RESUMO
O artigo discute a existência de documentos e arquivos de direitos humanos, analisando o uso dessa classificação em arquivos públicos e privados, institucionais e pessoais. Arrola e critica fatores históricos, teóricos e metodológicos que favorecem o uso dessa classificação mais comumente em arquivos públicos e defende que, independentemente do caráter de seus produtores e acumuladores, é o uso posterior dos documentos e arquivos que permite que sejam considerados de direitos humanos.
PALAVRAS-CHAVE:
Direitos humanos; Arquivos pessoais; Documentos de direitos humanos
ABSTRACT
The article discusses the existence of human rights documents and archives, analyzing the use of this classification in public and private, institutional and personal archives. It lists and criticizes historical, theoretical, and methodological factors that favor the use of this classification more commonly in public archives and argues that, regardless of the character of their producers and accumulators, it is the subsequent use of documents and archives that allows them to be considered related to human rights.
KEYWORDS:
Human rights; Personal archives; Human rights archives
RESUMEN
Este artículo discute la existencia de documentos y archivos de derechos humanos, analizando el uso de esta clasificación en los archivos públicos y privados, institucionales y personales. Enumera y critica los factores históricos, teóricos y metodológicos que favorecen el uso de esta clasificación más comúnmente utilizada en los archivos públicos, además de argumentar que, independientemente del carácter de sus productores y acumuladores, es el uso posterior de documentos y archivos lo que les permite ser considerados como de derechos humanos.
PALABRAS CLAVE:
Derechos humanos; Archivos personales; Documentos de derechos humanos
Introdução
“Todos os arquivos são arquivos de direitos humanos” (Gilliland, 2013 apud Caswell, 2014CASWELL, M. Defining Human Rights Archives: Introduction to the Special Double Issue on Archives and Human Rights. Archival Science, New York, v. 14, p. 207-213, 2014.: 209). A frase é magistral por sua correção e concisão: em todos os arquivos é possível encontrar evidências da luta pelos direitos humanos, o seu exercício ou a sua negação.
Mas essa é uma das formas de ver a questão. Embora não se possa negar a justeza da afirmação, que coloca esses direitos em todas as atividades humanas e, portanto, nos arquivos que são produzidos no exercício dessas atividades, cresce a certeza de que os arquivos não só registram esses direitos como têm um papel fundamental em sua defesa, garantia e promoção. O consequente corolário dessa afirmação é que o arquivista tem a obrigação ética de preservar tais arquivos e promover seu acesso e uso, seja para a efetivação dos direitos pertinentes, para prova de seu desrespeito ou para a educação da sociedade como um todo. Nesse sentido, mais do que arquivos e direitos humanos, ligação meramente aditiva, pensa-se hoje em arquivos para direitos humanos, numa relação consecutiva.
Portanto, cabe identificar quais são os documentos e arquivos mais relevantes para preservação e uso por conterem informações fundamentais para a defesa desses direitos, para se fazer justiça e para educar a sociedade de forma que não mais ocorra sua violação.
A preocupação dos arquivos e dos arquivistas com direitos humanos
Se é verdade que direitos humanos sempre estiveram presentes nos arquivos, também é fato que a preocupação explícita dos arquivistas com o tema tem uma data inicial e está muito ligada à assunção da temática pelo Conselho Internacional de Arquivos (CIA). O CIA foi criado sob o patrocínio da Organização das Nações Unidas para a Educação e Cultura (UNESCO) em 1948, no mesmo ano da proclamação da Declaração universal de direitos humanos. A entidade nasceu a partir de laços entre arquivos nacionais — mais especificamente, entre seus dirigentes, os arquivistas nacionais. Consequentemente, nas discussões e na formulação de suas políticas foi marcante a influência das posições e visões de interlocutores dessas instituições, integrantes dos respectivos Estados, obviamente conformadas por seus contextos políticos específicos. Só muito recentemente o CIA passou a se afirmar, de forma mais explícita, como também um porta-voz dos interesses de seus membros individuais, os arquivistas.
As décadas de 1980 e 1990 foram marcadas por significativas mudanças políticas em várias partes do mundo, com a queda de diversos regimes autoritários na Europa, América e África. Todo esse ambiente influenciou para que a Conferência Internacional da Mesa-Redonda de Arquivos (Citra) do México, em 1993, decidisse, também com o patrocínio da UNESCO, a elaboração de diretrizes para lidar com a existência de grandes massas documentais, até então fora do alcance dos arquivos nacionais, produzidas por esses governos repressivos e em iminente risco de destruição e perda. A questão, como bem esclareceu Antonio González Quintana (2011)GONZÁLEZ QUINTANA, A. Entrevista com Antonio González Quintana. Acervo, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 7-22, 2011., era basicamente de cunho patrimonial, visando impedir a perda de documentos de valor histórico.
É criado um grupo, liderado por González Quintana e com participação de arquivistas e não arquivistas de diversas partes do mundo, inclusive do Brasil (Eliane Furtado de Mendonça, então diretora do Arquivo do Estado do Rio de Janeiro), para pensar essas diretrizes. Pouco a pouco, além da preocupação patrimonial, foi se construindo a percepção do valor desses documentos para a transição política como elementos importantes na efetivação da justiça, da reparação e da depuração; na localização de desaparecidos; e na educação da sociedade para a democracia.
Em 1995, o grupo apresentou o documento Archives of the Security Services of Former Repressive Regimes, publicado pela UNESCO em 1997 ( González Quintana, 1997GONZÁLEZ QUINTANA, A. Archives of the Security Services of Former Repressive Regimes: Report Prepared for UNESCO on Behalf of the International Council of Archives. Paris: UNESCO, 1997. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000140074. Acesso em: 17 fev. 2023.
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), na mesma época em que era publicado o relatório de Louis Joinet, que havia sido comissionado em 1993 pela Comissão das Nações Unidas para os Direitos Humanos como Relator Especial para Questões Relativas à Impunidade dos Violadores dos Direitos Humanos ( United Nations, 1997UNITED NATIONS. E/CN.4/Sub.2/1997/20/Rev.1. Question of the Impunity of Perpetrators of Human Rights Violations (Civil and Political). Revised Final Report Prepared by Mr. Joinet Pursuant to Sub-Commission Decision 1996/119. Geneva: Economic and Social Coucil, 1997. Disponível em: https://digitallibrary.un.org/record/245520#record-files-collapse-header. Acesso em: 17 fev. 2023.
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). Os dois documentos, embora elaborados isoladamente pelos respectivos autores, apontavam para o papel fundamental dos arquivos na promoção dos direitos humanos e da justiça, para pacientes e agentes das violações.
A 37ª Citra, que ocorreu em Johanesburgo, África do Sul, no ano de 2003, marca uma aceleração nesse processo. Com o tema “Arquivos e direitos humanos”, a conferência aconteceu no momento da passagem dos documentos da Comissão da Verdade e Reconciliação sul-africana para o arquivo nacional do país. Em sua abertura, Desmond Tutu reafirmou a importância dos documentos para o futuro da nação:
Temos vergonha dessa parte da nossa história, mas ainda assim é a nossa história. E está lá registrada em nosso Arquivo Nacional […]. Os documentos são cruciais para nos responsabilizar […]. Eles são um poderoso baluarte contra violações de direitos humanos. Devemos lembrar nosso passado para que não o repitamos
(ICA, 2004 apud Boel; Canavaggio; González Quintana, 2021BOEL, J.; CANAVAGGIO, P.; GONZÁLEZ QUINTANA, A. (ed.). Archives and Human Rights. Abingdon: Routledge, 2021.: 58) 2 2 “We are ashamed of that part of our history, but it is our history nonetheless. And it stands there recorded in our National Archives […]. The records are crucial to hold us accountable[…]. They are a potent bulwark against human rights violations. We must remember our past so that we do not repeat it.” .
Se todos concordavam com a importância dos arquivos para a defesa dos direitos humanos, a mudança se deu pela assunção de algo já implícito: os arquivistas necessitavam ter uma postura mais proativa na luta por sua preservação e acesso. A partir dessa Citra, é criado o Grupo de Trabalho em Direitos Humanos (Human Rights Working Group – HRWG), que assume uma série de projetos e estudos, como a atualização por González Quintana do relatório da década anterior, agora com o título Archival Policies in the Protection of Human Rights; os Princípios básicos sobre o papel dos arquivistas na defesa dos direitos humanos; o Statement on Archives, Business and Human Rights; e, desde 2009, a Newsletter, com resumos de notícias de variadas partes do mundo sobre seu foco de interesse.
Em 2019, o HRWG foi transformado em uma das seções do CIA, as quais agrupam associados por sua prática profissional ou interesse. A Seção de Arquivos e Direitos Humanos (Section on Archives and Human Rights – SAHR) é, hoje, uma das maiores da instituição, reunindo mais de 150 membros e desenvolvendo projetos variados, inclusive em parceria com outras entidades; mantém a Newsletter; realiza, a cada dois meses, o evento First Tuesday Talks; e tem se destacado por suas contribuições a chamadas públicas de organismos da Organização das Nações Unidas (ONU) para sugestões e comentários a pertinentes documentos em preparação, sempre chamando atenção para a importância dos arquivos na luta por direitos humanos 3 3 Para maiores informações sobre a SAHR e suas atividades, ver: https://www.ica.org/en/about-archives-and-human-rights. .
Cabe, no entanto, reconhecer que, embora a produção intelectual e os projetos do HRWG e de sua sucessora SAHR tenham implicações úteis para pensar e lidar com arquivos pessoais relacionados a direitos humanos, o foco de sua atenção tem sido os arquivos de origem pública e, em segundo lugar, em menor proporção, arquivos privados de empresas. As razões para isso mereceriam investigação, mas, a princípio, o fato pode ser creditado à tradição do CIA, à trajetória profissional de seus membros, à concentração dessas fontes em instituições arquivísticas públicas, às dimensões desses conjuntos documentais e aos volumes de informação aí existentes.
Documentos e arquivos de direitos humanos
Mas o que são documentos de direitos humanos, condição básica para se classificar um arquivo com a mesma qualificação? Geraci e Caswell (2019GERACI, N.; CASWELL, M. Desenvolvendo uma tipologia de documentos relacionados aos direitos humanos. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, DF, v. 12, n. 3, p. 997-1024, 2019.: 999), ao estudarem a questão, citam a frase de Annie Gilliland, traduzida como “todos os documentos são documentos de direitos humanos” 4 4 A divergência na frase, se são arquivos ou documentos, tem base nas diferentes acepções do termo archives em inglês, que tanto pode ser entendido como “arquivos” ou como “documentos arquivísticos permanentes”. No entanto, qualquer que seja seu entendimento, a essência do pensamento de Gilliland não é alterada. .
Mesmo reconhecendo a justeza da frase, Geraci e Caswell (2019GERACI, N.; CASWELL, M. Desenvolvendo uma tipologia de documentos relacionados aos direitos humanos. Revista Ibero-Americana de Ciência da Informação, Brasília, DF, v. 12, n. 3, p. 997-1024, 2019.: 1007) propõem delinear o conceito de documento de direitos humanos a partir de cinco vetores: “quem criou o documento; por que o documento foi criado; quando o documento foi criado; onde o documento está atualmente custodiado; e como o documento está sendo usado”.
A proposta é interessante e retoma aspectos fundamentais para qualquer análise arquivística, independentemente de se desejar saber se os documentos são ou não de “direitos humanos”. O primeiro vetor, quem produziu o documento, é fundamental para se estabelecer sua proveniência. O motivo pelo qual foi criado evidencia a função/atividade em que isso ocorreu e explica suas características informacionais e diplomáticas. O momento de criação estabelece o marco temporal em que isso se deu e é fundamental na recuperação do contexto, seja este o mais estrito — diretamente ligado ao produtor —, seja o mais amplo — em termos da sociedade em que o produtor se insere. Por fim, a guarda do documento — quem o custodia — visa determinar se há uma cadeia de custódia confiável, fundamental para se ajuizar a autenticidade dos documentos.
Assim, até o quarto vetor citado, são enumerados aspectos que deverão ser sempre verificados numa análise arquivística e histórica para estabelecimento de fontes confiáveis, critérios esses que somam dados para um ajuizamento conclusivo em termos de serem os documentos em questão de direitos humanos.
O último vetor citado, de como o documento está sendo usado, é, ao mesmo tempo, fundamental e de difícil conclusão final. A dificuldade reside no fato de o uso dos documentos ser um aspecto conjuntural, podendo ocorrer com diferentes objetivos num mesmo momento histórico. Mais complexo ainda, não há como prever e controlar os usos que os documentos possam ter no futuro, a função para a qual alguma entidade social os convocará a prestar. Indícios dessa incerteza podem ser encontrados na fala de Antonio González Quintana quando discorre sobre os problemas da avaliação de documentos e de uma política de eliminação clássica (baseada em tabelas de temporalidade) de massas documentais ligadas a regimes de transição política. Recorrendo a uma lei argentina da década de 1990, ele afirma que “foi decidida uma moratória na eliminação dos documentos do Ministério da Defesa dos tempos da ditadura, precisamente para se evitar as perdas de possíveis provas documentais” ( González Quintana, 2011GONZÁLEZ QUINTANA, A. Entrevista com Antonio González Quintana. Acervo, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 7-22, 2011.: 18). Exemplos de documentos fundamentais para provar violações ou fundamentar sua investigação, e que não seriam imediatamente lembrados, são os da ferrovia, que mostravam o transporte das vítimas do massacre de Katyn ( González Quintana, 2011GONZÁLEZ QUINTANA, A. Entrevista com Antonio González Quintana. Acervo, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 7-22, 2011.: 19); e as agendas telefônicas e de compromissos de dois envolvidos no caso da bomba do Riocentro: a telefônica, do sargento Guilherme Pereira do Rosário, listando contatos de um militar com outros de patentes muito superiores, e a de compromissos, do tenente-coronel Júlio Molinas, demonstrando que seu possuidor recebera, constantemente, informações sobre a evolução dos acontecimentos ( Brasil, 2014BRASIL. Ministério Público Federal. Ref.: PIC nº 1.30.001.006990/2012-37. [Denúncia do Ministério Público Federal contra Wilson Luiz Chaves Machado, Claudio Antonio Guerra, Newton Araujo de Oliveira e Cruz, Edson Sá Rocha e Divany Carvalho Barros por envolvimento no atentado do Riocentro]. Rio de Janeiro: Procuradoria da República no Rio de Janeiro, 13 fev. 2014. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/32-anos-mpfdenuncia-seis-atentado.pdf. Acesso em: 13 fev. 2023.
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).
Como afirmou Eric Ketelaar (2001: 138 apud Caswell, 2014CASWELL, M. Defining Human Rights Archives: Introduction to the Special Double Issue on Archives and Human Rights. Archival Science, New York, v. 14, p. 207-213, 2014.: 208), documentos de direitos humanos são aqueles ativados por indivíduos, incluindo aí os arquivistas, comunidades e instituições, para comprovarem abusos. Assim, apesar de todas essas ressalvas, parece-me que o principal aspecto para considerar um documento “de direitos humanos” é o seu uso atual ou, potencialmente, no futuro. Quanto ao uso potencial, o arbítrio do arquivista é decisivo e, por isso, dependente de seu conhecimento e sensibilidade. Daí a necessidade de conhecer experiências de uso de documentos semelhantes em diferentes sociedades, mas também de — parafraseando Wright Mills em A imaginação sociológica — ter uma “imaginação arquivística”, ou seja, do profissional se esforçar para aventar outras possíveis recorrências que possam ser feitas a esses documentos.
Em termos recentes, têm-se entendido primordialmente como documentos de direitos humanos aqueles relacionados a graves violações desses mesmos direitos, principalmente as cometidas por Estados durante regimes repressivos, por razões políticas ou contra parcelas minoritárias da população. É claro que violações em grande escala são também realizadas por outros atores, por exemplo, grupos terroristas — como o rapto de meninos e jovens para uso na guerra e de meninas e mulheres para escravização sexual pelo Boko Haram no norte de Camarões —, mas o caráter terrorista desses grupos dificulta encontrar e recorrer a seus arquivos.
A necessária burocratização dos processos administrativos pelos Estados requer a produção de documentos, sendo consequência lógica a existência de grandes conjuntos, principalmente os acumulados por serviços de informação, forças policiais e militares. Esses volumosos acervos, que foram, em grande parte, recuperados quando do fim de governos repressivos, abriram inúmeras possibilidades de uso, como a luta por reparações, esclarecimentos dos destinos de pessoas desaparecidas, pesquisa histórica e educação democrática. Ainda que se possa afirmar que em todos esses conjuntos documentais há muito a se estudar, o recurso a outros, de entidades privadas e de pessoas e famílias, não pode ser negligenciado nem esquecido.
A contraposição de arquivos pessoais a arquivos públicos
O termo “arquivo” tem uma definição amplamente aceita. No Dicionário brasileiro de terminologia arquivística, a acepção 1, que aqui nos interessa, descreve como “conjunto de documentos produzidos e acumulados por uma entidade coletiva, pública ou privada, pessoa ou família, no desempenho de suas atividades, independentemente da natureza do suporte ( Brasil, 2005BRASIL. Arquivo Nacional. Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.: 27). Na mesma obra, “arquivo pessoal” é definido em função da acepção de arquivo já apresentada, como “arquivo (1) de pessoa física” ( Brasil, 2005BRASIL. Arquivo Nacional. Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.: 34). A conclusão lógica é, portanto, em linguagem matemática, que “arquivos pessoais” são um subconjunto do conjunto “arquivos” e que, embora tenham especificidades que podem ser usadas para classificações, são arquivos. Essa última afirmação nem sempre foi acolhida na área.
Os arquivos nascem ligados ao Estado, na Antiguidade Pré-Clássica, o que marcou a área. Restos arqueológicos demonstram a existência de depósitos de documentos ligados a palácios, com textos religiosos, listas de oferendas, róis de impostos, contratos e correspondência diplomática. É possível que na Grécia já tenham existido arquivos pessoais de magistrados e intelectuais, mas não há prova subsistente ( Silva et al., 2002SILVA, A. M. da et al. Arquivística: teoria e prática de uma ciência da informação. 2. ed. Porto: Afrontamento, 2002.: 59); em contrapartida, abundam informações sobre arquivos ligados ao poder público. No Império Romano, chega-se a constituir uma rede de arquivos, que atingiam desde os órgãos centrais da administração até as municipalidades ( Silva et al., 2002SILVA, A. M. da et al. Arquivística: teoria e prática de uma ciência da informação. 2. ed. Porto: Afrontamento, 2002.: 65), passando pelos diferentes órgãos responsáveis por atividades específicas. Tal ímpeto pelo registro e sua preservação deve ter favorecido o surgimento mais frequente de arquivos privados, de confrarias profissionais e de empresários, como banqueiros, e até mesmo de pessoas com posses e atividades públicas.
Arquivos pessoais, que seguramente sempre existiram, já seriam, inicialmente, limitados em número pelo fato de grande parte da população não ser alfabetizada, quando, na maior parte da história humana, o documento arquivístico foi aquele escrito, por excelência. Além disso, os limites de existência da vida pessoal, tanto em termos de tempo (vida do produtor/acumulador), de espaço (arquivos requerem espaço, o que faz com que sua guarda impacte financeiramente) e de continuidade (nem sempre herdeiros têm os mesmos interesses ou condições de guarda dos documentos) contribuíram para que poucos arquivos pessoais fossem preservados.
Essas questões de origem da área e da atividade de arquivamento e da pequena expressão quantitativa dos arquivos pessoais permitem que não se estranhe que as preocupações teóricas e práticas da área, bem como as soluções metodológicas assumidas, tenham sido sempre pensadas em função dos arquivos públicos, aqueles gerados pelo Estado e sua máquina burocrática, considerados o modelo dos arquivos. Arquivos privados empresariais, por serem criados obedecendo a procedimentos burocráticos e por razões fiscais também determinadas pelo Estado, sempre foram melhor preservados. Em seu tratamento, foram respeitadas, via de regra, as mesmas práticas que regeram os de origem pública.
Durante muito tempo, arquivos pessoais não foram considerados arquivos, sendo chamados de coleções ou manuscritos. Isso é particularmente interessante quando se sabe que as Instructions pour la mise en ordre et Le classement des archives départamentales et communales (apud Silva et al., 2002SILVA, A. M. da et al. Arquivística: teoria e prática de uma ciência da informação. 2. ed. Porto: Afrontamento, 2002.: 107, grifo nosso), texto que consagra o princípio do respeito aos fundos em 1841, afirma, como método de ordenação, “reunir os vários documentos por fundo, ou seja, formar uma coleção de todos os documentos que vêm de um órgão, de um estabelecimento, de uma família ou de um indivíduo e ,depois, dispor em uma determinada ordem os diferentes fundos […]” 5 5 “ 1° Rassembler les différents documents par fonds, c’est-à-dire former collection de tous titres qui proviennent d’un corps, d’um établissement, d’une famille ou d’un individu, et disposer d’aprés um certain ordre les différents fonds […].” .
O texto fundador da disciplina, o Manual de arranjo e descrição de arquivos, mais conhecido como Manual dos arquivistas holandeses, lançado em 1898, obra fundamental na difusão do Princípio do Respeito aos Fundos ou Princípio da Proveniência, definia arquivo como
o conjunto de documentos escritos, desenhos e material impresso, recebidos ou produzidos oficialmente por determinado órgão administrativo ou por um de seus funcionários na medida em que tais documentos se destinavam a permanecer na custódia desse órgão ou funcionário
( Manual…, 1973MANUAL de arranjo e descrição de arquivos. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1973.: 13).
Mais adiante, o texto reconhece que são arquivos também os de pessoas jurídicas de direito civil, como associações, conventos, hospitais e até mesmo negociantes no exercício de suas atividades, alegando que se “assemelham às entidades públicas” ( Manual…, 1973MANUAL de arranjo e descrição de arquivos. 2. ed. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1973.: 19). No entanto, os autores rejeitaram a existência de arquivos de famílias (embora nota de Hans Kaiser, tradutor para o alemão, excetue desse julgamento as famílias principescas) e ignoraram completamente arquivos pessoais.
Mesmo Schellenberg, autor de outro manual clássico na área, este da segunda metade do século XX, que reconhece a existência de coleções de papéis privados naturais, ou orgânicas, e coleções artificiais — sendo que as primeiras poderiam ser referidas como arquivos ( Schellenberg, 1974SCHELLENBERG, T. R. Arquivos modernos: princípios e técnicas. Rio de Janeiro: FGV, 1974.: 237) —, dá como exemplos de entidades privadas que as acumularam “firmas comerciais, igrejas, instituições ou organizações”, não citando pessoas ( Schellenberg, 1974SCHELLENBERG, T. R. Arquivos modernos: princípios e técnicas. Rio de Janeiro: FGV, 1974.: 236). Em outro livro, Documentos públicos e privados: arranjo e descrição, o autor reconhece a existência de importantes repositórios de manuscritos que “interessavam-se sobretudo pelos papéis das personagens históricas importantes dos períodos Colonial e Revolucionário da História americana”, e, mais diante, termina por afirmar que “os papéis privados adquiriram, com frequência, a qualidade orgânica de papéis públicos” ( Schellenberg, 1963SCHELLENBERG, T. R. Documentos públicos e privados: arranjo e descrição. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1963.: 37). Em nota a esta última afirmação, recorre a um artigo de Curtis Garrison, publicado pela American Archivist em 1939, que defendia que “35 das 160 coleções de manuscritos recebidos pela Biblioteca do Congresso até julho de 1931 correspondem à definição dada por Jenkinson ao termo ‘arquivos’” (Garrison, 1939: 98 apud Schellenberg, 1963SCHELLENBERG, T. R. Documentos públicos e privados: arranjo e descrição. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1963.: 66). Mesmo assim, não nomina tais conjuntos como arquivos, mantendo a denominação “manuscritos”.
Como exemplo muito mais recente, pode-se recorrer ao título de um dos textos básicos para a elaboração da ISAD(G): Norma geral internacional de descrição arquivística. A obra, elaborada por Steven Hensen, que trabalhava na Biblioteca do Congresso (Library of Congress), e publicada pela primeira vez em 1983, era intitulada Archives, Personal Papers and Manuscripts: A Cataloging Manual for Archival Repositories, Historical Societies and Manuscript Libraries.
Hoje, felizmente, não se discute mais se arquivos pessoais são arquivos, e, se o uso de termos específicos (coleção, manuscritos etc.) ainda resiste em alguns setores, é mais pela força do hábito do que por convicção teórica. Uma evidência disso é a presença do termo personal archive (arquivo pessoal) no Dictionary of Archival Terminology com a seguinte definição e nota:
subst. (tb. documentos pessoais) um conjunto de documentos de qualquer formato que fornece evidência de atividades de um indivíduo (ver citações)
Notas
A diferença entre papéis pessoais e arquivo pessoal ou documentos pessoais parece ser de uso pela comunidade. Arquivistas são os principais usuários do termo papéis pessoais enquanto não arquivistas usam arquivo pessoal ou documentos pessoais para se referirem ao mesmo conceito
( PERSONAL…, 2021PERSONAL archive. In: Dictionary of Archival Terminology. Chicago: Society of American Archivists, 2021. Disponível em: https://dictionary.archivists.org/entry/personal-archive.html. Acesso em: 19 fev. 2023.
https://dictionary.archivists.org/entry/... ) 6 6 “n. (also personal archives) a set of documents in any format that provides evidence of an individual’s activities (View Citations) Notes The difference between personal papers and personal archive or personal archives seems to be one of usage by community. Archivists are the primary users of the term personal papers while non-archivists use personal archive or personal archives to refer to the same concept.” .
Grande parte da reflexão sobre arquivos pessoais continua se pautando pelo arcabouço teórico e metodológico forjado ao longo de séculos para os arquivos institucionais, públicos ou privados, esforçando-se para afirmar pela via negativa que arquivos pessoais, embora sejam arquivos, são peculiares. Ainda que reconhecendo que há especificidades, a principal seria originada do fato de seus produtores serem pessoas físicas, que acumulam documentos gerados em suas atividades socialmente públicas — por exemplo, seus exercícios profissionais — bem como documentos de sua esfera privada, marcada por sentimentos, interesses e paixões. Será que são tão peculiares assim?
Credita-se aos arquivos privados o fato de serem voltados à construção de uma imagem de seu produtor. Mas os públicos também não o desejam? Há quem questione se os documentos dos arquivos pessoais seriam autênticos e se as informações que eles contêm seriam credíveis, como se, independentemente da origem da produção dos documentos, eles todos não tivessem que ser examinados criticamente e submetidos a rigorosas análises. Avalia-se o grau de subjetividade nos arquivos pessoais, mas se esquece que os arquivos públicos também são submetidos à avaliação pelos próprios produtores e que o conjunto/subconjunto destinado à guarda permanente foi também configurado pelas preocupações dos próprios órgãos e pelos arquivistas, e que seguiu critérios construídos historicamente.
Nessas questões, ressalta-se o fato de que os critérios de constituição de arquivos públicos são mais burocraticamente estabelecidos e que a metodologia para lidarmos com eles foi constituída ao longo de séculos. Entretanto, em termos dos arquivos pessoais, isso não poderia nos conduzir a refletir mais sobre a forma como se constituem e a produzir metodologias que sejam mais eficientes para seu tratamento?
Arquivos pessoais e direitos humanos
A bibliografia relativa a arquivos pessoais e direitos humanos é pequena. Num rápido levantamento, destaca-se a dissertação de Tarsila Mancebo Carneiro, defendida no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) em 2019, sob orientação da professora Luciana Heymann. Trabalhando o caso do arquivo de Betinho (Herbert José de Sousa, 1935-1997, especial e amplamente conhecido pelo projeto Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida), Tarsila defende que “alguns arquivos pessoais podem ser associados à categoria arquivos de direitos humanos, pois são compostos por uma documentação que, embora pessoal, remete a uma memória coletiva de violação e/ou defesa dos direitos humanos.” ( Carneiro, 2019CARNEIRO, T. M. Arquivos de direitos humanos: um exercício a partir do arquivo pessoal Herbert de Souza. Dissertação (Mestrado em História, Política e Bens Culturais) –Escola de Ciências Sociais, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2019.: 65) e cita exemplos nacionais e estrangeiros de arquivos pessoais que assim podem ser enquadrados.
Parece haver uma certa dificuldade de se considerarem arquivos pessoais como arquivos de direitos humanos, mas a mudança nessa discussão começa — como não deixa de ser compreensível — por arquivos de indivíduos de destaque, cuja história pessoal, seja pelo ativismo, pelo sofrimento pessoal ou por seu papel em violações de direitos humanos, são significativos.
No caso do Brasil, podemos citar, sem pretender sermos exaustivos, alguns bastante importantes. No CPDOC, há vários, além daquele de Betinho, sendo alguns ligados à luta pela democracia (por exemplo, de Afonso Arinos, Barbosa Lima Sobrinho, João Goulart, José Gregori etc.) e outros a períodos de ditadura (Ernesto Geisel, Filinto Müller, Getúlio Vargas etc.). A situação se repete em outras instituições, como o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, que custodia, por exemplo, o arquivo de Emílio Garrastazu Médici, e o Arquivo Nacional, que partilha com o CPDOC o fundo João Goulart e tem diversos outros de interesse para a temática, como os de Comba Marques Porto, Federação Brasileira para o Progresso Feminino, Mário Lago e outros.
Se quisermos focar principalmente em graves violações de direitos humanos, é possível encontrar documentos que sejam a elas relacionados, tanto em arquivos públicos, como em privados pessoais. Assim como não é em qualquer arquivo de origem pública que eles existirão, não é em qualquer arquivo pessoal que estarão presentes. É, no entanto, compreensível que, normalmente, por causa do volume e da abrangência dos envolvidos, os arquivos públicos sejam mais lembrados para a busca desses documentos. Na medida em que muitas dessas violações foram cometidas por Estados, e que estes, para fazerem funcionar a máquina pública, documentam suas ações, é normal que terminem por acumular grandes quantidades de registros, frequentemente de órgãos de investigação e repressão e de tribunais. Tais conjuntos tendem também a ter documentos relativos a diversos casos e grande número de envolvidos.
Alegações quanto a diferentes capacidades de prova de documentos públicos e pessoais não são sustentáveis. Documentos de origem pública ou privada institucional não possuem, só por isso, maior valor de prova do que documentos de arquivos pessoais. Grande parte do valor de prova de um documento vem da sua relação com o que se pretende provar e da forma como, combinando diversos fatores, se constrói uma estrutura lógica e coerente em que o documento se insere. Não se pode esquecer também que documentos de origem pública podem ter sido conservados, em original ou em cópia, por pessoas e famílias, e que, na ausência das contrapartes de guarda pública, são provas fundamentais. Trudy Peterson, no artigo “Proof”, voltado para a análise de documentos usados em variados países para requisição de indenizações, cita casos com relação a prisão, desaparecimento ou exílio de indivíduos, em que cópias de processos judiciais em mãos de familiares são usados para esse fim, da mesma forma que e-mails trocados entre familiares e amigos são relevantes para estabelecer desaparecimentos e marcá-los cronologicamente ( Peterson, 2021PETERSON, T. H. Proof. In: BOEL, J.; CANAVAGGIO, P.; GONZÁLEZ QUINTANA, A. (ed.). Archives and Human Rights. Abingdon: Routledge, 2021. p. 83-112.: 105). Obviamente, documentos de origem pública e privada pessoal têm, igualmente, valor informativo, e o uso de uns ou outros será definido com base no que se pretende estudar, analisar e/ou comprovar.
Arquivos pessoais têm sido importantes e cada vez mais reconhecidos na luta por direitos humanos. Se visitarmos Memórias Reveladas, banco de dados que “reúne de forma cooperativa, informações sobre o acervo arquivístico relativo à repressão política no período 1964-1985 custodiado pelo Arquivo Nacional e diferentes entidades participantes públicas e privadas”, as 44 entidades listadas possuem 235 fundos/coleções, dos quais 76 são pessoais, representando 32,34% do total ( Brasil, 2009BRASIL. Ministério da Justiça. Banco de dados Memórias Reveladas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, [2009?]. Disponível em: http://pesquisa.memoriasreveladas.gov.br/mrex/Consulta/resultado_pesquisa_pdf.asp. Acesso em: 17 fev. 2023.
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). Não dispomos de dados sistematizados, mas em vários momentos integrantes da Comissão Nacional da Verdade comentaram acerca do uso de documentos dessa origem nas investigações, e parte dos acervos pessoais ora integrantes do sistema foi doada a instituições arquivísticas como fruto de uma campanha levada a cabo pelo projeto.
Arquivos de direitos humanos podem ser também arquivos pessoais, de indivíduos que sofreram violações de direitos humanos ou de pessoas ligadas a estruturas repressoras. Podem ser de militantes de organizações perseguidas, de ativistas, ou de familiares de pessoas perseguidas que reúnem documentos para fundamentar a busca por mortos e desaparecidos. Podem também ser de agentes da repressão e de membros de instituições repressivas.
Visando evidenciar a existência rotineira de documentos relacionados a direitos humanos em arquivos, Trudy Peterson, em 2018, quando se comemoravam os 70 anos da Declaração universal de direitos humanos, publicou texto em que, artigo por artigo, enumera e analisa como todos eles estão presentes em arquivos dos mais diferentes tipos. Nas análises referentes aos 30 artigos promulgados pela ONU, ela, que não pretendia ser exaustiva, mas tão somente dar exemplos dessas ocorrências, contextualiza historicamente a elaboração do artigo e a posterior evolução do direito em questão e elenca exemplos de arquivos pertinentes. Nessas listagens, cita explicitamente arquivos pessoais 17 vezes: art. 2º, de advogados e de médicos; art. 4º, de jornalistas, cientistas sociais e ativistas; art. 5º, fontes pessoais, promotores, jornalistas, acadêmicos; art. 6º, de chefes executivos, defensores públicos; art. 7º, contas de mídias sociais; art. 8º, de juízes; art. 10, de advogados; art. 11, de promotores, advogados de defesa; art. 16, arquivos pessoais; art. 18, arquivos privados dos envolvidos, antropólogos; art. 19, de ativistas; art. 21, de ativistas sufragistas e de pessoas que buscam emprego no governo; art. 23, de ativistas, jornalistas, líderes trabalhistas e chefes corporativos; art. 24, de líderes trabalhistas, ativistas e industriais; art. 26, arquivos pessoais; art. 28, de ativistas; e art. 30, correspondências de homens e de mulheres ( Peterson, 2022PETERSON, T. H. A Declaração universal dos direitos humanos: um comentário arquivístico. OFFICINA, São Paulo, v. 1, n. 2, p. 126-215, 2022.).
Arquivos pessoais tanto podem ser importantes em si mesmos, pelo tipo de documentos e informações que possuem — como ocorre com arquivos de origem pública —, como podem, também, em relação a arquivos institucionais, públicos ou privados, servirem para iluminar, completar e confrontar dados e versões, e, nessa relação, ajudarem a provar, a recuperar a história, ou mesmo a reparar danos.
Um interessante exemplo disso é abordado por Antonio González Quintana, no seu texto “Del hilo de Morel al puzle de Hochschild”. Uma das questões que o autor chama a atenção dos leitores é como Adam Hochschild, que monta o quebra- cabeça das atrocidades cometidas no Congo Belga, de propriedade de Leopoldo II, no livro King Leopold’s Ghost: A Story of Greed, Terror and Heroism in Colonial Africa, publicado pela Mariner Books em 1999, recorre fortemente a documentos do arquivo pessoal de Edmund Morel, importante ativista na denúncia das atrocidades cometidas no Congo. Morel, que começara a desconfiar de que algo estava estranho na relação entre o Congo e a Bélgica, como agente de uma companhia de navegação responsável pelo transporte de bens entre as duas partes, analisou os bens que eram enviados para a África e aqueles que iam para a Europa. As disparidades entre armas e material repressivo enviados e os bens de lá trazidos começaram a indicar que a dominação do Congo não era pacífica nem tinha o altruístico objetivo de “levar a civilização” à África ( González Quintana, 2021GONZÁLEZ QUINTANA, A. Del hilo de Morel al puzle de Hochschild. In: ALBERCH I FUGUERAS, R. Del hilo al ovillo: poder y resistencia de los archivos. Gijón: Trea, 2021. p. 161-184.).
Outro caso interessante, desta vez brasileiro e mais recente, ocorreu quando a Constituição de 1988, no seu art. 54, previu o pagamento de pensão aos soldados da borracha, trabalhadores arregimentados pelo Serviço Especial de Mobilização de Trabalhadores para a Amazônia (Semta) que, entre 1942 e 1945, participaram do esforço de guerra coletando borracha. Estimativas indicam que 100.000 trabalhadores, principalmente nordestinos, foram recrutados, tendo havido grande número de mortes. Para gozar do benefício determinado constitucionalmente, era necessário comprovar a participação nesse esforço, mas documentos públicos não eram encontrados e as pessoas, ou seus descendentes, nem sempre os possuíam (em geral, a pobreza está associada à ausência de documentos). Uma primeira grande leva de pensões foi obtida a partir de listagens de nomes de soldados da borracha, em cópia, encontradas no arquivo pessoal de Paulo de Assis Ribeiro, custodiado pelo Arquivo Nacional. Paulo, engenheiro e economista, foi chefe do Semta e guardou cópias de documentos relativos a sua gestão naquele órgão, integrante do Departamento Nacional de Imigração, estando entre elas parcelas de listagens desses trabalhadores, que foram utilizadas em seu depoimento a uma comissão parlamentar de inquérito em 1946.
Aqui, o arquivo pessoal guardava cópias de documentos públicos, cujas matrizes não foram encontradas — e isso nada tem a ver com apropriação de documentos públicos: instituições, mesmo as públicas, funcionam à base de pessoas, as quais estabelecem laços fortes com seus locais de trabalho, e que guardam documentos, sejam cópias de documentos finais, sejam rascunhos, por questões afetivas, por interesses futuros, ou para preservação da sua imagem e moralidade. Renata Borges (2021BORGES, R. S. O elo perdido: as relações entre arquivos pessoais e institucionais na perspectiva da contextualidade. Tese (Doutorado em Ciência da Informação) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2021.) defendeu, recentemente, uma tese em que contrapõe arquivos de entidades públicas e o arquivo privado de um de seus servidores, demonstrando que o estabelecimento de relações entre os diferentes conjuntos analisados entre si e com o contexto sócio-histórico geral favoreceria a melhor compreensão dos documentos, tanto públicos quanto privados.
Além do fato de muitas instituições, mesmo públicas, terem pouco apreço pela sua documentação, o que resulta em perdas deliberadas ou ocasionais, instituições e pessoas têm razões diversas para guardar documentos. Um exemplo é que normalmente as instituições guardam versões finais e documentos de compilação, enquanto pessoas, frequentemente, guardam minutas e rascunhos, e, muitas vezes, também as fontes em que se baseavam, por razões afetivas, de autoria ou expectativas de novo uso, inclusive discussões sobre papéis e responsabilidades dos envolvidos.
Lembro-me, também, como exemplo, do arquivo de Filinto Müller, custodiado pelo CPDOC, que, juntamente com o de Gustavo Capanema, foi analisado em texto antológico por Aurélio Vianna, Maurício Lissovsky e Paulo Sérgio Moraes de Sá (1986VIANNA, A.; LISSOVSKY, M.; SÁ, P. S. M. de. A vontade de guardar: lógica da acumulação em arquivos privados. Arquivo e Administração, Rio de Janeiro, v. 10-14, n. 2, p. 62-76, 1986. Disponível em: http://hdl.handle.net/20.500.11959/brapci/21184. Acesso em: 17 fev. 2023.). Nesse artigo, é especialmente sublinhado na análise do arquivo de Filinto o fato de ele o organizar por dossiês sobre pessoas sobre as quais, posteriormente, pudesse precisar de dados e informações. Ora, seria interessante confrontar as fichas policiais que sobreviveram em arquivos públicos com aquelas guardadas por Filinto. Seriam as públicas tão completas e com os mesmos dados ciosamente guardados pelo titular do arquivo pessoal?
Arquivos e seus usos
Arquivos públicos e arquivos privados, institucionais e pessoais, podem servir para a defesa de direitos humanos e, nesse sentido serem arquivos de direitos humanos. Alguns terão a temática como eixo dos documentos acumulados, enquanto outros terão documentos que, eventualmente, podem ser relevantes para prova de alguma ação ou evento ligado a direitos humanos.
É importante ter claro que é o pesquisador/usuário, posteriormente à produção do documento, quando este já está preservado por seu valor, quem determinará como ele será usado e tecerá a teia em que se encaixará. Por mais que se pretenda avaliar o possível valor informativo de um documento, tal avaliação será sempre limitada, uma vez que existem muitos fatores incontroláveis, como os interesses no futuro e a existência ou não de outras fontes, acessíveis ou não, capazes de serem úteis para as mesmas questões.
Para assegurar que todos os documentos possam ter o máximo uso, seja por um amplo público, seja para diferentes utilidades, é fundamental que eles sejam conhecidos e acessíveis, passíveis de serem identificados (papel da atividade de descrição) e usados. Obviamente, um dos problemas para o uso dos arquivos pessoais é que, quando tais conjuntos permanecem na custódia de seus produtores ou de seus descendentes, o conhecimento sobre eles e seu acesso e uso público inexiste ou é muito limitado. Isso nos levará a reconhecer, obrigatoriamente, a importância das instituições arquivísticas na preservação de arquivos pessoais e o papel dos arquivistas nesse processo. E novas questões aparecerão…
REFERÊNCIAS
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- BRASIL. Arquivo Nacional. Dicionário brasileiro de terminologia arquivística. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2005.
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NOTAS
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2
“We are ashamed of that part of our history, but it is our history nonetheless. And it stands there recorded in our National Archives […]. The records are crucial to hold us accountable[…]. They are a potent bulwark against human rights violations. We must remember our past so that we do not repeat it.”
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3
Para maiores informações sobre a SAHR e suas atividades, ver: https://www.ica.org/en/about-archives-and-human-rights.
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4
A divergência na frase, se são arquivos ou documentos, tem base nas diferentes acepções do termo archives em inglês, que tanto pode ser entendido como “arquivos” ou como “documentos arquivísticos permanentes”. No entanto, qualquer que seja seu entendimento, a essência do pensamento de Gilliland não é alterada.
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5
“ 1° Rassembler les différents documents par fonds, c’est-à-dire former collection de tous titres qui proviennent d’un corps, d’um établissement, d’une famille ou d’un individu, et disposer d’aprés um certain ordre les différents fonds […].”
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6
“n. (also personal archives) a set of documents in any format that provides evidence of an individual’s activities (View Citations)NotesThe difference between personal papers and personal archive or personal archives seems to be one of usage by community. Archivists are the primary users of the term personal papers while non-archivists use personal archive or personal archives to refer to the same concept.”
Disponibilidade de dados
Citações de dados
BRASIL. Ministério da Justiça. Banco de dados Memórias Reveladas. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, [2009?]. Disponível em: http://pesquisa.memoriasreveladas.gov.br/mrex/Consulta/resultado_pesquisa_pdf.asp Acesso em: 17 fev. 2023.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Maio 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
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Recebido
23 Fev 2023 -
Aceito
27 Fev 2023