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Adorno, o fascismo e as aporias da razão

Não há como lembrar do nome de Adorno sem que se venha à mente, quase que instantaneamente, a ideia de fascismo. É como se o pensamento do filósofo alemão só pudesse ganhar plena inteligibilidade à luz não apenas da experiência fascista, mas também da expectativa de seu retorno potencial. E de fato a aproximação algo espontânea procede: afinal, para Adorno, assim como para Marcuse ou para Benjamin, ou ainda para Bloch, longe de ser um acidente de percurso, uma anomalia histórica, o fascismo - do passado e do presente - se inscreve no rol de possibilidades de uma ordem social que, a despeito das transformações de seu regime político ou de sua dinâmica cultural, permanece a mesma. De onde o conhecido adágio de Max Horkheimer, escrito em 1942, segundo o qual aquele que “não quer falar do capitalismo deveria calar-se sobre o fascismo”.

É essa subsistência da ameaça fascista, mesmo em tempos democráticos, que dá o tom da conferência Aspectos do novo radicalismo de direita, proferida em 1967, na Áustria, e apenas recentemente publicada na Alemanha e, agora, no Brasil. Na contracorrente do otimismo democrático estimulado pelo que se chamaria de Era Dourada do capitalismo, Adorno destaca a persistência de disposições protofascistas na sociedade alemã, então materializadas no êxito eleitoral do NPD, partido fundado apenas três anos antes, em 1964. Para Adorno, tratava-se do início do fim do equilíbrio instável, precário e necessariamente provisório forjado no pós-guerra, na esteira da vitória sobre o nazifascismo. Duas décadas mais tarde, o antifascismo já cedera lugar ao anticomunismo como referência central da vida política alemã, reabrindo o terreno para a extrema-direita: a solidariedade social em torno da defesa do capitalismo mais uma vez começava a falar mais alto do que a divergência, evidentemente importante, entre perspectivas ligadas aos regimes políticos.

Explorando alguns dos argumentos já desenvolvidos em trabalhos anteriores, como A Dialética do Esclarecimento, redigido com Horkheimer (Adorno; Horkheimer, 1985ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.), ou a pesquisa coletiva sobre a “personalidade autoritária” (Adorno, 2019), Adorno (2020, p.54) atribui aos movimentos fascistas a explicitação da “constelação entre meios racionais e fins irracionais” que, no limite, “corresponde [...] à tendência geral civilizatória”. Assim como a astrologia (cf. Adorno, 2008a), a racionalidade dos meios se combina com a projeção de um destino irracional, porquanto subordinado a mecanismos infensos ao controle da razão, com o líder soberano fazendo as vezes, no caso do fascismo, dos astros: o de um guia para a condução da vida. Daí o papel central da propaganda como fim em si, como “substância da política” entre cujos efeitos está o nivelamento da diferença entre “os interesses reais e os falsos objetivos simulados” (Adorno, 2020, p.54, 5).1 1 É isso o que explicaria, segundo Adorno (2020, p.64), o desaparecimento - no “novo radicalismo de direita” - do que é “abertamente antidemocrático. Pelo contrário: evocam sempre a verdadeira democracia e acusam os outros de antidemocráticos”. Algo semelhante se passa com a noção de liberdade (cf. Adorno, 2020, p.66). Para Adorno, a propaganda é a alma do negócio (pois é também disso que se trata) fascista.

A atualidade relativa do diagnóstico adorniano salta aos olhos. Ainda em 1967, o filósofo alemão enxergava na emergência dessa nova direita radical uma espécie de sintoma ideológico antecipatório da crise que estava por vir. É como se o “desejo inconsciente do fim do mundo”, explicitado no discurso protofascista da época - e que lhe dava, aliás, a sua distinção em relação ao nazismo original -, estivesse prenunciando a débacle do Estado de bem-estar social que se iniciaria na década de 1970. Embora assentada em condições sociais “objetivas”, a dimensão ideológica pode, assim, e este era o caso segundo Adorno, indicar os sintomas ainda latentes de uma mutação em curso.

Como se sabe, Adorno morreu em 1969 e, por isso, não pôde acompanhar a avalanche neoliberal observada notadamente a partir da virada para os anos 1980. Não pôde perceber, portanto, que, ao menos em um primeiro momento, o “sistema total” se apresentaria na forma de um novo liberalismo marcado pela convergência centrista entre a esquerda e a direita tradicionais, bem como por uma nova lógica cultural aparentemente oposta à miragem de uma “sociedade totalmente administrada” (Jameson, 1997JAMESON, F. O marxismo tardio. Adorno, ou a persistência da dialética. São Paulo: Editora Unesp; Boitempo Editorial, 1997.). No entanto, desconfiado como era, sem dúvida Adorno destacaria a precariedade social do pacto neoliberal dos tempos do “Consenso de Washington”, à procura dos sinais reveladores da possibilidade da exceção no próprio funcionamento da norma. Possibilidade que, na última década, se transformou num fato. Mesmo porque, como disse Adorno (2020, p.45) em 1967, “os pressupostos sociais do fascismo ainda perduram”, muito embora, agora, no interior de um enquadramento socioeconômico neoliberal.

Ao destacar os nexos entre economia, sociedade e estrutura psíquica, Adorno reposiciona assim o potencial fascista como um modo específico, e sempre latente, de organizar (e não de superar) as contradições da ordem social capitalista. Se, mais do que o avesso, a barbárie se revela parte fundamental da modernidade, o fascismo não foi, não é e não será uma mera recaída no irracionalismo já superado, em tese, pelo avanço das Luzes. Tratá-lo dessa maneira, argumenta Adorno, retomando o núcleo da crítica benjaminiana à postura da socialdemocracia diante da ascensão do nazifascismo, implica em pressupor alguma norma (burguesa) capaz de, mais cedo ou mais tarde, suplantar a exceção, tragando a humanidade de volta aos trilhos do progresso. A consequência previsível de tal postura é, segundo Adorno (2020, p.50), um “consolo quietista burguês” cujo espanto intelectual diante da catástrofe seria o equivalente de sua impotência política.

Como quase sempre, porém, se o diagnóstico adorniano do problema fascista nas sociedades capitalistas é afiado, muito menos instigantes são as respostas sugeridas nas ocasiões em que se sentira impelido a tal, como na conferência de 1967. É conhecida a reticência de Adorno a qualquer enunciação prospectiva, por ele entendida como um passo que a crítica, por si só, não está autorizada a dar. As suas sugestões devem ser compreendidas, portanto, mais como modos de resistência intelectual do que como estratégias de luta política. Mas isso não o livra das eventuais aporias oriundas de uma autocrítica da razão que, no limite, ainda atua como horizonte da crítica e da resistência à barbárie fascista. E isso não porque abandonou - ao sobrevalorizar a sua dimensão instrumental - o potencial emancipatório das Luzes, como o acusaria Habermas, interessado em desbloquear o caminho para a racionalidade comunicativa, senão porque, ao contrário, paradoxalmente, na hora do vamos ver, Adorno retorna ao ponto de escape racionalista como garantia substantiva da “verdade” contra a falsificação manipulatória produzida pela extrema-direita do passado e do presente.

Embora reconhecendo que “o radicalismo de direita não é um problema psicológico e ideológico, mas um problema muitíssimo real e político”, Adorno sustenta a necessidade de combatê-lo também “no seu próprio terreno”, desvendando o seu caráter “objetivamente falso” e, nesse sentido, ideológico-propagandístico. Não se trata, ressalva ele, “de colocar mentira contra mentira, de tentar ser tão esperto quanto eles, mas de realmente contrapor-se a eles com uma força decisiva da razão, com a verdade realmente não ideológica” (Adorno, 2020, p.76). Esclarecimento contra a barbárie? Mas como, se, como defendera o próprio Adorno, o esclarecimento moderno também legitima a barbárie? De que “verdade realmente não ideológica” estamos falando, afinal?

O ponto é se essa evocação da razão contra a mentira basta para fazer frente - mesmo que apenas no plano intelectual - ao irracionalismo mobilizado pelos fascistas. Não é o que pensavam dois contemporâneos de Adorno, igualmente marcados pela experiência fascista: Ernst Bloch e Walter Benjamin. Para ambos, a despeito de suas diferenças, o fascismo triunfou, entre outras coisas, porque logrou instrumentalizar as “contradições não contemporâneas”, no dizer do primeiro, situando-as no interior de um projeto moderno de dominação social e política. Enquanto isso, a esquerda se afastava de qualquer coisa que pudesse vinculá-la ao atraso, a fim de atestar a sua boa confiança no progresso da História - aquela mesma que, no fim das contas, sempre nos dará razão.

Do modo como está na conferência de 1967, o apelo adorniano à razão, ainda que a um conceito substantivo de razão, visto como garantia da crítica tanto à racionalidade instrumental quanto ao irracionalismo, arrisca a repor, pela porta dos fundos, alguma “normalidade” com o auxílio da qual estaríamos em condições de resistir ao fascismo. Em outras palavras: como no modelo progressista da crítica imanente, o problema (fascista) aparece como o sintoma de uma razão que ainda não se realizou plenamente, ou ainda, nas palavras do próprio Adorno (2020_______. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Editora Unesp, 2020., p.51) em 1967, como a ferida “de uma democracia que até hoje ainda não faz jus a seu próprio conceito”. Com isso, se Adorno não se compara a Lukács, para quem o fascismo é o resultado de uma regressão irracionalista, dele se aproxima na apologia da razão como substrato último da revelação e, assim, da transformação da verdade objetiva. É certo que Adorno jamais escreveria algo como O assalto à Razão, livro que, segundo ele, atestava a destruição da razão do próprio Lukács (1968), mas por isso mesmo a aproximação não deixa de ser inquietante.

Se a defesa da razão contra a mentira e a ideologia tem algum papel na luta contra o fascismo, talvez seja menos por sua capacidade em si mesma de esclarecimento do que por sua potência de explicitação dos interesses e valores que sustentam a ameaça representada pelos movimentos fascistas. Mas aí a própria razão se torna razão em e de conflitos sociais e políticos determinados, perdendo qualquer ambição transcendente. É com essa razão historicamente situada que Adorno nos acostumou a pensar, e é com ela que, hoje, podemos confrontar a nova ameaça fascista sem descartarmos, por um ato de ofício intelectual, a disputa pela canalização política dos impulsos afetivos e ainda não racionalizados na direção daquilo que Benjamin (1994BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.222-32., p.226) chamou de um “verdadeiro estado de exceção”.2 2 Para Benjamin (1994, p.226), uma vez que o “estado de exceção” se tornou “regra geral”, nada seria pior do que lutar contra o fascismo em “nome do progresso, considerado uma norma”, tal como o fizera a maior parte da esquerda política e intelectual da época. É nesse sentido que o crítico alemão defende a construção de um “verdadeiro estado de exceção”, horizonte de expectativas à luz do qual, segundo ele, “nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo” (ibidem). Mesmo porque, como nos ensinara o próprio Adorno (2008b, p.68), em Minima Moralia, “contra a razão dominante a razão dialética é a não-razão: é apenas ao ultrapassar e pôr em suspenso aquela que ela própria se torna racional”.

Referências

  • ADORNO, T. As estrelas descem à terra. A coluna de astrologia do Los Angeles Times. Um estudo sobre superstição secundária. São Paulo: Editora Unesp, 2008a.
  • _______. Minima Moralia: reflexões a partir da vida lesada. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008b.
  • _______. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: Editora da Unesp, 2019.
  • _______. Aspectos do novo radicalismo de direita. São Paulo: Editora Unesp, 2020.
  • ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
  • BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994. p.222-32.
  • BLOCH, E. Héritage de ce temps. Paris: Payot, 1978.
  • JAMESON, F. O marxismo tardio. Adorno, ou a persistência da dialética. São Paulo: Editora Unesp; Boitempo Editorial, 1997.
  • LUKÁCS, G. El asalto a la razon. La trayectoria del irracionalismo desde Schelling hasta Hitler. Cidade do México: Ediciones Grijalbo, 1968.

Notas

  • 1
    É isso o que explicaria, segundo Adorno (2020, p.64), o desaparecimento - no “novo radicalismo de direita” - do que é “abertamente antidemocrático. Pelo contrário: evocam sempre a verdadeira democracia e acusam os outros de antidemocráticos”. Algo semelhante se passa com a noção de liberdade (cf. Adorno, 2020, p.66).
  • 2
    Para Benjamin (1994, p.226), uma vez que o “estado de exceção” se tornou “regra geral”, nada seria pior do que lutar contra o fascismo em “nome do progresso, considerado uma norma”, tal como o fizera a maior parte da esquerda política e intelectual da época. É nesse sentido que o crítico alemão defende a construção de um “verdadeiro estado de exceção”, horizonte de expectativas à luz do qual, segundo ele, “nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo” (ibidem).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Jul 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2021
  • Aceito
    21 Nov 2021
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