Acessibilidade / Reportar erro

Entrevista com Monique de Saint Martin As elites em face às reconversões, bifurcações e fronteiras sociais

Monique de Saint Martin é socióloga, diretora de estudos da École des Hautes Études en Sciences Sociales (ehess)1 1 E-mail: monique.de-saint-martin@ehess.fr. Orcid: 0000-0003-0316-6703. e é membro do Institut de Recherche Interdisciplinaire sur les Enjeux Sociaux (iris). Realizou e dirigiu inúmeras pesquisas sobre sociologia das elites, sociologia do poder e sociologia da educação, entre outros temas, e fez parte da equipe de pesquisadores coordenada por Pierre Bourdieu, quando escreveu diversos artigos com o autor, como o seminal Anatomie du goût, publicado na Actes de la Recherche en Sciences Sociales, em 1976Bourdieu, Pierre & Saint Martin, Monique de. (1976), “Anatomie du gout”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2(5): 2-81. A lista de publicações de Saint Martin é extensa, mas damos destaque ao livro L’espace de la noblesse (Edição Métailié, 1993). A entrevista foi realizada de forma remota, em julho de 2022.

Monique, eu li na entrevista que você cedeu ao ffyh (Faculdade de Filosofia e humanidades da Universidade de Córdoba, Argentina)2 2 Essa entrevista foi realizada por Mónica Maldonado, da Universidade Nacional de Córdoba, Argentina. Disponível em: https://ffyh.unc.edu.ar/ciffyh/los-sociologos-se-deben-comprometer-con-los- movimientos-de-defensa-de-los-derechos-humanos/ que você já abordou o tema de conversão e reconversão em entrevistas. Contudo, esse tema é muito caro para a sociologia brasileira que estuda elites, com inspiração em seus estudos e em Pierre Bourdieu. Nesse sentido, gostaria que você retomasse a definição de conversão e reconversão e falasse também sobre a distinção/semelhança que esses termos possuem com os estudos de mobilidade social, a fim de nos contar um pouco mais sobre eles, a partir de sua experiência empírica.

Monique de Saint Martin (msm): Agradeço muito a vocês, Maria e Thais, pela proposta desta conversa em torno de temáticas e questões que me preocupam há muito tempo, começando pela questão das reconversões.

Antes de tudo, gostaria de dizer que seria arriscado propor definições de noções tais como reconversão e conversão; elas correm o risco de ser redutoras e de dar uma ideia substancial das noções. Há 50 anos que trabalho e reflito sobre e em volta das reconversões; quanto mais as pesquisas progridem, mais me parece complicado propor uma definição. Além disso, é muito difícil determinar a partir de que momento se dá a reconversão. Prefiro procurar compreender e explicar o sentido dessas noções e o que as caracteriza.

Operar uma reconversão é, para os membros de uma classe ou de uma parcela de classe, operar “uma mudança de estratégias e de instrumentos de reprodução destinada a reproduzir ou elevar sua posição, abandonando sua condição”, dissemos no artigo escrito com Pierre Bourdieu e Luc Boltanski, publicado em 1973 (Bourdieu, Boltanski, Saint Martin, 1973Bourdieu, Pierre; Boltanski, Luc & Saint Martin, Monique de. (1973), “Les stratégies de reconversion. Les classes sociales et le système d’enseignement”. Information sur les Sciences Sociales, 12(5): 101.). As estratégias de reconversão eram então inscritas no conjunto das estratégias de reprodução, sem serem estratégias de reprodução propriamente ditas, na medida em que a mudança estava na sua base.

Mais tarde, sobretudo após 1989 e a queda do muro de Berlin, a noção de reconversão foi usada cada vez mais amplamente, sobretudo pelos pesquisadores que estudavam os países da Europa do leste; aliás, essa noção foi relativamente banalizada. Esse movimento se dissolveu parcialmente; no entanto, pesquisas continuam sendo feitas em vários países.

O que é revelado, em várias pesquisas, é que as reconversões designam o conjunto das ações e reações permanentes pelas quais um grupo social se empenha em manter ou mudar sua posição dentro da estrutura social. Elas se traduzem em deslocamentos - no espaço social de atores ou de grupos de atores - provocados por grandes transformações políticas (por exemplo, a queda do muro de Berlin, a Revolução de 1917 na União Soviética e a guerra civil que a ela se seguiu) ou por transformações mais estruturais (transformações das formas de propriedade, dos modos de reprodução), com o abandono de posições estabelecidas e o ingresso em novos setores.

As reconversões dos descendentes da antiga nobreza que, na França, muitas vezes reconverteram seu capital social e seu capital simbólico em capital econômico - ao fazer valer, por exemplo, seu sobrenome e seu título de nobreza na publicidade, nas relações públicas ou então no mercado de arte, nas galerias de arte ou no paisagismo de parques e jardins - chamaram especialmente minha atenção (Saint Martin, 1993Saint Martin, Monique de. (1993), L’espace de la noblesse. Paris, Métailié (Collection Leçons de choses).).

As reconversões recorrem, muitas vezes, à escola; posso citar a reconversão de capital econômico em capital escolar, por exemplo, para filhos de agricultores ou de comerciantes na França dos anos 1960-1970. Pode haver, inversamente, reconversões de capital escolar em capital econômico ou de capital burocrático em capital econômico (por exemplo, na Rússia, a transição da antiga nomenklatura para as grandes empresas privatizadas após 1989). Há também “reconversões militantes” quando antigos militantes sindicais ou políticos fazem uma transição para organizações humanitárias ou gabinetes de consultoria; uma obra coletiva, coordenada por Sylvie Tissot, foi dedicada a essas reconversões (Tissot, Gaubert, Lechien, 2005Tissot, Sylvie; Gaubert, Christophe & Lechien, Marie Hélène (org.) (2005), Reconversions militantes. Prefácio de Yvon Lamy. Limoges, Presses Universitaires de Limoges, p. 10.).

Vocês me perguntam, também, quais são as relações entre as reconversões e as diferentes formas de mobilidade. Pitirin A. Sorokin, o pai fundador do conceito de “mobilidade social”, o definia como “o fenômeno do deslocamento de indivíduos dentro do espaço social” (Sorokin, 1927Sorokin, Pitirin A. (1927), Social mobility. Nova York, Harper and Brothers (Reed. aumentada, Social and cultural mobility. Glencoe, The Free Press, 1959, reed. 1964).). Estudar a mobilidade social é, de fato, observar as condições de deslocamento dos indivíduos dentro de uma escala; a mobilidade social sendo geralmente solidária a uma representação das sociedades como escalas com graus mais ou menos numerosos, mais ou menos afastados, como salientaram Dominique Merllié e Jean Prevot em seu livro (Merllié, Prevot 1991Merllié, Dominique & Prevot, Jean. (1991), La mobilité sociale. Paris, La Découverte, p. 21 (Coll. Repères).). No entanto, como pude mostrar me apoiando nas investigações e pesquisas feitas na França, na Rússia e em vários países do leste europeu, as reconversões não podem ser entendidas apenas como formas de mobilidade ou circulação ligadas a diferentes imposições ou ao efeito de atração exercido pela abertura de novas possibilidades; elas supõem, de fato, uma forma de ruptura com a herança, uma dissolução dos antigos recursos e uma recomposição desses recursos baseada em bases diferentes (Saint Martin, 2022Saint Martin, Monique de. (2022), “Rumo a uma abordagem dinâmica para reconversões”. Estudos de Sociologia, Araraquara, 27, jan./dez.).

As noções de reconversão e conversão são, às vezes, usadas de maneira mais ou menos sinônimas; por exemplo, por Victor Karady que estudou, entre outras, a conversão de descendentes da burguesia judia comerciante, industrial ou financeira e profissional liberal, sobreviventes do genocídio, dentro do aparelho stalinista entre 1945 e 1956. Parece-me que é preferível distinguir as duas noções e escolher a noção de conversão quando se trata de um processo, mais ou menos enquadrado, de transformação mais radical e total, que designa, antes de tudo, mudanças de crenças religiosas e de disposições. Por isso, para o caso dos sindicalistas brasileiros que antes não viam com bons olhos o dinheiro de fundos de pensão e que, sob o governo Lula, apoiaram e encorajaram a criação e o desenvolvimento dos fundos de pensões sindicais no Brasil, me pareceu interessante propor a análise desse processo como sendo uma grande conversão (Saint Martin, 2009Saint Martin, Monique de. (2009), “Prefácio”. In: Jardim, Maria Chaves, Entre a solidariedade e o risco. Sindicatos e fundos de pensão em tempos de governo Lula. São Paulo, Annablume, pp. 9-18 (Col. Trabalho e Contemporaneidade).).

Eu acrescentaria que as reconversões supõem uma mobilização de recursos detidos, um trabalho incessante sobre recursos engajados no processo. A mobilização desses recursos e a atividade produzem “um mundo novo” que não é determinado de antemão. Os movimentos de reconversão não são, de fato, nunca unilineares e não constituem o resultado de uma decisão única. Eles se apresentam geralmente como um encadeamento de eventos, circunstâncias, etapas, encontros e, às vezes, rupturas; os atores engajados nesses processos dinâmicos entram muitas vezes em contradição e são dilacerados pelos vários universos que procuram conciliar ao negociar acordos.

Assim, o processo de reconversão dos antigos nomenklaturistas, dentro de empresas ou associações russas, não era organizado em torno de uma lógica única; assistíamos bem mais a adaptações, acordos e reconfigurações (Chmatko, Saint Martin, 1997Chmatko, Natalia & Saint Martin, Monique de. (1997), “Les anciens bureaucrates dans l’économie de marché en Russie”. Genèses, 27: 88-108, juin.). Muitas vezes, como apontou David Stark, os atores reconstruíram ou reutilizaram as antigas organizações e as instituições (Stark, 1996Stark, David. (1996), “Recombinant property in East European capitalism”. American Journal of Sociology, 101 (4): 993-1027, janv.), participaram da instauração de uma economia de um tipo novo que não é nem economia do tipo socialista, nem economia de mercado propriamente dita, entraram em contradição e articularam com as diferentes possibilidades que se apresentavam.

Certamente, deveríamos recorrer à noção de reconversão apenas quando há uma ruptura entre a herança anterior, os antigos recursos detidos e, portanto, uma certa forma de imprevisibilidade, de dissolução dos antigos recursos seguida de uma recomposição baseada em bases diferentes e de uma reconstrução identitária.

No Brasil, no passado e ainda hoje, surgiram várias oportunidades de se analisar os processos de reconversão, geralmente, complexos. Assim, para tomar apenas um exemplo, Afrânio R. Garcia pôde analisar como os descendentes das famílias de grandes fazendeiros em declínio se reconverteram em líderes da revolução de 1930 e elites políticas nacionais (Garcia, 1993Garcia Jr., Afrânio. (1993), “Reconversion des élites agraires. Du pouvoir local au pouvoir national”. Études Rurales, 131-132: 89-106, juillet-déc.).

No mundo atual que está vivendo um forte aumento de incertezas, de crises e tragédias econômicas, políticas, sociais e sanitárias, parece-me desejável tentar apreender não apenas as reconversões, mas também os processos antagônicos às reconversões que exercem efeitos de afastamento, de separação na medida em que o projeto de reconversão ou conversão se torna distante. Também me parece desejável explorar a noção de desconversão. Não seria mais apropriado prestarmos atenção ao que se refere a indivíduos e grupos ou parcelas, na emergência do processo de desconversão, em vez de a uma sociedade em seu conjunto? Esta noção de desconversão, sugerida por Robert Castel (Castel, 1995Castel,Robert. (1995), Les métamorphoses de la question sociale. Paris. Fayard.), iria além da ideia de “desclassificação”? Se, como sugeria Maurice Halbwachs, desclassificar-se é “passar de um grupo que conhecemos, e que nos valoriza, para outro que nos ignora e que não nos dá nenhum motivo para querermos sua estima” (Halbwachs, 1930Halbwachs, Maurice. (1930), Les causes du suicide, Paris, Alcan.), desconverter-se seria, sobretudo - após uma forte ruptura política, social ou econômica - passar de um grupo ou de um lugar conhecido para um espaço de turbulências em que não há mais pontos de referência que nos permitam saber de que grupo fazemos parte, em que os antigos recursos não são praticamente mais válidos, em que a tensão entre vários universos se torna intolerável.

Parece, assim, necessário explorar a variedade de caminhos e de percursos seguidos pelos atores durante as reconversões, conversões e desconversões; principalmente os caminhos tomados pelos que se encontram “entre dois” grupos ou “entre duas” posições sem que haja, no entanto, uma infinidade de itinerários individuais isentos de imposições e regularidades.

Gostaria que você comentasse um pouco os estudos sobre bifurcação na França. Esse tipo de conceito se aproxima do conceito de reconversão social ou pode ser visto a partir de outro olhar? Quando nos referimos, por exemplo, às classes baixas brasileiras que sofreram um processo de mobilidade ascendente durante o governo Lula, poderíamos considerar esse processo como uma bifurcação ou uma reconversão? Ou as duas coisas?

MSM: As reconversões podem parecer bastante semelhantes às bifurcações exatamente na medida em que a ideia de ruptura - com a herança, o passado, as antigas atividades - é central tanto para a análise das bifurcações quanto para a análise das reconversões. No entanto, a análise das reconversões leva bem mais em conta os processos e os diferentes recursos detidos pelos atores do que a análise das bifurcações em que se presta uma grande atenção aos acontecimentos desencadeadores, às sequencias de ações, às rupturas e em que se ressalta a imprevisibilidade das situações. Marc Bessin, Claire Bidart e Michel Grossetti propuseram um repertório muito esclarecedor da questão das bifurcações na sociologia e publicaram uma obra memorável (Bessin, Bidart, Grossetti, 2010Bessin, Marc; Bidart, Claire & Grossetti, Michel (Dirs). (2010), Bifurcations. Les sciences sociales face aux ruptures et à l’événement. Paris, La Découverte.). Eles explicam, notadamente, que as abordagens que se interessam pelas bifurcações se inscrevem, geralmente, na linha de estudos de Georg Simmel. A bifurcação designa uma mudança importante e brutal na orientação da trajetória, imprevisível tanto para o ator quanto para o sociólogo. A exclusão explícita da contingência e dos acontecimentos é bem evidente na sociologia francesa, particularmente nos estudos que se inscrevem na linhagem durkheimiana. De fato, a sociologia durkheimiana é, em grande parte, fundada contra a tentativa de explicação dos fenômenos históricos através dos acontecimentos.

O caso das classes populares brasileiras que viveram os deslocamentos, seja em direção da classe média, seja em direção de uma nova forma de proletariado, durante o governo Lula, é impressionante pela sua amplitude e pelo fato de que esse processo foi rapidamente seguido por outro processo - dessa vez, de declínio - durante os governos que sucederam os de Lula e de Dilma Rousseff; há aí, claramente, um efeito dessas políticas. Dito isso, para responder a sua pergunta, eu precisaria saber o que, exatamente, fizeram (tipo de atividade ou emprego ocupado e escolarização das crianças) aqueles e aquelas que tiveram uma ascensão e que não constituem um conjunto homogêneo, de modo que não é possível responder de maneira unívoca. Sem dúvida, certos grupos ou parcelas das classes populares deste imenso conjunto - estamos falando de 40 milhões de pessoas, envolvidas nesses deslocamentos dentro do espaço social, que conheceram uma real melhora de condições de vida - tentaram reconversões ou incentivaram a reconversão de seus filhos. Além do mais, seria necessário saber e especificar o que os membros desses grupos eventualmente reconverteram.

Sem dúvida mais fecunda quando aborda em uma situação dada a indivíduos e grupos restritos, a problemática das reconversões seria menos pertinente quando tentamos empregá-la para explicar as mudanças na vida de coletividades mais amplas (instituições, sociedades)3 3 Essa conclusão vai ao encontro das conclusões de Alain Dewerpe quando ele se interessa pela noção de estratégia na obra de Bourdieu (Dewerpe, 1996). . Teriam certos atores operado bifurcações? É bem provável e acredito que sim.

Como você vê o processo de enriquecimento das elites mundiais e a precarização e marginalização das classes sociais mais baixas nesse período de pandemia? No Brasil, nós estamos vendo um retrato de um país que volta a ter muitas pessoas passando fome em meio à administração do governo Bolsonaro. Na França ocorre o mesmo, ou as políticas de seguridade social tem dado conta de cuidar dessa população marginalizada?

MSM: As elites de quase todos os países do mundo, sobretudo as elites das tecnologias, enriqueceram muito e continuam enriquecendo descaradamente durante a pandemia da Covid-19 que se prolonga e passa por várias reviravoltas. As desigualdades se agravaram de maneira trágica com o Covid.

Um milhão de francesas e franceses caíram na miséria. Na França, a desigualdade, entre os mais favorecidos e os mais desfavorecidos, aumentou dentro da escola e os estudantes se encontraram, muitas vezes, em situações dramáticas. Um dos sinais mais fortes e visíveis dessa crise é a explosão da ajuda alimentar. No entanto, a situação é diferente da observada no Brasil; segundo uma recente pesquisa do insee, não teria ocorrido, na França, um aumento muito importante da pobreza. São as pobrezas “já instaladas” que sofreram mais e para as quais o governo provém apenas respostas pontuais; a pandemia agravou a intensidade da pobreza; a organização Le Secours Catholique apontou, em seu relatório anual de 2021, que as filas de espera foram aumentando diante dos centros de distribuição alimentar.

Observamos um forte aumento de insegurança, sobretudo entre as pessoas em situação mais precária, mas também entre as da classe média. O debate a respeito das políticas a serem adotadas se mantém acirrado na França atualmente; diante da crescente precarização, a carência de poder de compra se tornou uma preocupação crescente e um tema central dos debates.

Também é preciso ressaltar que ocorreu, desde o início da pandemia, o que podemos chamar de uma crise moral: um aumento de estados depressivos, de ansiedade diante do futuro, de stress e suas graves consequências para as crianças e para os jovens.

Hoje, em 2022, é difícil dissociar os efeitos da pandemia do Covid dos efeitos da guerra na Ucrânia, do aquecimento global, das mudanças climáticas, da seca e das políticas sobre o aumento das desigualdades e da grande pobreza no mundo. O grande economista Thomas Piketty, que sempre denunciou a explosão das desigualdades que irromperam nesses últimos 40 anos no mundo todo, nos lembra com justeza, em seu último livro, que na linha do tempo da história, desde 1789 - a revolução francesa - e 1791 - a revolta dos escravos em Santo Domingo - as desigualdades regrediram e que o combate contra elas deve ser prosseguido (Piketty, 2021Piketty, Thomas. (2021), Une brève histoire de l’égalité. Paris, Ed. du Seuil.).

Em seus estudos você retoma a questão da fronteira social. Igualmente, gostaria que você indicasse a importância desse conceito para o estudo das elites.

MSM: Por muitos anos, estudamos com Mihaï D. Georghiu e um grupo de pesquisadores e doutorandos de quatro países - Brasil, França, Romênia e Suécia - em diferentes contextos sociais, os efeitos das experiências educativas sobre a construção e a redefinição das fronteiras entre os grupos sociais. E procuramos compreender como é que dentro de diferentes grupos sociais - famílias de imigrantes, classes populares, classes médias, burguesias - se transmitia o sentido das diferentes fronteiras através da educação (Saint Martin, Gheorghiu, Montvalon, 2010Saint Martin, Monique de; Gheorghiu, Mihai D. (Dirs.) & Montvalon, Bénédicte de (Coord.). (2010), Education et frontières sociales. Un grand bricolage, Paris, Michalon.). Na França, enfatizamos a pesquisa sobre a fronteira que separa e opõe os que, nesses diferentes grupos, estão “estabelecidos”, instalados, e que ocupam posições bem estáveis aos que estão mais para “outsiders”, em posições instáveis; para tanto, nos inspiramos na distinção feita por Norbert Elias, em Logiques de l’exclusion entre established e outsiders, a partir do estudo feito nos anos 1950 numa comunidade operária situada perto de Leicester na Inglaterra (Elias, Scotson, 1997Elias, Norbert & Scotson, John L. (1997), Logiques de l’exclusion: Enquête sociologique au cœur des problèmes d’une communauté. Prefácio de Michel Wieviorka, Paris, Fayard (1re édition française).).

É sobre as burguesias, que são, no seu conjunto, muito expeditas ao erguer o que poderíamos chamar de muralhas protetoras em volta delas, que eu tive a oportunidade de refletir e trabalhar nesta pesquisa. Com Barbara Bauchat, estudei as fronteiras dentro das burguesias a partir de uma investigação realizada em Strasbourg e pudemos mostrar a fronteira que separa a burguesia de passagem, que mora há apenas dois ou três anos na cidade, e a burguesia estabelecida que lá vive há muito tempo; algumas, por várias gerações. A parcela da burguesia que nós chamamos de “burguesia de passagem” é majoritariamente mais móvel, internacionalizada e geralmente se apoia na mudança e a suscita para se desenvolver. No entanto, ao mesmo tempo, ela levanta muralhas em sua volta, desenvolvendo um sistema de forte cooptação em suas relações e para seus filhos. A burguesia estabelecida é, geralmente, mais conservadora, mais ancorada em suas posições e, também, mais ameaçada dentro do mundo contemporâneo.

No Brasil, a equipe coordenada por Ana Maria Almeida conduziu sua pesquisa principalmente em três bairros socialmente contrastantes do distrito residencial de Barão Geraldo da cidade de Campinas. Ela conduziu a pesquisa dentro das famílias estendidas - incluindo avós, pais e filhos - e também nas escolas públicas e privadas em que esses filhos estão sendo escolarizados; isso permitiu uma melhor percepção do que depende, de um lado, das famílias de diferentes grupos sociais e, de outro, das escolas na transmissão e no aprendizado das diferentes fronteiras.

Se, de maneira geral, as burguesias e as elites parecem firmes em sua vontade de ignorar as fronteiras sociais e geográficas, elas são uma das primeiras a investir em proteções e muralhas como o demonstra muito bem a existência de numerosos condomínios no Brasil e em outros países. Seria necessário desenvolver pesquisas sobre as elites, seus diferentes grupos e suas modalidades ambíguas de utilização das fronteiras e de jogo com as fronteiras.

Pierre Bourdieu e sua equipe renovaram a sociologia na França. Em 2022 temos 20 anos da morte de Pierre Bourdieu. Do seu ponto de vista, qual é a força da sociologia deixada por Bourdieu 20 anos depois?

MSM: Bourdieu foi o autor de uma obra científica vasta e muito rica; ao mesmo tempo sociológica, antropológica, histórica, filosófica, uma obra de ciências sociais que não se limita a uma disciplina acadêmica estritamente definida. Sua contribuição vai além da sociologia. A revista Actes de la recherche en sciences sociales - que foi, no seu início, em 1975, uma formidável inovação dentro das ciências sociais - atesta a importância da renovação trazida por Bourdieu e por aqueles e aquelas que trabalharam com ele na pesquisa e na escrita das ciências sociais.

Especificarei também que a experiência argelina foi determinante para Bourdieu. Em sua caminhada da filosofia em direção à sociologia, as investigações e pesquisas na Argélia - com Abdelmalek Sayad, Mohamed Boukobza, Alain Darbel, Claude Seibel e Mouloud Mammeri, entre outros - desempenham um papel muito importante. Sem a passagem pela Argélia, talvez não tivesse ocorrido a conversão de Bourdieu da filosofia para a sociologia, nem a transformação de sua visão de mundo.

“Como todo verdadeiro sociólogo”, Bourdieu “sempre uniu o trabalho de campo, o conhecimento, a análise dos problemas e a reflexão sobre sua abordagem” explicava Alain Touraine (Touraine, 2002Touraine, Alain. (2002), “Il était une référence - positive ou négative - indispensable”. Libération, Propos recueillis par José Garçon, 25 janvier.). Essa é uma das características mais importantes de sua obra e de sua concepção da sociologia. Bourdieu tinha, antes de tudo, este gosto pelo trabalho de campo, pela investigação; ele se interrogava sobre a relação entre conceptualização, teoria e campo; e sempre se manteve atento às observações do trabalho de campo.

Esse interesse contínuo pelo trabalho de campo, esse vai e vem entre trabalho de campo e conceptualização eram, para Bourdieu, inseparáveis de uma preocupação, revelada bem cedo, em “restituir, aos homens, o sentido de seus atos” (Bourdieu, 1962Bourdieu, Pierre. (1962), “Célibat et condition paysanne”. Études Rurales, 5-6: 109.). Aprender a se conhecer, a se situar, refletir sobre sua posição, realizar um trabalho prévio de “lucidez sobre si mesmo” como o diz tão bem Rose Marie Lagrave, eram suas grandes exigências.

Bourdieu parece, sobretudo nos últimos anos de vida, ter optado por uma ampla consideração das possibilidades de contestação social. De fato, me parece impossível ignorar o fato de que um profundo sentimento de rebeldia e de revolta contra a ordem universitária, assim como contra as desigualdades, as injustiças, o neoliberalismo, a dominação econômica inspirava Bourdieu. Também é impossível ignorar o fato de que ele incomodava frequentemente e tinha boas razões para incomodar. Ele sempre relembrava que o conhecimento dos determinismos pode favorecer a liberdade e a ação e, assim, a sociologia pode ser um instrumento de libertação; “mas ela suscita muito pouca ilusão” para que o “sociólogo possa considerar-se, por um instante sequer, como tendo a função do herói libertador” (Bourdieu, 1984Bourdieu, Pierre. (1984), Homo Academicus, Paris, Editions de Minuit, p. 16).

Várias obras e numerosos artigos foram escritos por Bourdieu com seus colegas, ou com jovens pesquisadores que se empenharam em dar um novo impulso à sociologia e às ciências sociais, e em propor inovações; tratava-se de um empreendimento coletivo, de uma escola sociológica ou de um grupo de pesquisa? Bourdieu esteve empenhado em fazer pesquisas, escrever uma obra e, também, em constituir e desenvolver o que pode ser descrita como sendo uma escola sociológica internacional, uma escola “bourdieusiana” de sociologia que propõe conceitos, métodos de pesquisa e uma abordagem sociológica original. Não se trata de uma escola sociológica francesa como no caso de Durkheim, Simiand e Mauss, mas de uma escola sociológica internacional com alunos da maioria dos países europeus, da América do Norte, de vários países da América do Sul, da Austrália, do Japão, da Coreia, de uma parcela (embora pequena) de países da África e que também pode ser vista como uma empresa científica transnacional. Se muitas obras, artigos e teses foram dedicados a Bourdieu, a história daquelas e daqueles que trabalharam com ele - as colaborações, divergências, rupturas, amizades e inimizades dentro desse grupo de pesquisa (em suas várias gerações), as experiências muito diversas e muito ricas da divisão de trabalho - foi iniciada e ainda tem muito a ser feito e escrito.

  • 3
    Essa conclusão vai ao encontro das conclusões de Alain Dewerpe quando ele se interessa pela noção de estratégia na obra de Bourdieu (Dewerpe, 1996Dewerpe, Alain. (1996), “La ‘stratégie’ chez Pierre Bourdieu. Notes de lecture”. Enquête, 3: 191-208.).

Referências Bibliográficas

  • Bessin, Marc; Bidart, Claire & Grossetti, Michel (Dirs). (2010), Bifurcations. Les sciences sociales face aux ruptures et à l’événement. Paris, La Découverte.
  • Bourdieu, Pierre. (1962), “Célibat et condition paysanne”. Études Rurales, 5-6: 109.
  • Bourdieu, Pierre. (1984), Homo Academicus, Paris, Editions de Minuit, p. 16
  • Bourdieu, Pierre; Boltanski, Luc & Saint Martin, Monique de. (1973), “Les stratégies de reconversion. Les classes sociales et le système d’enseignement”. Information sur les Sciences Sociales, 12(5): 101.
  • Bourdieu, Pierre & Saint Martin, Monique de. (1976), “Anatomie du gout”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 2(5): 2-81
  • Castel,Robert. (1995), Les métamorphoses de la question sociale. Paris. Fayard.
  • Chmatko, Natalia & Saint Martin, Monique de. (1997), “Les anciens bureaucrates dans l’économie de marché en Russie”. Genèses, 27: 88-108, juin.
  • Dewerpe, Alain. (1996), “La ‘stratégie’ chez Pierre Bourdieu. Notes de lecture”. Enquête, 3: 191-208.
  • Elias, Norbert & Scotson, John L. (1997), Logiques de l’exclusion: Enquête sociologique au cœur des problèmes d’une communauté. Prefácio de Michel Wieviorka, Paris, Fayard (1re édition française).
  • Garcia Jr., Afrânio. (1993), “Reconversion des élites agraires. Du pouvoir local au pouvoir national”. Études Rurales, 131-132: 89-106, juillet-déc.
  • Halbwachs, Maurice. (1930), Les causes du suicide, Paris, Alcan.
  • Merllié, Dominique & Prevot, Jean. (1991), La mobilité sociale Paris, La Découverte, p. 21 (Coll. Repères).
  • Piketty, Thomas. (2021), Une brève histoire de l’égalité Paris, Ed. du Seuil.
  • Rieff, Philipp. (1968), The triumph of therapeutic: the Uses of Faith after Freud Nova York, Harper and Row.
  • Saint Martin, Monique de. (1993), L’espace de la noblesse Paris, Métailié (Collection Leçons de choses).
  • Saint Martin, Monique de. (2009), “Prefácio”. In: Jardim, Maria Chaves, Entre a solidariedade e o risco. Sindicatos e fundos de pensão em tempos de governo Lula São Paulo, Annablume, pp. 9-18 (Col. Trabalho e Contemporaneidade).
  • Saint Martin, Monique de. (2022), “Rumo a uma abordagem dinâmica para reconversões”. Estudos de Sociologia, Araraquara, 27, jan./dez.
  • Saint Martin, Monique de; Gheorghiu, Mihai D. (Dirs.) & Montvalon, Bénédicte de (Coord.). (2010), Education et frontières sociales. Un grand bricolage, Paris, Michalon.
  • Saint Martin, Monique de; Rocha, Daniella Castro de & Heredia, Mariana. (2008), “Trocas intergeracionais e construção de fronteiras sociais na França”. Tempo Social, 20 (1): 135-162.
  • Sorokin, Pitirin A. (1927), Social mobility Nova York, Harper and Brothers (Reed. aumentada, Social and cultural mobility Glencoe, The Free Press, 1959, reed. 1964).
  • Stark, David. (1996), “Recombinant property in East European capitalism”. American Journal of Sociology, 101 (4): 993-1027, janv.
  • Tissot, Sylvie; Gaubert, Christophe & Lechien, Marie Hélène (org.) (2005), Reconversions militantes Prefácio de Yvon Lamy. Limoges, Presses Universitaires de Limoges, p. 10.
  • Touraine, Alain. (2002), “Il était une référence - positive ou négative - indispensable”. Libération, Propos recueillis par José Garçon, 25 janvier.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2022
  • Aceito
    04 Out 2022
Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Av. Prof. Luciano Gualberto, 315, 05508-010, São Paulo - SP, Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: temposoc@edu.usp.br