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Tempo de positividade: um parâmetro útil para avaliação de infecções da corrente sanguínea na unidade de terapia intensiva?

Prezado editor,

As infecções da corrente sanguínea (ICS) são complicações frequentes e graves nas unidades de terapia intensiva (UTIs) e se associam com elevadas taxas de morbidade e mortalidade, aumento do tempo de permanência no hospital e dos custos relacionados à assistência à saúde.(11 Russotto V, Cortegiani A, Graziano G, Saporito L, Raineri SM, Mammina C, et al. Bloodstream infections in intensive care unit patients: distribution and antibiotic resistance of bacteria. Infect Drug Resist. 2015;8:287-96.

2 Bassetti M, Righi E, Carnelutti A. Bloodstream infections in the intensive care unit. Virulence. 2016;7(3):267-79.
-33 Silva E, Dalfior Junior L, Fernandes HS, Moreno R, Vincent JL. Prevalence and outcomes of infections in Brazilian ICUs: a subanalysis of EPIC II study. Rev Bras Ter Intensiva. 2012;24(2):143-50.)

Geralmente, a hemocultura é o recurso laboratorial mais importante para o diagnóstico e a investigação da ICS. Além disto, as hemoculturas também fornecem informações relativas ao tempo de positividade (TP), que pode ser utilizado para predizer o prognóstico do paciente e avaliar a eficácia dos tratamentos antimicrobianos em curso, além de ser importante para avaliar a carga bacteriana circulante e diferenciar infecções verdadeiras de contaminantes.(44 Ning Y, Hu R, Yao G, Bo S. Time to positivity of blood culture and its prognostic value in bloodstream infection. Eur J Clin Microbiol Infect Dis. 2016;35(4):619-24.,55 Araujo MR. Hemocultura: recomendações de coleta, processamento e interpretação dos resultados. J Infect Control. 2012;1(1):8-19.) Contudo, o uso do TP para avaliação de hemoculturas ainda é questionado.

Este estudo retrospectivo teve como objetivo analisar a importância do TP de microrganismos relacionados à ICS em pacientes admitidos à UTI de um hospital terciário de Curitiba (PR), entre junho de 2013 e maio de 2018. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos (número de referência 067486/2016; carta de aprovação datada de novembro de 2016).

Obtiveram-se as hemoculturas de pacientes com suspeita de ICS sendo incubadas em um sistema automatizado BD BACTEC™ FX®. Os isolados positivos da hemocultura foram identificados com utilização do sistema automático VITEK® 2 (bioMérieux, Durham, North Carolina) e metodologias padronizadas.(66 Murray PR, Rosenthal KS, Pfaller MA. Microbiologia Médica. 6a ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2009.) Episódios repetidos de bacteremia monomicrobiana com o mesmo patógeno isolado do mesmo paciente dentro de 1 mês foram considerados como uma única hemocultura. Culturas polimicrobianas foram excluídas do estudo. O TP foi registrado para cada amostra positiva. Quando mais de um frasco de cultura era positivo, registrou-se o primeiro TP.

Os Staphylococcus coagulase-negativos (SCN) foram classificados segundo o número de frascos positivos: um (SCN +) foi considerado como contaminante, dois ou mais frascos positivos (SCN ++) foram consideradas como ICSs verdadeiras. Todas as análises estatísticas foram realizadas com o programa Statistical Package for Social Science (SPSS) versão 20.0, sendo valor de p < 0,05 considerado estatisticamente significante.

No período de 5 anos do estudo, colheram-se 5.425 amostras para hemocultura de pacientes na UTI; 107 eram polimicrobianas e 968 foram positivas para um microrganismo, resultando em taxa de positividade de 19%. Dentre as culturas analisadas, em 194 foram identificados SCN-contaminantes (taxa de contaminantes de 3,5%), resultando em 774 culturas verdadeiramente positivas.

Os patógenos Gram-positivos foram os mais frequentemente isolados nas amostras de ICS da UTI (n = 502; 64,8%), seguidos por patógenos Gram-negativos (n = 214; 27,7%), fungos (n = 56; 7,3%) e bacilos álcool-ácido resistentes (n = 2; 0,2%). O grupo de microrganismos mais frequentemente relatados foi o de Staphylococcus coagulase-negativos (350; 45,3%), seguido por Staphylococcus aureus (87; 11,3%), Klebsiella pneumoniae (72; 9,4%) e Candida sp. (49; 6,4%). Escherichia coli (28; 3,7%), Pseudomonas aeruginosa (27; 3,4%), Enterococcus faecalis (24; 3,1%) e Acinetobacter baumannii (23; 2,9%) também foram identificados com frequência.

Os parâmetros para o TP, incluindo média, tempos mínimo e máximo e desvio padrão, são apresentados na tabela 1 e na figura 1.

Tabela 1
Quantidade, média de primeiro tempo para positividade, tempo mínimo para positividade e tempo máximo para positividade, segundo as espécies ou grupos de microrganismos

Figura 1
Tempo para positividade para as espécies ou grupos de microrganismos analisados. SCN + - único teste positivo para staphylococcus coagulase-negativos; SCN ++ - dois ou mais Staphylococcus coagulase-negativos.

Independentemente do número de culturas positivas, o isolamento de alguns microrganismos incluindo Candida sp., P. aeruginosa, S. aureus e Enterobacteriaceae, é geralmente relacionado a verdadeiras ICSs, apresentando elevados valores preditivos positivos.(77 Weinstein MP, Towns ML, Quartey SM, Mirrett S, Reimer LG, Parmigiani G, et al. The clinical significance of positive blood cultures in the 1990s: a prospective comprehensive evaluation of the microbiology, epidemiology, and outcome of bacteremia and fungemia in adults. Clin Infect Dis. 1997;24(4):584-602.) Entretanto, em razão da colonização cutânea e do elevado uso de dispositivos invasivos, como cateteres, nos pacientes de UTI, o isolamento de SCN nas hemoculturas pode ser considerado uma contaminação, principalmente quando não se descrevem sinais e sintomas de bacteremia. Neste estudo, o TP para SCN + foi significantemente mais alto do que o TP para SCN ++ (p < 0,05), TP para outros microrganismos Gram-positivos (Staphylococcus sp. e Enterococcus sp.) (p < 0,05) e TP para outros microrganismos considerados não contaminantes (p < 0,05), de modo coerente com relatos previamente publicados.(44 Ning Y, Hu R, Yao G, Bo S. Time to positivity of blood culture and its prognostic value in bloodstream infection. Eur J Clin Microbiol Infect Dis. 2016;35(4):619-24.,88 Pardo J, Klinker KP, Borgert SJ, Trikha G, Rand KH, Ramphal R. Time to positivity of blood cultures supports antibiotic de-escalation at 48 hours. Ann Pharmacother. 2014;48(1):33-40.) Este resultado sugere que o TP é uma ferramenta útil para diferenciar a ICS verdadeira de uma contaminação.

O TP de diferentes grupos de microrganismos (Gram-positivos, Gram-negativos e Candida sp.) também diferiu significantemente (p < 0,05). Os microrganismos Gram-negativos tiveram TP menor do que fungos e microrganismos Gram-positivos (p < 0,05). Como exceção, o TP de P. aeruginosa (22 horas) foi maior do que o TP para SCN ++ (20 horas), S. aureus (21 horas) e E. faecalis (14 horas), de forma coerente com relatos prévios (44 Ning Y, Hu R, Yao G, Bo S. Time to positivity of blood culture and its prognostic value in bloodstream infection. Eur J Clin Microbiol Infect Dis. 2016;35(4):619-24.). A. baumannii teve TP médio mais curto (9 horas), e Candida sp. teve o tempo mais longo (39 horas). Na literatura, o TP para Candida é variável, mas, em geral, alto, com valores médios mínimos de TP de 27 horas, 35 horas e 41,9 horas.(99 Park SH, Shim H, Yoon NS, Kim MN. [Clinical relevance of time-to-positivity in BACTEC9240 blood culture system]. Korean J Lab Med. 2010;30(3):276-83. Korean.

10 Kim SH, Yoon YK, Kim MJ, Sohn JW. Clinical impact of time to positivity for Candida species on mortality in patients with candidaemia. J Antimicrob Chemother. 2013;68(12):2890-7.
-1111 Nunes CZ, Marra AR, Edmond MB, da Silva Victor E, Pereira CA. Time to blood culture positivity as a predictor of clinical outcome in patients with Candida albicans bloodstream infection. BMC Infect Dis. 2013;13:486.) O TP para A. baumannii também foi coerente com relatos prévios, com valores de TP de 10,4 horas e 8,8 horas.(99 Park SH, Shim H, Yoon NS, Kim MN. [Clinical relevance of time-to-positivity in BACTEC9240 blood culture system]. Korean J Lab Med. 2010;30(3):276-83. Korean.,1212 Lai CC, Wang CY, Liu WL, Cheng A, Lee YC, Huang YT, et al. Time to blood culture positivity as a predictor of drug resistance in Acinetobacter baumannii complex bacteremia. J Infect. 2011;63(1):96-8.

A distribuição de cada espécie ou grupo de espécies dentro das primeiras 24 horas, 48 horas, 72 horas e > 72 horas de incubação é ilustrada pela figura 2. Com exceção de Candida, o número de culturas positivas diminuiu com maior tempo de incubação. Em nosso estudo, 75% dos patógenos foram isolados dentro de 24 horas, 95% dentro de 48 horas e 98% dentro de 72 horas. Ning et al., Pardo et al. e Park et al. relataram previamente que 95,2%, 97% e 88,3%, respectivamente, de todas as culturas positivas foram detectados dentro de 48 horas de incubação. O descalonamento de antibióticos foi recomendado para culturas negativas após esse período.(44 Ning Y, Hu R, Yao G, Bo S. Time to positivity of blood culture and its prognostic value in bloodstream infection. Eur J Clin Microbiol Infect Dis. 2016;35(4):619-24.,88 Pardo J, Klinker KP, Borgert SJ, Trikha G, Rand KH, Ramphal R. Time to positivity of blood cultures supports antibiotic de-escalation at 48 hours. Ann Pharmacother. 2014;48(1):33-40.,99 Park SH, Shim H, Yoon NS, Kim MN. [Clinical relevance of time-to-positivity in BACTEC9240 blood culture system]. Korean J Lab Med. 2010;30(3):276-83. Korean.) Nosso estudo apoia tal sugestão, já que a cessação do uso de terapêutica antimicrobiana desnecessária reduz os custos e a duração da permanência no hospital e limita a pressão seletiva para antibióticos, associada com o desenvolvimento de resistência a antimicrobianos.(1313 Paterson DL, Rice LB. Empirical antibiotic choice for the seriously ill patient: are minimization of selection of resistant organisms and maximization of individual outcome mutually exclusive? Clin Infect Dis. 2003;36(8):1006-12.

Figura 2
Culturas positivas após 24 horas, 48 horas, 72 horas e > 72 horas, segundo as espécies ou grupos de microrganismos. SCN ++ - dois ou mais testes positivos para Staphylococcus coagulase-negativos; SCN + - único teste positivo para Staphylococcus coagulase-negativos.

Foi também sugerida associação entre o TP e o desfecho clínico na infecção. Valores menores de TP refletem número maior de microrganismos circulantes, e uma maior carga microbiana pode associar-se com taxas mais elevadas de mortalidade. Em nosso estudo, essa associação foi significante para Candida sp. (p < 0,05). A mortalidade de pacientes foi mais elevada quando a cultura de Candida foi positiva antes de 37 horas (área sob a curva - ASC de 0,733; sensibilidade de 83% e especificidade de 60%; p = 0.005), indicando que o TP pode ser utilizado como preditor para a mortalidade em pacientes com candidemia, de acordo com outros estudos previamente publicados.(1010 Kim SH, Yoon YK, Kim MJ, Sohn JW. Clinical impact of time to positivity for Candida species on mortality in patients with candidaemia. J Antimicrob Chemother. 2013;68(12):2890-7.) Segundo Nunes et al., não se observou diferença estatisticamente significante entre os pacientes com TP mais curto para Candida (< 36 horas) e TP mais longo (> 36 horas).(1111 Nunes CZ, Marra AR, Edmond MB, da Silva Victor E, Pereira CA. Time to blood culture positivity as a predictor of clinical outcome in patients with Candida albicans bloodstream infection. BMC Infect Dis. 2013;13:486.) Contudo, Kim et al. identificaram associação com mortalidade para Candida sp., com TP < 24 horas.(1010 Kim SH, Yoon YK, Kim MJ, Sohn JW. Clinical impact of time to positivity for Candida species on mortality in patients with candidaemia. J Antimicrob Chemother. 2013;68(12):2890-7.) Em nosso estudo, não encontramos essa associação para espécies de bactérias.

Este estudo salienta que o TP pode ser uma ferramenta útil para distinguir um contaminante de uma verdadeira ICS e também pode ser utilizado como preditor da mortalidade em infecções causadas por Candida sp. Além disto, já que 95% das culturas foram positivas em até 48 horas de incubação, este tempo poderia ser utilizado para o descalonamento de antimicrobianos para pacientes com suspeita de bacteremia e resultados negativos de cultura, visto que raras ICS se evidenciaram após esses período de incubação.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Russotto V, Cortegiani A, Graziano G, Saporito L, Raineri SM, Mammina C, et al. Bloodstream infections in intensive care unit patients: distribution and antibiotic resistance of bacteria. Infect Drug Resist. 2015;8:287-96.
  • 2
    Bassetti M, Righi E, Carnelutti A. Bloodstream infections in the intensive care unit. Virulence. 2016;7(3):267-79.
  • 3
    Silva E, Dalfior Junior L, Fernandes HS, Moreno R, Vincent JL. Prevalence and outcomes of infections in Brazilian ICUs: a subanalysis of EPIC II study. Rev Bras Ter Intensiva. 2012;24(2):143-50.
  • 4
    Ning Y, Hu R, Yao G, Bo S. Time to positivity of blood culture and its prognostic value in bloodstream infection. Eur J Clin Microbiol Infect Dis. 2016;35(4):619-24.
  • 5
    Araujo MR. Hemocultura: recomendações de coleta, processamento e interpretação dos resultados. J Infect Control. 2012;1(1):8-19.
  • 6
    Murray PR, Rosenthal KS, Pfaller MA. Microbiologia Médica. 6a ed. Rio de Janeiro: Elsevier; 2009.
  • 7
    Weinstein MP, Towns ML, Quartey SM, Mirrett S, Reimer LG, Parmigiani G, et al. The clinical significance of positive blood cultures in the 1990s: a prospective comprehensive evaluation of the microbiology, epidemiology, and outcome of bacteremia and fungemia in adults. Clin Infect Dis. 1997;24(4):584-602.
  • 8
    Pardo J, Klinker KP, Borgert SJ, Trikha G, Rand KH, Ramphal R. Time to positivity of blood cultures supports antibiotic de-escalation at 48 hours. Ann Pharmacother. 2014;48(1):33-40.
  • 9
    Park SH, Shim H, Yoon NS, Kim MN. [Clinical relevance of time-to-positivity in BACTEC9240 blood culture system]. Korean J Lab Med. 2010;30(3):276-83. Korean.
  • 10
    Kim SH, Yoon YK, Kim MJ, Sohn JW. Clinical impact of time to positivity for Candida species on mortality in patients with candidaemia. J Antimicrob Chemother. 2013;68(12):2890-7.
  • 11
    Nunes CZ, Marra AR, Edmond MB, da Silva Victor E, Pereira CA. Time to blood culture positivity as a predictor of clinical outcome in patients with Candida albicans bloodstream infection. BMC Infect Dis. 2013;13:486.
  • 12
    Lai CC, Wang CY, Liu WL, Cheng A, Lee YC, Huang YT, et al. Time to blood culture positivity as a predictor of drug resistance in Acinetobacter baumannii complex bacteremia. J Infect. 2011;63(1):96-8.
  • 13
    Paterson DL, Rice LB. Empirical antibiotic choice for the seriously ill patient: are minimization of selection of resistant organisms and maximization of individual outcome mutually exclusive? Clin Infect Dis. 2003;36(8):1006-12.

Editado por

Editor responsável: Thiago Costa Lisboa

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2020

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2019
  • Aceito
    06 Out 2019
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