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Editorial: uma revolução científica e tecnológica para a Amazônia brasileira

EDITORIAL

Uma revolução científica e tecnológica para a Amazônia brasileira

O modelo de desenvolvimento rural da Amazônia brasileira, baseado na substituição da floresta por agricultura e pecuária, já se esgotou. O produto agrícola bruto da área de domínio florestal da Amazônia representa menos de 0,5% do PIB nacional. A conclusão é inexorável: cinqüenta anos de desmatamentos não trouxeram riqueza nem qualidade de vida para a grande maioria da população. É urgente desvincular desenvolvimento de desmatamento. Na contramão dessa constatação, o cenário econômico atual conspira contra a Amazônia pela valorização de commodities agrícolas como soja e carne. Além disso, a alta probabilidade de os biocombustíveis tornarem-se rapidamente uma nova commodity representa uma ameaça adicional de continuidade do modelo tradicional de desmatamentos crescentes para florestas tropicais e cerrados.

O desafio é conciliar manutenção de atividades agrícolas tradicionais em áreas já desmatadas, porém com aumentada eficiência - lembrando que na Amazônia brasileira já foram desmatados mais de 750 mil km2 e pelo menos outro tanto de floresta encontra-se em acelerado processo de degradação - com o aproveitamento de recursos naturais renováveis, biodiversidade, água, energias etc. Um corolário a esse desafio maior é definir a ciência e tecnologia que embase um novo modelo de desenvolvimento regional.

Antes de mais nada, deve ficar claro que o grande desafio para a mudança de modelo de desenvolvimento regional é político e que ciência e tecnologia (C&T) isoladamente não bastam. Entretanto, C&T devem ter papel de relevo acentuado para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, levando em conta, também, a necessidade premente de novos conhecimentos para o desenvolvimento pleno de cadeias produtivas, a partir da biodiversidade e para a valoração e valorização dos serviços ambientais dos ecossistemas. Torna-se imprescindível, assim, desenvolver uma verdadeira revolução científica e tecnológica para a Amazônia, revolução essa que deve ser estratégia prioritária e central das políticas públicas de desenvolvimento regional e que, talvez, represente o maior desafio a ser enfrentado pela comunidade científica nacional nos próximos trinta anos.

Mesmo para países industrializados, os benefícios mais tangíveis de C&T não são aqueles oriundos diretamente de novos conhecimentos, mas, sim, da utilização de conhecimentos existentes traduzidos em bens e serviços. Mais relevante do que o avanço do conhecimento em si, é a criação de uma força de trabalho que possa entender e aplicar conhecimentos existentes. Capacitação tecnológica tem sido instrumento fundamental para manter o crescimento das economias emergentes de grandes países em desenvolvimento como China, Índia e Brasil. Nos últimos cinqüenta anos, o Brasil tem sido capaz de criar ilhas de competência em C&T, as quais se assemelham mais àquelas de países mais ricos do que a países de baixa ou renda intermediária. Entretanto, desigualdades regionais históricas, notadamente em educação, criaram óbices que limitam drasticamente o uso intensivo de C&T para o desenvolvimento econômico e social de suas regiões mais pobres, incluindo a Amazônia e Nordeste. À pobreza quase sempre se associa degradação ambiental e esta, num circulo vicioso, afeta a renda e qualidade de vida dos mais pobres, além de impactar sua saúde e capacidade de adaptação às mudanças ambientais e climáticas. Porém, o paradigma de aplicação intensiva de conhecimento existente não se aplica ao desenvolvimento sustentável da Amazônia, uma vez que o conhecimento existente e, de fato, praticado para desenvolvimento rural agrícola não se mostrou apropriado para os Trópicos úmidos por apresentar um custo social e ambiental elevado. Em outras palavras, a inexistência de um país tropical plenamente desenvolvido e industrializado produz uma falta de modelos a copiar.

Em termos práticos, a necessária revolução de C&T para a Amazônia deve criar as condições para "trazer valor ao âmago da floresta", nas palavras da Profa. Bertha Becker. Isso requer o desenvolvimento de uma inovadora economia de base florestal e de recursos aquáticos, com valorização econômica da biodiversidade. Atualmente, pouquíssimas cadeias produtivas baseadas em produtos naturais da Amazônia atingem escala global e beneficiam ampla base social. Aliás, o contrário vem ocorrendo: cada vez mais se utiliza produtos de outras regiões na própria Amazônia, em substituição a produtos tradicionais. É perfeitamente exeqüível desenvolver um número de cinqüenta a cem cadeias produtivas com base na biodiversidade e que alcancem mercados globais, gerando, ao cabo de dez a vinte anos, uma nova economia de base florestal e de recursos aquáticos e com utilização econômica intensiva da biodiversidade, com forte agregação local de valor via industrialização. Essa nova economia tem o potencial de ser bem mais expressiva do que a economia atual baseada na substituição ou exploração destrutiva da floresta.

Ainda que esse não seja um diagnóstico novo, por que essa nova realidade econômica não se desenvolve, uma vez que hoje está claro que é vontade nacional interromper a trajetória atual de desenvolvimento baseado em desmatamentos? Em outras palavras, como dar seqüência a essa vontade nacional de encontrar uma trajetória sustentável para o futuro da Amazônia? Aqui, uma nova visão de C&T para a região é imperativa. Entre outras condições gerais, como a melhoria do ensino básico, faz-se necessário criar uma rede de novas instituições de ensino superior, pós-graduação e pesquisa básica e tecnológica avançada, com foco específico em recursos da floresta e recursos aquáticos. Essas instituições deveriam ser criadas de forma a radicalmente descentralizar C&T na vasta Amazônia, maximizando a diversidade e potencialidades sub-regionais. Tal rede inovadora de C&T deveria contar com o surgimento de cinco a seis novos institutos de tecnologia, agregando cerca de 500 a 600 professores, pesquisadores e técnicos cada um deles, multiplicando por três a quatro o número de pesquisadores ativos na Amazônia. Adicionalmente, esses institutos - conectados a uma rede de laboratórios associados cobrindo todos os rincões da Amazônia e interligados por tecnologia de informação de ponta - serviriam como pólos regionais desse novo modelo de desenvolvimento tecnológico regional, assim como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), de São José dos Campos, SP, nucleou, nas décadas de 50 a 70, o rápido desenvolvimento da indústria aeronáutica brasileira, que é, hoje, uma das mais importantes do mundo. Portanto, o que a Amazônia necessita são vários destes "ITAs", Institutos de Tecnologia da Amazônia, para nuclear um modelo industrial inovador para aquela região. Esses institutos deveriam se ocupar do desenvolvimento e agregação de valor em toda a cadeia produtiva de dezenas de produtos Amazônicos, da bioprospecção à comercialização e colocação nos mercados mundiais. Ainda que isso possa parecer uma receita muito simples de desenvolvimento regional, ainda não foi adotada em larga escala em nenhum país tropical. Na ponta de alta tecnologia, alguns dos institutos teriam capacidade para desenvolver pesquisas sofisticadas em biotecnologia e nanociência aplicada à biomímica, isto é, o aprendizado sobre a maneira pela qual sistemas biológicos complexos encontraram respostas, na escala nanomolecular, para questões com potencial de aplicações práticas, uma nova área científica a ser explorada para os ecossistemas tropicais.

Carlos A. Nobre

Centro de Ciência do Sistema Terrestre

Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE)

São José dos Campos-SP, Brasil

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2008
  • Data do Fascículo
    2008
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