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Como elaborar um passado traumático? O caso da Villa Grimaldi (Chile)

How to work through a traumatic past? The case of Villa Grimaldi (Chile)

Resumo

O Parque por la Paz Villa Grimaldi foi aberto ao público em Santiago, no Chile, em 1997, em um lugar onde, na época da ditadura militar daquele país (1973-1989), a polícia política de Pinochet torturava até a morte. O parque, um dos primeiros casos de transformação de um lugar de barbárie em um lugar de cultura e memória, mostra, no entanto, que a oposição entre “memória” e “recalque” não é suficiente para resumir a situação atual de confrontação entre uma amnésia organizada pelos (ex-)militares através das leis de (auto)anistia impostas à sociedade no momento da transição democrática e uma luta pelo reconhecimento conduzida pelos familiares das vítimas, seja no Chile, na Argentina, no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo. Este caso ilustra que uma memória voluntarista que tenta estruturar uma memória pública pressupõe também um recorte que não impede o lugar escolhido de fazer ressurgir uma memória imprevista.

Memória coletiva; Ditadura; Chile; Villa Grimaldi; Lugar de memória

Abstract

The Parque por la Paz Villa Grimaldi opened its doors to the public in 1997, at the place where, at the times of military dictatorship (1973-1989), Pinochet’s political police tortured until death. One of the first cases of a site of barbarism turned into a site of culture and of memory, the park shows however that the opposition between “memory” and “repression” (in the Freudian sense) is not enough to sum up the actual situation of an opposition between an amnesia organized by (ex-)militaries through laws of (auto-)amnesty and the struggle for recognition leaded by families of the victims, be it in Chile, in Argentine, in Brazil, or in another part of the world. It is a good example that a voluntarist memory attempting to structure a public memory also presupposes a cut that doesn’t prevent the chosen site to make resurfacing an unexpected memory.

Collective memory; Dictatorship; Chile; Villa Grimaldi; Realm of memory

Introdução

O Parque por la Paz Villa Grimaldi, localizado em Santiago, no Chile, foi aberto ao público em 1997, no lugar ocupado, durante a ditadura militar daquele país (1973-1989), pelo Cuartel Terranova (1974-1978). Esse local foi um centro secreto de detenção e tortura de milhares de chilenos suspeitos de resistir politicamente, ou de serem ligados, pela família ou pelos amigos, a algum “subversivo”; em casos extremos, algumas das pessoas que passaram por lá permanecem desaparecidas até hoje. Em 1987, durante a transição entre a ditadura e a democracia negociada por Pinochet, os militares, com a anuência do prefeito santiaguino da época, venderam o terreno a uma empresa de construção. Pouco depois, a empresa derrubou o prédio para construir um complexo de condomínios de luxo. Porém, graças à vigilância de um vizinho e à luta de uma associação da sociedade civil, o terreno foi recuperado por um coletivo de familiares de vítimas da ditadura. Esse coletivo ressemantizou o espaço, onde antes se exercia uma violência arbitrária, para celebrar a paz dentro de um Estado de direito. Mas essa transfiguração da barbárie em cultura, como veremos, era somente uma das três opções de reconfiguração do lugar.

Entre 1997 e 2017 – ano de realização desta pesquisa1 1 . Esta pesquisa foi realizada entre janeiro e agosto de 2017 a partir de observações, visitas, participação em eventos, entrevistas livres com os gestores, os guias e o público, e da documentação presente nos arquivos de Villa Grimaldi e do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos. Por se tratar de um problema sociológico de memória coletiva não necessariamente cristalizada em um discurso objetivo, mas que circula entre artefatos, discursos e interações, preferi usar o método antropológico de “observação flutuante” – inspirado na psicanálise – a outros métodos mais objetivantes ( Pétonnet, 1982 ). A observation flottante foi definida como “método possibilitado pelo caráter aberto do espaço público urbano que permite investigar no anonimato fazendo observações (visuais, sonoras) ao longo das evoluções no campo” ( Raulin, 2001 , p. 177, tradução livre). Como vamos ver, neste caso se trata não apenas do espaço público no sentido concreto do termo (um parque), mas também no sentido mais abstrato de esfera pública (a formação de uma memória pública). –, o Parque passou progressivamente de uma proposta conciliatória, que não trabalhava o trauma a fundo, à integração de elementos arquitetônicos que representam mais explicitamente a violência do Estado, perturbando a superfície plana da memória organizada até então. As visitas guiadas ao parque, conduzidas por ex-presos políticos, testemunham pedagogias opostas da memória – que chamamos aqui de “stanislavskiana” e de “brechtiana” –, cristalizadas não somente no discurso dos guias, mas também na encenação do espaço. Além disso, um conto literário de 1995 nos revelou, de outra maneira, as inquietações da memória chilena entre 1973 e 1995. Ele nos convidou a uma exploração da pré-história da Villa Grimaldi, desde a conquista dos Incas até a burguesia liberal do século XIX. Este lugar se revela, portanto, como um “cristal do acontecimento total”2 2 . Walter Benjamin convida a um materialismo histórico reformado capaz de “descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total” (2009, p. 503). Tal materialismo micrológico, no entanto, é mais um materialismo topográfico do que um materialismo histórico no sentido estritamente temporal: concentra-se menos nas sequências históricas do que nas topografias urbanas, que formam Zeit-traum ( Idem , p. 434), espaços carregados simultaneamente de tempo ( Zeitraum , espaço de tempo) e de sonhos coletivos ( Zeit-traum , sonho de tempo). da sociedade chilena, de suas esperanças e suas violências.

Às avessas do trauma: o Parque pela Paz Villa Grimaldi (1997)

A pesada porta metálica do lugar de tortura, assassinato e desaparecimento denominado “Villa Grimaldi” não se abrirá nunca mais. Em março de 1997, no dia da inauguração do Parque por la Paz, ela foi fechada pela última vez. As chaves foram entregues simbolicamente ao padre jesuíta José Aldunate, que defendeu os direitos humanos durante a ditadura. Além disso, uma escultura de pedra foi erigida atrás da porta, para impedir definitivamente a sua abertura. Trata-se de uma folha gigante, colorida, que significa que, por onde passavam os engenhos da morte, agora floresce a vida.

Figura 1
Maquete da Villa Grimaldi na época do seu funcionamento, disposta ao início da visita. A porta metálica é visível embaixo à direita, e a torre, em cima à esquerda. Foto de Berdet, 2017.

Figura 2
A escultura de pedra que hoje impede a abertura da porta metálica. Foto de Berdet, 2017.

Depois de anos de luta, o coletivo Corporación por la Paz Villa Grimaldi conseguiu recuperar o lugar para transformá-lo em celebração da paz, convertendo um trauma coletivo em um espaço de memória. Mas isso não foi fácil. O último proprietário havia sido o general Hugo Salaz Wenzel, diretor dos serviços de informação (a CNI, Central Nacional de Informações, que, em 1977, substituiu a Dina, Diretoria de Inteligência Nacional, a qual começava a ficar conhecida no exterior por suas barbaridades). Em 1987, ele vendeu a sua “propriedade”, por 10 milhões de pesos, a uma empresa de construção, a EGPT3 3 . Não consegui descobrir o que esta sigla significa. . Essa venda é representativa da conivência entre os representantes políticos, os atores econômicos e os agentes da repressão durante o Chile de Pinochet: enquanto o subprefeito de Peñalolén, Carlos Alarcón, autorizava a venda de um terreno que, no entanto, era propriedade do Estado, a EGPT pertencia ao cunhado de Wenzel – sendo que Wenzel era justamente o coproprietário, ao lado de sua irmã, da empresa…

Foi assim que, com a cumplicidade de um general, uma empresa de construção quis fazer desaparecer a Villa Grimaldi para erigir um condomínio de luxo sobre suas cinzas. Esse tipo de apagamento é recorrente nos países pós-ditadura, e o Chile não é uma exceção. Felizmente, desta vez, o projeto fracassou. Um vizinho viu o derrubamento da vila e escreveu escandalizado aos jornais, que publicaram artigos interpelando os políticos (particularmente o jornal La Época ). Paralelamente, uma associação de vítimas da ditadura e uma comissão dos direitos humanos fizeram pressão junto aos parlamentares para recuperar o terreno4 4 . Tratava-se da assembleia permanente pelos direitos humanos de Peñalolén e de La Reina. Para mais detalhes, ler Gómez-Barris (2009 , p. 51 ss.). . Em 1990, ele foi finalmente recuperado pelo coletivo, a fim de erigir-se um lugar em memória às vítimas da ditadura. Sete anos depois, o Parque pela Paz Villa Grimaldi abriu suas portas ao público.

Em 22 de março de 1997, o dia da inauguração, o presidente do parque, Carlos Gho, tomou a palavra nos seguintes termos:

A Corporação pela Paz Villa Grimaldi recebe este parque com alegria, com esperança, com entusiasmo: com alegria e esperança porque neste lugar, onde em outros tempos os senhores da morte cometeram crimes bestiais e recusaram todos os direitos a seus prisioneiros, hoje florescerá a vida ( Gho, 1997GHO, Carlos. (1997), “Discurso de inauguración de Villa Grimaldi”. Archivos del Vicario de la Solidaridad, Fondo 00000103 Corporación Parque por la Paz Villa Grimaldi, depósito Museo de la Memoria y los Derechos Humanos CL MMDH 00000103. , tradução livre).

Esse discurso enfático se cristaliza em um espaço que é o primeiro lugar de memória do terrorismo de Estado no Chile, e também o primeiro centro de detenção e de tortura transformado em centro de cultura e educação em defesa e respeito aos direitos humanos. É também representativo da política socialdemocrata da Concertação, que foi a política dominante depois do fim da ditadura, uma concertação entre os atores de ontem e os de amanhã, entre os militares e os democratas, motivada pelo pavor de “despertar velhos conflitos” e de dividir a sociedade civil de novo, mas que devia, no entanto, fazer as contas do “regime militar” (para não se falar em ditadura, muito menos em ditadura civil-militar). O discurso de Gho fala, portanto, de consenso e reconciliação, de transfiguração da violência em paz, da brutalidade em esperança, da dor em alegria e da semente da morte em florescimento da vida.

Surpreendentemente, o parque parece encenar um processo de elaboração do trauma coletivo, mas ao revés. Parte, portanto, de uma grande estética de reconciliação para, aos poucos, como se verá a seguir, integrar elementos mais incômodos, ásperos, mais difíceis de digerir dentro da bela aparência e da estética polida do lugar. No sentido freudiano de durcharbeiten , de “trabalhar através” do trauma, a elaboração (ou, conforme a tradução, a “perlaboração”) consiste efetivamente em começar o trabalho com o próprio trauma e através dele ( Freud, 1996FREUD, Sigmund. (1996), “Recordar, repetir e elaborar”. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro, Imago, vol. 12, pp. 163-171. ). Trata-se de fazer um passado inconsciente, ainda ativo dentro do sujeito (que repete, através das suas ações, o que ele não consegue se lembrar), passar para um nível consciente, de maneira que não atrapalhe mais a sua vida ativa ou afetiva. O Parque pela Paz, ao contrário, não começa com o trauma para ir até a reconciliação, mas começa com uma reconciliação e mesmo uma redenção para, ao longo da sua história como parque, integrar aos poucos, dentro do seu espaço, os elementos subversivos dessa narrativa.

Poderíamos avançar aqui que tal evolução (da relativa invisibilização do trauma à sua reincorporação no espaço do Parque) provém de uma mutação do paradigma global da memória, em uma época que agora não somente reconhece a condição de vítima e o quadro nosológico do traumatismo psicológico, mas que até mesmo incentiva sua construção social e sua visibilidade pública. Como sugerem LaCapra (2004)LACAPRA, Dominick. (2004), “Trauma studies: its critics and vicissitudes”. In: LACAPRA, Dominick. History in transit: experience, identity, critical theory. Nova York, Cornell University Press, pp. 106-143. e Fassin e Rechtman (2007)FASSIN, Eric & RECHTMAN, Richard. (2007), L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris, Flammarion. , existe, desde os anos 2000, algo como uma victim turn , uma espécie de “virada vitimológica”, vinte anos depois da introdução do transtorno de estresse pós-traumático ( post-traumatic stress disorder , PTSD) na terceira versão da classificação das doenças mentais publicada pela Associação Americana de Psiquiatria (DSM-III). Poderíamos dizer mais precisamente que os traumatismos coletivos do século XXI, como os atentados do 11 de setembro de 2001, ofereceram uma possibilidade dramática de atualização, para o senso comum, dessa nova entidade clínica, ela mesma nascida, em 1980, de um encontro imprevisto entre grupos de pressão da sociedade civil – isto é, associações de vítimas – e ramos mais avançados da psiquiatria. Nesse contexto, é bem possível que, entre a sua criação nos anos 1990 e a sua evolução nos anos 2010, os organizadores do Parque por la Paz tenham recebido a mensagem do “fim da suspeita” em relação ao traumatismo, antigamente levantado por uma vítima suspeita de simulá-lo para obter alguma indenização (seja o soldado voltando da guerra ou o operário mutilado na fábrica). Porém, à época da inauguração do parque, parece que, aos olhos de seus idealizadores, o trauma podia chocar a sensibilidade do visitante comum em vez de suscitar sua empatia, e então um discurso da sua superação pareceria mais apto a receber a simpatia do público do que a encenação da sua travessia. Com efeito, na concepção originária do parque, os arquitetos José Luis Guajardo Torres, Luis Santibañes Ibarra e Ana Cristina Torrealba usaram o símbolo da cruz para insistir na expiação que, desde o início, queriam representar:

Com sua dupla significação, morte e ressurreição, o cruzamento dos dois eixos no centro do parque recebeu uma fonte, que é um lugar de encontro e de orientação, onde se pode entrar em contato com a água ( Artegabeitia, 1997ARTEGABEITIA, Rodrigo de. (1997), Corporación Parque por la Paz Villa Grimaldi, una deuda con nosotros mismos. Santiago, Ministerio de Vivienda. , p. 38, tradução livre).

O eixo da morte era a avenida que partia do portão de ferro pelo qual entravam os prisioneiros, e que ia até a Torre dos Suplícios, onde se torturava até a morte. Está agora fechado, condenado pela porta (cuja chave foi entregue a um defensor dos direitos humanos) e pela escultura de pedra horizontal (a qual representa uma vegetação luxuriante que nasce ao nível do portão e floresce até o interior do parque, até onde antigamente se semeava a morte). Nunca mais: é a mensagem desse fechamento físico que, de um ponto de vista simbólico, vai agora desde a folha colorida até o Teatro pela Vida, espaço onde a corporação organiza encontros, exposições e concertos.

Figura 3
O cruzamento dos dois eixos segundo o mapa no início do parque. Foto de Berdet, 2017.

Figura 4
A fonte purificadora (agora sem água). Foto de Berdet, 2017.

Figura 5
Da fonte purificadora até o Teatro pela Vida. Foto de Berdet, 2017.

O eixo da vida é a nova abertura, aquela da vila ressemantizada e transformada em parque pela paz. Esse eixo parte de um novo acesso (o qual sinaliza que a entrada agora é livre, contrastando com a antiga, que era forçada) e vai até o Muro dos Nomes, o qual homenageia os desaparecidos: os vivos comemorando os mortos. Com esse X marcado no chão, os arquitetos querem significar não somente que o lugar foi marcado, mas que também está em processo de expiação. No cruzamento dos dois eixos, assim, um pouco mais abaixo e na sombra de uma árvore centenária que sobreviveu à destruição da polícia de Pinochet, esculturas parecem saudar com alegria o visitante. Trata-se de pontos de água que o convidam a se refrescar, e que ladeiam uma fonte circular no centro da qual uma folha com cores pastéis se abre em forma de estrela – ao contrário da outra folha mineral, que, na entrada, avançava em um único sentido. É assim que o encontro entre os dois eixos significa agora a vida e uma florescência multidimensional, e que os crimes do passado podem ser lavados na água redentora.

Ao menos outros dois elementos vão no sentido dessa ressemantização redentora do parque. O primeiro é o Jardim das Rosas. Dentre os únicos elementos da paisagem que não haviam sido destruídos pelos militares, é dele que os prisioneiros, que tinham permanentemente uma venda sobre os olhos, se lembram: uma lembrança olfativa. A corporação gestora do Parque transformou-o em Jardim das Rosas em homenagem às desaparecidas, cada rosa tendo o nome de uma dessas mulheres. O segundo elemento, que se repete, são os mosaicos que, no chão, indicam a topografia do passado: “Antigo acesso”, “Casas Chile – Cela de 2 x 1 m”, “Casas Corvi – Celas de 1 x 1m”, “Celas para prisioneiras”, “Sala de tortura – Cama elétrica, Parrilla”, “Lugar de tortura – Enforcamentos”, “Lugar da torre – Lugar de solidão, tortura e exterminação” ou ainda “Piscina – Lugar de horror”. Este elemento também se refere às lembranças limitadas dos prisioneiros, desta vez visuais, porque eles somente podiam ver, por baixo da venda, a pavimentação da vila. Como escreve a corporação informando sobre o parque:

O trabalho artístico exibido no parque recupera o olhar dos ex-prisioneiros. Como a prática comum era mantê-los de olhos vendados para que eles não pudessem reconhecer os seus perseguidores, percebiam somente fragmentos ao redor. Essa realidade fragmentada foi representada por artistas – particularmente no chão – através de pedaços de azulejos coloridos. É a razão pela qual a sinalização se apresenta na forma de cerâmicas no chão ( Corporación Parque por la Paz Villa Grimaldi, 2017CORPORACIÓN Parque Por La Paz Villa Grimaldi. (2017), Parque por la Paz Villa Grimaldi, livreto. Santiago, Corporación Parque por la Paz Villa Grimaldi. , tradução livre).

Figura 6
Muro dos Nomes. Foto de Berdet, 2017.

Figura 7
Jardim das Rosas. Foto de Berdet, 2017.

Figura 8
Mosaico informativo: Patio de los Abedules. Foto de Berdet, 2017.

O único problema é que o público acaba não percebendo a razão trágica desses ornamentos, nem é informado sobre a origem dessas belas cerâmicas, destruídas, nos anos 1990, na antiga casa por uma empresa de construção – o que explica os pedaços quebrados. Esses paralelepípedos circulares em tons pastéis simplesmente lembram a fonte redentora, como se fossem um embelezamento do lugar. As legendas são escritas em um disco branco, o qual é margeado por uma borda colorida que contém motivos artesanais com curvas e linhas regulares. O visitante, que ficaria chocado se descobrisse um referente assustador onde esperava ver um motivo estético, não faria outra coisa senão se perguntar: Será que os arquitetos querem significar, de maneira descritiva, que na beleza deste parque ao pé da cordilheira infelizmente se cometeram atrocidades? Ou será que tentam, de maneira performativa, transfigurar uma topografia atroz recuperando a beleza do lugar?

Figura 9
Mosaico informativo: “Casas Chile”. Foto de Berdet, 2017.

Figura 10
Mosaico informativo: “Antigo acesso”. Foto de Berdet, 2017.

Figura 11
Mosaico informativo: “Sala de tortura”. Foto de Berdet, 2017.

Tanto em um caso como no outro, o apagamento fantasmagórico das condições de produção desses mosaicos – isto é, do que, nessas pedras, foi depositado de alegria (a casa dos Arrieta, como se verá adiante), de lágrimas (o Cuartel Terranova) e de esquecimento (os buldôzeres da EGPT) – faz desaparecer a própria historicidade do lugar, projetando o visitante em uma comunidade fantasiada que teria deixado definitivamente para trás a violação dos direitos humanos.

Expiação ou inquietação?

A ressignificação desse centro de tortura em parque pela paz era somente uma das três opções apresentadas pelos diferentes atores da sociedade civil no momento de apropriar-se da vila5 5 . Para mais detalhes sobre os debates em torno da Villa Grimaldi e da luta pela memória no Chile, ver Baxter (2005) e Klep (2012) . . A segunda opção consistia em deixar o espaço tal qual estava, e, nas ruínas da vila destruída pelos promotores imobiliários, erigir um monumento, simples e sóbrio, em homenagem aos desaparecidos, para que as famílias pudessem ali se recolher. A terceira opção, por sua vez, propôs uma recriação do espaço dos torcionários, como em um parque de diversões para um turismo de horror: recolocar a vila em pé, reconstruir as celas e erigir de novo a torre dita dos suplícios. Os debates foram tensos, e finalmente a primeira opção, a do parque, ganhou. No entanto, com o tempo, outros elementos, correspondentes à segunda e à terceira opção, foram integrados ao projeto, como o muro aos desaparecidos, os monumentos em homenagem aos partidos políticos e a torre, finalmente reconstruída. Estes elementos, que contradizem a estética redentora do parque, se sobrepuseram aos já existentes, como o arame farpado e a piscina suja, sombras inquietantes dentro da água clara da fonte. A dissonância assim gerada no seio da harmonia testemunha que a página, talvez, tenha sido virada rápido demais.

A diferença entre as visitas guiadas, e particularmente entre duas delas, pode dar uma ideia da distância entre uma narração de tipo redentora e outra, mais inquietante com o seu efeito de real.

Pedro Alejandro Matta foi, durante muito tempo, um dos guias mais destacados da Villa Grimaldi, a tal ponto que a sua visita, feita em inglês e efetivamente impressionante, foi divulgada internacionalmente, publicada em uma brochura, filmada pela televisão e citada em vários textos científicos ( Lazzara, 2003LAZZARA, Michael J. (2003), “Tres recorridos de Villa Grimaldi”. In: JELIN, Elizabeth & LANGLAND, Victoria (orgs.). Monumentos, memoriales y marcas territoriales. Madri, Siglo XXI, pp. 135-141. e 2006, pp. 129-153; Read e Wyndham, 2016READ, Peter & WYNDHAM, Marivic. (2016), Narrow but endlessly deep: the struggle for memorisation in Chile since the transition to democracy. Sidney, Australian National University Press. ; Taylor, 2009TAYLOR, Diana. (2009), “O trauma como performance de longa duração”. O Percevejo Online, 1 (1): 1-12. ; Meade, 2001MEADE, Teresa A. (2001), “Holding the junta accountable: Chile’s “sitios de memoria” and the history of torture, disappearance, and death”. Radical History Review, 79: 123-139. ). É, em parte, graças a esse ex-prisioneiro que foi possível reconstruir os espaços tal qual eram na época da Dina, os quais foram representados, em miniatura, em uma maquete disposta no início do percurso. Como Matta teve de se exiliar nos Estados Unidos, fala inglês e consegue apresentar o lugar aos estrangeiros. Foi ele próprio que teve a iniciativa de publicar a sua visita em inglês, a fim de difundir o trabalho de memória da Villa Grimaldi (Matta, 2000). A particularidade da visita de Matta reside no seu caráter performativo: ao falar dos prisioneiros, o ex-torturado passa imperceptivelmente de “eles” a “nós” e de “nós” a “eu”, e nos projeta com empatia no cotidiano dos sequestrados. Ele faz o tour do conjunto, mostrando uma por uma as etapas pelas quais passavam os presos: a entrada pelo portão de ferro com os olhos vendados, o amontoamento de quatro ou cinco presos em uma cela de 2 x 1 m, o isolamento individual em uma cela de 1 x 1 m, onde não era possível se mexer, a tortura em uma cama elétrica na torre dos suplícios, o afogamento na água suja da piscina, o enforcamento na última árvore que sobrara no jardim… No momento mais dramático da visita, Matta se senta em um muro onde, com seus companheiros, podia descansar um momento e até trocar alguns gestos de solidariedade, recolhendo um resto de humanidade. É nesse momento que uma emoção profunda começa a ser transmitida ao público, emoção que explode em lágrimas no momento em que Matta nomeia os amigos desaparecidos em frente ao Muro dos Nomes.

Alguns críticos suspeitam que a visita de Matta possa ser “falsa”, já que ele chora sempre no mesmo momento, como se fosse um one-man-show bem executado que traísse a “autenticidade” do que deveria ser transmitido ali (relato de Meade, 2001MEADE, Teresa A. (2001), “Holding the junta accountable: Chile’s “sitios de memoria” and the history of torture, disappearance, and death”. Radical History Review, 79: 123-139. ). Mas isso seria não levar em conta a palavra do próprio guia quando ele diz que se sente vazio depois da visita, e que precisa de uma aspirina para conseguir dormir. Continuação da performance? Talvez. Mas à maneira de um ator que não “finge” sofrer, mas que sofre de verdade no palco, colocando em jogo as suas próprias emoções, as emoções da sua experiência vivida. Essa técnica dramática, que poderíamos chamar de “stanislavskiana” (em homenagem a Stanislavski, que fundou o seu método de atuação baseado na memória afetiva e na experiência vivida dos atores [Stanislavski, 1970]), combina bem com o objetivo humanitário do ex-prisioneiro: denunciar a violação dos direitos mais básicos do ser humano representando de novo, na própria carne, o espanto da dor. A visita de Matta se aproxima (mas será que o atinge?) deste ponto crítico que a maior parte das vítimas testemunham: o mais difícil não é sofrer a tortura imposta por outro homem, mas dar-se conta de que esse outro é capaz de martirizar o seu semelhante sem nenhum freio moral, e às vezes com uma espécie de gozo singular ( Le Breton, 1995LE BRETON, David. (1995), Anthropologie de la douleur. Paris, Métailié. ). Produz-se uma espécie de desmoronamento ontológico do mundo, uma quebra de confiança no exterior, na humanidade – essa mesma humanidade que tem de ser protegida por uma jurisdição internacional que defenda os direitos humanos. Foi precisamente esse ponto de quebra que os torturadores quiseram atingir para, através de um efeito de ricochete, fazer com que os amados, os amigos e os familiares das vítimas também perdessem a confiança frente à potência daqueles bárbaros. Apesar de se aproximar desse ponto profundo, fenomenológico, a narrativa de Matta quase o apaga dentro de uma narrativa que, no fundo, é triunfalista: por sorte, os direitos humanos triunfaram sobre essa barbárie anacrônica rejeitada em um passado definitivamente fechado, sem comparação possível com o presente de nossas democracias. Como em uma tragédia, o espectador, tendo passado por um momento catártico de sofrimento em sintonia com o ator, volta a si mesmo, purificado.

Brecht contra Stanislavski? A visita de Roberto Merino é antípoda daquela de Matta. Longe de representar de novo o sofrimento, este ex-prisioneiro o mantém, ao contrário, a distância, e explica ao seu público que pretender contá-lo seria um engano, pois a experiência da tortura é inefável por natureza. Merino apoia o seu discurso em teorias de alto nível, como Adorno sobre Auschwitz ou Foucault sobre o panóptico, para descrever o Lager como dispositivo de poder. Ele também publicou sobre a Villa Grimaldi, mas em um lugar de debate científico e político ( Merino Jorquera, 2008MERINO JORQUERA, Roberto. (2008), “La experiencia concentracionaria chilena (1973-1977). Memoria, olvidos y silencios de un centro secreto de secuestro”. Actuel Marx. Intervenciones: Memorias en Busca de Historia, 6: 87-100. ). Em seu texto, o guia sinaliza, inspirando-se implicitamente em Bachelard, que é preciso se esforçar em uma “ruptura epistemológica” para passar das noções (humanistas) da dor, do sofrimento e da tortura às outras, mais “objetivas” (ao menos foucaultianas), do castigo, do internamento e da exterminação. Insiste também, de outra maneira, nesse buraco ontológico do qual estávamos falando: um poder onipotente triunfa sobre vidas nuas, desarmadas e tornadas cegas, enquanto o torturador está vestido, armado e pode ver, em uma promiscuidade corporal que só reforça a distância psíquica. Sugere, ainda, que este poder se inscreve na carne, dando a entender que essa inscrição se compreende menos na própria carne do que na cadeia de poder implicada na sua mordida. Merino, ele próprio capturado e bastante torturado neste lugar, não compartilha a sua experiência na visita: remete-nos ao que ela tem de intransmissível e à nossa própria vigilância frente a todos os dispositivos de poder ainda hoje ativos. Em lugar de buscar uma empatia, provoca um efeito de distanciação ( Entfremdung em Brecht, que podemos traduzir também por “estranhamento” [Brecht, 1967]) em relação ao que até hoje nos parecia familiar (nossos próprios procedimentos policiais e jurídicos) e que nos parece agora estranho, até mesmo inquietante.

Talvez a passagem da encenação stanislavskiana à encenação brechtiana na visita guiada do parque expresse a passagem, na condição de vítima, da “experiência traumática” ao “testemunho do indizível” ( Fassin e Rechtman, 2007FASSIN, Eric & RECHTMAN, Richard. (2007), L’empire du traumatisme: enquête sur la condition de victime. Paris, Flammarion. , p. 113). Nesse sentido, Matta e Merino testemunham menos a sua própria condição de vítima do que a economia moral da época na qual eles encontraram seu lugar para falar. Mais profundamente ainda, o contraste entre o discurso de Matta, construído ao longo dos anos 1990, e o discurso de Merino, atualizado ao final dos anos 2000, pode refletir uma mudança de nossa própria relação coletiva com o tempo. Nos anos 1990, depois da queda do Muro de Berlim e do desmoronamento do império soviético, parecia que o mundo tinha entrado no reino generalizado da democracia liberal enquanto garantia do respeito aos direitos humanos. Nos anos 2000, depois dos atentados contra o World Trade Center e dos maus-tratos em Guantánamo, parece que o mundo está ameaçado por uma volta geral da barbárie, até mesmo no coração dos Estados ditos democráticos. De uma confiança ingênua na linha contínua do tempo, passamos a uma desconfiança e a uma inquietação permanentes. O olhar em direção ao futuro estava cheio de uma nova esperança, confortada por uma nova ordem internacional com instituições garantidoras dos direitos humanos (culminando com a concepção da Corte Penal Internacional, em 1998, e a captura de Pinochet no território britânico, no mesmo ano, por um juiz espanhol). Porém, esse olhar tornou-se turvo frente às novas ameaças globais, elas próprias tendo surgido de um passado de violências as quais pensávamos ser possível esquecer, mas que estavam somente silenciadas, prontas para surgir de novo.

É conforme a essas duas relações opostas com o tempo – uma épica, outra trágica – que os guias do Parque por la Paz organizam em palavras o que o espaço dispõe em artefatos: enquanto a narrativa de Matta se harmoniza com a transfiguração do sofrimento em expiação gerada pelo eixo simbólico e pela fonte, a de Merino convém mais aos elementos desconfortantes que perturbam essa simbologia praticamente religiosa. O arame farpado que cerca o parque é o vestígio inquietante do horror no meio das cores redentoras dos mosaicos. Como observou Miguel Lazzara em uma análise perspicaz (2003, p. 133), a água suja da piscina, sinalizada como “lugar do espanto” pelo mosaico informativo, contrastava com a água clara da fonte que se pretendia redentora (agora, tanto uma quanto a outra estão secas, acusando outro tipo de sintoma: a memória esgotada). O Muro dos Nomes e os monumentos aos partidos políticos transformam o parque em um cemitério imprevisto, e a reconstituição da Torre do Horror e das celas onde os sequestrados foram maltratados e torturados deixa o conjunto muito mais inquietante.

Ao mesmo tempo, as próprias reconstituições, um pouco artificiais, de antigos elementos do Cuartel Terranova contêm uma tensão similar entre o horror e a beleza, entre o velho e o novo, entre a barbárie das torturas passadas e a cultura do lugar de memória presente. De fato, é preciso fazer um esforço de imaginação para considerar as celas como os testemunhos reconstruídos do horror que aconteceu ali. Além disso, no muro dos desaparecidos se destacam, como relevos, fósseis marinhos que lembram a serenidade da natureza evocada pelas folhas minerais da fonte e da entrada: será que este gênero de sentimento oceânico convém a uma lista de prisioneiros ainda repleta, como se pode constatar, de buracos alarmantes (desaparecidos cujos corpos nunca foram encontrados)?

Figura 12
Muro dos Nomes (detalhe). Foto de Berdet, 2017.

Figura 13
Monumento aos partidos políticos: o MIR. Foto de Berdet, 2017.

Figura 14
Monumento aos partidos políticos: a Unidade Popular. Foto de Berdet, 2017.

Figura 15
Piscina. Foto de Berdet, 2017.

Figura 16
Torre do Horror. Foto de Berdet, 2017.

Figura 17
Uma cela: Casa Corvi. Foto de Berdet, 2017.

Figuras 18, 19, 20
Os fósseis do Muro dos Nomes (detalhes). Fotos de Berdet, 2017.

O Parque pela Paz Villa Grimaldi se assemelha a uma forma sintomática nascida de uma pressão dos políticos para se fazer o luto um pouco rapidamente demais, para se virar a página pela força da vontade, mas sem considerar o traumatismo em toda a sua consistência. Dominick LaCapra (2014)LACAPRA, Dominick. (2014), Writing history, writing trauma. Baltimore, John Hopkins University Press. vê dois obstáculos a uma elaboração exitosa do trauma em nível coletivo: uma é o distanciamento factual e positivista, que mantém o narrador de segundo grau (o historiador) longe da experiência vivida do trauma (a vítima), contribuindo para a sua denegação; outra é a identificação total com a vítima, que projeta quem relata seu testemunho em uma zona de repetição e de mimetização da dor na sua própria narrativa. A primeira atitude permite a conservação de um certo pacto social, a custo de um recalque ameaçador para o futuro. A segunda atitude incentiva, ao contrário, a fundação de uma comunidade a partir de um traumatismo coletivo, que serve de mito fundador em nome do qual a própria consistência da comunidade (quem ela exclua, por exemplo) e as suas ações não podem ser criticadas. O caso do parque Villa Grimaldi dá a impressão de uma perlaboração em bom curso que foi interrompida para dar lugar a uma reconciliação precipitada, na base do mito da superação dos horrores da história em um estado de direito pretensamente definitivo. A dissonância flagrante entre os elementos espantosos do Parque (a piscina, o arame farpado, as celas, a Torre do Horror) e seus elementos pacificadores (as águas puras da fonte, as folhas de pedra, o Jardim das Rosas, os mosaicos informativos de cerâmica) testemunha uma passagem brutal do horror à beleza, do traumatismo à sua superação – tão brutal que testemunha menos a realização efetiva dessa passagem do que a sua impossibilidade.

Os fósseis da história

Há um monumento, no entanto, que rompe com a ambiguidade do horror embelezado: o Monumento Trilhos de Quintero6 6 . A baía de Quintero, vinte quilômetros ao norte de Valparaíso, foi um lugar onde os corpos dos assassinados pela ditadura eram jogados a partir de helicópteros, presos a trilhos para não emergirem. Vários trilhos foram encontrados lá e foram considerados provas nos processos judiciais contra os carrascos. , um cubo de metal fincado no chão como se estivesse naufragando. Quando o visitante entra nesse cubo, se encontra primeiro na escuridão forçada pela retina, que passou do sol do lado de fora à obscuridade dessa espécie de cripta. Aos poucos, distingue um espetáculo ao qual se acostumou nos museus de história natural: a reconstituição de esqueletos a partir de fragmentos. Em seguida, porém, se dá conta de que esses fragmentos são alternativamente pedaços de vias férreas e colunas vertebrais quebradas de seres humanos: é o que sobra dos prisioneiros depois de terem sidos lançados de um helicóptero ou de um avião, amarrados a um trilho para afundarem tão profundamente a ponto de nunca mais serem encontrados. O monumento representa, ao mesmo tempo, a emersão do que a ditadura quis fazer desaparecer e da própria técnica atroz de apagamento dos traços dos seus crimes. Em vez de naturalizar a história como fazem as esculturas do parque, este monumento historiciza a natureza ao revelar os fósseis produzidos por um regime político. A vila de Peñalolén é a casa da “pedra que chora” (ver mais adiante), não porque os choros frente ao muro dos desaparecidos se perdem no fundo dos oceanos (os vivos perdidos na lembrança infinita dos mortos), mas porque os próprios fósseis sobem de novo à superfície, carregados de sangue e de lágrimas (os mortos interpelando os vivos).

Figuras 21, 22 e 23
O Monumento Trilhos de Quintero. Foto de Berdet, 2017.

A “modernidade barroca” perdida

Os fósseis que sobem de novo à superfície no Monumento Trilhos de Quintero nos lembram que é importante voltar à origem da presença do homem nesse lugar que pretendemos estudar, porque ela é típica da história chilena. O bairro onde surgiu a Villa Grimaldi e suas atrocidades se chama, até hoje, Peñalolén. Esse nome que os Mapuches do Pikun Mapu (ou Picunches) deram ao vale significa “a pedra que chora”. Não foi escolhido porque era uma terra de sangue e de lágrimas – isso aconteceria bem depois, com o homem branco –, mas porque a água brotava das rochas. Os Mapuches sofreram a violência dos Incas, que os conquistaram de forma sangrenta. E os próprios Incas, por sua vez, sofreram a violência da conquista dos espanhóis.

Em 1544, o capitão Pastene conquistou as terras dos Picunches desde a atual comuna de Ñuñoa até os Andes, ao nordeste de Santiago. No século XVII, seu neto jesuíta, Alonso de Ovalle, conseguiu se associar com os indígenas para explorar os solos do vale. Enquanto isso, o próprio capitão Pastene estava escrevendo o novo início da história da Europa católica em terra americana. No entanto, no século XVIII, a monarquia ficou mais intransigente, e não tolerou mais esses missionários considerados muito permissivos7 7 . Como o dominicano espanhol Bartolomé de Las Casas, que acreditava que os indígenas também tinham alma (Las Casas, 2007). . Uma vez mais, a colonização violenta ganharia em detrimento do “humanismo civilizatório”.

Pode-se analisar o fracasso do episódio jesuíta de Peñalolén nos termos do fracasso da possibilidade de uma modernidade barroca, tal como problematizada por Bolívar Echeverría (1998)ECHEVERRÍA, Bolívar. (1998), La modernidad de lo barroco. México: Era. . Ao final do século XVI, com efeito, os indígenas, em vias de exterminação por causa da violência da Conquista iniciada no século XV, tinham duas opções: ou desaparecer, ou apropriar-se dos códigos dos espanhóis a partir da sua própria cultura, para transformá-los transformando-se. Nesse processo, chamado de “mestiçagem” ou, superando-se as metáforas biológicas, de “codigofagia”, os indígenas tinham os jesuítas como aliados, os quais compartilhavam a necessidade de refundar a relação com a transcendência fora do dogma católico, como estava sendo criticado pela Reforma Protestante. O impulso barroco da Contrarreforma, tão presente na estética da Europa meridional, correspondia a uma subversão da ortodoxia clássica em direção a uma pulsação vital e a uma relação viva com a natureza, isto é, mais além da dominação rígida do espírito sobre a natureza e da razão sobre as paixões, o que, com as ideologias jansenistas, calvinistas e iluministas (ao contrário das jesuítas, luteranas e românticas), antecipava a racionalidade instrumental e o sacrifício dos instintos necessários ao capitalismo. Uma modernidade barroca, alternativa à modernidade “realista” ou “clássica” do capitalismo, teria podido surgir desse encontro histórico entre os jesuítas – que viajaram até a América para tentar uma refundação do sagrado depurado das críticas ao catolicismo – e os indígenas, que, sobreviventes dos massacres e das doenças trazidas pelos conquistadores, estavam a fim de apropriar-se dos códigos católicos para sobreviver (o culto de Nossa Senhora de Guadalupe é o exemplo paradigmático de tal apropriação). É assim que Peñalolén pode ser considerado uma miniatura desse encontro perdido na história, mas que continua subterraneamente, expressando-se aqui ou ali nas obras de arte ou nos comportamentos, como o do padre jesuíta José Aldunate, que, defendendo os direitos humanos durante a ditadura, retomava algo dessa história subterrânea, a mesma que foi implicitamente reconhecida no momento em que deram a ele as chaves da Villa Grimaldi para transformá-la, em 1997, em um lugar de paz.

Figura 24
Vista de Peñalolén antes de sua urbanização. Alejandro Cicarelli, Vista del Valle de Santiago desde Peñalolén (1853). Ver http://centroderecursos.educarchile.cl/handle/20.500.12246/40232.

Poderíamos dizer, então, que a rocha de Peñalolén era, até o século XIX, a “pedra que chora” enquanto chorava esse encontro perdido entre brancos e indígenas, que teria podido inaugurar uma outra modernidade. A rocha testemunha a história da violência e da colonização chilena, isto é, do fechamento da possibilidade de uma modernidade barroca em favor da modernidade capitalista: expropriação dos Mapuches pelos Incas, os quais foram submetidos à coroa espanhola, a qual, por sua vez, acabou expulsando os seus missionários mais aptos ao diálogo com o outro.

Figura 25
Fotografia do edifício no início do século XX, exposta na Sala da Memória, aberta ao público em 2004. Foto de Berdet, 2017.

O edifício construído no século XIX em Peñalolén inaugurou uma nova era, a da modernidade capitalista das independências nas Américas, isto é, de uma outra oportunidade perdida para valorizar uma modernidade alternativa, o que fez com que as nações sul-americanas acabassem se submetendo mais drasticamente ainda ao superego produtivista dos até então colonizadores (Echeverría, 2010-2011). Um advogado e político de origem peruana, Juan Egaña – redator, em 1823, da primeira Constituição chilena –, foi quem adquiriu as terras ancestrais dos Picunches. Com o apoio do arquiteto francês Paul Lathaud (que também foi o autor de um monumento à burguesia industrial, o edifício da Exposição Internacional do Chile de 1875 [Exposition Internationale du Chili de 1875, 1874]), Egaña construiu o que somente nos anos 1960 se chamaria Villa Grimaldi: uma casa de campo em estilo sóbrio vitoriano correspondente à austeridade do capitalismo inglês, feita com tijolos e sustentada por uma série de colunas dóricas de madeira, lembrança do ideal clássico da burguesia da época.

A “casa dos Egaña”, como se dizia na época, reunia a burguesia esclarecida daquele tempo. Com o seu filho Mariano, Juan Egaña convidava, a cada fim de semana, os mais finos espíritos contemporâneos, todos a favor da independência, para conversar sobre a ciência, o comércio e a diplomacia. Frequentador da casa, o humanista Andrés Bello chegou a escrever uma ode a Peñalolén, que resume o espírito da época. O escritor celebra, fazendo homenagem aos proprietários “ilustres” e “virtuosos”, os bosques pacificadores que abrigam, longe do “barulho corruptor do mundo”, as “lições frutuosas da experiência, a concórdia, a filantropia universal, a política sensata, o bom gosto e a ciência” (Bello, 1952, pp. 223-224, tradução livre). A oposição entre o “mundo corruptor” e a razão incorruptível, e a apologia à “política sensata” e ao “bom gosto” (o mau gosto sendo atribuído, nesta linha convencional de pensamento, aos exageros barrocos) resumem a ética austera do capitalismo herdeiro da Ilustração, e o segundo fechamento da opção barroca.

A pré-história da Villa Grimaldi como salão público de compartilhamento pacífico e progressista de ideias e gostos continua ao longo do século XIX. Em 1869, o embaixador uruguaio José Arrieta Perrera herda a casa. É lá que ele elabora o seu programa de escolas primárias, de associações filantrópicas e de escolas para os pobres, enquanto perpetua a tradição dos fins de semana culturais. Mas é o seu filho, Luis Arrieta Cañas, que retoma essa tradição na sua dimensão vanguardista: enquanto a burguesia chilena mais superficial se diverte com o lirismo italiano, ele introduz as sonoridades estranhas e graves das composições audaciosas de Wagner, espécie de dissonância barroca ou romântica dentro do ideal clássico dominante. Um ensaísta e crítico literário influente, Hernán Diaz Arrieta (cuja família não era a mesma da dos donos da casa), de pseudônimo Alone, entre uma celebração da poeta Gabriela Mistral e uma ode à língua chilena, faz a caracterização mais exitosa de Villa Grimaldi dessa época: “uma colônia inspirada” ( Marín, 2002MARÍN, Germán. (2002), “El Palacio de la risa”. In: MARÍN, Germán. Un animal mudo levanta la vista. Santiago, Random House Mondadoria, pp. 8-105. , p. 64).

Do público ao segredo (1973-1989)

Apesar de suas letras e sua cultura, Alone era um anticomunista fervoroso. Apoiou o golpe de Estado de Pinochet, na onda da elite assustada com o programa de socialização democrática da Unidade Popular, mas certamente não imaginava que, depois do 11 de setembro de 1973, a sua “colônia inspirada” se transformaria em um centro de tortura, morte e desaparecimento. Ainda nos anos 1960, a casa havia recebido Pablo Neruda, Gabriel Garcia Márquez, Fidel Castro e… o próprio Salvador Allende. Porém, já em 1965, a época do salão inspirado tinha acabado para dar lugar ao mau gosto, então pseudoclássico. Emilio Vassollo Rojas, o novo proprietário, decidiu rebatizar a casa como Villa Grimaldi, um sobrenome que vinha do seu lado paterno. O rebatismo, feito com o pretexto de recuperar um nome de família, era uma tentativa de sedução da burguesia retrógrada de Santiago, que considerava o verniz italiano tingido de referências francófilas como se fosse a verdadeira cultura. Tratava-se de realçar a cultura humanista do Renascimento, isto é, a cultura “clássica”, que tinha vencido as estranhezas jesuítas. Rojas valorizou o lirismo do jardim e de suas estátuas estilo renascentista, e chegou a escrever o texto seguinte – distante das revoluções wagnerianas dos Arrieta – em uma brochura, datada de 1967, destinada a valorizar o seu bem no mercado imobiliário:

Este extravagante espelho d’água, um dos três que existem na vila, inclui no seu seio a Corneta de Fontainebleau8 8 . Não encontrei uma “Corneta de Fontainebleau” específica na minha pesquisa. Parece uma colagem fantasmagórica que aglutina o franco- e o ítalo-tropismo no imaginário cultural da burguesia chilena. A corneta é um instrumento de sopro típico do Renascimento, destinado a soprano, e da qual Monteverdi fez um uso famoso. Fontainebleau é uma cidade no sudoeste de Paris, conhecida pelo seu castelo cujo estilo mistura o classicismo francês e o Renascimento italiano; nesse castelo, cercado de jardins à la française pontuados de fontes ornamentadas e de elegantes esculturas, moraram muitos reis. , da qual se diz que sai, nas noites de lua cheia, uma música de sonho. Feita de bronze e ferro, ninguém pode descrever a sua beleza ( Rojas, 1967ROJAS, Emilio Vassalo. (1967), Villa Grimaldi, historia y características de las grandes mansiones. Santiago, Siglo XX. , s.p., tradução livre).

Apesar dessa publicidade dos sonhos, Rojas não conseguiu vender a sua vila. No entanto, transformou a casa em uma sala de recepção chique para as famílias abastadas. Mas isso não era suficiente, então abriu um restaurante no espaço. Depois, finalmente, inaugurou, longe de Wagner, uma discoteca bem atrativa para a juventude dourada de Santiago. Chamava-se O Paraíso – um nome bem infeliz em comparação com o que aconteceria ali.

Alguns antropólogos acreditam que a passagem da “casa dos Arrieta” à discoteca “O Paraíso” seja uma passagem do privado ao público, a partir da qual o espaço familiar se abriria a um público de consumidores ( Aguilar, 2000AGUILAR, Mario I. (out. 2000), “El muro de los nombres de Villa Grimaldi: exploraciones sobre la memoria, el silencio y la voz de la historia”. European Review of Latin American and Caribbean Studies, 69: 81-88. e 2005). Isso parece ser uma interpretação ao menos superficial. Se definimos o espaço público não somente como um espaço aberto ao público (interpretação puramente econômica), mas, mais profundamente, como um espaço que gera uma opinião e uma discussão pública (interpretação política [ Habermas, 1984HABERMAS, Jürgen. (1984), Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro. ]), então é preciso dizer que a passagem foi, ao contrário, do público ao privado. A casa dos Arrieta era o lugar de uma confrontação de opiniões e gostos suscetível a reformar a sociedade, mesmo se isso se desse somente nos limites burgueses9 9 . Oskar Negt e Alexander Kluge criticaram a esfera pública de Jürgen Habermas, a qual se reduziria à dimensão burguesa de tomada de palavra e de decisão, para distingui-la de uma “esfera pública oposicional”, que permitiria valorizar a experiência proletária ( Negt e Kluge, 1972 ). . A discoteca O Paraíso, por sua vez, com a sua música exclusivamente norte-americana, era um lugar de distração de uma juventude privilegiada que odiava a União Popular10 10 . Sobre a União Popular e as reações que suscitou, ver Winn (1986) e Gaudichaud (2013 e 2017). : não era um lugar de confrontação de opiniões, e sim de ratificação de uma determinada opinião através de uma prática de distinção apoiada por um capital econômico. De certa maneira, a discoteca foi o primeiro recalque de um pedido de justiça social, que se transformaria em uma repressão violenta com a ditadura militar, e, mais tarde, em uma tentativa de apagar toda essa história contraditória com um luxo aparentemente fora do tempo.

Do público ao privado, e do privado ao segredo: é dessa maneira que se pode qualificar a passagem da “casa dos Arrieta” à “Villa Grimaldi”. O segredo começa com a transferência da casa de Rojas para os militares. Até hoje não se sabe exatamente o que aconteceu. A polícia política de Pinochet teria sequestrado a filha de Rojas, que era ativista no Movimento de Esquerda Revolucionário (MIR), para fazer uma chantagem: sua filha só seria solta depois da transferência do título de propriedade para um coronel da junta.

É assim que, pouco depois do golpe de Estado de 11 de setembro de 1973, a ditadura militar tomou posse da Villa Grimaldi. Em dezembro, a repressão sequestrou ali dois militantes do MIR, Bautista van Schouwen e Patricio Munita (Guzmán, 1998; Verdugo, 1997VERDUGO, Patricia. (1997), El caso arellano: los zarpazos del puma. Santiago, Cesoc. ). Serão os dois primeiros prisioneiros e assassinados da Villa Grimaldi. Seguiram-se a eles, até 1978 (data em que os militares do Cuartel Terranova se mudam de lugar), mais 4.500 pessoas, das quais mais de 240 foram assassinadas11 11 . A cada ano, o Chile conta com um número maior de vítimas da ditadura civil-militar de Pinochet, e a diferença depende de quem faz a conta: uma corporação (os militares), uma instituição (como as Comissões da Verdade de 1991, 2003 e 2011, chamadas Rettig , Valech I e Valech II ) ou uma associação (de defesa das vítimas). O segundo informe Valech da Comissão Nacional Sobre Prisão Política e Tortura, publicado em 2011, conta, sem considerar os exilados ou as famílias dos atingidos, mais de 40 mil vítimas da ditadura, somando-se presos políticos, torturados, executados e desaparecidos, dentre os quais mais de 3 mil foram executados e desaparecidos. Em 2019, as associações de familiares de vítimas (como as de Villa Grimaldi, Londres 38, Paine…) contam perto de 50 mil pessoas perseguidas e mais de 5 mil desaparecidas, jogadas no mar ou no deserto. Na época da Villa Grimaldi, havia oitenta centros de detenção e de tortura em Santiago, e oitocentos em todo o Chile. A Villa Grimaldi foi o primeiro de todos, pelo qual passaram aproximadamente 4.500 pessoas, das quais mais de 240 foram executadas ou permanecem desaparecidas. As informações são constantemente atualizadas no site do Instituto Nacional de Direitos Humanos ( https://bibliotecadigital.indh.cl/ ) e no site da Corporação pela Paz Villa Grimaldi ( http://villagrimaldi.cl ). Novas informações são regularmente publicadas pelo Centro de Documentação do Museu da Memória ( https://ww3.museodelamemoria.cl/ ). . Ainda hoje a lista de nomes dos que passaram pela Villa Grimaldi (visível no Muro dos Nomes do Parque) aumenta, seja porque ex-prisioneiros reconhecem agora o lugar onde foram sequestrados, seja porque alguma testemunha se recorda de ter visto passar por lá um desaparecido. Sabe-se que a junta militar tinha o costume de jogar os corpos em alto-mar, de aviões ou helicópteros, amarrados a um lastro; ou de enterrá-los no deserto de Atacama, fazendo assim desaparecer uma existência. Pessoas que saíram de casa ou do trabalho desapareceram de repente, sem que nunca se soubesse o que lhes aconteceu. Existências interrompidas, arrancadas da rua, torturadas até a morte ( Shaugnessy, 2000SHAUGNESSY, Hugh O’. (2000), Pinochet: the politics of torture. Nova York, New York University Press. ). Até hoje, famílias de desaparecidos exploram as profundezas do mar e triam os grãos do deserto na esperança de reconhecer um vestígio de um familiar ou de um amigo, e de poder, enfim, fazer o seu luto12 12 . O cineasta Patricio Guzmán rendeu uma homenagem poética a essas pesquisadoras do ouro da memória de Atacama em Nostalgia da luz (2010). .

O que ainda sobrava da casa dos Arrieta, sob a discoteca O Paraíso, foi destruído pelos militares. Colocaram tudo abaixo: abaixo as plantas importadas da Europa, abaixo as alamedas cheias de estátuas. Surgem os caminhões do desaparecimento e da morte, surgem as sinistras cabanas de madeira que separariam homens e mulheres e serviriam para isolá-los e torturá-los. Em cima do muro elegante de tijolos, colocou-se arame farpado. Na entrada, estabeleceu-se uma pesada porta metálica que separava definitivamente o lugar da rua, ameaçando o pedestre, que precisava desviar o olhar como um animal apavorado. A violência do mercado capitalista não precisava mais de uma estética clássica e humanista para dissimular as suas faltas de alternativas: podia se expor na pureza do seu liberalismo autoritário ( Chamayou, 2019CHAMAYOU, Grégoire. (2019), La société ingouvernable: une généalogie du libéralisme autoritaire. Paris, La Fabrique. ).

Um homem mudo levanta os olhos

A literatura também permite, à sua maneira, proustiana, fazer ressurgir a memória de um passado engolido. O escritor chileno Germán Marin escreve, em 1995, um conto dedicado à Villa Grimaldi, ironicamente intitulado “O palácio do riso”. Esse conto apresenta um narrador-personagem que, depois de sete anos de um exílio começado em 1976, volta aos lugares da sua infância – neste caso, a própria Villa Grimaldi –, que nesse meio-tempo haviam se tornado o lugar do crime ( Marín, 2002MARÍN, Germán. (2002), “El Palacio de la risa”. In: MARÍN, Germán. Un animal mudo levanta la vista. Santiago, Random House Mondadoria, pp. 8-105. )13 13 . O escritor retoma aqui um poema de 1978, publicado na revista chilena Auracaria n. 3, Madri, 1978, pp. 178-181. Agradeço de todo o coração a Macarena García Moggia, que me recomendou esse livro desde que soube que eu trabalharia a Villa Grimaldi. Depois me dei conta de que o mesmo texto havia inspirado uma apaixonante interpretação crítica de Michael Lazzara (2006 , pp. 141-146). . Esse espaço devastado, atravessado por arames farpados, sem os majestosos álamos da juventude do poeta, com escadas em ruínas e com a gloriosa piscina de mármore agora padecendo de frinchas esverdeadas, constitui o palco onde o narrador rememora os últimos instantes de felicidade da casa. Ele se lembra de sua amizade com o companheiro de escola que lá morava nos anos 1960, das tapeçarias florais à maneira do socialista utópico William Morris, das decorações com painéis góticos e dos vitrais art nouveau , da coleção de pinturas e de esculturas (as suas primeiras emoções eróticas), do pavilhão metálico inspirado no Jardim do Luxemburgo, dos jardins assinados por Georges Dubois (o paisagista do Parque Florestal de Santiago) e dos moradores com ideais progressistas que se encantavam por Gustave Eiffel, miravam as estrelas e tocavam Chopin – em suma, da paz e da humanidade que lá reinavam. Lembra-se também de ter querido ver como a casa se degradara ao se tornar uma discoteca, e de tê-la visitado em um momento de ebriedade carnal com o seu amor da época, Mónica. Como ela desaparecera misteriosamente desde o golpe de Estado, o narrador – e, com ele, o leitor – imagina o pior (assassinada? torturada?) e começa a procurá-la, sem desconfiar que a imagem dela ressurgirá precisamente onde ele a havia deixado, mas de uma maneira imprevista: lá está ela, na beira da piscina, tomando sol nua, ao lado de um feroz dobermann que cochila enquanto pessoas são torturadas na casa. Uma cúmplice dos assassinos, como Luz Arce e a “flaca Alejandra”14 14 . A própria Luz Arce publicou, no início da “transição democrática” do Chile, o seu testemunho (1993), o qual, desde então, foi bastante analisado (ver, por exemplo, a crítica bem contextualizada de Richard, 2010 , pp. 69-138). Sobre “Alejandra, a magra”, ver o inquietante documentário de Carmen Castillo, La Flaca Alejandra , 1993. , Alexandra, a magra. Entre o testemunho de uma ex-prisioneira que o narrador, exilado, descobre nas páginas de um jornal nacional e os sentimentos do personagem que retornou fisicamente ao espaço devastado, Marín escreve, lapidário: “Perto da piscina de mármore surgia a fonte reflexiva” ( Marin, 2002MARÍN, Germán. (2002), “El Palacio de la risa”. In: MARÍN, Germán. Un animal mudo levanta la vista. Santiago, Random House Mondadoria, pp. 8-105. , p. 67).

Depois de anos de uma busca permeada de nostalgia amorosa e de inquietação política, a imagem de Mónica se revela (terrível iluminação) na Villa Grimaldi – sob a forma de uma torturadora . A ficção abalada pelos arquivos incompletos da ditadura15 15 . À maneira de Bernardo Kucinsky (2014) ou Patrick Modiano (1998): usar todos os tipos de materiais para reconstruir a história, na ausência de traços deixados pelos regimes autoritários ou totalitários. Em busca de uma história aberta . provoca no mesmo espaço o choque das temporalidades na bruma dos destinos históricos – choque que o parque, como lugar de memória, isto é, como arquivo submetido a uma narração rígida, seria incapaz de operar: o narrador, sentado aqui, em 1983, na beira da piscina; o mármore que lembra a “casa dos Arrieta” de 1869, com suas ramificações humanistas até o século XX; um dos três espelhos d’água, cuja extravagância onírica era exaltada pela brochura pomposa de 1967, antes da decadência da discoteca; e, finalmente, o “lugar de terror” que constituía a piscina depois de 1973, sob as ordens de Miguel Krassnoff, o sádico.

Coperpetrador da destruição da residência de Salvador Allende no dia do golpe de Estado, Krassnoff, capitão de origem ucraniana, se divertia torturando as suas vítimas submergindo-as na água negra da piscina, o que as fazia vomitar quando os seus pulmões ficavam cheios de água ou defecar sob o efeito do pavor. O coronel Pedro Espinoza, dito Don Rodrigo, decidiu, então, que era melhor limpar aquela água para o lazer pessoal. A imagem literária de Mónica nos remete a outra imagem, real, dos capangas de Pinochet, os quais, tendo cumprido o trabalho sujo, relaxavam à sombra das árvores onde, como nos ramos do ombu centenário, se praticava a tortura. Além disso, o animal negro que cochila ao seu lado lembra implacavelmente os cães adestrados por Ingrid Olderock – outra terrível mulher cúmplice de Pinochet – para estuprar as prisioneiras, de preferência sob os olhos dos seus amados16 16 . A prática era ainda mais habitual no lugar onde os cães eram adestrados, a sinistra Venda Sexy (também em Santiago), lugar de sequestro e de tortura assim chamado pelo uso da venda nos prisioneiros e pela aplicação de torturas sexuais. Os torturadores chamaram de “Bellodilla” o cão adestrado para esse serviço, tomando o nome de um chefe do partido comunista. O cão apresentado no conto de Germán Marín lembra, além disso, a continuidade da impunidade na democracia: é bem sabido que Ingrid Olderock, essa cúmplice ativa dos torturadores de Pinochet, vive agora tranquilamente com uma pensão do Estado. Sobre a tortura em Villa Grimaldi e em outros lugares, ver Salazar (2013) , Rojas (1995) e Ahumada e Méndez (2003) . . Sinal da barbárie feita pelo homem, que o escritor descreve assim:

[…] a vitória não consistia necessariamente em provocar a morte do outro, mas sim em obter a satisfação da sua aniquilação, fazendo dele um animal inofensivo e, em particular, domado, mudo ( Marín, 2002MARÍN, Germán. (2002), “El Palacio de la risa”. In: MARÍN, Germán. Un animal mudo levanta la vista. Santiago, Random House Mondadoria, pp. 8-105. , p. 94, tradução livre).

Figuras 26, 27 e 28
Primeira publicação do conto de Germán Marín, sob a forma de um poema preparatório, durante a ditadura, em 1978, na revista de resistência cultural Araucária de Chile , editada em exílio em Madri.

O que os torturadores não tinham previsto nessa negação da humanidade era a reviravolta operada pela poesia de Rainer Maria Rilke, da qual o escritor chileno empresta o título do seu livro, Um animal mudo levanta os olhos: “Às vezes, acontece de um animal mudo levantar os olhos e nos atravessar com seu olhar tranquilo” (Rilke, in Marín, 2002MARÍN, Germán. (2002), “El Palacio de la risa”. In: MARÍN, Germán. Un animal mudo levanta la vista. Santiago, Random House Mondadoria, pp. 8-105. , epígrafe, retraduzida a partir do alemão).

Esse olhar penetrante é o da criatura (aqui, a criatura que sofre) que vai mais além do que o homem que tem uma relação instrumental com o mundo (aqui, uma relação puramente instrumental com outro homem, seja na procura por informações por meio da tortura, seja no puro gozo com a dor do outro). No entanto, o animal não é sempre inofensivo, manso e mudo. Pode ser também penetrante e hostil. Pode ser que a tranquilidade do seu olhar esgotado pela tortura acuse a fratura ontológica do mundo cometida pela banal estupidez do mal. Quando um homem que queremos reduzir ao estado de animal dócil levanta, contudo, os olhos, restitui, mais além das necessidades instrumentais do tempo presente, a dimensão antropológica do sofrimento e do direito à felicidade e, ao mesmo tempo, as camadas históricas atravessadas por estes desejos perdidos, concentrados em um espaço que se faz cristal de tempo: século XVII, o encontro entre os jesuítas e os indígenas; 1869, o humanismo liberal da casa dos Arrieta; 1965, o capitalismo imobiliário e consumista da Villa Grimaldi e da discoteca O Paraíso; 1974, o horror do Quartel Terranova; 1983, o devaneio de uma terra inculta; 1995, um parque pela paz. Essa colisão de temporalidades, quando um homem que retorna do exílio se senta sobre um muro e deixa chegarem as imagens desordenadas do passado, fratura a temporalidade homogênea e vazia do triunfo progressivo e definitivo dos direitos humanos sobre a barbárie. O conto, em vez de operar como o parque e reconfortar o visitante, dizendo-lhe que isso não acontecerá nunca mais, lembra ao leitor que a exceção bárbara é uma constante da história da humanidade, e desperta as suas suspeitas quanto à narrativa plana demais que pretende fazê-lo esquecer disso.

Conclusão

A Villa Grimaldi testemunha que a oposição entre “memória” e “recalque” não é suficiente para resumir a situação atual de confrontação entre uma amnésia organizada pelos (ex-)militares através das leis de (auto)anistia impostas à sociedade no momento da transição democrática e de uma luta pelo reconhecimento conduzida pelos familiares das vítimas, seja no Chile, na Argentina, no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo. O caso chileno mostra que qualquer tipo de memória, e mesmo de memória voluntarista, pressupõe também um esquecimento, um recorte e uma tentativa, consciente ou não, de deixar algumas partes do acontecimento na sombra, independentemente das boas intenções dos empreendedores da memória. Um lugar não é somente trabalhado, como uma massa inerte, por uma memória voluntária que objetiva estruturar uma memória pública. No seu terreno também pode surgir, através de um detalhe topográfico, de uma obra de arte ou de um conto experimental, uma memória imprevista. O fato de os lugares sempre tenderem a incorporar mais a memória não voluntária – assim como o fato de nosso olhar, tanto o antropológico quanto o comum, ser mais sensível a tal memória – testemunha que as novas formas de apreensão do tempo não respondem mais a uma lógica de “lugares de memória” ( Nora, 1997NORA, Pierre. (1997), Les lieux de mémoire. Paris, Gallimard. ), e sim a uma lógica de “espaços de reminiscência” ( Berdet, 2018BERDET, Marc. (2018), “Se souvenir des futurs perdus: Walter Benjamin et la mémoire politique chilienne”. Cités, 74 (2): 105-118. ). Isto é, essas novas formas respondem à lógica de um surgimento do passado dentro do presente e até de um pedido de incorporação, pelo próprio passado, da história dentro de nosso presente.

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  • WINN, Peter. (1986), Weavers of revolution: the yarur workers and Chile’s road to socialism. Nova York, Oxford University Press.
  • 1
    . Esta pesquisa foi realizada entre janeiro e agosto de 2017 a partir de observações, visitas, participação em eventos, entrevistas livres com os gestores, os guias e o público, e da documentação presente nos arquivos de Villa Grimaldi e do Museo de la Memoria y los Derechos Humanos. Por se tratar de um problema sociológico de memória coletiva não necessariamente cristalizada em um discurso objetivo, mas que circula entre artefatos, discursos e interações, preferi usar o método antropológico de “observação flutuante” – inspirado na psicanálise – a outros métodos mais objetivantes ( Pétonnet, 1982PÉTONNET, Colette. (1982), “L’observation flottante: l’exemple d’un cimetière parisien”. L’Homme, 22 (4): 37-47. ). A observation flottante foi definida como “método possibilitado pelo caráter aberto do espaço público urbano que permite investigar no anonimato fazendo observações (visuais, sonoras) ao longo das evoluções no campo” ( Raulin, 2001RAULIN, Anne. (2001), Anthropologie urbaine. Paris, Armand Colin. , p. 177, tradução livre). Como vamos ver, neste caso se trata não apenas do espaço público no sentido concreto do termo (um parque), mas também no sentido mais abstrato de esfera pública (a formação de uma memória pública).
  • 2
    . Walter Benjamin convida a um materialismo histórico reformado capaz de “descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total” (2009, p. 503). Tal materialismo micrológico, no entanto, é mais um materialismo topográfico do que um materialismo histórico no sentido estritamente temporal: concentra-se menos nas sequências históricas do que nas topografias urbanas, que formam Zeit-traum ( Idem , p. 434), espaços carregados simultaneamente de tempo ( Zeitraum , espaço de tempo) e de sonhos coletivos ( Zeit-traum , sonho de tempo).
  • 3
    . Não consegui descobrir o que esta sigla significa.
  • 4
    . Tratava-se da assembleia permanente pelos direitos humanos de Peñalolén e de La Reina. Para mais detalhes, ler Gómez-Barris (2009GÓMEZ-BARRIS, Macarena. (2009), Where memory dwells: culture and state violence in Chile. Berkeley/Los Angeles, University of California Press. , p. 51 ss.).
  • 5
    . Para mais detalhes sobre os debates em torno da Villa Grimaldi e da luta pela memória no Chile, ver Baxter (2005)BAXTER, Victoria. (2005), “Civil society promotion of truth, justice and reconciliation: Villa Grimaldi”. Peace and Change – A Journal of Peace Research, 30 (1): 120-136. e Klep (2012)KLEP, Katrien. (2012), “Tracing collective memory: Chilean truth commissions and memorial site”. Memory Studies, 5 (3): 259-269. .
  • 6
    . A baía de Quintero, vinte quilômetros ao norte de Valparaíso, foi um lugar onde os corpos dos assassinados pela ditadura eram jogados a partir de helicópteros, presos a trilhos para não emergirem. Vários trilhos foram encontrados lá e foram considerados provas nos processos judiciais contra os carrascos.
  • 7
    . Como o dominicano espanhol Bartolomé de Las Casas, que acreditava que os indígenas também tinham alma (Las Casas, 2007).
  • 8
    . Não encontrei uma “Corneta de Fontainebleau” específica na minha pesquisa. Parece uma colagem fantasmagórica que aglutina o franco- e o ítalo-tropismo no imaginário cultural da burguesia chilena. A corneta é um instrumento de sopro típico do Renascimento, destinado a soprano, e da qual Monteverdi fez um uso famoso. Fontainebleau é uma cidade no sudoeste de Paris, conhecida pelo seu castelo cujo estilo mistura o classicismo francês e o Renascimento italiano; nesse castelo, cercado de jardins à la française pontuados de fontes ornamentadas e de elegantes esculturas, moraram muitos reis.
  • 9
    . Oskar Negt e Alexander Kluge criticaram a esfera pública de Jürgen Habermas, a qual se reduziria à dimensão burguesa de tomada de palavra e de decisão, para distingui-la de uma “esfera pública oposicional”, que permitiria valorizar a experiência proletária ( Negt e Kluge, 1972NEGT, Oskar & KLUGE, Alexander. (1972), Öffentlichkeit und Erfahrung. Zur Organisationsanalyse von bürgerlicher und proletarischer Öffentlichkeit. Frankfurt, Suhrkamp. ).
  • 10
    . Sobre a União Popular e as reações que suscitou, ver Winn (1986)WINN, Peter. (1986), Weavers of revolution: the yarur workers and Chile’s road to socialism. Nova York, Oxford University Press. e Gaudichaud (2013GAUDICHAUD, Franck. (2013), Venceremos! Analyses et documents sur le pouvoir populaire au Chili. Paris, Syllepse. e 2017).
  • 11
    . A cada ano, o Chile conta com um número maior de vítimas da ditadura civil-militar de Pinochet, e a diferença depende de quem faz a conta: uma corporação (os militares), uma instituição (como as Comissões da Verdade de 1991, 2003 e 2011, chamadas Rettig , Valech I e Valech II ) ou uma associação (de defesa das vítimas). O segundo informe Valech da Comissão Nacional Sobre Prisão Política e Tortura, publicado em 2011, conta, sem considerar os exilados ou as famílias dos atingidos, mais de 40 mil vítimas da ditadura, somando-se presos políticos, torturados, executados e desaparecidos, dentre os quais mais de 3 mil foram executados e desaparecidos. Em 2019, as associações de familiares de vítimas (como as de Villa Grimaldi, Londres 38, Paine…) contam perto de 50 mil pessoas perseguidas e mais de 5 mil desaparecidas, jogadas no mar ou no deserto. Na época da Villa Grimaldi, havia oitenta centros de detenção e de tortura em Santiago, e oitocentos em todo o Chile. A Villa Grimaldi foi o primeiro de todos, pelo qual passaram aproximadamente 4.500 pessoas, das quais mais de 240 foram executadas ou permanecem desaparecidas. As informações são constantemente atualizadas no site do Instituto Nacional de Direitos Humanos ( https://bibliotecadigital.indh.cl/ ) e no site da Corporação pela Paz Villa Grimaldi ( http://villagrimaldi.cl ). Novas informações são regularmente publicadas pelo Centro de Documentação do Museu da Memória ( https://ww3.museodelamemoria.cl/ ).
  • 12
    . O cineasta Patricio Guzmán rendeu uma homenagem poética a essas pesquisadoras do ouro da memória de Atacama em Nostalgia da luz (2010).
  • 13
    . O escritor retoma aqui um poema de 1978, publicado na revista chilena Auracaria n. 3, Madri, 1978, pp. 178-181. Agradeço de todo o coração a Macarena García Moggia, que me recomendou esse livro desde que soube que eu trabalharia a Villa Grimaldi. Depois me dei conta de que o mesmo texto havia inspirado uma apaixonante interpretação crítica de Michael Lazzara (2006LAZZARA, Michael J. (2006), Chile in transition: the poetics and politics of memory. Gainesville, University of Florida Press. , pp. 141-146).
  • 14
    . A própria Luz Arce publicou, no início da “transição democrática” do Chile, o seu testemunho (1993), o qual, desde então, foi bastante analisado (ver, por exemplo, a crítica bem contextualizada de Richard, 2010RICHARD, Nelly. (2010), Crítica de la memoria. Santiago, Diego Portales. , pp. 69-138). Sobre “Alejandra, a magra”, ver o inquietante documentário de Carmen Castillo, La Flaca Alejandra , 1993.
  • 15
    . À maneira de Bernardo Kucinsky (2014) ou Patrick Modiano (1998)MODIANO, Patrick. (1998), Dora Bruder. Rio de Janeiro, Rocco.: usar todos os tipos de materiais para reconstruir a história, na ausência de traços deixados pelos regimes autoritários ou totalitários. Em busca de uma história aberta .
  • 16
    . A prática era ainda mais habitual no lugar onde os cães eram adestrados, a sinistra Venda Sexy (também em Santiago), lugar de sequestro e de tortura assim chamado pelo uso da venda nos prisioneiros e pela aplicação de torturas sexuais. Os torturadores chamaram de “Bellodilla” o cão adestrado para esse serviço, tomando o nome de um chefe do partido comunista. O cão apresentado no conto de Germán Marín lembra, além disso, a continuidade da impunidade na democracia: é bem sabido que Ingrid Olderock, essa cúmplice ativa dos torturadores de Pinochet, vive agora tranquilamente com uma pensão do Estado. Sobre a tortura em Villa Grimaldi e em outros lugares, ver Salazar (2013)SALAZAR, Gabriel. (2013), Villa Grimaldi (Cuartel Terranova): historia, testimonia, reflexión. Santiago, Villa Grimaldi/Corporación Parque Por la Paz. , Rojas (1995)ROJAS, Carmen. (1995), Recuerdos de una mirista. Santiago, Edição manuscrita Jose Miguel Bravo. e Ahumada e Méndez (2003)AHUMADA María Elena & MÉNDEZ Juanita. (2003), Segundo informe: testimonios de tortura en Chile. Septiembre de 1973 a marzo de 1990. Santiago, Archivo Codepu. .

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    2 Out 2018
  • Aceito
    2 Jan 2020
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br