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O quão útil é o conceito de populismo? Uma contribuição dos casos portugueses 1 1 Este artigo faz parte do projeto “A Nova Direita Radical Euro-Americana em Portugal: uma perspectiva comparada”. PTDC / CPO-CPO / 28748/2017

How useful is the concept of populism? A contribution from the Portuguese cases

Resenha: ZÚQUETE, José Pedro. . Populismo: lá fora e cá dentro. Lisboa, Portugal: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022.

O conceito de populismo tem sido amplamente utilizado em função do crescimento da direita em várias partes do mundo nos últimos anos. Por um lado, cada vez mais associado à actual onda das direitas, por outro lado, cada vez mais banalizado, o conceito de populismo não é nada novo. Ele foi já aplicado a diversos governos na América Latina, com destaque para Getúlio Vargas e Juan Perón, no Brasil e Argentina, respectivamente. Governos de esquerda mais recentes na mesma região, como o de Hugo Chávez na Venezuela, Evo Morales na Bolívia e Rafael Correa no Equador, foram classificados regularmente como populistas. Porém, com a onda de direita actual, o populismo ganhou uma amplitude analítica tal que se tornou um campo de estudos per se, ao mesmo tempo que é possível apontar para certa banalização do próprio conceito. Assim, é um conceito mais e mais presente nos debates público e acadêmico, muitas vezes, colocado como algo relativamente novo.

O livro de José Pedro Zúquete, Populismo: lá fora e cá dentroZÚQUETE, José Pedro. Populismo: lá fora e cá dentro. Lisboa, Portugal: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022., lida com essa problemática tendo Portugal como estudo de caso, utilizando-o para contribuir de forma mais abrangente para o tema. O livro questiona a ideia de que o fenômeno populista chegou a Portugal através do partido Chega, ao mostrar que um grande número de fenômenos de traços populistas passaram pelo país ibérico. O livro inicia-se com a descrição de diversas formas de manifestações políticas, da direita à esquerda, classificadas como populistas, em diversos países e épocas. Apresentando experiências que vão desde a Roma antiga até a actualidade, passando pelas primeiras formas de populismo na era moderna, Zúquete se apropria, basicamente, da fórmula conceitual elaborada por Cas Mudde (2004)MUDDE, Cas. The Populist Zeitgeist. Government and Opposition, v. 39, n. 4, p. 541-563, 2004. para definir o populismo, porém problematizando-a, ou seja, problematizando a concepção de que o populismo é um estilo de fazer política, fundamentado na luta entre um povo supostamente puro e suas lideranças individuais3 3 Essas lideranças individuais podem, ou não, estar ancoradas por organizações tais como partidos políticos e movimentos. , contra elites corruptas, distanciadas dos interesses e necessidades populares. Ele pode se desdobrar dentro de um estilo discursivo, uma proposta voltada para novas moralidades ou uma prática governativa. Para além da política propriamente dita, traços populistas podem ser também encontrados na crítica social e na literatura, como mostra Zúquete.

Esta thin ideology, que é o populismo tal qual definido por Mudde, é aplicada às diversas vagas populistas apresentadas por Zúquete, nomeadamente, os populismos na América desde o American People’s Party nos EUA do século XIX, os populismos sul-americanos como o Peronismo argentino, o Varguismo brasileiro ou o Velazquismo equatoriano, os populismos neo-liberais latino americanos de décadas posteriores, como Alberto Fujimori no Peru e Carlos Menem na Argentina. No caudal desses exemplos, aparecem os populismos europeus contemporâneos, União Nacional na França, Democratas Suecos, Partido da Liberdade na Holanda, Partido do Povo Dinamarquês, Liga Norte italiana e o icônico Fidesz de Viktor Orbán, na Hungria. De volta à América e rumo à Ásia, são mencionados Donald Trump nos EUA, Jair Bolsonaro no Brasil e Narendra Modi na Índia. Todos apresentando o ponto em comum de se dizerem os verdadeiros representantes do povo contra elites escusas, demasiado tecnocráticas e distantes dos problemas supostamente reais de suas populações.

Voltando-se para o caso específico de Portugal, são tratadas diversas experiências, algumas de ordem eminentemente política, outras não. Debruçando-se primeiro sobre a literatura, explicita-se o traço mais fundamental do populismo - povo contra elites - em obras que vão desde Fernão Lopes e sua “Casa de Portugal” e Gil Vicente até Raul Brandão, passando por nomes como Arnaldo Gama, Trindade Coelho e Abel Botelho. O neo-realismo na produção literária portuguesa seria a descrição dos interesses reais da população contra as elites. Voltando à política, Zúquete propõe a interpretação do miguelismo oitocentista, culto da figura do Rei Dom Miguel de Bragança (1802-1866) que, diferente de outros monarcas, viajava pelas províncias do país, mantendo estreitos contactos com a população. Classificado como, possivelmente, o primeiro esboço de populismo político em Portugal, logo tem-se o termo proto-populismo associado ao miguelismo.

Em relação ao populismo já mais constituído em diversas manifestações, Zúquete divide-as em três tipos particulares: o populismo militar, o populismo regenerador e o populismo local.

O primeiro destaca-se por ser coordenado por atores políticos vindos das forças armadas, ainda que haja entre tais atores consideráveis diferenças. Muito presente ao longo do século XX, apresentou-se acima do sistema político-partidário, ainda que, em alguns casos, suas lideranças tenham recebido apoio de partidos ou mesmo recorrido a eles. Fundamenta-se numa relação direta e plebiscitária do chefe militar com a população, enxergada como a manifestação mais saudável e patriótica da nação.

O segundo tipo, o populismo regenerador, posta-se à parte do sistema partidário, podendo, todavia, ser personificado tanto por atores políticos relativamente isolados como por partidos políticos. Propõe-se como um instrumento de redenção contra elites traiçoeiras, rumo a uma reforma moral da cultura político-social.

O terceiro tipo, o populismo local, manifesta-se regionalmente, num prisma em que os atores populistas tratam as elites - ou ao menos uma fatia significativa delas - e o poder central lisboeta como intercambiáveis. Em contrapartida, o poder local é visto como indissociável do povo local, ambos, de certa forma, fundidos um ao outro.

Em tempos mais recentes, experiências como a dos partidos do Bloco de Esquerda4 4 No livro, o Bloco de Esquerda é posto como um exemplo de populismo regenerador. e do Chega podem ser classificados como populistas, visto seu discurso contrário às elites parlamentares e sua crítica da democracia representativa. Zúquete descreve o Bloco de Esquerda como inclinado ao que poderíamos chamar de Nova Esquerda e seu enquadramento de mundo voltado para minorias de todo tipo - embora o tema da classe não desapareça. Por outro lado, o autor classifica o Chega como da Direita, defensora da identidade nacional portuguesa, a busca pela limitação da imigração, a ênfase na segurança pública, e a denúncia da subsidiodependência dos ciganos. Segundo Zúquete, o atual quadro migratório português poderia abrir espaços para partidos etnonacionalistas ainda mais radicais que o Chega.

O que fica claro é como fenômenos classificados como populistas nunca foram novidade em Portugal. Esta conclusão é importante, visto toda a polêmica em torno do partido Chega, classificado como um populismo de direita que pôs fim à alegada exceção portuguesa no que se refere a partidos desse tipo. O internacionalmente conhecido conceito de populismo elaborado por Cas Mudde, neste sentido, pode ser alargado demais. Isso resulta em que a análise das propostas oriundas dos diversos populismos fica opacizada pelo apontamento dos traços exclusivamente populistas do discurso, ou estilo político. Fica claro que, ao centrarmos na thin ideology, isto é, na chave explicativa do populismo como uma luta entre povo e elites, corremos o risco de nos distanciar de outros importantes traços ideológicos dos diversos fenômenos políticos que utilizam a retórica do povo em luta contra as elites.

Ao longo do livro, Zúquete demonstra como o thin concept de populismo pode encaixar-se em praticamente qualquer projeto de sociedade. E é neste ponto que está a maior contribuição do autor para o estado da arte acerca do tema, já que as elites corruptas podem mudar radicalmente de face, assim como o povo. Isto é, a substância social que compõe o estado administrado - ou por administrar - pelas forças populistas pode apresentar variações de proporções abismais mesmo no contexto intranacional português. Neste sentido, Zúquete contribui numa via conceitual, empírica e ilustrativa para o debate que gira em torno à questão posta por Carlos de La Torre e Oscar Mazzoleni (2019)DE LA TORRE, Carlos; MAZZOLENI, Oscar. Do we need a minimum definition of populism? An appraisal of Mudde’s conceptualization, Populism, v. 2, n. 2, p. 79-95, 2019.: se é necessária uma definição mínima de populismo. Insere-se também nas discussões sobre a abordagem ideal do populismo (HAWKINS; ROVIRA KALTWASSER , 2017HAWKINS, Kirk; ROVIRA KALTWASSER, Cristóbal. The ideational approach to populism. Latin American Research Review, v. 52, n. 4, p. 513-528, 2017.) e aquela da necessidade de ir além dos estudos do populismo, devido à sua banalização e seu hiperalargamento (DE CLEEN; GLYNOS, 2021DE CLEEN, Benjamin; GLYNOS, Jason. Beyond populism studies. Journal of Language and Politics, v. 20, n. 1, p. 1-15, 2021.; ROODUIJN, 2018ROODUIJN, Matthijs. State of the field: how to study populism and adjacent topics? A plea for both more and less focus. European Journal of Political Research. v. 58, n. 1, p. 362-372, 2018.).

Portanto, se apenas no contexto português o fenómeno assume tantos e variados rostos e sub-tipos, qual é o sentido de um conceito de populismo que abarque Europa, Américas, e mesmo todo o mundo (MUDDE; ROVIRA KALTWASSER, 2013MUDDE, Cas; ROVIRA KALTWASSER, Cristóbal. Voices of the peoples: populisms in Europe and Latin America compared. Kellog Institute. Working paper n. 378, p. 1-43, 2013.; MUDDE, 2004MUDDE, Cas. The Populist Zeitgeist. Government and Opposition, v. 39, n. 4, p. 541-563, 2004.; MUDDE, 2019MUDDE, Cas. The far-right today. Cambridge, UK: Polity Press , 2019.), como muitas vezes é proposto? Neste prisma, Zúquete, ao utilizar-se do conceito de luta entre povo e elites (MUDDE, 2004MUDDE, Cas. The Populist Zeitgeist. Government and Opposition, v. 39, n. 4, p. 541-563, 2004.), junto a experiências tão diversas, acaba por demonstrar de forma bem-sucedida o quanto esse conceito é antes uma gradação frente a uma série de outros fenômenos de igual ou maior importância como nacionalismo, socialismo e regionalismo, dentre outros - conseguindo dar um passo significativo para ir além do populismo, como propõem De Cleen e Glynos (2021)DE CLEEN, Benjamin; GLYNOS, Jason. Beyond populism studies. Journal of Language and Politics, v. 20, n. 1, p. 1-15, 2021..

Do ponto de vista da área da Ciência Política, o livro oferece um vasto conjunto de exemplos empíricos de como diferentes estruturas de poder podem ser esboçadas, porém com a thin ideology sempre presente. No exemplo mais evidente, Zúquete mostra como a proposta de governo de conselhos populares de Otelo Saraiva de Carvalho, apoiada pelos marxistas-maoistas portugueses, é extremamente diferente da proposta feita pelo General Antônio de Spínola, de cidadania imperial lusíada, voltado para Portugal e suas posses ultramarinas.

Se pensarmos para além de Portugal, um partido como o Siryza grego é considerado populista. Ele tem (ou tinha) um modelo de ativismo de pequenos grupos atuantes junto à sociedade civil (DELLA PORTA et al., 2017DELLA PORTA, Donatella et al. Movement parties against austerity. Cambridge, UK: Polity Press, 2017. ), que em muito lembra o modelo de partido marxista-leninista clássico. O Trumpismo, representado por um outsider anti-imigração, que teve de se digladiar até mesmo com os setores mais estabelecidos do Partido Republicano, e intimamente conectado com as redes sociais, também é classificado como populista. Ou seja, o conceito de populismo tal como está estabelecido pode ser utilizado para a análise de fenômenos que se desdobram em estruturas de poder muito diferentes. O fenómeno, da forma como colocado por Mudde, não leva tais problemas em consideração, deixando de lado mesmo pontos importantes como o vínculo entre líderes e seguidores (DE LA TORRE; MAZZOLENI, 2022DE LA TORRE, Carlos; MAZZOLENI, Oscar. Cas Mudde y los limites de una definición mínima de populismo. In: RÍOS-RIVERA, Ingrid; UMPIERREZ DE REGUERO, Sebástian Antonio. Populismo y comportamiento político en Ecuador: incorporando la agenda ideacional. Guayaquil: Universidad Casa Grande, 2022.).

A estrutura de poder de um eventual fenómeno político de tipo populista pode ser analisável através do campo da Sociologia Política, onde o objecto de análise é a relação entre as instituições informais da sociedade civil e aquelas formais do estado. Porém, em termos de complexidade, estas relações vão muito além do que as discussões correntes sobre o populismo conseguem abarcar. O conceito de populismo tal como está colocado no estado da arte da Ciência Política, torna mais turvo do que transparente o esmiuçamento e detalhamento de todos esses pontos.

Ademais, o populismo se manifesta em variadas vertentes, não apenas no desenho de poder estatal. Nos seus fundamentos ideológicos e no seu enquadramento de mundo - “framing” (SNOW et al., 1986SNOW, David et al. Frame alignment processes, micromobilization, and movement participation. American Sociological Review, v. 51, n. 4, p. 464-481, 1986. ) - as experiências populistas são muito diversas. Com a consequência que mesmo as diferenciações entre populismo latino-americano inclusivo e populismo europeu excludente (MUDDE; ROVIRA KALTWASSER, 2013MUDDE, Cas; ROVIRA KALTWASSER, Cristóbal. Voices of the peoples: populisms in Europe and Latin America compared. Kellog Institute. Working paper n. 378, p. 1-43, 2013.) não são suficientes para abranger a enorme gama de propostas estabelecidas por forças políticas classificadas como populistas. Assim, o conceito de populismo como thin ideology, ligado às dicotomias muddeanas entre povo e elites e entre populistas e não-populistas (DE LA TORRE; MAZZOLENI, 2022DE LA TORRE, Carlos; MAZZOLENI, Oscar. Cas Mudde y los limites de una definición mínima de populismo. In: RÍOS-RIVERA, Ingrid; UMPIERREZ DE REGUERO, Sebástian Antonio. Populismo y comportamiento político en Ecuador: incorporando la agenda ideacional. Guayaquil: Universidad Casa Grande, 2022.), torna-se um conceito hiperalargado e banalizado. Ao mesmo tempo, chega a ser um desvio de atenção para uma série de características muito importantes de partidos políticos e movimentos sociais, em alguma medida, simplificados e resumidos à ideia de “populismo”.

A centralização excessiva no conceito de populismo em pauta pode servir para apenas obscurecer tópicos adjacentes a ela - socialismo, nacionalismo, etnicismo - que muitas vezes não são tão adjacentes, mas centrais na análise de um determinado fenômeno. A complexidade de tais fenômenos, seja na sua ideologia, seja nos seus vínculos reais com a estrutura política institucional, fica opacizada pela hiperutilização de um conceito que cada vez menos contribui para esclarecer manifestações políticas contemporâneas. E o livro de José Pedro Zúquete entra como uma excelente contribuição empírica e ilustrativa a todas essas questões, mostrando-se de elevada importância a qualquer um interessado pelo tema.

  • DE CLEEN, Benjamin; GLYNOS, Jason. Beyond populism studies. Journal of Language and Politics, v. 20, n. 1, p. 1-15, 2021.
  • DE LA TORRE, Carlos; MAZZOLENI, Oscar. Cas Mudde y los limites de una definición mínima de populismo. In: RÍOS-RIVERA, Ingrid; UMPIERREZ DE REGUERO, Sebástian Antonio. Populismo y comportamiento político en Ecuador: incorporando la agenda ideacional. Guayaquil: Universidad Casa Grande, 2022.
  • DE LA TORRE, Carlos; MAZZOLENI, Oscar. Do we need a minimum definition of populism? An appraisal of Mudde’s conceptualization, Populism, v. 2, n. 2, p. 79-95, 2019.
  • DELLA PORTA, Donatella et al. Movement parties against austerity. Cambridge, UK: Polity Press, 2017.
  • HAWKINS, Kirk; ROVIRA KALTWASSER, Cristóbal. The ideational approach to populism. Latin American Research Review, v. 52, n. 4, p. 513-528, 2017.
  • MUDDE, Cas. The far-right today. Cambridge, UK: Polity Press , 2019.
  • MUDDE, Cas. The Populist Zeitgeist. Government and Opposition, v. 39, n. 4, p. 541-563, 2004.
  • MUDDE, Cas; ROVIRA KALTWASSER, Cristóbal. Voices of the peoples: populisms in Europe and Latin America compared. Kellog Institute. Working paper n. 378, p. 1-43, 2013.
  • ROODUIJN, Matthijs. State of the field: how to study populism and adjacent topics? A plea for both more and less focus. European Journal of Political Research. v. 58, n. 1, p. 362-372, 2018.
  • SNOW, David et al. Frame alignment processes, micromobilization, and movement participation. American Sociological Review, v. 51, n. 4, p. 464-481, 1986.
  • ZÚQUETE, José Pedro. Populismo: lá fora e cá dentro. Lisboa, Portugal: Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2022.
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    Este artigo faz parte do projeto “A Nova Direita Radical Euro-Americana em Portugal: uma perspectiva comparada”. PTDC / CPO-CPO / 28748/2017
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    Essas lideranças individuais podem, ou não, estar ancoradas por organizações tais como partidos políticos e movimentos.
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    No livro, o Bloco de Esquerda é posto como um exemplo de populismo regenerador.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    06 Jul 2022
  • Aceito
    18 Set 2022
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