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Narrativas sobre perspectivas e práticas de professores que ensinam Estatística a partir de um processo formativo

Narratives about perspectives and practices of teachers who teach Statistics from a professional development process

Resumo

O objetivo deste estudo é conhecer as perspectivas e práticas de dois professores de Matemática que atuam nos anos finais do Ensino Fundamental, antes e depois de um processo formativo, através das narrativas dos próprios professores. Utilizamos uma abordagem qualitativa, com paradigma interpretativo. Os dados foram recolhidos durante a formação e nos dois anos subsequentes através de entrevistas e relatórios. A análise de dados foi sustentada por conceitos relacionados à formação e prática de professores que ensinam Estatística. Os resultados mostram que os professores, inicialmente, valorizavam um ensino centrado em procedimentos matemáticos, que não evidenciava o significado dos conceitos estatísticos. Com a formação, ressignificaram a sua prática, passando a valorizar a abordagem exploratória da Estatística e a realização de investigações estatísticas. Com essa realização, os professores evidenciam práticas que favorecem o desenvolvimento da literacia estatística dos alunos.

Formação de professores; Prática letiva; Ensino da Estatística; Investigação estatística; Literacia estatística

Abstract

The purpose of this study is to know the perspectives and practices of two Mathematics teachers who work in the last years of Elementary School, before and after a professional development process through the teachers’ narratives. We use a qualitative approach, with an interpretative paradigm. The data was collected during the training and in the two years afterwards, through interviews. Data analysis was supported by concepts related to the training and practice of teachers who teach Statistics. The results show that the teachers initially valued teaching focused on mathematical procedures, where the meaning of the statistical concepts was not evidenced. With the training, they reframed their practice, since they began to value the statistics exploratory approach, namely with carrying out statistical investigations. With the undertaking of these investigations, the teachers show practices that favor the development of their students’ statistical literacy.

Teacher training; Teaching practice; Teaching statistics; Statistical investigation; Statistical literacy

1 Introdução

A formação do professor é um elemento fundamental para o seu desenvolvimento profissional, nomeadamente proporcionando a aprendizagem do conteúdo e da didática para o ensino. Para que a formação possa influenciar diretamente a prática do professor, é importante que ela tenha por base situações de prática ( BALL et al. , 2009BALL, D. L.; SLEEP, L.; BOERST, T.; BASS, H. Combining the development of practice and the practice of development in teacher education. Elementary School Journal , Chicago, v. 109, n. 5, p. 458-476, may. 2009. ; PONTE et al ., 2017PONTE, J. P.; MATA-PEREIRA, J.; QUARESMA, M.; VELEZ, I. Formação de professores dos primeiros anos em articulação com o contexto de prática de ensino de matemática. Revista Latinoamericana de Investigación en Matemática Educativa , Ciudad de México, v. 20, n. 1, mar. 2017. ; SMITH, 2001SMITH, M. S. Practice-based professional development for teachers of mathematics. Reston, VA: NCTM, 2001. ; SWAN, 2007SWAN, M. The impact of task based professional development on teachers' practices and beliefs: A design research study. Journal of Mathematics Teacher Education , Heidelberg, v. 10, p. 217-237, oct. 2007. ).

Além disso, a formação precisa, também, de ter em atenção as orientações curriculares. No que se refere ao ensino da Estatística, é necessário refletir sobre os objetivos da inclusão desse tema no currículo de Matemática e sobre as formas de trabalho a adotar para que esses objetivos sejam alcançados. No Brasil, a Base Nacional Comum Curricular - BNCC refere a necessidade de incentivar os alunos a desenvolverem o seu senso crítico, reforçando a importância de lhes proporcionar a realização de projetos nos quais são convidados a “desenvolver habilidades para coletar, organizar, representar, interpretar e organizar dados de uma variedade de contextos” ( BRASIL, 2018BRASIL. Base Nacional Comum Curricular . Brasília: Ministério da Educação, 2018. , p. 272).

Essa ideia aproxima-se da proposta da realização de investigações estatísticas presente no Guidelines for Assessment and Instruction in Statistics Education (GAISE) Report ( FRANKLIN et al ., 2005FRANKLIN, C.; KADER, G.; MEWBORN, D.; MORENO, J.; PECK, R.; PERRY, M. et al . Guidelines for assessment and instruction in statistics education (GAISE) Report: A Pre-K-12 curriculum framework . Alexandria, VA: American Statistical Association, 2005. ). O desenvolvimento dessas habilidades requer que o professor perceba a necessidade de uma abordagem exploratória dos temas estatísticos, valorizando o contexto social do aluno através de uma aprendizagem ativa. É preciso, ainda, que a prática do professor esteja adaptada aos objetivos propostos. Para isso, diferentes aspectos devem ser considerados, como a realização de tarefas e a condução da comunicação na sala de aula ( PONTE; SERRAZINA, 2004PONTE, J. P.; SERRAZINA, L. Práticas profissionais dos professores de Matemática. Quadrante, Lisboa , v. 13, n. 2, p. 51-74, dez. 2004. ; PONTE et al ., 2017PONTE, J. P.; MATA-PEREIRA, J.; QUARESMA, M.; VELEZ, I. Formação de professores dos primeiros anos em articulação com o contexto de prática de ensino de matemática. Revista Latinoamericana de Investigación en Matemática Educativa , Ciudad de México, v. 20, n. 1, mar. 2017. ).

Este estudo tem por base um processo formativo que busca mobilizar conhecimento didático e de conteúdo da Estatística. O processo formativo, inserido em um curso de pós-graduação para professores de Matemática, promoveu a articulação entre a utilização de situações autênticas de sala de aula e a abordagem exploratória de tarefas ( PONTE, 2005PONTE, J. P. Gestão curricular em Matemática. In: GTI (ed.). O professor e o desenvolvimento curricular . Lisboa: APM, 2005. p. 11-34. ; RODRIGUES; PONTE, 2020RODRIGUES, B. M. B; PONTE, J. P. Investigação Baseada em Design: Uma experiência de formação de professores em Estatística. Educação Matemática Pesquisa , São Paulo, v. 22, n. 3, p. 138-167, 2020. ; SMITH, 2001SMITH, M. S. Practice-based professional development for teachers of mathematics. Reston, VA: NCTM, 2001. ). A partir dos relatos e narrativas de dois professores participantes, buscamos perceber as suas perspectivas sobre o ensino da Estatística e a respeito da experiência formativa e as suas práticas após a formação no que se refere ao desenvolvimento da literacia estatística e à condução de investigações estatísticas.

2 Prática letiva e processo formativo para ensinar Estatística

A prática do professor, no ensino de Estatística, deve convergir para o objetivo principal do seu ensino, que consiste no desenvolvimento da literacia estatística. Martins e Ponte (2011)MARTINS, M. E. G.; PONTE, J. P. Organização e tratamento de dados . Lisboa: DGIDC, 2011. salientam que a literacia relaciona-se a um conjunto de ideias, aptidões, princípios e capacidades de comunicação que possibilitam o tratamento eficaz de situações em que dados quantitativos estão presentes. Finalmente, ainda sobre o conceito de literacia estatística, Lopes (2008LOPES, C. O ensino da estatística e da probabilidade na educação básica e a formação dos professores. Cad. Cedes , Campinas, v. 28, n. 74, p. 57-73, jan./abr. 2008. , p. 60) refere que “Assim como não é suficiente ao aluno desenvolver a capacidade de organizar e representar uma coleção de dados, faz-se necessário interpretar e comparar esses dados para tirar conclusões”.

De acordo com Gal (2002)GAL, I. Adults’ statistical literacy: Meanings, components, responsibilities. International Statistical Review , Netherlands, v. 70, n. 1, p. 1-25, apr. 2002. a literacia estatística é formada por duas componentes essenciais, que não podem ser vistas de maneira isolada. A primeira é a componente cognitiva, constituída pelos seguintes elementos: conhecimento matemático, conhecimento estatístico, competência de literacia, conhecimento do contexto e questionamento crítico. O conhecimento estatístico refere-se à utilização de conceitos básicos da Estatística Descritiva. O conhecimento matemático diz respeito ao uso de conceitos como proporções, percentagens e números decimais, essenciais no tratamento de dados. A competência de literacia liga-se à habilidade da compreensão dos significados dos textos, informações numéricas, tabulares e gráficas. O conhecimento do contexto mobiliza o uso da Estatística, de modo que os dados sem um contexto são apenas números sem significado. O questionamento crítico permite a ponderação da razoabilidade das informações presentes nos meios de comunicação.

A segunda componente referida por Gal (2002)GAL, I. Adults’ statistical literacy: Meanings, components, responsibilities. International Statistical Review , Netherlands, v. 70, n. 1, p. 1-25, apr. 2002. é a afetiva, formada por dois elementos principais: as crenças e atitudes e a postura crítica. Nesse sentido, o autor refere ser necessário ter uma atitude positiva para que o pensamento estatístico possa ser desenvolvido, no qual as crenças apoiam a ação de uma postura crítica diante das informações. Embora sejam componentes desejáveis a jovens e adultos, é de se referir que devem ser desenvolvidas durante toda a vida escolar.

De acordo com Weiland (2017)WEILAND, T. Problematizing statistical literacy: An intersection of critical and statistical literacies. Educational Studies in Mathematics , Heidelberg, v. 96, n. 1, p. 33-47, may. 2017. , as noções de literacia estatística apresentadas por Gal (2002)GAL, I. Adults’ statistical literacy: Meanings, components, responsibilities. International Statistical Review , Netherlands, v. 70, n. 1, p. 1-25, apr. 2002. são centradas no consumo de informações, sendo necessário refletir sobre a associação das competências descritas ao contexto investigativo inerente à Estatística. A partir de um estudo no qual problematiza as noções tradicionais da literacia estatística, fazendo uma justaposição com termos gerais relativos à literacia crítica, o autor ressalta a importância de associar o desenvolvimento da literacia a questões sociopolíticas.

Weiland (2017)WEILAND, T. Problematizing statistical literacy: An intersection of critical and statistical literacies. Educational Studies in Mathematics , Heidelberg, v. 96, n. 1, p. 33-47, may. 2017. refere que privar os alunos de discutir essas questões representa evitar que eles deem sentido às questões que surgem fora do ambiente escolar. Assim, o conhecimento de contexto descrito por Gal (2002)GAL, I. Adults’ statistical literacy: Meanings, components, responsibilities. International Statistical Review , Netherlands, v. 70, n. 1, p. 1-25, apr. 2002. recebe um significado mais amplo na perspectiva de Weiland (2017)WEILAND, T. Problematizing statistical literacy: An intersection of critical and statistical literacies. Educational Studies in Mathematics , Heidelberg, v. 96, n. 1, p. 33-47, may. 2017. , de modo que a Estatística é apresentada como uma lente reflexiva, capaz de mobilizar uma nova visão do mundo e, consequentemente, estimular mudanças no contexto. No contexto escolar, os alunos podem desenvolver conhecimentos estatísticos enquanto são estimulados a buscar soluções para problemas locais e globais, nos quais a aprendizagem ativa dos alunos deve mobilizar a comunidade escolar.

A promoção da literacia estatística dos alunos leva a considerar os diferentes elementos que envolvem a prática letiva do professor. Para Ponte et al . (2017), a prática pode ser caracterizada por dois elementos centrais: a tarefa proposta aos alunos e a comunicação estabelecida em sala de aula. Bishop e Goffree (1986)BISHOP, A.; GOFFREE, F. Classroom organization and dynamics. In : CHRISTIANSEN, B.; HOWSON, A. G.; OTTE, M. (ed.). Perspectives on mathematics education . Dordrecht: D. Reidel, 1986. p. 309-365. afirmam que as tarefas são fundamentais para que os alunos construam significados no decorrer das aulas. As tarefas, para Ponte (2005)PONTE, J. P. Gestão curricular em Matemática. In: GTI (ed.). O professor e o desenvolvimento curricular . Lisboa: APM, 2005. p. 11-34. , têm duas dimensões principais: a estrutura e o grau de desafio. O autor refere a importância da variedade de tarefas, com destaque para as que possuem um caráter exploratório, caso em que os alunos são convidados a criar as suas próprias estratégias para as resolver.

Para Lopes (2008)LOPES, C. O ensino da estatística e da probabilidade na educação básica e a formação dos professores. Cad. Cedes , Campinas, v. 28, n. 74, p. 57-73, jan./abr. 2008. , o ensino linear dos conceitos estatísticos é predominante na visão curricular para a Matemática. A autora refere que o ensino da Estatística deve contrariar essa perspectiva, emergindo de problemáticas diversas, de modo a estimular a construção de significados por meio de situações próximas aos contextos sociais dos alunos. Além disso, Ponte e Quaresma (2016)PONTE, J. P.; QUARESMA, M. Teachers’ professional practice conducting mathematical discussions. Educational Studies in Mathematics , Heidelberg, v. 93, n. 1, p. 51-66, feb. 2016. apontam que a comunicação estabelecida pelo professor na sala de aula é, também, determinante no desenvolvimento das aprendizagens dos seus alunos.

Ao contrário das aulas em que o professor constitui a voz dominante, a realização de diálogos, nomeadamente em discussões coletivas, é um elemento essencial para a aprendizagem ativa dos alunos. Stein et al . (2008)STEIN, M. K.; ENGLE, R. A.; SMITH, M.; HUGHES, E. K. Orchestrating productive mathematical discussions: Five practices for helping teachers move beyond show and tell. Mathematical Thinking and Learning , London, v. 10, p. 313-340. 2008. propõem uma preparação para o professor para a realização de discussões coletivas na sala de aula, composta das ações de antecipar, monitorizar, selecionar e sequenciar as resoluções dos alunos a discutir. Esses autores notam que, introduzir uma tarefa exigente em termos cognitivos e, ao mesmo tempo, fazer esclarecimentos e sugestões pode reduzir o nível de desafio da tarefa e, consequentemente, prejudicar a aprendizagem do aluno.

No ensino da Estatística, a realização de investigações estatísticas no contexto escolar tem recebido destaque ( SOUSA, 2002SOUSA, O. Investigações estatísticas no 6.º ano. In: GTI (ed.). Reflectir e investigar sobre a prática profissional. Lisboa: APM, 2002. p. 75-97. ; VELASQUE; BARBOSA; SILVA, 2019VELASQUE, L. S.; BARBOSA, M. T. S.; SILVA, A. S. Revista Eletrônica de Educação Matemática -REVEMAT, Florianópolis, v.14, Edição Especial Educação Estatística, p.1-16, 2019. ). A estrutura proposta no GAISE Report ( FRANKLIN et al ., 2005FRANKLIN, C.; KADER, G.; MEWBORN, D.; MORENO, J.; PECK, R.; PERRY, M. et al . Guidelines for assessment and instruction in statistics education (GAISE) Report: A Pre-K-12 curriculum framework . Alexandria, VA: American Statistical Association, 2005. ) para as investigações estatísticas sugere quatro componentes, nos quais cada uma deve ser conduzida com atenção à noção de variabilidade: (i) formulação da pergunta; (ii) recolha de dados; (iii) análise dos dados; (iv) interpretação dos resultados.

Nesse trabalho, os alunos são chamados a construir as suas aprendizagens de forma ativa, experimentando o ciclo investigativo nas suas diferentes etapas. As investigações, além de terem um caráter exploratório, facilitam o estabelecimento de uma comunicação apoiada em discussões coletivas. Além disso, a realização de investigações pode oferecer a possibilidade de um trabalho voltado para o desenvolvimento da literacia crítica, apontado por Weiland (2017)WEILAND, T. Problematizing statistical literacy: An intersection of critical and statistical literacies. Educational Studies in Mathematics , Heidelberg, v. 96, n. 1, p. 33-47, may. 2017. . Para Giordano, Araújo e Coutinho (2019)GIORDANO, C. C.; ARAÚJO, J. R. A.; COUTINHO, C. Q. S. Educação estatística e a Base Nacional Comum Curricular: o incentivo aos projetos. Revista Eletrônica de Educação Matemática , Florianópolis, v. 14, p. 1-20, 2019. , o incentivo à realização de projetos apoiados pelo ciclo investigativo, presente na Base Nacional Comum Curricular, é de grande relevância, visto que o documento assume um caráter normativo no contexto educacional brasileiro.

De acordo com Heaton e Mickelson (2002)HEATON, R. M.; MICKELSON, W.T. The learning and teaching of statistical investigation in teaching and teacher education. Journal of Mathematics Teacher Education, Heidelberg, v. 5, n. 1, p. 35-59, mar. 2002. , o professor desenvolve conhecimentos de conteúdo e didática da Estatística quando se envolve em atividades de investigação e realiza essas atividades com os seus alunos. Os autores sublinham a importância de os professores experimentarem o ciclo investigativo, conduzirem o processo investigativo com os seus alunos e observarem as aprendizagens destes ao longo do processo.

A prática do professor é envolta por diferentes aspectos, sendo necessário refletir sobre o modo como pode ser mobilizada para a sua formação. Diversos estudos procuram estabelecer soluções para os dilemas que surgem nesse âmbito. Ponte (2014)PONTE, J. P. Formação do professor de Matemática: Perspetivas atuais. In: PONTE, J. P. (ed.). Práticas profissionais dos professores de Matemática. Lisboa: Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, 2014. p. 351-368. destaca que, no processo de reflexão a respeito da formação, emerge o conceito de desenvolvimento profissional . Segundo o autor, a formação tende a ser compartimentada de acordo com diferentes assuntos e disciplinas a serem abordados, ao passo que o desenvolvimento profissional abrange o professor em sua totalidade.

Para Day (2001DAY, C. Desenvolvimento profissional de professores : os desafios da aprendizagem permanente. Porto: Porto Editora. 2001. , p. 17), “os professores não podem ser formados (passivamente). Eles formam-se (ativamente)”. Além disso, para esse autor, a formação deve levar o professor a adquirir conhecimentos, destrezas e atitudes, incluindo-os em sua prática. É desejável, ainda, que a formação seja capaz de inspirar novas aprendizagens aos alunos e novas atitudes aos outros professores que atuam na mesma escola. Esse impacto tende a ser evidenciado em formações que valorizam situações autênticas de sala de aula.

De acordo com Lopes (2008)LOPES, C. O ensino da estatística e da probabilidade na educação básica e a formação dos professores. Cad. Cedes , Campinas, v. 28, n. 74, p. 57-73, jan./abr. 2008. , os cursos convencionais de aperfeiçoamento e reciclagem não mobilizam as aprendizagens essenciais ao desenvolvimento profissional do professor, uma vez que não são, na maioria das vezes, centrados em elementos da prática. A formação de professores deve mobilizar conhecimento didático e de conteúdo para dar suporte à prática letiva, sendo necessário integrar maneiras de trabalhar essas situações autênticas do contexto escolar nos processos de formação do professor ( BALL et al ., 2009BALL, D. L.; SLEEP, L.; BOERST, T.; BASS, H. Combining the development of practice and the practice of development in teacher education. Elementary School Journal , Chicago, v. 109, n. 5, p. 458-476, may. 2009. ). Essa perspectiva tem sido adotada em diferentes estudos relacionados à formação de professores que ensinam Estatística no contexto brasileiro (e.g., ESTEVAM; CYRINO; OLIVEIRA, 2017ESTEVAM, E. J. G; CYRINO, M. C. C. T.; OLIVEIRA, H. Análise de vídeos de aula na promoção de reflexões sobre o ensino exploratório de Estatística em uma comunidade de professores. Quadrante , Lisboa, v. 26, n. 1, p. 145–169, jun. 2017. ; RODRIGUES; PONTE, 2020RODRIGUES, B. M. B; PONTE, J. P. Investigação Baseada em Design: Uma experiência de formação de professores em Estatística. Educação Matemática Pesquisa , São Paulo, v. 22, n. 3, p. 138-167, 2020. ).

Santos (2015)SANTOS, R. O conhecimento de estatística e da sua didática de futuros professores. 2015. 440f. Tese (Doutorado em Educação com especialização em Didática da Matemática) – Instituto de Educação, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2015. afirma ser necessário que, na formação dos professores de Matemática, o conhecimento estatístico e o conhecimento didático do tema sejam desenvolvidos. No que se refere ao conhecimento estatístico, além dos conceitos inerentes à Estatística, é importante que o professor compreenda as distinções entre a Matemática e a Estatística. Franklin et al . (2005)FRANKLIN, C.; KADER, G.; MEWBORN, D.; MORENO, J.; PECK, R.; PERRY, M. et al . Guidelines for assessment and instruction in statistics education (GAISE) Report: A Pre-K-12 curriculum framework . Alexandria, VA: American Statistical Association, 2005. referem que uma dessas diferenças está centrada na presença da variabilidade na Estatística em oposição à natureza determinística da Matemática. Outra diferença surge na função do contexto que, na Matemática, é uma oportunidade para aplicações e, na Estatística, é o que fornece o significado ao trabalho realizado.

3 O processo formativo

O processo formativo que constitui a base para o presente estudo foi desenvolvido em 2018, no âmbito das disciplinas Análise de Dados I e II de um curso de pós-graduação lato sensu para professores de Matemática. O curso foi realizado por uma faculdade particular da Zona Oeste do Rio de Janeiro, sendo a primeira autora a formadora das disciplinas em questão. Além dos módulos relacionados à Análise de Dados, a formação era composta por módulos relacionados à Álgebra, Geometria, Trigonometria, Tendências em Educação Matemática e Educação Especial e Inclusiva.

O grupo de participantes se compunha de dezoito professores, tendo sido realizadas dez sessões de 5 horas-aula de 50 minutos. Com o objetivo de subsidiar a estruturação do processo formativo, realizou-se a análise de documentos norteadores importantes para o ensino da Matemática e da Estatística no Ensino Básico, como os PCNs ( BRASIL, 1998BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais - terceiro e quarto ciclos: apresentação dos temas transversais . Brasília: Ministério da Educação, 1998. ), NCTM (1989)NCTM. Curriculum and evaluation standards for school mathematics. Reston VA: NCTM, 1989. , Franklin et al . (2005)FRANKLIN, C.; KADER, G.; MEWBORN, D.; MORENO, J.; PECK, R.; PERRY, M. et al . Guidelines for assessment and instruction in statistics education (GAISE) Report: A Pre-K-12 curriculum framework . Alexandria, VA: American Statistical Association, 2005. e BNCC ( BRASIL, 2018BRASIL. Base Nacional Comum Curricular . Brasília: Ministério da Educação, 2018. ). Foram realizadas e discutidas diferentes tarefas de caráter exploratório ( PONTE, 2005PONTE, J. P. Gestão curricular em Matemática. In: GTI (ed.). O professor e o desenvolvimento curricular . Lisboa: APM, 2005. p. 11-34. ) e procurou-se estabelecer uma abordagem associada à prática ( SMITH, 2001SMITH, M. S. Practice-based professional development for teachers of mathematics. Reston, VA: NCTM, 2001. ).

A primeira sessão consistiu na aplicação de um questionário para o diagnóstico inicial de conhecimentos e perspectivas dos participantes. Na segunda sessão, foi feita a análise de orientações curriculares e de materiais escolares, com o objetivo de promover uma reflexão sobre as oportunidades de desenvolvimento da literacia estatística através das tarefas propostas nos materiais. A terceira sessão de trabalho consistiu na introdução de conceitos fundamentais relacionados com a Estatística, e foi feita a análise de uma aula gravada em vídeo com o objetivo de proporcionar uma discussão sobre as ações do professor e o raciocínio do aluno diante de uma tarefa exploratória.

Posteriormente, na quarta e quinta sessões foram introduzidos recursos tecnológicos, sendo realizadas e analisadas tarefas de caráter exploratório. Na sexta sessão foram analisadas as respostas escritas de alunos a diferentes tarefas, e foi proposta a elaboração de um plano de aula. Na sétima sessão realizaram-se discussões a respeito do raciocínio inferencial informal, a partir de um exemplo de investigação estatística em sala de aula, e foram apresentados conceitos fundamentais associados a modelos probabilísticos de distribuição. Na oitava e nona sessões, os professores realizaram uma investigação estatística. A décima e última sessão foi dedicada à resposta a um questionário final. A realização de tarefas de caráter exploratório, bem como a realização de trabalhos em grupo e discussões coletivas, teve um papel transversal na análise de situações autênticas de sala de aula.

4 Metodologia de investigação

Este estudo decorre de uma experiência de formação realizada no âmbito de disciplinas de um curso de pós-graduação lato sensu e segue uma abordagem qualitativa e interpretativa, na qual buscamos reconhecer os significados que os participantes atribuem às suas experiências ( ERICKSON, 1986ERICKSON, F. D. Qualitative methods in research on teaching. In: WITTROCK, M. C. (ed.). Handbook of research on teaching. Washington: AERA, 1986. p. 119-161. ). Examinamos as perspectivas e a prática de dois professores a partir das suas narrativas orais e escritas após a experiência de formação. Percebemos a importância das narrativas no âmbito das investigações, uma vez que nelas está “sempre associado um caráter social explicativo de algo pessoal ou característico de uma época” ( GALVÃO, 2005GALVÃO, C. Narrativas em Educação. Ciência & Educação , Bauru, v. 11, n. 2, p. 327-345, mai./ago. 2005. , p. 329).

Ainda, para Galvão (2005)GALVÃO, C. Narrativas em Educação. Ciência & Educação , Bauru, v. 11, n. 2, p. 327-345, mai./ago. 2005. , a reconstrução de situações vividas pelos professores em um contexto de partilha das suas experiências pode favorecer o conhecimento da compreensão do que é o ensino por parte dos professores. Para a autora, cabe ao narrador (no caso, o professor) selecionar a parte mais significativa do todo para ser narrada, acrescentando-lhe outros elementos passíveis de interpretação. Ao investigador, cabe estruturar a narrativa de modo a ser analisada e interpretada.

Dentre os dezoito participantes da experiência de formação, os professores Tiago e Cláudio 1 1 Respeitando as questões éticas, os nomes atribuídos aos professores são fictícios. foram escolhidos para este estudo, após a observação de suas participações no decorrer das sessões. Mostraram-se muito ativos, denotando grande interesse nos assuntos abordados e atividades propostas. Ambos se formaram em Matemática, havia cerca de dois anos. No início da experiência de formação, Tiago já lecionava em escolas no Ensino Fundamental, enquanto Cláudio tinha experiência em aulas particulares, estágios e aulas ministradas através do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid). Iniciou a sua experiência como professor titular no mesmo período da formação.

Para recolha de dados, foram realizadas entrevistas semiestruturadas ao final do curso (2018) e nos dois anos subsequentes à formação (2019 e 2020). Além disso, os professores fizeram relatórios relacionados à sua prática depois da formação. A recolha de dados nos anos subsequentes à formação justifica-se pela necessidade de perceber quais elementos articulados na formação foram inseridos na prática dos professores. Para a análise dos dados, foram constituídos dois blocos de análise, cada um com duas categorias, definidas com base nos conceitos teóricos discutidos neste artigo ( Quadro 1 ).

Quadro 1
Blocos e categorias de análise

Desse modo, analisamos as perspectivas sobre o ensino da Estatística que os professores apresentavam antes do processo formativo, bem como as perspectivas construídas a partir da experiência de formação. No que se refere à prática letiva, após o processo formativo, analisamos as narrativas que os professores fazem sobre as estratégias de ensino que passaram a adotar em suas turmas para o desenvolvimento da literacia estatística. As narrativas a respeito de investigações estatísticas que realizaram no contexto escolar recebem destaque, visto que o ciclo investigativo foi um elemento essencial do processo formativo.

5 Resultados e discussão

5.1 Professor Tiago: Bloco de Análise - Perspectiva

Tiago é um professor em início de carreira. Considera-se ético e comprometido com a profissão e afirma ter o reconhecimento dos alunos pela dinâmica que estabelece nas suas aulas. Assume que a sua experiência anterior com a Estatística não lhe proporcionou o conhecimento de conteúdo necessário para uma abordagem aprofundada do assunto, afirmando:

Na verdade, eu tinha tido esse contato em primeira instância quando eu estava no 3.º ano do Ensino Médio e foi muito rápido, porque eu acho que no Ensino Médio, a parte principal da Estatística não é a investigação, eles só querem trabalhar com coisas que já foram investigadas, né? E a gente trata pouquíssimo de dados, calcula só. Coisas bem básicas (Entrevista Tiago, 2018).

De acordo com Tiago, a abordagem da Estatística na sua vida escolar não favoreceu a compreensão da necessidade de um contexto para a análise de dados, uma vez que os alunos só faziam cálculos. A abordagem, voltada essencialmente para os cálculos, teve continuidade na sua licenciatura. O uso de coisas que já foram investigadas , citado por ele, está associado à noção de mobilizar apenas o consumo de informações que, para Tiago, parece ser um cenário generalizado no Ensino Médio. Como consequência do que vivenciou ao longo da sua formação básica e superior, baseava a sua prática em métodos tradicionais de ensino com a atenção especial a exercícios de repetição:

Ensinava a calcular as tendências centrais com números [...], com a média das notas, mostrava um boletim e ensinava a calcular a média dos boletins deles [alunos], mas nada, assim, tão aplicado [...]. Antigamente eu tinha essa visão, minha visão era sempre matemática (Entrevista Tiago, 2018).

A abordagem presente no seu percurso formativo não privilegiou o desenvolvimento da literacia estatística do professor, influenciando a sua percepção sobre o ensino da Estatística desligada do seu uso social. Com a intenção de desenvolver o seu conhecimento de conteúdo e didático para o ensino da Matemática, Tiago buscou o curso de pós-graduação:

Eu procurei me atualizar, trazer uma aula diferenciada e é isso que eu tenho buscado na pós-graduação, dinamizar a minha aula, trazer uma aula diferenciada do que tudo que eu já aprendi, me especializar” (Entrevista Tiago, 2018).

Assim, apesar de ter realizado uma prática voltada para o ensino tradicional dos conceitos matemáticos e estatísticos, o professor tinha o anseio de desenvolver novas perspectivas sobre o ensino, de modo a ressignificar a sua prática.

Na entrevista realizada após a formação, Tiago teve a oportunidade de descrever as suas aprendizagens mais importantes. O excerto que se segue descreve a sua compreensão dos conceitos estatísticos abordados a partir de tarefas de cunho exploratório:

Na pós eu digo que eu tive o [significado das coisas], eu entendia por que isso funciona desse jeito, eu sei que média não é somente somar e dividir pela quantidade, mas por que é isso? Qual o significado dessa média? Qual o real significado da mediana? O sentido das coisas não [me] aparecia até antes da pós-graduação (Entrevista Tiago, 2018).

O professor percebe a presença da Matemática no tratamento de dados, ressaltando que existe um significado para os conceitos estatísticos que não se resume ao procedimento, valorizando, assim, a noção de literacia. Para Tiago, as atividades desenvolvidas na formação proporcionaram a compreensão do significado dos conceitos estatísticos e dos procedimentos a eles relacionados. A análise de respostas dos alunos, através de vídeos de aulas, assumiu um lugar importante nesse processo formativo. O professor evidencia a importância desse trabalho que, até então, não havia experimentado na sua formação docente. Associa essa aprendizagem à sua própria prática, salientando a necessidade de considerar o aluno em sua totalidade:

Cria um pouco esse lado no professor de analisar o aluno, não analisar a prova, o aluno como um todo tem muitas características e muitas habilidades, habilidade que eu não consigo ver todas numa prova, não sai ali. Porque, na verdade, essa habilidade não é escrita, ela tá fora do papel, então é impossível eu ver uma habilidade que o aluno tem no papel que ela não cabe ali, ela não entra no papel, essa habilidade tá fora e que é uma habilidade muito importante, é a habilidade do cidadão. (Entrevista Tiago, 2018).

Para Tiago, a participação em uma formação baseada em situações de prática de sala de aula permitiu-lhe desenvolver conhecimentos sobre os processos avaliativos, de modo a não considerar apenas o que os alunos produzem formalmente, mas, também, a sua comunicação e construção de raciocínio diante diferentes atividades.

Além disso, o professor afirma que a experiência de formação com a valorização de situações autênticas de sala de aula levou-o a fazer frequentes reflexões sobre a sua própria prática:

Ao mesmo tempo em que eu estava em sala de aula [no curso], eu já estava me imaginando na escola que eu trabalho, fazendo uma pesquisa de campo [investigação estatística] com os alunos, onde os alunos coletavam os dados, onde eu explicava para eles como organizavam os dados. Eu não tive esse método de pesquisar, então quando eu estava na sala de aula o tempo inteiro eu não aprendia para mim. Eu estava fazendo um link de como vai ser isso lá fora (Entrevista Tiago, 2019).

Tiago destacou, também, o contato com outros professores e a discussão coletiva acerca dos seus raciocínios, perspectivas e concepções sobre o ensino, admitindo ter desenvolvido uma visão mais ampla dos processos de ensino e aprendizagem da Estatística:

Como as realidades eram bem diferentes, foi logo no início que eu estava entrando na escola, que tem uma visão bem diferente de muitas escolas, alguns eram professores do município, da prefeitura, então eles trocavam muitas ideias e eu tento trocar isso até hoje (Entrevista Tiago, 2019).

Tiago faz uma comparação entre a comunicação e troca estabelecidas entre os colegas de formação e a comunicação que passou a valorizar com os seus colegas de trabalho. Para o professor, a troca de experiências em diferentes contextos foi essencial para que mudassem as suas perspectivas acerca da abordagem da Estatística, projetando uma postura de colaboração para o seu ambiente de trabalho.

Na entrevista realizada em 2020, o professor reafirmou a importância da formação na sua prática letiva, sobretudo ao desenvolver atividades investigativas:

Hoje eu consigo explicar esse conteúdo com uma propriedade muito maior para os meus alunos, tanto que hoje a investigação estatística tem um papel muito grande na nossa escola, muito grande mesmo (Entrevista Tiago, 2020).

De acordo com o professor, o processo formativo promoveu aprendizagens do conteúdo e da didática da Estatística, trazendo confiança para promover o seu ensino.

5.2 Professor Tiago: Bloco de Análise - Prática Letiva

Após a formação, Tiago teve oportunidade de lecionar temas relacionados à Estatística com maior frequência. Na entrevista realizada em 2019, enfatizou a sua compreensão acerca do objetivo da abordagem dos conteúdos estatísticos nas suas aulas, caracterizando essa abordagem de maneira bastante distinta da que apresentava antes da sua participação no curso:

O objetivo principal é aproximar da realidade, não mostrar só a teoria [...]. Ensinar para ficar ali dentro da sala de aula não tem proveito nenhum, aí é aquela típica frase dos alunos: “Pra que eu vou usar isso na minha vida?”. Se você começa a aula com aplicação daquilo no cotidiano, enriquece muito mais e vai trazendo uma vivência (Entrevista Tiago, 2019).

Para Tiago, a aprendizagem da Estatística não deve acontecer a partir de um modelo de transmissão de conhecimentos. Quando narra a forma de apresentar os conteúdos, coloca os alunos como sujeitos ativos do processo de aprendizagem, valorizando fatores do contexto social e escolar. Essa valorização fortalece a compreensão da necessidade de um contexto inerente ao desenvolvimento da literacia estatística.

A respeito da forma de se comunicar com os alunos diante da apresentação de um conceito estatístico, exemplifica:

Analisamos juntos e pontuamos: ‘Tá vendo esse ponto aqui?’ [...]. Acho que é importante analisar de forma conjunta” (Entrevista Tiago, 2019).

O professor ainda ilustra uma abordagem de modo a valorizar o questionamento e a participação dos alunos. Tiago relata a inclusão das investigações estatísticas na sua prática ainda no ano da formação. Em 2019, buscou aperfeiçoar a abordagem do tema, ampliando a realização da investigação para todo o contexto escolar.

Na narrativa da última investigação estatística realizada, Tiago ressalta a importância de um trabalho interdisciplinar, e afirma que a atividade foi articulada a uma prática já existente na escola acerca da recolha de lixo, com a participação de turmas no 7.º, 8.º e 9.º anos do Ensino Fundamental. Nessas diferentes turmas, os alunos propuseram questões de investigação acerca dos conhecimentos sobre a coleta de diferentes tipos de lixo dos habitantes dos arredores da escola. Assim, foram incluídas perguntas relacionadas à coleta de lixos eletrônicos, óleo vegetal, etc.:

Eu sugeri aos alunos que nós falássemos sobre isso, sobre o descarte do lixo consciente e daí surgiram várias outras ideias. Na feira de ciências os alunos do 7.º ano tinham trabalhado com lixo eletrônico, eles falavam de lixo espacial e coisas do tipo, eles já tinham feito uma pesquisa sobre isso, então eles trouxeram essa ideia. Aí eu falei: “Poxa, a gente pode falar sobre isso, né?”, poucas pessoas sabem onde é que tem que descartar uma bateria, um telefone celular quando quebra, aí começamos a falar sobre isso e as perguntas foram surgindo através dele (Entrevista Tiago, 2020).

Tiago ressalta a importância de levar em consideração temas relevantes para os alunos, afirmando:

Se eu impuser um formato de trabalho, eu acho que fica muito maçante, aí vão fazer por obrigação, então eu prefiro que eles tenham liberdade para fazer (Entrevista Tiago, 2020).

Ao relatar os processos do ciclo investigativo, o professor enfatiza a importância da reflexão social diante dos dados coletados :

A gente dividiu em etapas e a última etapa seria a tomada de decisão, que seria o que os alunos vão fazer com esses dados, eles coletaram os dados, trataram, começaram a interpretar eles através do tratamento que eles fizeram, mas o que eles podem fazer para melhorar essa realidade? (Entrevista Tiago, 2020).

O professor evidencia a necessidade de explorar as diferentes etapas do ciclo investigativo, ressaltando a intenção de desenvolver uma postura crítica dos alunos a respeito dos dados. Tiago narra a realização de discussões com os seus alunos no momento da seleção dos métodos de recolha de dados. Ele não utiliza softwares de tratamento de dados com os seus alunos, usando, apenas, a ferramenta dos formulários eletrônicos para a recolha dos dados:

Aí depois que os alunos formalizaram as perguntas, eu anotei ao quadro e depois a gente passou para um formulário do Google, ali alguns dados já vêm tratados, né? É um tratamento às vezes limitado, às vezes só faz um gráfico... Outras coisas eu pedi que eles tratassem fora, fizessem comparativo de dados [...]. Pedi para produzissem mesmo, à mão, por exemplo, alguns gráficos, construíram para agrupar as duas informações. [...] Aí eu chamei isso de cruzamento de dados. Onde eles pudessem comparar, por exemplo, as pessoas descartam a bateria de celular de maneira incorreta porque eles não encontram o local correto para poder descartar [...] coisa desse tipo, para depois eles produzirem o portfólio (Entrevista, Tiago, 2020).

Embora Tiago tenha permitido que os alunos utilizassem um recurso que apresenta os dados em gráficos, ele percebeu que uma investigação estatística exige uma maior compreensão dos conceitos estatísticos. Além de ter assumido a intenção de desenvolver um trabalho associado às questões sociais, também compreendeu a necessidade de explorar diferentes tipos de representação estatística, de modo que os alunos percebessem a adequação dos diferentes gráficos a contextos distintos. Considera que a construção manual de gráficos é um recurso que fortalece o conhecimento de conceitos matemáticos utilizados na Estatística. Além disso, o professor incentivou a comunicação escrita dos alunos ao fazerem um portfólio elucidando as diferentes etapas do ciclo investigativo.

Por ser uma atividade que envolveu diferentes turmas, Tiago valoriza, em sua narrativa, o fato de a comunicação ter se desenvolvido além da sala de aula. Independentemente dos anos de escolaridade, a produção escrita no portfólio foi desenvolvida através de discussões conjuntas dos alunos de diferentes turmas, pelo que seu relato destaca a troca que ocorria entre as turmas, ainda que ele não tivesse solicitado que tais trocas ocorressem. O professor relata que os resultados da investigação foram apresentados à comunidade escolar, incluindo elementos da direção e professores de outras disciplinas:

Tinhauma pessoa da direção, aí em um dado momento foi a própria diretora da unidade, em outro momento foi uma coordenadora [...] o professor de história também estava junto e tinha uma professora de língua portuguesa. Então, meio que cada um estava avaliando no seu ponto, eu também dava as minhas sugestões em relação à matemática e os alunos nos apresentavam a análise deles de cada gráfico e de cada dado tratado, né? “Ah, nós escolhemos esse tipo de gráfico por conta disso, disso e disso” e depois, ao mesmo tempo em que tinha um grupo lá na frente apresentando, tinha um grupo sentado, então eles houve uma discussão, “eu concordo com isso, eu discordo disso, por conta disso e disso” (Entrevista Tiago, 2020).

A amplificação da atividade possibilitou a compreensão, por parte da comunidade, do caráter interdisciplinar das investigações estatísticas. O trabalho desenvolvido mobilizou outras atividades, sobretudo no que se relaciona às questões sociais, reforçando o papel do contexto na abordagem da Estatística. Para Tiago, foi um grande avanço, uma vez que ele sente a necessidade de promover, em sua prática, uma educação para a vida:

Eles perceberam que grande parte das pessoas pesquisadas tinha dificuldade de descartar o lixo eletrônico porque não sabia onde descartar e o local correto [...]. Aí a gente está tentando montar uma parceria com a professora de português e redação, eles vão fazer umas cartilhas para poder distribuir ali na localidade e fazer essa campanha de conscientização, que foi intitulada de tomada de decisão. No 8.º ano eles falaram sobre descarte do óleo vegetal que é uma coisa que pouquíssimas pessoas sabem como descartar ou muitas pessoas descartam de maneira errada e até a tomada de decisão deles também tem a ver com isso, levar para o laboratório de ciências uma forma de reutilizar esse óleo ou, então, visitar um local para que seja para fabricação daquele sabão em barra que fazem muito aqui no Rio (Entrevista, Tiago, 2020).

De acordo com Tiago, além da oportunidade de identificar problemas no que diz respeito ao descarte consciente dos lixos, a apresentação dos resultados suscitou, ainda, outras questões a investigar, ocasionando um trabalho contínuo e fortalecendo o sentido cíclico próprio de uma investigação estatística. Igualmente, o professor Tiago destacou que a investigação assumiu relevância na escola, considerando que, através da aplicação dos seus conhecimentos à prática, o lugar do ensino da Estatística tende a expandir-se.

Valoriza, ainda, a realização de investigações, principalmente ao perceber o desenvolvimento de uma postura crítica dos seus alunos:

Além disso, eu consigo perceber que na hora das apresentações existiam um senso crítico muito mais apurado do que quando eram somente os gráficos que caíam nas avaliações, tem uma diferença muito grande, os alunos conseguiram ter essa habilidade e foi adquirida com a pesquisa de campo, com as rodas de conversa, com as discussões em sala de aula (Entrevista, Tiago, 2020).

Em contraponto a um ensino tradicional , que seguia antes de frequentar a formação, o professor percebe maior evolução dos seus alunos ao realizarem uma atividade de caráter exploratório. O professor, em sua narrativa, enfatiza a comunicação dos seus alunos, aliada a uma aprendizagem ativa dos conteúdos. Valorizando a noção de literacia, utiliza as investigações de modo a promover o desenvolvimento do conhecimento estatístico e matemático dos seus alunos, a partir da inserção de um contexto relevante para a realidade dos seus alunos.

5.3 Professor Cláudio: Bloco de Análise - Perspectivas

Assim como Tiago, Cláudio é um professor iniciante. Como participante da formação, mostrou-se muito aplicado e participativo. Refere, do seguinte modo, o seu interesse pelo ensino:

Desde pequeno já pensava em ser professor, porque sempre gostei de ensinar as pessoas. A Matemática me atrai mais, as várias formas de dar uma resposta” (Entrevista Cláudio, 2018).

Para Cláudio, o ensino deve envolver a realidade do aluno. Além disso, ele valoriza atividades lúdicas de modo a envolver os alunos de forma mais profunda. Na entrevista ocorrida em 2018, afirmou que a necessidade de não ficar parado o impeliu a participar do curso de pós-graduação, buscando aprender várias maneiras de ensinar os assuntos .

Apesar do seu interesse em adquirir conhecimento, no que se refere à Estatística, o professor explicou que, até a participação no curso, seu conhecimento era bastante limitado:

Eu nunca tinha visto alguns gráficos e nem sabia como trabalhar, ou onde trabalhar. O de pontos, por exemplo. A gente tem uma visão muito geral e pensa que serve para tudo (Entrevista, Cláudio, 2018).

Outra questão, exposta por ele, refere-se à ausência de uma abordagem da didática para ensinar Estatística na sua formação inicial:

Tem muito conteúdo para aprender na graduação e quase nunca deu tempo para discutir sobre o ensino e aprendizagem em cada disciplina. [...]. No início, se eu fosse trabalhar o [Tratamento da Informação] em sala, eu acho que focaria na interpretação de gráficos (Entrevista Cláudio, 2018).

Na entrevista realizada um ano após a formação, Cláudio ressalta a importância de incorporar em sua prática uma abordagem que salienta o significado dos conceitos. Além disso, evidencia a importância de valorizar as necessidades dos alunos e o contexto em que estes estão inseridos. O professor afirma:

Acho essencial falar da variabilidade, das medidas... Mediana, moda... e explicar o significado de tudo. Os gráficos, qual é o melhor gráfico para cada situação. E trabalhar com eles com coisas da realidade deles (Entrevista Cláudio, 2019).

No seu relato, Cláudio valoriza, essencialmente, a realização de investigações estatísticas. Perceber o ciclo investigativo, de acordo com o professor, tornou-se uma mais-valia importante. Para ele, não seria possível realizar esse tipo de tarefa em suas aulas sem as aprendizagens realizadas no processo formativo:

Foi importante ter feito uma investigação em sala. Ver junto como os dados são tratados... Eu nunca tinha visto as investigações e nem tinha ideia de como trabalhar em sala. Não saberia fazer uma investigação e nem pensaria nisto. [...]. A aprendizagem que eu tive foi conjunta. Acho que no curso as investigações me fizeram relacionar com os outros professores, começou aí. Me despertou mais para as atividades interdisciplinares. A minha ideia de interdisciplinaridade surgiu na Estatística [...]. Nas investigações podemos trabalhar todos os conceitos, tudo o que aprenderam e discutir sobre o que eles têm dúvidas. É tipo fazer uma culminância. Acho que a investigação é capaz de eliminar preconceitos, não formar alunos alienados. Por exemplo, nas investigações que fizemos em sala muitos debates sociais acabaram surgindo. Não para por ali (Entrevista Cláudio, 2019).

Cláudio afirma que vivenciar o ciclo investigativo com os seus colegas professores possibilitou uma aprendizagem coletiva a respeito dos conceitos estatísticos e de um processo de investigação, fortalecendo a sua própria literacia estatística e suscitando a compreensão de como desenvolvê-la em sala de aula. Além disso, permitiu-lhe identificar possibilidades relacionadas à interdisciplinaridade. O professor elenca, ainda, diferentes aspectos do curso que lhe proporcionaram aprendizagens significativas:

Eu aprendi sobre as orientações curriculares, como organizar os dados, como interpretar os dados de acordo com o objetivo da pesquisa... A fazer investigações. Aprendemos também sobre os recursos tecnológicos. E também sobre como ver o pensamento do aluno, as respostas. Acho que as atividades foram se completando... Uma completando a outra (Entrevista Cláudio, 2019).

Cláudio faz uma referência à estrutura adotada na formação, salientando a importância das atividades realizadas para as suas aprendizagens. A sua referência engloba abordagens que dizem respeito à Estatística e ao seu processo de ensino-aprendizagem. De acordo com o professor, a articulação entre o conteúdo e aspectos didáticos favoreceram diferentes elementos que são essenciais para a sua atividade enquanto professor.

A respeito das tarefas de cunho exploratório, afirma:

Acho que todas as práticas vão me ajudar no meu desenvolvimento em sala. Eu acho que tarefas como as que foram usadas na pós podem ser adaptadas para a realidade de sala de aula. Porque assim como nós desenvolvemos muitas aprendizagens, eu acredito que eles [os alunos] também vão desenvolver (Entrevista, Cláudio, 2018).

Desse modo, assim como a prática de Cláudio, antes do curso, espelhava um reflexo das suas vivências anteriores, o processo formativo o motivou a buscar outra forma de abordar os conteúdos.

5.4 Professor Cláudio: Bloco de Análise - Prática Letiva

Após a formação, Cláudio teve a oportunidade de lecionar os temas relacionados à Estatística em turmas dos anos finais do Ensino Fundamental. Nesse contexto, ele relata a necessidade de explorar a aplicabilidade dos conceitos estatísticos de forma contextualizada. Além disso, afirma que uma tarefa, por si só, não pode ser considerada contextualizada sem considerar a realidade dos alunos envolvidos na sua aplicação:

Eu quero que o meu aluno aprenda a analisar os dados corretamente de acordo com cada caso. Por exemplo, precisa aprender em quais casos usar a média e entender que ela não é aplicável a tudo. [...]. Eu tento pensar sempre no quanto aquilo serve para o meu aluno. Pego uma tarefa contextualizada, mas penso: “isto é contextualizado para quem?”. Muitas vezes o meu aluno não faz parte daquela realidade (Entrevista, Cláudio, 2019).

Em seu relato, Cláudio faz uma comparação com a sua posição antes da formação, relembrando a sua anterior perspectiva de um ensino de Estatística focado essencialmente na resolução de exercícios e na interpretação de gráficos já construídos. Além disso, estabelece uma relação entre diferentes conceitos, apontando o papel da probabilidade na abordagem da Estatística:

Antes, eu ficava só preso a gráficos. Hoje eu vejo que é mais do que isso... Probabilidade, média. Eu pensava que Estatística na escola era só para organizar a informação. Hoje eu vejo que não é só isso. É você sintetizar a informação, é ver o porquê daquela informação, os objetivos que você quer com ela. A gente vê que tudo depende, né. Tem a margem de erros... (Entrevista Cláudio, 2019).

Quanto ao tipo de tarefa que Cláudio utiliza para ensinar Estatística, menciona as tarefas de caráter exploratório, considerando a adaptação necessária a cada turma. No entanto, refere que diferentes tipos de tarefa devem ser inseridos nas suas aulas. No que diz respeito à Estatística, percebe que há uma transversalidade, que possibilita a inclusão da abordagem de conceitos estatísticos em diferentes momentos das aulas de Matemática:

Quando preparo uma aula eu penso nos pontos fortes e nos pontos fracos de cada turma. Pessoalmente, eu tento encontrar tarefas que eles possam usar várias estratégias para chegar ao objetivo. Acho que é importante variar os tipos de tarefas [...]. Não precisa esperar um momento específico para ensinar os gráficos, por exemplo. [...]. Por exemplo, mostrar gráficos com erros para que eles pudessem perceber os erros. Acham aquilo gritante (Entrevista Cláudio, 2019).

O tipo de tarefa que Cláudio valoriza tem o papel de promover o desenvolvimento da habilidade crítica diante de diferentes informações inseridas no cotidiano dos seus alunos. A prática adotada em suas aulas de Estatística tem relação com a formação em que participou. Na sua perspectiva, os materiais, como livros escolares, têm poucas opções de tarefas variadas. Igualmente, o professor valoriza a motivação dos alunos ao desenvolverem as atividades propostas, destacando que, quando o tema é interessante para os estudantes, a motivação é maior. Com base nisso, considera a investigação estatística uma atividade essencial a ser vivenciada pelos seus alunos.

Na entrevista realizada em 2019, Cláudio relata a investigação realizada com os seus alunos do 8.º ano. A turma era composta de 25 alunos e a atividade foi realizada no final de 2018, após a experiência de formação. De acordo com o professor, a introdução dos conceitos estatísticos foi realizada antes da atividade:

Antes da investigação eu trabalhei com eles os diferentes tipos de gráficos, o significado e aplicação de cada um deles. No dia da investigação eles puderam rever estas informações. Fiz isso para que eles pudessem pensar melhor na melhor forma de tratar os dados (Entrevista Cláudio, 2019).

Cláudio ressalta, ainda, o trabalho com diferentes conceitos matemáticos que são importantes no tratamento estatístico, evidenciando os conhecimentos matemáticos e estatísticos necessários para o desenvolvimento de uma investigação estatística. Após a introdução dos diferentes conceitos, o professor optou por iniciar uma discussão coletiva acerca do problema a ser investigado:

Eu perguntei a eles o que eles gostariam de investigar. Eu também ia discutindo com eles sobre como organizar os dados. Porque, por exemplo, eles diziam “vamos investigar isto”, mas eu perguntava qual era o objetivo, se era possível gerar dados com aquela pergunta. E aí eles repensavam... Eu sempre procuro observar o que eles estão falando para ir “aparando” e complementando o que pensam. Na parte da Estatística eles iam discutindo em grupos e eu ia indagando as opções deles. Aí eles discutiam de novo... Às vezes um entendia melhor e os outros não, então ele explicava para os outros... Este que explicava aprendia ainda mais (Entrevista Cláudio, 2019).

Cláudio, em sua narrativa, evidencia a compreensão do seu papel como professor na condução de uma investigação estatística. Embora saliente a posição ativa dos alunos na decisão do problema a investigar, ele configura as discussões como uma oportunidade de aprendizagem, em que o seu papel é mediar e provocar reflexões. De acordo com o professor, eles optaram por criar questões relacionadas aos subprojetos que estavam acontecendo na escola, como o uso das redes sociais e o bullying:

Formularam questões como quem já sofreu, os tipos de bullyings mais sofridos em sala. [E sublinha o trabalho coletivo no momento da recolha dos dados, afirmando]: A turma se dividiu em grupos, onde cada grupo ficou responsável pela recolha de dados de determinadas perguntas (Relatório Cláudio, 2019).

O professor refere a importância dos recursos tecnológicos no ensino da Estatística, embora o seu uso tenha sido impossibilitado por questões de logística da escola, problema que, segundo ele, será resolvido na próxima investigação, com o apoio da professora de informática. Cláudio considera que o recurso tecnológico é essencial para o desenvolvimento do conhecimento estatístico dos seus alunos. No lugar dos recursos tecnológicos, optou por intensificar o trabalho na construção de gráficos, reforçando a matemática inerente aos conceitos estatísticos, afirmando:

Foram entregues folhas quadriculadas, circunferências e folhas em branco para que eles escolhessem o como representariam os dados recolhidos através dos gráficos e/ou tabelas (Relatório Cláudio, 2019).

Cláudio faz referência ao momento da interpretação dos resultados, apontando que houve uma interpretação conjunta e aconteceu uma aprendizagem coletiva a respeito dos conceitos estatísticos e da sua importância na análise de situações associadas ao contexto social dos alunos:

Cada grupo apresentava os dados recolhidos através de suas anotações, gráficos e/ou tabelas, onde a própria turma analisava criticamente se aquele tipo de organização foi ideal para as informações analisadas, além de comentarem sobre as questões que estavam analisando, falando sobre os impactos, reflexões e testemunhos. No decorrer das análises dos dados e apresentações os alunos traziam também reflexões e soluções para determinados problemas, por exemplo, quanto ao bullying. Viram em geral a importância da investigação e da organização [correta] dos dados. De início a turma teve uma certa dificuldade em saber como se organizar e como começar tal investigação, e perceberam no decorrer da recolha que também é necessário saber como se recolhe os dados, não basta apenas quantificá-los em determinados casos (Relatório Cláudio, 2019).

Cláudio menciona a importância de uma análise adequada dos dados, uma vez que, através de um conhecimento consolidado do processo investigativo e das ideias estatísticas, é possível chegar a conclusões coerentes a respeito de uma situação ou um problema. Realça o papel de uma postura crítica diante dos dados e da necessidade de inserir o trabalho estatístico em um contexto. Percebe que esse processo é importante para a motivação dos alunos:

Eu vejo que a investigação traz impacto também na escola. Os alunos ficam motivados, mobilizados. É importante não trazer coisas prontas para os alunos, mas que eles possam construir as aprendizagens... Eu acho que existe uma aprendizagem maior dos conteúdos. Já que é uma atividade que eles mesmos exploram, fica mais marcado na memória deles. Quando nós trazemos algo pronto eles só cumprem, só fazem.Além deste trabalho fazer com que eles percebam mais ainda que a matemática está constantemente presente na vida deles, eles principalmente a enxergaram como uma aliada, pois eles tinham um objetivo, onde depararam-se com obstáculos e problemas e viram meios e soluções através dela, e que até mesmo margens de erros fazem parte das investigações e dados. Aperfeiçoaram o trabalho em equipe, desenvolveram mais o pensamento crítico, hipóteses e interpretações.Eles fizeram um relatório em grupos e serviu como uma avaliação (Entrevista Cláudio, 2019).

Para Cláudio, o ciclo investigativo tem impacto na comunidade escolar e promove a construção da aprendizagem dos alunos. Não estando assente numa abordagem tradicional, o processo investigativo, para o professor, é capaz de promover uma melhor aprendizagem dos conceitos estatísticos, uma vez que estes estão associados a um contexto. Além disso, ressalta o senso crítico desenvolvido pelos seus alunos e a percepção da variabilidade no ciclo investigativo. Esses aspectos evidenciam a relação entre a realização de investigações estatísticas e o desenvolvimento de diferentes elementos da literacia estatística.

6 Discussão

As perspectivas dos professores antes do processo formativo estão centradas no ensino dos conceitos estatísticos a partir de exercícios, muitas vezes, sem contextos apropriados e sem a exploração do significado desses conceitos. Essa prática mobiliza apenas os procedimentos matemáticos inerentes à Estatística. O ensino centrado em exercícios decorre do fato de a formação inicial dos professores não ter mobilizado tarefas exploratórias e centradas na prática. Como motivação para a frequência da formação, os professores expressam a compreensão de que o ensino da Estatística deve ter outra abordagem, mas não se sentem capazes de executá‑la por falta de conhecimentos. A partir da frequência no processo formativo, ressaltam novas perspectivas, especialmente no que diz respeito à utilização de uma abordagem exploratória dos conceitos, valorizando a utilização das investigações estatísticas e dos problemas associados à vida dos alunos e da comunidade escolar ( FRANKLIN et al ., 2005FRANKLIN, C.; KADER, G.; MEWBORN, D.; MORENO, J.; PECK, R.; PERRY, M. et al . Guidelines for assessment and instruction in statistics education (GAISE) Report: A Pre-K-12 curriculum framework . Alexandria, VA: American Statistical Association, 2005. ; WEILAND, 2017WEILAND, T. Problematizing statistical literacy: An intersection of critical and statistical literacies. Educational Studies in Mathematics , Heidelberg, v. 96, n. 1, p. 33-47, may. 2017. ).

Os professores evidenciam as dinâmicas de trabalho adotadas no processo formativo, essencialmente na comunicação estabelecida com os outros professores, ressaltando a construção de uma aprendizagem coletiva. Nas suas narrativas, relatam que esse processo os levou a mobilizar essa comunicação entre pares nos seus próprios ambientes de trabalho. Consideram que a realização de investigações estatísticas no processo formativo os levou a sentirem-se mais seguros para conduzirem atividades desse tipo com os seus alunos ( HEATON; MICKELSON, 2002HEATON, R. M.; MICKELSON, W.T. The learning and teaching of statistical investigation in teaching and teacher education. Journal of Mathematics Teacher Education, Heidelberg, v. 5, n. 1, p. 35-59, mar. 2002. ).

A relação com a prática foi um aspecto transversal no processo formativo, tendo a reflexão sobre a própria prática e sobre novas dinâmicas de aprendizagem sido mobilizada de forma expressiva, como é relatado por Tiago, que ressalta a conexão que fazia durante as sessões de formação. Essa inspiração para assumir novas atitudes no ensino é uma característica de uma formação ativa ( DAY, 2001DAY, C. Desenvolvimento profissional de professores : os desafios da aprendizagem permanente. Porto: Porto Editora. 2001. ). Além disso, os elementos que compuseram a formação estavam articulados, promovendo uma aprendizagem mais ampla da Estatística e o seu ensino, como a narrativa de Cláudio evidencia ( BALL et al ., 2009BALL, D. L.; SLEEP, L.; BOERST, T.; BASS, H. Combining the development of practice and the practice of development in teacher education. Elementary School Journal , Chicago, v. 109, n. 5, p. 458-476, may. 2009. ).

No que se refere à prática dos professores após o processo formativo, as suas narrativas se assemelham em diferentes situações. Os professores evidenciam a valorização de um trabalho colaborativo entre os alunos, no qual estes são convidados a refletirem sobre a utilização adequada dos conceitos estatísticos. Essa dinâmica favorece o desenvolvimento da literacia estatística dos alunos, dado que suscita a discussão a respeito do significado dos conceitos estatísticos que são apoiados por diferentes conceitos matemáticos ( GAL, 2002GAL, I. Adults’ statistical literacy: Meanings, components, responsibilities. International Statistical Review , Netherlands, v. 70, n. 1, p. 1-25, apr. 2002. ).

Outro aspecto importante no desenvolvimento da literacia estatística, presente nas narrativas dos professores, remete à necessidade de desenvolver o conhecimento do contexto. Esse conhecimento assume diferentes formas nos discursos apresentados. A narrativa de Cláudio elucida a importância do contexto para a compreensão dos conceitos estatísticos. O professor ressalta a necessidade de mobilizar diferentes tarefas situadas em contextos adequados à realidade dos alunos e refere a importância de reconhecer erros divulgados nos meios de comunicação, favorecendo o desenvolvimento do questionamento crítico ( GAL, 2002GAL, I. Adults’ statistical literacy: Meanings, components, responsibilities. International Statistical Review , Netherlands, v. 70, n. 1, p. 1-25, apr. 2002. ). Tiago, no que lhe concerne, evidencia a centralidade do conhecimento do contexto nas suas propostas de ensino. Em particular, revela que os conhecimentos estatísticos e de literacia servem para apoiar o conhecimento de contexto, ideia defendida por Weiland (2017)WEILAND, T. Problematizing statistical literacy: An intersection of critical and statistical literacies. Educational Studies in Mathematics , Heidelberg, v. 96, n. 1, p. 33-47, may. 2017. .

Essas diferenças são evidenciadas, também, nas narrativas a respeito das investigações estatísticas realizadas. O professor Cláudio considera que a realização da investigação estatística culminou o trabalho estatístico anteriormente desenvolvido. Demonstra, juntamente, a necessidade de aperfeiçoar esse processo incluindo o uso da tecnologia. Embora os alunos tenham elencado temas que evidenciam problemáticas sociais, o seu foco foi promover aprendizagens sobre o ciclo investigativo e os diferentes conceitos que podem ser mobilizados nesse processo. A narrativa de Tiago revela a importância dada ao ciclo investigativo e, principalmente, a necessidade de promover reflexões para mudanças de atitudes dos alunos enquanto cidadãos. No entanto, carece de uma utilização dos recursos tecnológicos mais aprofundada e sistemática.

É de referir que as investigações estatísticas narradas pelos professores mobilizaram diferentes elementos das componentes cognitiva e afetiva da literacia estatística dos seus alunos. Quanto à componente cognitiva, mobilizaram o desenvolvimento dos conhecimentos estatístico e matemático a partir das construções de gráficos adequados às questões formuladas. Com as investigações, também favoreceram o conhecimento do contexto e uma postura crítica dos alunos, visto que tiveram de realizar a recolha de dados associados às suas realidades, além de os confrontar com as suas hipóteses e apresentar atitude de questionamento diante das informações. A componente afetiva foi mobilizada a partir das discussões coletivas a respeito dos resultados encontrados, evidenciando-se a percepção da realidade dos alunos ( GAL, 2002GAL, I. Adults’ statistical literacy: Meanings, components, responsibilities. International Statistical Review , Netherlands, v. 70, n. 1, p. 1-25, apr. 2002. ).

7 Conclusão

A estrutura adotada para o processo formativo e as atividades realizadas objetivaram promover nos professores participantes o desenvolvimento do conhecimento didático e de conteúdo da Estatística. Salienta-se, nessa experiência de formação, a intenção de fazer com que os professores refletissem acerca das suas práticas e ressignificassem diferentes ideias relacionadas ao processo de ensino-aprendizagem da Estatística. As perspectivas dos professores a respeito do curso indicam que as situações autênticas de prática de sala de aula constituem ações potenciadoras para as suas aprendizagens.

No que se refere às tarefas para o desenvolvimento da literacia estatística, o ciclo investigativo passou a ter um papel essencial nas práticas dos professores. Com o acompanhamento, feito após o processo formativo, foi possível perceber um processo de mudança consolidado nas perspectivas dos professores relativa ao ensino da Estatística, bem como a aplicação das aprendizagens adquiridas na sua prática letiva.

Agradecimentos

Trabalho financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia por meio de uma bolsa atribuída a Bruna Mayara Batista Rodrigues (SFRH/BD/07528/2020).

Referências

  • BALL, D. L.; SLEEP, L.; BOERST, T.; BASS, H. Combining the development of practice and the practice of development in teacher education. Elementary School Journal , Chicago, v. 109, n. 5, p. 458-476, may. 2009.
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  • 1
    Respeitando as questões éticas, os nomes atribuídos aos professores são fictícios.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Fev 2021
  • Aceito
    13 Mar 2022
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