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O fim de um casamento comprado: do capitalismo democrático ao neoliberalismo

The end of an arranged marriage: from democratic capitalism to neoliberalism

El fin de um matrimonio comprado: del capitalismo democrático al neoliberalismo

STREECK, Wolfgang. Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Tradução de . Toldy, Marin; Toldy, Teresa; Osório, Luiz Felipe. São Paulo: Boitempo, 2018

Introdução

Wolfgang Streeck é um sociólogo alemão da atualidade, que, por meio da economia política, analisa o capitalismo. A sua obra Tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático (2018) traz o seu pensamento sobre o que chama de processo de compra do tempo, o qual vem ocorrendo desde os anos 1970 visando salvar a vida do capitalismo, passando pelas fases de inflação, endividamento público e o privado. Tal caminho foi combinado com a mudança da arena do conflito político -justamente o enfoque desta resenha.

O objetivo é investigar o percurso da democracia nessa atividade de compra de tempo, vindo do capitalismo democrático europeu pós-Segunda Guerra Mundial e chegando hoje ao neoliberalismo, que desuniu de vez a tensa e frágil conexão que alguma vez existiu entre capitalismo e democracia. Se é que existiu.

Resumo de Tempo comprado: A crise adiada do capitalismo democrático

De maneira resumida e geral, a obra de Wolfgang Streeck busca entender o processo do sistema capitalista do fim da segunda guerra mundial, focando no início da crise do sistema nos anos 1970 até o momento do ápice da crise financeira e fiscal em 2008. Streeck analisa a crise em seu aspecto econômico, político e social, que levou os países centrais do capitalismo de um capitalismo-democrático ao neoliberalismo.

Após a segunda guerra mundial, momento que parecia ter-se arranjado uma relação estável entre os conflitantes capitalismo e democracia, iniciou-se um processo que Streeck chama de compra de tempo, no qual se procurou, a partir do dinheiro, ganhar tempo de vida ao capitalismo. Nos anos 1970, datado como o início da revolução neoliberal, essa compra de tempo foi caracterizada pela inflação; uma década depois, pelo endividamento público; e, por fim, nos anos 1990, também pelo endividamento privado.

O início do processo neoliberal derivou do conflito distributivo entre classes, isto é, para Streeck, os dependentes de salário versus os dependentes de lucro. Esse contexto colocou a justiça de mercado acima da justiça social. Pelo primeiro, pode-se entender a distribuição do resultado da produção por meio de uma meritocracia, expressa por seus preços relativos. Já a social é regida por normas culturais, concepções coletivas de honestidade, equidade e reciprocidade, não interferindo, assim, no desempenho econômico e social e se baseando ainda no direito estatutário, não no direito contratual. (STREECK, 2018, p. 59). No pensamento neoliberal, os mercados deveriam ser deixados livres, pois somente assim, sem uma interferência estatal a favor das massas, seria possível fazer a verdadeira justiça.

O Estado no pensamento de Streeck, por sua vez, funciona como intermediário da relação entre capital e sociedade. Ao se filiar à justiça de mercado, o Estado passa a ser orientado pelo povo de mercado, os credores, que se tornam uma segunda classe de titulares de direito e outorgantes de autoridade no Estado além do povo de Estado, caracterizado pelos cidadãos.

Chegada à crise de 2008, subiu o endividamento dos países centrais em um nível que não permite mais que os credores confiem totalmente em situação futura na qual os Estados serão capazes de cumprir com as suas obrigações de pagamento. Assim, os credores vêm influenciando cada vez mais a política estatal, a fim de assegurar seus direitos, comprando tempo, cortando despesas sociais e diminuindo impostos, o que faz com que a arrecadação seja muito baixa.

Ao acumular cada vez mais dívidas na compra do tempo, uma maior parte da receita dos Estados vai para o pagamento destas e mais dinheiro é cortado de políticas públicas. O objetivo principal dos credores dos Estados no conflito com os seus cidadãos consiste em garantir que, em caso de crise, é dada prioridade aos seus direitos sobre os direitos do povo do Estado. Estados democráticos assim são transformados em agências de cobranças de dívidas e serviços de uma oligarquia global de investidores.

Essa compra de tempo assegurou a vida do capitalismo durante o fim de século XX e o início de XXI, mas não de maneira estável, visto que, a cada crise, o que mais se gerava era estagnação, endividamento e desigualdade. Ou seja, não se resolvia o problema, só se fazia com que ficasse maior, até explodir em 2008 no bolso dos cidadãos. A crise de 2008 é a marca do fim de um jeito de se comprar o tempo. Segundo Streeck, até há uma quarta etapa de compra de tempo, exercida pelos bancos centrais, mas é um dinheiro completamente virtual, quue só funcionaria em um curto prazo, não havendo o crescimento necessário para a relação de justiça de mercado e social. Não mais se exige a legitimação que a compra do tempo trazia consigo.

Em suma, foram esses os aspectos econômicos da análise de Streeck, que, concomitantemente ao casamento arranjado com a democracia, também foi-se desfazendo - vide a perda de poder político da democracia de massas, idealizando, assim, o pensamento hayekiano de imunização do capitalismo contra essas intervenções democráticas. Isso será analisado no tópico seguinte.

Tempo comprado: a questão democrática

Mesmo sendo difícil dissociar o componente democrático de todo argumento de Streeck, pretende-se conferir um destaque maior para a discussão que o autor traz sobre o assunto.

Para iniciar a discussão, democracia, para Streeck (2018, p. 58), é “[...] um regime que intervém, em nome dos seus cidadãos e através do poder público, na distribuição dos bens econômicos resultante do funcionamento do mercado”. Nesse sentido, a democracia age para equalizar os resultados do mercado, visto que esses tendem a distribuir de forma assimétrica seus frutos, diferentemente do que o mesmo difunde com a justiça de mercado.

De acordo com Streeck, a associação já tensa entre capitalismo e democracia chegou a um fim no século XXI, pois o regime conflitante de alocação de recursos, ficou muito caro para o andar de cima. A arena dos conflitos políticos distributivos se deslocou, cada vez mais se distanciando da realidade das massas. Em sua obra Tempo Comprado (2018), ele expõe, assim como fez com os movimentos econômicos que caminharam da inflação à dívida pública, a trajetória da democracia e o movimento da arena do conflito político desde os anos 1970, passando pelo capitalismo democrático até o momento da crise de 2008. “Cada uma das três transições para um novo modo de criação de legitimidade foi acompanhada por derrotas da população dependente de salário que permitiram levar adiante o processo de liberalização” (STREECK, 2018, p. 92).

A democracia passou por um processo de esterilização como democracia de massas redistributiva, passando a ser reduzida a uma combinação de Estado de direito e entretenimento público. “Pretendo mostrar que o processo de desdemocratização do capitalismo por meio de deseconomização da democracia avançou muito desde a crise de 2008, precisamente na Europa” (STREECK, 2018, p. 55).

A assertiva anterior sugere que, com o neoliberalismo, houve crescente redução do aparato estatal voltado às necessidades do povo de Estado. No embate sociedade versus mercado, o segundo saiu vitorioso quanto ao manejo do Estado. Como consequência houve, por exemplo, a privatização de serviços públicos e a assunção pelo indivíduo da seguridade social, a diminuição da participação política nas votações, nos partidos políticos e sindicatos, além de uma aderência quase nula a greves. Restringiu-se, desse modo, ainda mais a intervenção democrática redistributiva na economia capitalista.

Aprofundando a questão das eleições, notou-se, a título de exemplo, a menor participação dos cidadãos em eleições democráticas, principalmente entre os mais necessitados de políticas de redistribuição. “Nos anos 50 e 60, a participação nas eleições aumentou em todas as democracias ocidentais, diminuindo, até hoje, em média, em nada menos que 12%” (STREECK, 2018, p. 56).

A baixa participação se deve pela falta de esperança de real mudança. A alternância de poder deixou de representar mudanças efetivas, já que o Estado se encontra atado às demandas do mercado. O lema there is no alternative penetrou na sociedade, entendendo a classe política como incompetente e corrupta. Com essa resignação, ganha o capitalismo que se protege das “ameaças” democráticas (STREECK, 2018. p. 58).

O Estado, por sua vez, assegura a roupagem democrática hoje, pois esse molde, mesmo esvaziado, legitima o Estado. E sem essa legitimidade há espaços para revoltas, o que afetaria a credibilidade, que é cara ao mercado. Para a prática capitalista, são toleradas algumas concessões políticas de justiça social, já que aqueles que estão perdendo não podem se recusar a continuar participando do jogo: “sem perdedores não há vencedores e sem perdedores permanentes não há vencedores permanentes”. Mas tal como os cidadãos comuns, embora por razões opostas, as elites estão perdendo a fé no governo democrático e em sua adequação para remodelar as sociedades conforme os imperativos do mercado.

No caso europeu, bastante explorado pelo autor, a impossibilidade de acabar com a democracia de vez foi superada pela criação da União Europeia, integrando a democracia dos países membros em um regime supranacional não democrático e deixando que este estrangule a democracia (STREECK, 2018, p. 99-100). Movimentos como este faz com que o povo de Estado, ou seja, os cidadãos ligados ao Estado e organizados a nível nacional, cada vez mais não percebam os seus respectivos governos como os seus agentes, mas sim a serviço de outros Estados e organizações internacionais, que, como já mencionado, estão isolados da pressão democrática (STREECK, 2012STREECK, Wolfgang. As crises do capitalismo democrático. Novos Estudos - CEBRAP. São Paulo, n. 92, p. 35-56, mar. 2012. DOI: http://doi.org/10.1590/S0101-33002012000100004. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002012000100004&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 5 set. 2020.
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).

Para Streeck, o fracasso da democracia no embate com a justiça de mercado ocorreu, pois esta última fracassou por não reconhecer a contra revolução contra o capitalismo social do período pós guerra, não se opondo a todas as investidas do capital. Fracassou, segue o autor, quando: nos anos 1990 abdicou da regulamentação de um setor financeiro que estava crescendo descontroladamente; acreditou na substituição de um government “duro” por uma governance “suave”; desistiu de tributar os beneficiários do crescimento da economia capitalista; tolerou a desigualdade crescente na sociedade; promoveu reformas fiscais e do Estado social “compatíveis com incentivos”; contribuiu para a criação do Estado endividado, uma vez que não conseguiram estabilizar a participação política das camadas da população interessadas em impedir reduções de impostos para os mais abastados. Em vez disso, a mudança na composição do eleitorado, que abrange progressivamente os mais favorecidos, torna o aumento de impostos cada vez menos exequível. (STREECK, 2018, p. 70) Para ele, a compatibilidade do capitalismo com a democracia é muito limitada, somente existindo quando há uma regulamentação rigorosa e eficaz, como, por exemplo, a nacionalização de empresas e setores essenciais e modelos de cogestão.

Streeck se coloca bem pessimista quanto a possibilidade de o poder da democracia novamente ganhar a luta, ou até mesmo se colocar em uma posição de equidade com o mercado. A previsão que empreende pós a crise de 2008 seria a libertação definitiva da economia capitalista e de seus mercados da democracia enquanto democracia de massas. A internacionalização crescente da economia coloca em dúvida até mesmo a força de políticas democráticas se organizadas a nível nacional (STREECK, 2018, p. 71).

O que Streeck deixa escapar sobre alguma possível reviravolta, para hoje se falar em democracia, só faz sentido se houver novamente a legitimação da justiça social. Para isso seriam necessários anos de mobilização política, bem como perturbações permanentes da ordem social que existe atualmente. Mas como as arenas do conflito distributivo estão cada vez mais distantes da política popular, a rua se torna o espaço de expressão dos desprovidos de poder de mercado (STREECK, 2012STREECK, Wolfgang. As crises do capitalismo democrático. Novos Estudos - CEBRAP. São Paulo, n. 92, p. 35-56, mar. 2012. DOI: http://doi.org/10.1590/S0101-33002012000100004. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-33002012000100004&lng=en&nrm=iso . Acesso em: 5 set. 2020.
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). Essa mobilização serviria para a criação de instituições que submetessem os mercados ao controle social, instituições essas destruídas por quatro décadas de reformas neoliberais. (STREECK, 2018, p. 144-145) Cabe adicionar que Streeck descarta uma alternativa de democracia sem capitalismo.

Como conclusão, a obra de Streeck oferece uma grande contribuição para o entendimento do processo neoliberalizante da economia dos países centrais do capitalismo e de sua respectiva interferência na arena do conflito político. Ao compreender o movimento que caminhou do capitalismo democrático ao neoliberalismo, foi possível, além da desmitificação do casamento artificial entre democracia e capitalismo, apontar para a instabilidade da gestão de crises por meio do processo do modelo capitalista de compra de tempo, demonstrando, ainda, as efetivas ameaças à democracia de massas.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    28 Ago 2020
  • Aceito
    04 Set 2020
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