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Fábula de Cláudio Manuel da Costa: mineração e poesia em situação colonial

Fable of Cláudio Manuel da Costa: Mining and Poetry in a Colonial Context

Resumo

Com o poema lírico “Fábula do ribeirão do Carmo”, Cláudio Manuel da Costa imagina uma origem mítica para a Capitania das Minas Gerais e a principal atividade econômica que estimulou o povoamento luso-brasileiro da região. A narrativa trata do surgimento do rio que banha a cidade natal do poeta, Mariana. Por seguir o modelo clássico das Metamorfoses, de Ovídio, o poeta incorpora Minas Gerais e sua bacia hidrográfica ao tesouro mitológico da Antiguidade, que irrigava toda a tradição literária do Ocidente. Ao mesmo tempo, frisa o caráter especificamente colonial dessa incorporação, com uma história marcada pelo desterro e a violência.

Palavras-chave
mineração; colonização; poesia luso-brasileira; Cláudio Manuel do Carmo; “Fábula do ribeirão do Carmo”

Abstract

In his lyrical poem “Fable of the Brook of the Carmo”, Cláudio Manuel da Costa imagines a mythical origin for the Captaincy of Minas Gerais and the main economic activity that has incited its occupation by Luso-Brazilian settlers. It is the tale of the birth of the river that flows through the city of Mariana, where the poet was born. As he follows the classical model of Ovid’s Metamorphoses, Cláudio Manuel incorporates Minas Gerais and its hydrographic basin into the mythological heritage that irrigated the whole literary tradition of the West. At the same time, he stresses the distinctive colonial character of such an incorporation with a story of exile and violence.

Keywords
mining; colonization; Luso-Brazilian poetry; Cláudio Manuel da Costa; “Fable of the Brook of the Carmo”

Para o Prof. Ilmar Rohloff de Mattos

1 Prelúdio

Antes de mais nada, é necessário admitir o fato de que Cláudio Manuel é primeiramente o nome de uma rua, não de um poeta. Há mais moradores nesse endereço, em Belo Horizonte, do que leitores de Cláudio Manuel da Costa (1729-1789). O homenageado se converte em logradouro, debaixo de nossos pés, sob a rodagem dos nossos pneus. Sua existência no tráfego não parece ameaçada: está no mapa, literalmente. O waze nos diz onde fica. Sua realidade literária já é discutível, quase fantástica. Gerações e mais gerações de pessoas regularmente instruídas desconhecem suas poesias, sem nenhum constrangimento. Quando muito, lembram-se de que o autor esteve envolvido na Inconfidência Mineira. Caso entrem numa livraria, se houver alguma em sua cidade, ou se clicarem no link adequado, dificilmente acharão livros dele à venda, em edições confiáveis.

A via é pública; a obra, nem tanto. Se não for atravessada, uma rua continua. Mas Cláudio Manuel, se não for lido, existe ainda? Tampouco há traduções, que o salvem da ignorância brasileira. Sua presença quase secreta depende de exemplares subsistentes em bibliotecas públicas, sebos e coleções particulares, além de virtualíssimos arquivos em pdf, que se volatilizam, disponíveis, na internet. Só por isso ele não pode ser considerado tão perdido quanto uma espécie extinta ou um museu incendiado.

Ou, se não, quanto um vilarejo soterrado em lama tóxica. Haveria algum livro de Cláudio Manuel em Bento Rodrigues, distrito de Mariana, sua “pátria”, que desapareceu depois da ruptura de uma barragem de rejeitos da mineração, na tarde de 5 de novembro de 2015? Diz-se que foi o maior desastre ambiental da história do Brasil (Serra, 2018SERRA, Cristina. Tragédia em Mariana. A história do maior desastre ambiental do Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2018.). Quase vinte pessoas morreram na hora, e centenas ficaram desabrigadas. A lama tóxica não demorou a alcançar o rio Doce, de extensa bacia hidrográfica, através da qual chegou a atingir o litoral do Espírito Santo, a mais de 500 quilômetros de distância.

Por que essa desgraça aconteceu em Mariana e não em Londres, onde nasceu e é lido outro grande poeta do século XVIII, William Blake? Ou em Weimar (cidadezinha do mesmo porte), onde não existe mais a corte do grão-duque, mas ainda leem Goethe? Ou em Lisboa, onde Bocage viveu e é lido? Ou em Paris, onde guilhotinaram e leem André Chénier? Haverá relação entre uma coisa e outra? Talvez; mas é melhor acabar logo com a especulação, antes que alguma autoridade resolva imprimir e distribuir livros de poesia nas áreas ameaçadas por barragens inseguras em todo o Brasil, a fim de prevenir desabamentos. Seriam as maiores tiragens do gênero já feitas no país, chegando às centenas de milhares de exemplares...

As letras e a lama são velhas parceiras em países ex-coloniais ou quase, como o Brasil. É mesmo um tipo de joint venture, como a que administra a Samarco Mineração, responsável pelo desastre de Mariana, reunindo as multinacionais Vale SA (ex-Vale do Rio Doce, privatizada pelo Brasil em 1997) e BHP Billiton. Quanto a Cláudio Manuel, pode-se dizer - sem medo de anacronismos - que a catástrofe da mineração é o próprio contexto de sua obra, bem como de sua vida. A barragem que estourou em Mariana estava situada no Fundão, área que já era explorada por mineradores no tempo dele, pouco acima do arraial de Bento Rodrigues. Ficava junto do Gualaxo do Norte, afluente da margem esquerda do rio do Carmo, que corta a cidade de Mariana e é o “pátrio ribeirão” celebrado por Cláudio Manuel em seus versos. Coincidentemente, à margem direita, corre o Gualaxo do Sul, que passa atrás da Serra do Itacolomi e banhava em território marianense outro sítio do Fundão, onde o poeta nasceu em 1729.

2 Motivo

Cláudio Manuel talvez nem sonhasse virar nome de rua (muito menos no velho arraial de Curral del Rei), mas contava que alguns poemas lhe garantissem o ingresso na posteridade. Entre estes, destaca-se a “Fábula do ribeirão do Carmo”, publicada primeiro no volume de suas Obras, impresso longe, em Coimbra, em 1768 (Costa, 1768COSTA, Cláudio Manuel da. Obras. Coimbra: Luís Secco Ferreira, 1768., p. 80-88; Proença Filho, 1996PROENÇA FILHO, Domício (org.). A poesia dos inconfidentes. Poesia completa de Cláudio Manuel da Costa, Tomás Antônio Gonzaga e Alvarenga Peixoto. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1996., p. 120-127).

Já pelo título, os leitores da época não teriam dificuldades de adivinhar que o assunto é uma metamorfose. Mas, em caso de dúvida, podiam consultar o dicionário do Pe. Bluteau, vol. 4: a “fábula”, na acepção usada, é “uma narração inventada e composta de sucessos que nem são verdadeiros nem verissímiles, mas com curiosa novidade admiráveis, como a transformação de Dafne em loureiro, de Narciso em flor etc.” (Bluteau, 1713BLUTEAU, Rafael. Vocabulário português e latino, volume 4. Coimbra: Colégio das Artes da Companhia de Jesus, 1713., p. 4-5). Os mais lidos haveriam de conhecer um punhado de poemas desse gênero frequentemente relacionado ao exemplo antigo das Metamorfoses, de Ovídio, como a “Favola di Orfeo”, de Angelo Poliziano, ou a “Fábula de Polifemo y Galatea”, de Góngora.

Muitos se lembrariam de outros que imaginavam origens mitológicas para diferentes cursos fluviais, como a “Fábula do Mondego”, de Sá de Miranda (1885SÁ DE MIRANDA, Francisco de. Poesias de... Edição preparada por Carolina Michaëlis de Vasconcelos. Halle: Max Niemeyer, 1885., p. 263-290). Este, nascido em Coimbra, pretendeu homenagear o rio que banha sua cidade. Inventou uma narração sobre os “sucessos” de Diego, jovem mortal enamorado de uma ninfa inacessível. Correndo pelos campos amenos, “furioso de melancolia”, acabou caindo morto junto da corrente de água que os romanos denominaram (por sua clareza) Munda. Misturando-se com ela até nela converter-se, foi a origem do nome Mondego.

Não se sabe se Cláudio Manuel, como letrado colonial, podia ler Sá de Miranda sem se lembrar de que ele era irmão de Mem de Sá, o terceiro governador-geral do Estado do Brasil. O tanto que um fez de quintilhas, o outro matou de indígenas. Para quem compunha versos “desde os sertões da Capitania das Minas Gerais”, devia ser mais difícil separar os dois hemisférios do globo. Seria possível limpar as letras, tirando a lama, como quem raspa a sujeira de uma pepita? E onde jogar fora os rejeitos, que não respingassem na página? Era essa a situação do poeta, quando resolveu também cantar o rio da sua cidade.

Toda a obra poética de Cláudio Manuel representa o esforço gigantesco de compatibilizar o curso da tradição letrada do Ocidente e a experiência do viver como letrado numa capitania americana, apesar da motivação que atraiu aquela, à força, para as margens dos rios auríferos de Minas (ver Alcides, 2003ALCIDES, Sérgio. Estes penhascos. Cláudio Manuel da Costa e a paisagem das Minas (1753-1773). São Paulo: Hucitec, Col. Estudos Históricos, 2003.). “Fábula” era o termo de origem latina que se usava para traduzir, do grego, mýthos. Era o mito, que os tratadistas de Poética, seguindo Aristóteles, associavam ao argumento da poesia, à invenção dos motivos, à composição do enredo, sua estória, sua ficção. Mas, para Cláudio Manuel, não havia maneira de narrar uma fábula do Carmo que ocultasse o que era verdadeiramente fabuloso nessas margens, onde parecia impossível desfazer a liga entre o esplendor da riqueza e o horror da vida social.

Pela doutrina clássica, a tarefa do poeta consistia em revestir a verdade com o véu do fingimento criado por artifícios humanos. Assim Petrarca a definiu, no século XIV (cf. Kantorowicz, 1961KANTOROWICZ, Ernst H. The Sovereignty of the Artist. A Note on Legal Maxims and Renaissance Theories of Art (1961). In: _____. Selected Studies. Nova York: J. J. Augustin, 1965, p. 352-365., p. 355). Cláudio Manuel foi educado dentro dessa concepção. Era um estudante da Faculdade de Cânones, na Universidade de Coimbra, quando veio a público, em 1748, a primeira Arte poética redigida em português. O autor, Cândido Lusitano (Francisco José Freire), não deixou de repetir o ditame que o jovem poeta com certeza conhecia em outras línguas: “sempre o verdadeiro” devia “servir de fundamento às fábulas” (Freire, 1748FREIRE, Francisco José (Cândido Lusitano). Arte poética. Ou regras da verdadeira poesia em geral. Lisboa: Francisco Luís Ameno, 1748., p. 65). Ocorre que o contexto colonial desafiava o decoro da tradição a chegar até seus limites - ou pousar em seus confins, se preferirem. Mesmo sem dispor do conceito de “colônia” que só mais tarde chegaria à flor das consciências, Cláudio Manuel explicita o problema de maneira tão cristalina quanto o caudal do Tejo, do Lima e do Mondego: “Não são estas as venturosas praias da Arcádia, onde o som das águas inspirava a harmonia dos versos. Turva e feia, a corrente destes ribeiros, primeiro que arrebate as ideias de um Poeta, deixa ponderar a ambiciosa fadiga de minerar a terra, que lhes tem pervertido as cores” (1768, p. xix).

Assim escreve o autor da “Fábula do ribeirão do Carmo” no “Prólogo ao Leitor” de suas Obras. Ele fala também de si e das contradições da cultura letrada nos tempos modernos, que não se desatrelava com facilidade de uma elite social não necessariamente cultivada. Antes de ter letras e alguma ideia para ser arrebatada, a maior parte dos letrados herdava desde o berço os compromissos da família. A de Cláudio Manuel, por exemplo, relacionava-se (pela parte de sua mãe) a pioneiros paulistas que vieram em busca das riquezas minerais. O poeta pertencia a um estrato médio de proprietários de terras, escravos e lavras de ouro, e não deixou de ascender na escala social através do êxito profissional, ou como advogado ou como detentor de cargos administrativos. Sua biógrafa Laura de Mello e Souza (2011)MELLO E SOUZA, Laura de. Cláudio Manuel da Costa. São Paulo: Companhia das Letras, Col. Perfis Brasileiros, 2011. revelou em detalhes a teia de seus vínculos sociais e o montante de seus bens.

No “Prólogo” citado, o poeta não se dirige a qualquer leitor: claramente se volta para o reinol, assumindo uma persona rústica, distante, como voz do mundo limítrofe dos sertões americanos. Era um livro, como já dito, impresso longe: no Brasil não havia prelos (o instrumento mais fundamental da cultura letrada, que fora inventado e disseminado na Europa mais de três séculos antes). O “Prólogo” devia acolher um discurso de igual para igual, depois do rebaixamento prescrito para a “Carta dedicatória” oferecida a algum protetor da nobreza, do Estado ou do clero (Cláudio Manuel escolhera o Conde de Valadares, José Luís de Menezes, recém-nomeado governador da Capitania das Minas). Na hora de interpelar os leitores em geral, com muita sutileza, o poeta aproveita a praxe para frisar a especificidade singular da condição das letras no Novo Mundo. E situa suas Obras, entre tantos lugares-comuns transmitidos pela tradição, numa espécie de lugar “não-comum”, à margem, onde se pode discorrer sobre a pátria como local de exílio (cf. Alcides, 2008ALCIDES, Sérgio. O lugar não-comum e a república das letras. Revista do Arquivo Público Mineiro, v. 44, n. 2, p. 36-49, 2008.).

3 Ação

O desterro era a própria origem mitológica de Minas Gerais, segundo a “Fábula do ribeirão do Carmo”. Nesta “inculta região” vivia degredado um dos “filhos da Terra” que se rebelaram contra os deuses do Olimpo. Era irmão de Alcioneu, Encélado e Políboto, entre outros portentos da onomástica, que foram derrotados na chamada gigantomaquia - a “guerra dos gigantes”. Essas criaturas robustas e agressivas receberam a marca da violência na própria concepção: nasceram do sangue que caiu sobre Gaia (a Terra) quando Urano (o Céu) foi castrado e deposto por seu filho Kronos (Saturno, para os romanos). Gaia os teria incitado contra Zeus (Júpiter ou Jove), que eles tiveram a pretensão de subjugar, e foram por isso punidos com severidade, expulsos para diversas extremidades do mundo.

Das mais remotas foi a área da futura Capitania das Minas, que coube a Itamonte, “parto da terra transformado em monte”. O nome híbrido e penhascoso, conjugando um radical tupi e outro europeu, denota o enraizamento do monstro. Os leitores mineiros não teriam dificuldade de associá-lo à paisagem do pico do Itacolomi, que emoldura Vila Rica e deita uma ampla vertente atrás da cidade de Mariana.

O poema de Cláudio Manuel é narrado em primeira pessoa pelo filho de uma penha aí desposada pelo gigante desterrado (ver Nepomuceno, 2002NEPOMUCENO, Luís André. A musa desnuda e o poeta tímido. O petrarquismo na Arcádia brasileira. São Paulo: Annablume, 2002., p. 143-163). O protagonista, portanto, é - como o autor e a própria “Fábula” - natural daquela “parte extrema e rara”. Ele conta sua estória numa ode que flui em 39 sextilhas, da espécie lírica que alterna e rima entre si versos longos e breves, decassílabos e hexassílabos, arrematada com um dístico rimado. A ordem regular e suave da forma contrasta com a aspereza do assunto que aborda e se dispõe a submeter, o que só por si já desperta uma alegoria do choque entre as aspirações civis e as resistências da natureza física ou da “natureza” social e econômica locais.

O filho de Itamonte e Minas diz ter nascido em noite sem lua, como agouro de seus males eternos, cuja origem relata. Ele teve dias felizes, até conhecer a “mudança da fortuna” - a peripécia, que começa na sexta estrofe. Uma “bela Ninfa esquiva”, Eulina, foi a razão da desventura. Seu pai a consagrara ao culto de Apolo (ou Febo), e fora por isso recompensado com a “cópia da riqueza florescente”. Ela tinha então “três lustros” de idade (ou seja: 15 anos) - todos “de ouro”, para rimar com a cabeleira do “deus louro”, semelhante à dela:

Mais formosa de Eulina

Respirava a beleza;

De ouro a madeixa rica e peregrina

Dos corações faz presa;

A cândida porção da neve bela

Entre as rosadas faces se congela.

(“Fábula”, versos 61-6)

Entretanto, a Ninfa não cede aos apelos amorosos do filho de Itamonte. Em desespero, ocorre a ele a ideia de seduzi-la com um tesouro que decide roubar do próprio pai. Com essa resolução se inicia o segundo terço do poema, nas estrofes 14 a 16. “Busquei na minha indústria o meu despenho”, conta o rapaz (v. 81). Ou seja: ele conhecia o ofício da mineração, que manejava “com ingrata destreza” (v. 82). O “roubo” confessado, na verdade, era a extração do metal precioso existente no corpo mineral de Itamonte. A qual é apresentada como delito.

O mancebo já é um criminoso quando leva o produto de sua destreza até a fonte onde Eulina costumava banhar-se, ao entardecer. Torna-se ali ainda mais culpado, ao tentar abraçá-la à força. Ela pede socorro ao seu nume protetor:

Quis gritar; oprimida

A voz entre a garganta,

Apolo? diz, Apol... A voz partida

Lhe nega força tanta.

(“Fábula”, vv. 103-6)

Dá-se então a ocorrência do maravilhoso:

Mas ah! eu não sei como, de repente,

Densa nuvem me põe do bem ausente.

(“Fábula”, vv. 107-8)

Eulina simplesmente desaparecera. O amante então se vê na situação mais recorrente do sujeito na poesia lírica de Cláudio Manuel: apartado do objeto de seu desejo, numa espécie de delírio agônico, abraçando no ar o nada que lhe cabe aceitar como única recompensa pelos seus esforços:

Inutilmente ao vento

Vou estendendo os braços:

Buscar nas sombras o meu bem intento,

Onde a meus ternos laços...

Onde te escondes, digo, amada Eulina? Quem tanto estrago contra mim fulmina?

(“Fábula”, vv. 109-14)

É então que o desesperado avista no céu a sua amada, que tinha sido abduzida por Apolo. A “Fábula” toca desse modo as aflições humanas que mais despertaram a pena de Cláudio Manuel: a precariedade do bem, a frustração do desejo, a incompreensível sujeição ao capricho do destino, agravadas ainda pela reiteração da perda por força da memória. O contexto remoto da vida colonial, com tudo o que nela também é experimentado como precário, não poderia ser mais propício a tais preocupações. No seio dele, áspero de pedra, um poeta habilidoso poderia levar até um limite mais extremo os grandes temas da tradição.

O sujeito está atônito. Quando perde a idolatrada também de vista, toma a fatídica decisão de se suicidar com um punhal:

As entranhas rasgando

E sobre mim caindo,

Na funesta lembrança soluçando,

De todo confundindo

Vou a verde campina; e quase exangue,

Entro a banhar as flores de meu sangue.

(“Fábula”, vv. 133-8)

O filho de Itamonte retorna à sua origem mineral aos poucos, enquanto se esvai pela campina. O deus estava enfurecido contra quem ousara cobiçar uma ninfa que lhe tinha sido prometida. A pena seria a metamorfose: o amante infeliz agora já era um rio a correr “por estes campos estendido”.

Precisamente nesse verso (o 144º do total de 234, na 24ª das 39 estrofes) incide a “seção áurea” da composição, obtida à razão do número phi (1,618). Sobre o metal palpável que se pode roubar dos penhascos, a “Fábula” traça esse outro ouro, intelectivo, pitagórico, fruto de mineração bem diferente. A poesia se empenha na busca de proporção e equilíbrio, em contraste com a natureza disforme das penhas incultas, como se pudesse - por meio de sua mera prática - dar polimento à incivilidade do desterro. Aí reside a maior importância da “Fábula”, como testemunho da concepção de poesia de Cláudio Manuel, para além de sua aquiescência à normatividade da poética clássica. Do ponto de vista formal, é assim que a “Fábula” se esforça para incorporar os sertões de Minas Gerais à esfera do mundo civil e da tradição letrada, ainda que como extremidade sempre problemática e marcada pela violência da origem.

Do sangue de um desventurado se faz a água barrenta do ribeirão do Carmo: o episódio poderia se somar às metamorfoses da mitologia clássica. O rival é transformado em rio, mas Apolo não se contenta:

Por mais desgraça minha,

Dos tesouros preciosos

Chegou notícia que eu roubado tinha

Aos homens ambiciosos;

E, crendo em mim riquezas tão estranhas,

Me estão rasgando as míseras entranhas.

Polido o ferro duro

Na abrasadora chama,

Sobre os meus 0mbros bate tão seguro

Que nem a dor que clama

Nem o estéril desvelo da porfia

Desengana a ambiciosa tirania.

(“Fábula”, vv. 157-68)

O ribeirão leva consigo os tesouros que extraíra de Itamonte. Há de ser uma corrente aurífera, para atrair para junto de si a cobiça humana.

As sextilhas sobre a mineração encerram o segundo terço da “Fábula”. A parte final começa com uma reflexão contundente, de teor clássico, na linha da auri sacra fames (“execrável fome de ouro”) condenada por Virgílio na Eneida (III, v. 57). Entretanto, a invectiva das estrofes 29 a 31 vai além da mera emulação prescrita pelos tratadistas:

Idolatrando a ruína,

Lá penetrais o centro

Que Apolo não banhou, nem viu Lucina;

E das entranhas dentro

Da profanada terra

Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.

(“Fábula”, vv. 175-80)

O convencionalismo da passagem não impede o poeta de aproveitá-la para aprofundar a “pintura” da mineração e introduzir pelo menos três elementos cruciais.

O primeiro é a melancolia classicamente associada ao elemento da terra, conforme a doutrina hipocrática dos Quatro Temperamentos (ver Klibansky et al., 1989KLIBANSKY, Raymond, PANOFSKY, Erwin, SAXL, Fritz. Saturne et la mélancolie. Études historiques et philosophiques: nature, réligion, médicine et art. Trad. de Fabienne Durand-Bogaert e Louis Evrard. Paris: Gallimard, 1989., p. 163-97). A chamada bile negra aparece desse modo como constitutiva da economia mineradora. O caráter saturnino dessa atividade fica ainda mais frisado pela descida ao mundo ínfero, para onde Saturno foi desterrado por Júpiter. Esse episódio tinha causado a decadência da Idade de Ouro para tempos relacionados a metais sempre mais inferiores: primeiro a prata, depois o bronze e por fim o ferro. Quando Cláudio Manuel adotou o nome “pastoril” de Glauceste Satúrnio, aludia com ambivalência a esse mito; como poeta, seria oriundo da época dourada, satúrnia, mas também (vivendo em tempos férreos), um melancólico filho do deus desterrado. Junte-se a isso o tema da penetração nas entranhas da terra (in viscera terrae), que é ovidiano (Metamorfoses I, vv. 137-40): a cobiça pelas riquezas do subsolo só se difundiu na Idade do Ferro (a mais baixa de todas). Desse modo, a incorporação da paisagem mineira ao tesouro fabular da tradição letrada não redime a Capitania das Minas de sua constituição melancólica nem apaga a sua contribuição para o desconcerto do mundo e todos os desmoronamentos implicados nele, enquanto não se restabelecer a harmonia perdida bem antes de a Vale e a BHP Billiton ingressarem nessa história.

Um segundo elemento incrustrado no último trecho citado, mais particular do que o anterior, é que a “catábase” mineratória - ou seja: sua descida às vísceras da terra - conduz o ser humano até um lugar não-tocado nem pela luz do sol (de Apolo) nem pelos reflexos da lua (de Lucina). Esse recanto é por isso bem afim à desventura do ribeirão; no início da “Fábula”, ele conta como já em seu nascimento Lucina (a faceta de Diana como divindade protetora das parturientes) tinha apagado a sua “alâmpada brihante” (“Fábula”, vv. 9-10). Com a segunda menção à deusa, Cláudio Manuel insinua o aspecto trágico, de fatalidade, que arrasta o protagonista para a sua sina, à espera da inexorável catástrofe. De certo modo, viver nas Minas é assumir uma parte do mesmo destino - como amplificação extremada das aflições da condição humana em geral.

Por fim, o terceiro elemento a comentar pode não ser tão determinante quanto os outros, mas de jeito nenhum parece menos sugestivo. A trigésima sextilha é a única das 39 a romper a correspondência estrófica regular da “Fábula”. Só nela a quinta linha (v. 179) está quebrada, como a primeira, a segunda e a quarta. O dístico final passa a rimar como os versos 1 e 3 de cada estrofe, que têm extensões diferentes (com seis e dez sílabas métricas). A hipótese de mera distração ou mau acabamento é pouco plausível. Como Saturno devorava os filhos, Glauceste engoliu quatro sílabas. Quebra-se por um momento a harmonia buscada com tanta diligência a cada passo da composição. A ordem e a proporção ficam ligeiramente desconcertadas - mas justamente no momento de abordar o “desconcerto” da mineração, que faz a “terra” rimar com a “guerra”.

4 Fundão

É uma rima inaceitável. Ela ofende a dignidade humana e cava uma cratera na virtude antiga do amor à pátria. Passamos de uber por cima do corpo estendido de Cláudio Manuel, obnubilados, esquecidos, como se fosse uma rua qualquer. Mas a “Fábula” continua a pesar no cotidiano, como ferro na água das nossas torneiras.

Desterro, violência e melancolia são os minérios que achamos por dentro desse poema, cujo assunto em profundidade, sob a camada convencional do motivo fabuloso, é a condição colonial da terra. Esta se mostra numa fusão difícil de separar, pela presença de um outro com o qual o sujeito se identifica e se liga, mas sem poder aniquilar sua diferença, nessa espécie de paradoxo fundador da cultura letrada no Novo Mundo. O ribeirão nativo herda o desterro do pai estrangeiro, mesmo correndo pela região natal da mãe. É uma corrente híbrida, irredutível como o nome latino e tupi do gigante.

Itamonte, não vamos nos esquecer, é irmão de Adamastor - a soturna figura que aparece bem no meio dos Lusíadas (V, 37-60). Os navegadores portugueses se deparam com ele no Cabo das Tormentas, na tentativa de contornar a costa africana. O retrato que lhe faz Camões é toda uma iconografia do temperamento melancólico:

O rosto carregado, a barba esquálida,

Os olhos encovados, e a postura

Medonha e má, e a cor terrena e pálida;

Cheios de terra e crespos os cabelos,

A boca negra, os dentes amarelos.

(Lusíadas V, 39)

A epopeia da expansão colonial não deixaria de enfrentar os desterrados da gigantomaquia: ela se estende justamente sobre o mundo que a eles servia de degredo, esse mundo ultramarino que continua a ser “o ultramar” mesmo quando se tem os pés bem firmes no seu chão, do lado de cá do oceano. O irmão de Itamonte então se dirige aos intrépidos lusitanos, para contar sua história:

Fui dos filhos aspérrimos da Terra,

Qual Encélado, Egeu e Centimano,

Chamei-me Adamastor, e fui na guerra

Contra o que vibra os raios de Vulcano.

(Lusíadas V, 39)

Não foi tão difícil para o Gama se desvencilhar do carrancudo obstáculo. Dobrando o cabo, as tormentas viram “boa esperança”. Ninguém na sua frota era filho de Adamastor.

Bem outra é a situação de Garcia, o herói paulista do Vila Rica - o poema épico de Cláudio Manuel sobre a fundação das vilas mineiras, no qual a estória do ribeirão do Carmo é relembrada. A fala de Itamonte imita de perto o tom de seu irmão camoniano:

Eu sou dos filhos que abortara a Terra,

E fiz com meus irmãos aos deuses guerra.

(Vila Rica II, vv. 145-6)

(De novo a mesma rima estúpida!) Garcia está embrenhado no “centro dos sertões”, quando avista “o carregado aspecto” do gigante. Num lance de maravilha, a voz da própria Eulina começa a soar nos seus ouvidos, em meio ao canto silvestre das aves. Ela relata sua versão dos acontecimentos da “Fábula”, e acaba confessando seu amor pelo infeliz ribeirão. Garcia tudo ouve estatelado, até lhe ocorrer a visão:

(...) mas de Eulina

A delicada face está patente:

Fita os olhos e vê, desde a corrente,

Lançar a mão à praia a Ninfa bela;

Toma uma areia de ouro, e já com ela

Pulveriza os cabelos.

(Vila Rica II, vv. 72-7)

A passagem é lírica - mesmo estando no ápice da narrativa épica. Loura ou alourada, pouco importa: a Ninfa nativa amorosamente mostrará o caminho ao desbravador que é tão americano quanto ela. Um acordo será necessário entre as potências telúricas, indígenas ou não, e a fixação da sociedade colonial. Adamastor ficou para trás, no quinto canto; Vasco da Gama e seus companheiros foram embora: estavam descobrindo o caminho marítimo para as Índias. Na epopeia mineira, a Vila Rica é fundada aos pés do gigante. As instituições do Estado português e da Igreja romana, o poder local da Câmara, a Casa da Ópera e o solar de Marília - tudo teria que se conciliar com a natureza escabrosa numa mesma paisagem civil. Haja ladeira!

Quem estuda as alusões à gigantomaquia na tradição literária observa que são recorrentes quando se trata de fronteiras culturais, onde os valores estabelecidos no centro se esgarçam e podem perder a força de coesão. O papel do herói então é combater o gigante, que em geral representa uma ameaça à ordem universal. Encélados, Egeus e Centimanos foram criados para formar a carranca gigantesca do Outro. Eles habitam um lugar nada ameno, chamado Longe. Mas a fábula colonial não se acomoda com distinções tão nítidas. Nela, não pode haver simplesmente um “mundo invertido”: o self é um outro. A terra é áspera, melancólica, violenta - mas não deixa de ser a pátria. Entre as raízes do Brasil, o lugar não-comum é esse tópico desconcertado, que ocorreu a Sérgio Buarque de Holanda em 1936HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, Col. Documentos Brasileiros, 1936.: “somos ainda uns desterrados em nossa terra”; tanto quanto bem antes ocorrera a Cláudio Manuel, sob a máscara de um pastor que “chora na própria terra peregrino” (Obras, “Epístola I”, v. 6).

5 Remate

A incerteza entre o outro e o si mesmo tem na poesia luso-brasileira uma lavra riquíssima. A “Fábula do ribeirão do Carmo”, por exemplo, é dedicada às ninfas do “plácido Mondego” (“Fábula”, Soneto, vv. 1-2). No desfecho do poema, o infeliz metamorfoseado se dirige às correntes metropolitanas:

Competir não pertendo

Contigo, ó cristalino

Tejo, que mansamente vais correndo:

Meu ingrato destino

Me nega a prateada majestade

Que os muros banha da maior Cidade.

(“Fábula”, vv. 205-10)

Na estrofe seguinte, ele se refere também às ninfas do Mondego, que não suportariam a visão de suas águas turvas, cor de sangue. Ele então explica a elas o que é ser rio ali e ter águas auríferas:

Não se escuta a harmonia

Da temperada avena

Nas margens minhas, que a fatal porfia

Da humana sede ordena

Se atenda apenas o ruído horrendo

Do tosco ferro, que me vai rompendo.

(“Fábula”, vv. 205-10)

Tudo termina mal, muito mal, se não atentamos para um fato óbvio, que a poesia almeja disfarçar, no fundo: agora mesmo, escuta-se a harmonia poética, às margens do Carmo, do Arrudas, do Maracanã, do Tietê e até mesmo do Ipiranga, se quiserem. Basta abrir o livro ou ler o bendito pdf. A composição da “Fábula” - com seu corte áureo, seu talhe de ninfa - contradiz a condição que ela mesma relata. Acha-se aí o “fundamento” que os tratadistas de poética requeriam para a ficção. A fábula, não sendo verdade, é verdadeira.

Também não deixa de ser fabuloso que, em Belo Horizonte, a rua Cláudio Manuel vá dar em plena Praça da Liberdade.

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    Este ensaio desenvolve parte da apresentação do autor na Mesa Redonda Especial “História, Literatura e Sociedade”, incluída na programação do XVIII Seminário de Diamantina, realizado na cidade de Diamantina, em Minas Gerais, entre 19 e 23 de agosto de 2019.

APÊNDICE

Fábula do Ribeirão do Carmo

Cláudio Manuel da Costa (1729-1789)

Soneto

A vós, canoras Ninfas, que no amado

Berço viveis do plácido Mondego,

Que sois da minha lira doce emprego,

Inda quando de vós mais apartado;

A vós do pátrio Rio em vão cantado

O sucesso infeliz eu vos entrego;

E a vítima estrangeira com que chego

Em seus braços acolha o vosso agrado.

Vede a história infeliz, que Amor ordena,

Jamais de Fauno ou de Pastor ouvida,

Jamais cantada na silvestre avena.

Se ela vos desagrada, por sentida,

Sabei que outra mais feia em minha pena

Se vê entre estas serras escondida.

* * *

Aonde levantado

Gigante, a quem tocara,

Por decreto fatal de Jove irado,

A parte extrema e rara

Desta inculta região, vive Itamonte,

Parto da Terra, transformado em monte;

De uma penha, que esposa

Foi do invicto Gigante,

Apagando Lucina a luminosa

A lâmpada brilhante,

Nasci, tendo em meu mal logo tão dura,

Como em meu nascimento, a desventura.

Fui da florente idade

Pela cândida estrada,

Os pés movendo com gentil vaidade;

E a pompa imaginada

De toda a minha glória num só dia

Trocou de meu destino a aleivosia.

Pela floresta e prado,

Bem polido mancebo,

Girava em meu poder tão confiado,

Que até do mesmo Febo

Imaginava o trono peregrino

Ajoelhado aos pés do meu destino.

Não ficou tronco ou penha

Que não desse tributo

A meu braço feliz, que já desdenha,

Despótico, absoluto,

As tenras flores, as mimosas plantas,

Em rendimentos mil, em glórias tantas.

Mas ah! Que Amor tirano,

No tempo em que a alegria

Se aproveitava mais do meu engano,

Por aleivosa via

Introduziu cruel a desventura,

Que houve de ser mortal, por não ter cura.

Vizinho ao berço caro

Aonde a Pátria tive,

Vivia Eulina, esse prodígio raro,

Que não sei se inda vive,

Para brasão eterno da beleza,

Para injúria fatal da natureza.

Era Eulina de Aucolo

A mais prezada filha;

Aucolo tão feliz, que o mesmo Apolo

Se lhe prostra, se humilha

Na cópia da riqueza florescente,

Destro na lira, no cantar ciente.

De seus primeiros anos

Na beleza nativa,

Humilde Aucolo, em ritos não profanos,

A bela Ninfa esquiva

Em voto ao sacro Apolo consagrara,

E dele em prêmio tantos dons herdara.

Três lustros, todos d’ouro,

A gentil formosura

Vinha tocando apenas, quando o louro,

Brilhante Deus procura

Acreditar do Pai o culto atento,

Na grata aceitação do rendimento.

Mais formosa de Eulina

Respirava a beleza;

De ouro a madeixa rica e peregrina

Dos corações faz presa;

A cândida porção da neve bela

Entre as rosadas faces se congela.

Mas inda que a ventura

Lhe foi tão generosa,

Permite o meu destino que uma dura

Condição rigorosa

Ou mais aumente, enfim, ou mais ateie

Tanto esplendor, para que mais me enleie.

Não sabe o culto ardente

De tantos sacrifícios

Abrandar o seu Nume: a dor veemente,

Tecendo precipícios

Já quase me chegava a extremo tanto

Que o menor mal era o mortal quebranto.

Vendo inútil o empenho

De render-lhe a fereza,

Busquei na minha indústria o meu despenho:

Com ingrata destreza,

Fiei de um roubo (oh, mísero delito!)

A ventura de um bem, que era infinito.

Sabia eu como tinha

Eulina por costume

(Quando o maior Planeta quase vinha

Já desmaiando o lume

Para dourar de luz outro horizonte)

Banhar-se nas correntes de uma fonte.

A fugir destinado

Com o furto precioso,

Desde a Pátria, onde tive o berço amado,

Recolhi numeroso

Tesouro, que roubara diligente

A meu Pai, que de nada era ciente.

Assim, pois, prevenido

De um bosque à fonte perto,

Esperava o portento apetecido

Da Ninfa; e descoberto

Me foi apenas, quando (oh dura empresa!)

Chego, abraço a mais rara gentileza.

Quis gritar; oprimida

A voz entre a garganta,

Apolo? diz, Apol... A voz partida

Lhe nega força tanta;

Mas ah! Eu não sei como, de repente,

Densa nuvem me põe do bem ausente.

Inutilmente ao vento

Vou estendendo os braços;

Buscar nas sombras o meu bem intento:

Onde a meus ternos laços...!

Onde te escondes, digo, amada Eulina?

Quem tanto estrago contra mim fulmina?

Mais ia por diante,

Quando, entre a nuvem densa

Aparecendo o corpo mais brilhante,

Eu vejo (oh dor imensa!)

Passar a bela Ninfa, já roubada

Do Númen a quem fora consagrada.

Em seus braços a tinha

O louro Apolo presa;

E já ludíbrio da fadiga minha,

Por amorosa empresa,

Era despojo da Deidade ingrata

O bem, que de meus olhos me arrebata.

Então, já da paciência

As rédeas desatadas,

Toco de meus delírios a inclemência:

E de todo apagadas

Do acerto as luzes, busco a morte impia

De um agudo punhal na ponta fria.

As entranhas rasgando

E sobre mim caindo,

Na funesta lembrança soluçando,

De todo confundindo

Vou a verde campina; e quase exangue

Entro a banhar as flores de meu sangue.

Inda não satisfeito

O Númen soberano,

Quer vingar ultrajado o seu respeito,

Permitindo em meu dano

Que em pequena corrente convertido

Corra por estes campos estendido.

E para que a lembrança

De minha desventura

Triunfe sobre a trágica mudança

Dos anos, sempre pura,

Do sangue que exalei, ó bela Eulina,

A cor inda conservo peregrina.

Porém o ódio triste

De Apolo mais se acende;

E sobre o mesmo estrago que me assiste

Maior ruína emprende:

Que chegando a ser ímpia uma Deidade

Excede toda a humana crueldade.

Por mais desgraça minha,

Dos tesouros preciosos

Chegou notícia que eu roubado tinha

Aos homens ambiciosos;

E, crendo em mim riquezas tão estranhas,

Me estão rasgando as míseras entranhas.

Polido o ferro duro

Na abrasadora chama,

Sobre os meus Ombros bate tão seguro

Que nem a dor, que clama,

Nem o estéril desvelo da porfia

Desengana a ambiciosa tirania.

Ah Mortais! Até quando

Vos cega o pensamento!

Que máquinas estais edificando

Sobre tão louco intento?

Como nem inda no seu Reino imundo

Vive seguro o Báratro profundo!

Idolatrando a ruína,

Lá penetrais o centro

Que Apolo não banhou, nem viu Lucina;

E, das entranhas dentro

Da profanada terra,

Buscais o desconcerto, a fúria, a guerra.

Que exemplos vos não dita

Do ambicioso empenho

De Polidoro a mísera desdita!

Que perigos o lenho

Que entregastes primeiro ao mar salgado,

Que desenganos vos não tem custado!

Enfim, sem esperança

Que alívios me permita,

Aqui chorando estou minha mudança;

E a enganadora dita,

Para que eu viva sempre descontente,

Na muda fantasia está presente.

Um murmurar sonoro

Apenas se me escuta;

Que até das mesmas lágrimas que choro

A Deidade absoluta

Não consente ao clamor se esforce tanto

Que mova à compaixão meu terno pranto.

Daqui vou descobrindo

A fábrica eminente

De uma grande Cidade; aqui polindo

A desgrenhada frente,

Maior espaço ocupo, dilatado,

Por dar mais desafogo ao meu cuidado.

Competir não pertendo

Contigo, ó cristalino

Tejo, que mansamente vais correndo:

Meu ingrato destino

Me nega a prateada majestade

Que os muros banha da maior Cidade.

As Ninfas generosas

Que em tuas praias giram,

Ó plácido Mondego, rigorosas

De ouvir-me se retiram,

Que de sangue a corrente turva e feia

Teme Ericina, Aglaura e Deiopéia.

Não se escuta a harmonia

Da temperada avena

Nas margens minhas, que a fatal porfia

Da humana sede ordena

Se atenda apenas o ruído horrendo

Do tosco ferro, que me vai rompendo.

Porém, se Apolo ingrato

Foi causa deste enleio,

Que muito, que da Musa o belo trato

Se ausente de meu seio,

Se o Deus que o temperado coro tece

Me foge, me castiga e me aborrece!

Enfim, sou, qual te digo,

O Ribeirão prezado,

De meus Engenhos a fortuna sigo:

Comigo sepultado

Eu choro o meu despenho; eles sem cura

Choram também a sua desventura.

C. M. da Costa. Obras.

Coimbra: Luís Secco Ferreira,

1768, pp. 80-88.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2019
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