o que vale nessa definição é justamente o enrijecimento da reflexão, menos que seu conteúdo. O funcionamento binário da internet e o modelo de sociabilidade das redes sociais apenas jogam mais água no moinho de Cohn, que ensaia alguns palpites interessantes no ensaio “A forma da sociedade da informação” (será que há dialética entre 0 e 1?).

Não se trata, contudo, da mera constatação da catástrofe. Cohn cita uma das epígrafes de Minima moralia: “Abre-te Sésamo, quero sair”. A superação dessa dialética infernal entre esclarecimento e ofuscação depende da capacidade da razão “de tornar-se senhora de si”, o que só pode ocorrer a partir da “presença ativa de sujeitos senhores de si” (p. 30). Romper o véu, romper o círculo infernal é tarefa de todos aqueles sobre quem pesa a dominação. Conforme destaca Cohn, reflexividade é a palavra-chave, na vida e na teoria social, de modo que “o pensamento não pode deter-se diante do dado, mas deve aprofundar-se nele até o ponto em que deixa de ser um dado sem mais e tenha sido apropriado pelo sujeito reflexivamente (ou seja, passando pela negação)” (p. 30).

O mundo de Frankfurt é, então, o mundo no qual a razão, compreendida como processo social, deve tornar-se senhora de si mesma. Para enfatizar o tom, trata-se em última instância da emancipação da sociedade, seu tornar-se sujeito de si mesma.

Mas, e Weber?

O segundo ensaio do livro aborda o problema da racionalização no âmbito da sociologia da música de Weber. E aqui não há lugar para a Razão, apenas para os processos de racionalização. O mundo de Weber não se fecha, mas nem por isso é um mundo mais aberto do que o de Frankfurt.

Cohn começa destacando o papel importante que a música tem nas reflexões weberianas, inclusive no que tange ao seu procedimento como sociólogo: “as suas grandes análises histórico-sociológicas são literalmente concebidas como composições, em que os temas e os conceitos correspondentes vão-se desenvolvendo e ganhando conteúdo ao longo da obra” (p. 35). Isso significa que os conceitos são inicialmente vazios e vão ganhando corpo ao longo da obra, sem que seu significado se torne pleno em algum momento. O conceito típico, afirma Cohn, trabalhado e retrabalhado ao longo de sua obra é justamente o conceito de racionalização. Esse conceito atravessa seus escritos sobre a música, sobre a política, a economia, a religião etc.

Se podemos falar, com Weber, numa música ou numa religião racionalizada, isso não se traduz empiricamente num “mundo racionalizado” (ou administrado), como encontramos em Frankfurt. Weber está, segundo Cohn, mais preocupado em refletir sobre como as diversas dimensões da vida social, num determinado momento de seu desenvolvimento, são capazes de suscitar ações sociais racionalmente orientadas – ou seja, como cada linha de ação se racionaliza a seu modo. A racionalização é o processo social que dá ensejo ao exercício e expansão da ação racional. A questão principal consiste no processo de “explicitação” no interior de cada linha de ação específica. Weber está preocupado com a nitidez dos significados. A sociologia compreensiva defende que o mundo seja inteligível para o sujeito, ao menos em algum grau, de preferência o maior possível, mas nunca completo. Racionalizadas, as linhas de ação apresentam uma “legalidade própria”, como é o caso da música ocidental em seu processo de autoconstrução como música autônoma. Mas esse é um nível da análise. De outro, há a guerra. A multiplicação e a diferenciação das linhas de ação que caracterizam a modernidade, condição para a racionalização de cada esfera em particular, não se racionalizam, no entanto, como todo. As várias esferas acabam muitas vezes por entrar em conflito. Weber surge nesse âmbito, e com toda a força, no polo oposto de Frankfurt:

[…] a ação racional como tal não pode se orientar simultaneamente pelos resultados procurados e por valores (entendendo-se valor como o fundamento último disponível para o agente como justificativa para a sua ação), sob pena de perder o foco. E o foco é essencial, pois dele depende a eficácia da ação. A consequência mais geral disso é a ideia de que, embora a ação seja racionalizável no interior de cada uma dessas esferas (a da racionalidade formal, voltada para a maximização de um fim qualquer, e a da racionalidade substantiva, amarrada a uma determinada consideração valorativa), não é possível obter-se uma racionalidade abrangente, que envolva, ao mesmo tempo, as ações no interior de cada esfera e as ações entre componentes de ambas. Em suma, o mundo não é racionalizável como um todo. As tensões entre a racionalidade formal e a substantiva são irredutíveis (p. 45).

De um lado, temos, portanto, clareamento e nitidez das linhas de ação; de outro, opacidade do todo.

Ao contrário de muitos comentadores da Escola de Frankfurt, que insistem em interpretá-la a partir do composto “marxismo-weberiano” e do conceito de “ação instrumental” (Löwy, 2014LÖWY, Michael. (2014), A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano. São Paulo, Boitempo.; Merleau-Ponty, 2006MERLEAU-PONTY, Maurice. (2006), As aventuras da dialética. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo, Martins Fontes.), a comparação dos dois ensaios de Cohn permite entrever muito mais distância do que proximidade entre esses dois polos. Parece até mesmo que eles formam uma parábola. Será que numa ponta encontramos a crítica e na outra a resignação? Ou será que podemos pensar Weber com Frankfurt, atentos para a relação curiosa entre racionalização das partes e irracionalidade do todo?

O pensar plebeu e o pensar senhorial: luta de classes na teoria social?

Cohn abre seu livro dizendo que há duas vertentes que concorrem na teoria social: uma é de origem plebeia, a outra senhorial. De um lado, Florestan Fernandes, Gramsci, Chico de Oliveira. De outro, Gilberto Freyre, Weber e os defensores de uma democracia senhorial. (Onde será que nosso autor inclui Frankfurt?) Ao comentar os autores da teoria social, Cohn faz algo mais do que comentar os autores em si, pois o que está em jogo são os problemas da própria realidade social. O início do texto mostra como seu programa de teoria social tem como núcleo duro resistir às tentações da ciência neutra, descomprometida com a realidade social, orientando-se por “questões normativas relativas à justiça, mais precisamente à construção de uma sociedade justa” (p. 8). Vale lembrar que isso não o obriga a ficar colado a nenhum autor específico e ignorar aqueles da vertente senhorial; são esses, aliás, que precisamos ler com maior atenção, conforme sua sugestão.

Há uma tríade de ensaios no livro que combina justamente essa tentativa de propor uma teoria social plebeia com o esforço comparativo. Esses ensaios permitem ligar ainda centro e periferia do capitalismo, Frankfurt e o pensamento social brasileiro. São eles: “Desenvolvimento como processo civilizador”, “Civilização, cidadania e barbárie” e “A sociologia e o novo padrão civilizatório”. Nos três, Cohn retoma o tema frankfurtiano clássico da “civilização” (sempre referida à democracia). Trata-se de pensar a prática da teoria social referida a um novo padrão civilizatório, à proposição de uma nova forma de vida (aqui nosso autor oscila entre a reforma e a revolução, sem recair em Habermas).

Embora não seja possível retomar todas as questões presentes nesses ensaios, o destaque vai para a proposta de retomada – na chave civilizatória – do conceito de desenvolvimento (não podemos deixar, segundo Cohn, os temas importantes nas mãos da direita). Cohn retoma alguns gigantes da tradição do pensamento social brasileiro: Celso Furtado, Luiz Pereira, Bresser-Pereira, Chico de Oliveira e Florestan Fernandes. A proposta é recuperar o conceito de desenvolvimento, não como descrição de um estágio de coisas, mas como um objetivo. Desenvolvimento aqui nada tem a ver com Norbert Elias e as boas maneiras, tampouco é referido à evolução técnica e tecnológica de uma sociedade ou funciona como critério comparativo no âmbito da administração do mundo. Liberado das amarras nacionais, desenvolvimento significa para Cohn – que está amparado nesses autores mais ou menos plebeus – num “esforço para tornar humana a vida social” (p. 161). Aliás, tendo em vista essa última frase, quem aparece aqui é Adorno: “No estágio atual das forças produtivas técnicas ninguém mais precisaria passar fome na terra” (Adorno apud p. 159). Seria preciso, para tal, tomar o desenvolvimento por um critério político.

As duas principais referências nesse âmbito são Chico de Oliveira e Florestan Fernandes. Cohn retoma o “raio x da experiência burguesa no Brasil” feita por Oliveira em “Privatização do público, destituição da fala e anulação política: o totalitarismo neoliberal” para discutir como o neoliberalismo no Brasil assume a forma do totalitarismo, não pela via institucional, mas por meio de uma dominação que se exerce pelo lado social e que está ligada à dissolução do polo público no Brasil. Cohn ressalta a necessidade de se pensar o neoliberalismo como um processo objetivo que diz respeito tanto à economia, quanto à política como forma social da experiência. O problema da instauração da democracia no Brasil – agora, a referência é Florestan Fernandes – é, por isso, uma questão mais ampla, de caráter societário e diz respeito à “defesa da consolidação de um estilo democrático de vida”. Cohn reúne Adorno com Chico de Oliveira e Florestan Fernandes, civilização e desenvolvimento, ao propor pensarmos o desenvolvimento nesses termos, que incluem não só a política e a economia, mas também as formas de sociabilidade (o que Florestan designava como “estilo de vida”). Nas palavras do nosso autor, “a sociedade democrática é mais igualitária; a sociedade civilizada é mais respeitosa; e a sociedade desenvolvida é mais intensa e mais diversificada na trama de relações que põem pessoas e grupos em contato” (p. 182).

Isso diz respeito a processos amplos e profundos, afirma Cohn, que envolvem a dimensão cultural da civilidade ou uma cultura política, se quisermos. Só assim seria possível fazer frente ao totalitarismo neoliberal, que se impõe, este também, como forma da experiência social… até o nível subjetivo (aqui se congregam novamente Frankfurt e Brasil).

Por fim, valeria um último comentário acerca desses três ensaios, nos quais Adorno passa a orientar a Ciência Política (seria possível falar num cientista político adorniano?). Neles, Cohn propõe ultrapassarmos uma visão meramente formal ou institucional da democracia. Não basta, para isso, mudar de paradigma, mas seria preciso ir mais fundo, em busca de uma concepção de democracia que vá além do liberalismo. Essa orientação não poderia estar mais prenhe de atualidade do que no momento presente, no qual a democracia formal faz resplandecer todas as suas falhas, deixando entrar pela porta da frente a sua própria negação. Por isso,

[…] este é o momento de levar a sério a observação do velho Freud: a voz da razão é débil, mas persistente. Temos essa tarefa mesmo em tempos sombrios […]. Vamos ter que ser muito teimosos, muito persistentes, e capazes de reproduzir em escala ampliada esse ato de consciente loucura que é chegar aqui e discutir cidadania, civilização, civilidade, como se todo mundo estivesse discutindo isso fora desta sala. Não está. Mais uma razão para não deixar de discuti-la (p. 198).

Proximidade na distância: Marx com Adorno

“Pôr em movimento as relações petrificadas. Essa exigência do jovem Marx em 1843 resume todo o programa teórico e prático da dialética, como ele a praticou ao longo da vida” (p. 59). Eis, então, a força motriz da teoria social proposta por Cohn, saturada de negatividade. Essa teoria da forma da experiência social, que engloba a perspectiva comparatista, está presente em todos os ensaios, mas seu núcleo pode ser encontrado no ensaio “O tempo e o modo: matrizes da dialética marxista”, bastante reformulado em relação à publicação original, com desdobramentos/variações importantes em “Temporalidades: timbres e pulsações” e “Ideologia como operador textual”.

Cohn discute como a obra de Marx possui “duas almas”, uma mais dialética e dinâmica, a outra, mais militante e próxima da empiria. Esta última deu origem ao marxismo concebido a partir da “luta de classes”. A primeira, privilegiada por Cohn, consiste num marxismo focado nos modos e nas formas – Cohn se inspira, em parte, na chamada “Nova leitura de Marx”. Assim, diz ele, ao falar em capitalismo, Marx pensa não em produção no sentido puramente econômico do termo, mas em modo de produção. À pergunta “o que produz o modo de produção?”, Cohn concede a resposta bastante adorniana: a própria sociedade. O que está em jogo aqui é uma leitura adorniana de Marx ou, se se preferir, uma interpretação marxista de Adorno. Marx dá a chave para compreender, segundo essa perspectiva, as balizas da dinâmica social. Ainda nessa toada, o mesmo vale para a questão da forma. A mercadoria – hieróglifo social – não é um dado nu (apenas aparentemente, como diz o próprio Marx), mas uma forma que se impõe a outras formas, como o trabalho, por exemplo. Em Marx, ao menos nesse Marx dialético, nada é imediato e a investigação corre a partir da análise do modo de imposição de uma forma sobre a outra. Processo este que vai se convertendo numa composição cada vez mais complexa, pois “a vida social vai se tornando passo a passo mais indireta e vai escondendo suas balizas” (p. 77). A classe social, nesse esquema, é pensada muito mais como classe constituída do que como algo dado a ser meramente aferido.

Nesses ensaios, nos quais o tempo e a resistência, entre outros conceitos e ideias, são discutidos de maneira detida e com maestria, mais do que propriamente os conteúdos comentados, digamos, da letra de Marx, destaca-se o procedimento crítico em Ciências Sociais. Isso fica claro no tratamento que o autor confere ao conceito marxista de ideologia:

A ideologia não se confunde com sua expressão em textos de várias ordens, nem está explícita neles. Para decifrá-la é preciso ir além da sua superfície opaca e percorrer as múltiplas camadas de sentido que práticas sociais depositaram nela. É preciso, como primeiro passo, desvelar a lógica que articula entre si essas camadas. Pois é essencial considerar que estamos lidando com uma entidade que se articula em diversos níveis, e apenas pode ser entendida nessa articulação (p. 224).

Um problema básico da sociologia é trabalhar com a empiria sem ceder a ela nem a eleger como critério único de orientação. Como lembrava Marx, a realidade, esse emaranhado de múltiplas determinações, é “a olho nu” uma bagunça que só a reflexão é capaz de penetrar.

Um problema premente da realidade é a adesão “compulsiva ao presente” (p. 71) que não permite ver alternativas para além do mero existente. A teoria social de Gabriel Cohn propõe caminhos para encarar ambos esses desafios.

Os ensaios comentados acima mostram como a teoria social não é um sistema de referências, mas uma prática em si e para si que busca dar conta de objetos que estão em constante movimento e que, por isso, precisa ser ela também dotada de mobilidade (pôr em movimento as relações petrificadas) e até de uma certa sensibilidade para saber o que está em jogo em cada volta do parafuso da vida social. Dialética, diria Adorno, é proximidade na distância, e a teoria social é, nessa chave, em si mesma um meio de investigação da realidade. Subjacente a essa proposta está a questão relativa a uma ciência orientada para a formação, em contraposição a uma ciência técnica. Aqui não resta espaço para a resignação.

A sugestão final do autor é justamente a de que, quanto mais bruto se tornar o mundo, mais fina deve se tornar a análise social que visa a transformá-lo. Assim, se ajeitamos a gravata ao iniciarmos a leitura, tiramos o chapéu ao terminá-la.

Referências Bibliográficas

  • LÖWY, Michael. (2014), A jaula de aço: Max Weber e o marxismo weberiano São Paulo, Boitempo.
  • MERLEAU-PONTY, Maurice. (2006), As aventuras da dialética. Tradução de Márcia Valéria Martinez de Aguiar. São Paulo, Martins Fontes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    5 Jan 2019
  • Aceito
    2 Abr 2019
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