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Implicações da sobrecarga na capacidade da unidade de terapia intensiva sobre o cuidado de pacientes críticos

Introdução

Toda unidade de terapia intensiva (UTI) tem uma "capacidade" inerente, ou seja, a "capacidade de proporcionar cuidados de alta qualidade para qualquer pessoa que seja ou possa tornar-se paciente daquela UTI em um dado dia".(11 Halpern SD. ICU capacity strain and the quality and allocation of critical care. Curr Opin Crit Care. 2011;17(6):648-57.) Assim como ocorre com qualquer operação, a capacidade das UTI não é ilimitada. A capacidade da UTI já foi comparada a um balão - capaz de distender-se a ponto de acomodar mais pacientes ou maior precisão, porém quando essa capacidade é excedida, o balão explode ou os cuidados se deterioram.(11 Halpern SD. ICU capacity strain and the quality and allocation of critical care. Curr Opin Crit Care. 2011;17(6):648-57.) No entanto, é também possível que as UTI funcionem como motores - em vez de ter um desempenho marcadamente diferente a partir de determinado ponto de inflexão da curva de demanda, sua eficiência pode se modificar como função contínua da demanda imposta. Nesta perspectiva, discutimos as evidências que se referem aos fatores que contribuem para sobrecarga na capacidade da UTI e à identificação das falhas no campo, assim como consideramos as implicações para futuras pesquisas e cuidado dos pacientes.

Quais fatores contribuem para sobrecarga na capacidade da unidade de terapia intensiva?

Em termos operacionais, a sobrecarga na capacidade pode ser definida como "capacidade limitada e os problemas resultantes dos tempos de espera e perdas de rendimento".(22 Terwiesch C, Diwas KC, Kahn JM. Working with capacity limitations: operations management in critical care. Crit Care. 2011;15(4):308.) A sobrecarga na capacidade pode ser provocada por qualquer coisa que resulte em uma demanda de recursos que excede os disponíveis. Nas condições dos cuidados à saúde, a sobrecarga pode resultar de uma modificação do volume de pacientes. Na verdade, este modelo simples de sobrecarga foi primeiramente descrito no pronto-socorro. Diversos estudos demonstraram que um volume elevado de pacientes ("aglomeração") no pronto-socorro se associa com desfechos desfavoráveis, inclusive tempo mais longo até a trombólise em casos de infarto agudo do miocárdio(33 Schull MJ, Vermeulen M, Slaughter G, Morrison L, Daly P. Emergency department crowding and thrombolysis delays in acute myocardial infarction. Ann Emerg Med. 2004;44(6):577-85.) e retardamento ou mesmo ausência de administração de antibióticos em casos de pneumonia adquirida na comunidade.(44 Pines JM, Localio AR, Hollander JE, Baxt WG, Lee H, Phillips C, et al. The impact of emergency department crowding measures on time to antibiotics for patients with community-acquired pneumonia. Ann Emerg Med. 2007;50(5):510-6.) Um estudo mais recente demonstrou também um aumento da mortalidade aos 90 dias em situações de aglomeração no pronto-socorro,(55 Rose L, Scales DC, Atzema C, Burns KE, Gray S, Doing C, et al. Emergency Department length of stay for critical care admissions. A population-based study. Ann Am Thorac Soc. 2016;13(8):1324-32.) enfatizando a importância potencial da sobrecarga na capacidade, não apenas em relação aos processos imediatos de tratamento, mas também em desfechos mais tardios do paciente.

Nossa equipe de pesquisa ampliou o conceito de sobrecarga na capacidade da UTI, considerando que seu escopo é ainda maior. Demonstramos que diversos fatores contribuem para a sobrecarga na capacidade percebida pelos médicos da UTI que prestam o primeiro atendimento, incluindo não apenas o número de pacientes, mas também a gravidade de suas doenças, o número de novas admissões à UTI, e até mesmo fatores externos à UTI, como a capacidade das enfermarias gerais para receber os pacientes prontos para alta da UTI.(66 Kerlin MP, Harhay MO, Vranas KC, Cooney E, Ratcliffe SJ, Halpern SD. Objective factors associated with physicians' and nurses' perceptions of intensive care unit capacity strain. Ann Am Thorac Soc. 2014;11(2):167-72.)

Quais as implicações da sobrecarga na capacidade da unidade de terapia intensiva?

A sobrecarga na capacidade da UTI tem implicações amplas sobre a operação, o desempenho e as práticas da UTI. Por exemplo, um estudo demonstrou que os pacientes da UTI tiveram tempos de permanência mais curtos na unidade quando o censo, o número de admissões e a precisão média da UTI foram mais altos.(77 Wagner J, Gabler NB, Ratcliffe SJ, Brown SE, Strom BL, Halpern SD. Outcomes among patients discharged from busy intensive care units. Ann Intern Med. 2013;159(7):447-55.) Mais ainda, quando os pacientes tiveram alta da UTI em períodos com maior sobrecarga, houve leve aumento na tendência a readmissões à UTI.(77 Wagner J, Gabler NB, Ratcliffe SJ, Brown SE, Strom BL, Halpern SD. Outcomes among patients discharged from busy intensive care units. Ann Intern Med. 2013;159(7):447-55.)

Outro estudo demonstrou que aumentos nas admissões e precisão se associaram com tempo mais curto para ordens de não ressuscitação e óbito em UTI que operavam com modelos de esquipe fechada de médicos (isto é, todos os pacientes foram cuidados primariamente por intensivistas),(88 Hua M, Halpern SD, Gabler NB, Wunsch H. Effect of ICU strain on timing of limitations in life-sustaining therapy and on death. Intensive Care Med. 2016;42(6):987-94.) sugerindo, mais uma vez, que a sobrecarga tem impacto no fluxo de pacientes e, consequentemente, na capacidade.

Os procedimentos de cuidado também parecem sofrer impacto da sobrecarga. Por exemplo, um estudo demonstrou que, à medida que as admissões e censos aumentam, a tendência à profilaxia apropriada de tromboembolismo diminui, particularmente em pacientes de UTI fechadas.(99 Weissman GE, Gabler NB, Brown SE, Halpern SD. Intensive care unit capacity strain and adherence to prophylaxis guidelines. J Crit Care. 2015;30(6):1303-9.) O aumento da sobrecarga da UTI também influencia no fluxo de trabalho dos médicos, já que alguns estudos demonstram que a sobrecarga se associa com maior dispêndio de tempo no cuidado direto do paciente e na educação de estagiários,(1010 Hefter Y, Madahar P, Eisen LA, Gong MN. A time-motion study of ICU workflow and the impact of strain. Crit Care Med. 2016;44(8):1482-9.) menor tempo dispendido em documentação,(1010 Hefter Y, Madahar P, Eisen LA, Gong MN. A time-motion study of ICU workflow and the impact of strain. Crit Care Med. 2016;44(8):1482-9.) e menor dispêndio de tempo com pacientes recém-admitidos.(1111 Brown SE, Rey MM, Pardo D, Weinreb S, Ratcliffe SJ, Gabler NB, et al. The allocation of intensivists' rounding time under conditions of intensive care unit capacity strain. Am J Respir Crit Care Med. 2014;190(7):831-4.) Estes estudos demonstram, coletivamente, que, em condições de sobrecarga, os recursos da UTI (inclusive o tempo dos médicos) são alocados de forma diferente.

É importante salientar que estas alterações na operação da UTI, dos processos de cuidados e alocação de tempo não parecem ter um impacto nos desfechos dos pacientes, já que, em grande extensão, a morte seria um desfecho previsível. Um grande estudo observacional multicêntrico, que definiu sobrecarga na capacidade da UTI com base no censo, precisão média por paciente e proporção de novas admissões, demonstrou que a tendência a óbito dos pacientes durante a hospitalização foi apenas ligeiramente mais elevada quando os pacientes foram admitidos em períodos de grande sobrecarga, e que mesmo estes efeitos discretos foram confinados às UTI fechadas.(1212 Gabler NB, Ratcliffe SJ, Wagner J, Asch DA, Rubenfeld GD, Angus DC, et al. Mortality among patients admitted to strained intensive care units. Am J Respir Crit Care Med. 2013;188(7):800-6.) Semelhantemente, embora os pacientes que receberam alta durante períodos de grande sobrecarga tenham apresentado tempo de permanência na UTI mais curto e readmissões mais frequentes, eles tiveram a mesma tendência à sobrevivência e de alta para o domicílio.(77 Wagner J, Gabler NB, Ratcliffe SJ, Brown SE, Strom BL, Halpern SD. Outcomes among patients discharged from busy intensive care units. Ann Intern Med. 2013;159(7):447-55.) Assim, é possível que, em vez de erodir a qualidade dos cuidados prestados, a sobrecarga na capacidade da UTI pode ter impacto no sentido de tornar os cuidados prestados mais eficientes, reduzindo assim o tempo de permanência na UTI e a tomada de decisões adequadas quanto ao suporte à vida, sem causar risco aos desfechos finais dos pacientes.

O que desconhecemos a respeito da sobrecarga na capacidade da unidade de terapia intensiva

Embora a qualidade e a quantidade de pesquisas referentes à sobrecarga na capacidade da UTI tenham aumentado dramaticamente nos últimos 5 anos, ainda há falhas substanciais em nosso conhecimento. Primeiramente, a pesquisa até aqui realizada tem se focalizado no fluxo de trabalho do médico, excluindo outras disciplinas,(1313 Vranas KC, Kerlin MP. ICU physician workflow: inside the balloon. Crit Care Med. 2016;44(8):1607-8.) a despeito do fato de que o cuidado na UTI é inerentemente multiprofissional. Em segundo lugar, embora em sua maioria os estudos prévios tenham mostrado pouco ou nenhum desfecho desfavorável para os pacientes nas ocasiões de grande sobrecarga, existe uma considerável variabilidade entre as UTI, e parece provável que certas unidades são mais suscetíveis aos efeitos deletérios da sobrecarga na capacidade. Assim, é necessário trabalho adicional para identificar a heterogeneidade, no que se refere à forma como as UTI com diferentes organizações respondem à sobrecarga.

Em terceiro lugar, é necessário que se conduzam pesquisas em diferentes condições, para determinar se este efeito da sobrecarga nos processos e desfechos do cuidado apresenta efeito contínuo ao longo de diferentes faixas de sobrecarga, ou se há um limite para os efeitos, de forma que, na medida em que se mantém a sobrecarga abaixo de certos níveis definíveis, os efeitos deletérios deixam de se manifestar. A identificação destes "níveis alvo" de sobrecarga poderia ajudar a mover o campo em direção a melhora dos desfechos dos pacientes críticos. Em quarto lugar, em vez de examinar os componentes individuais da sobrecarga, como censo e precisão, os futuros estudos deveriam buscar desenvolver e validar uma medida composta da sobrecarga para acentuar a compreensão do impacto geral deste construto.

Finalmente, e talvez mais importante, o campo de pesquisa na sobrecarga tem se focalizado primariamente em sobrecargas dentro da UTI, com alguma atenção ao impacto da sobrecarga do pronto-socorro nos desfechos de pacientes críticos. As futuras pesquisas devem avaliar a sobrecarga da enfermaria e, na verdade, a sobrecarga em todo o hospital, já que as diferentes unidades do hospital são organizacionalmente dependentes, e afetam mutuamente a capacidade e o fluxo de pacientes de cada serviço. Especificamente, precisamos retornar e aplicar o conhecimento obtido com o trabalho referente à sobrecarga na capacidade da UTI à sobrecarga nos cuidados de pacientes críticos desde o momento em que entram no pronto-socorro até a ocasião em que recebem alta hospitalar.

Dentro do crescente corpo de literatura a respeito da sobrevivência na UTI, uma nova linha de pesquisa deve focalizar-se nas enfermarias, lugar para onde a maior parte dos pacientes é transferida, uma vez recuperados da doença crítica. Precisamos definir e operacionalizar a sobrecarga na capacidade da enfermaria, para assim determinar como ela pode causar impacto nos desfechos em longo prazo dos pacientes que estão ou evoluem para condições críticas. Mais ainda, futuros estudos devem avaliar a interação entre a sobrecarga na capacidade das enfermarias com a sobrecarga da UTI e do pronto-socorro, e seus efeitos no fluxo de pacientes, capacidade do hospital e da UTI, e tempos de espera, para assim melhor organizar o fluxo de pacientes e usar de forma mais eficiente os limitados recursos da terapia intensiva.

Conclusão

A sobrecarga na capacidade da UTI se associa com o fluxo de trabalho dos médicos, processos de cuidados, triagem de pacientes e, em algumas situações, com o desfecho dos pacientes. Futuras pesquisas devem se focalizar nas populações da UTI, nos médicos e na equipe multiprofissional, e na definição e compreensão da sobrecarga da enfermaria. Estes esforços melhorarão a compreensão da sobrecarga ao longo da hospitalização de pacientes críticos, possibilitando, desta forma, intervenções que melhorem o cuidado geral e os desfechos de pacientes críticos, assim como a eficiência do fluxo do hospital e seus resultados.

  • Editor responsável: Jorge Ibrain de Figueira Salluh

AGRADECIMENTOS

Apoios recebidos: Dra. Kohn, NIH/NHLBI T32 HL007891, e Dr. Kerlin, NIH/NHLBI K08 HL116771.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Halpern SD. ICU capacity strain and the quality and allocation of critical care. Curr Opin Crit Care. 2011;17(6):648-57.
  • 2
    Terwiesch C, Diwas KC, Kahn JM. Working with capacity limitations: operations management in critical care. Crit Care. 2011;15(4):308.
  • 3
    Schull MJ, Vermeulen M, Slaughter G, Morrison L, Daly P. Emergency department crowding and thrombolysis delays in acute myocardial infarction. Ann Emerg Med. 2004;44(6):577-85.
  • 4
    Pines JM, Localio AR, Hollander JE, Baxt WG, Lee H, Phillips C, et al. The impact of emergency department crowding measures on time to antibiotics for patients with community-acquired pneumonia. Ann Emerg Med. 2007;50(5):510-6.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    28 Set 2016
  • Aceito
    09 Out 2016
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