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Compreensão Estatística de Professores em Formação Inicial

Statistical Aptitude of Teachers during their Early Training

Resumo

Estudos na área de Educação Matemática têm evidenciado a pertinência de o ensino de Estatística ser baseado no desenvolvimento de pesquisas, visando proporcionar aos alunos criticidade na análise e interpretação de dados para tomada de decisões. Para tanto, professores precisam estar letrados estatisticamente, a fim de disporem de ferramentas que possam proporcionar ensino baseado nas etapas da pesquisa científica. Adota-se aqui a perspectiva do letramento estatístico constituído pelos componentes afetivo e cognitivo. Neste artigo, objetivou-se analisar o conhecimento de 11 futuros professores de Matemática em relação a quatro elementos do componente cognitivo - letramento, conhecimento de contexto, conhecimento matemático e conhecimento estatístico. Trata-se de pesquisa diagnóstica, visto que se analisa instrumento proposto no início do minicurso intitulado “Desenvolvimento do pensamento estatístico nos Anos Iniciais”, realizado na semana universitária da Universidade Estadual do Ceará - UECE. O elemento conhecimento matemático foi revelado entre os participantes como aquele de maior domínio. Em contrapartida, o conhecimento estatístico e o letramento - o primeiro referindo-se ao domínio dos conceitos estatísticos e o segundo à leitura do mundo a partir das informações estatísticas - foram os de maior fragilidade. Percebeu-se que até o período em que se encontram os estudantes, os cursos de graduação não conseguiram apoiálos satisfatoriamente na construção desses elementos do componente cognitivo do letramento estatístico.

Palavras-chave:
Letramento Estatístico; Ensino de Matemática; Formação de Professores

Abstract

Research in mathematics education has evidenced the relevance of teaching statistics based on research development, aiming to provide students with critical thinking in the analysis and interpretation of data for decision-making. Therefore, teachers need to be statistically literate to have tools that can provide teaching based on the stages of scientific research. We consider statistical literacy from the perspective of affective and cognitive components. In this article, we aimed to analyze the knowledge of 11 future mathematics teachers in relation to four elements of the cognitive component - literacy, contextual knowledge, mathematical knowledge, and statistical knowledge. This is diagnostic research, since it analyzes the instrument proposed at the beginning of the minicourse entitled “Development of statistical thinking in the early years”, held during the university week of the Universidade Estadual do Ceará - UECE. The mathematical knowledge element was revealed among the participants as the one with the greatest mastery. On the other hand, statistical knowledge, and literacy - the first courses were not able to satisfactorily support them in the construction of these elements of the cognitive component of statistical literacy.

Keywords/Palabras clave:
Statistical Literacy; Mathematics Education; Teacher Education

1 Introdução

Até a década de 1990, a Estatística foi negligenciada nos currículos escolares por não ser considerada de grande valor para a formação dos indivíduos (WATSON, 2006WATSON, J. M. Statistical literacy at school: Growth and goals. Mahwah: Lawrence Erlbaum, 2006.). Entretanto, frente à circulação e produção de informações, necessitou-se rever essa concepção, de modo a formar pessoas competentes para tratar e analisar dados e fazer inferências. Assim, os currículos na Educação Básica passaram a incluir unidades referentes ao trabalho com a Estatística.

No Brasil, o ensino de Estatística tem sido abordado pelos principais documentos norteadores da educação, desde os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN (BRASIL 1997BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: 1ᵃ a 4ᵃ séries. Brasília: MEC/SEF, 1997.), aprofundado na Base Nacional Comum Curricular – BNCC (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017.). Os PCN introduziram a temática vinculada à Matemática, no bloco de conteúdos Tratamento da Informação. Ambos documentos consideram que tratar de informações estatisticamente é importante para exercício da cidadania, acrescentando que a “[…] compreensão e a tomada de decisões diante de questões políticas e sociais dependem da leitura crítica e interpretação de informações complexas […]” (BRASIL, 1997BRASIL. Ministério da Educação. Parâmetros curriculares nacionais: 1ᵃ a 4ᵃ séries. Brasília: MEC/SEF, 1997., p. 27).

A BNCC apresenta o ensino de Estatística no componente curricular de Matemática – unidade temática Probabilidade e Estatística, propondo que os aprendizes vivenciem o processo investigativo, através das fases da pesquisa científica. No documento, afirma-se que, para a aprendizagem desta unidade temática, “o planejamento de como fazer a pesquisa ajuda a compreender o papel da Estatística no cotidiano dos alunos” (BRASIL, 2017BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2017., p. 273).

É necessário considerar o que discute a literatura sobre o ensino da Estatística nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Autores têm apontado que, muitas vezes, esse ensino é limitado ao que preconiza o livro didático (CABRAL, 2016CABRAL, P. C. M. Aprender a classificar nos anos iniciais do ensino fundamental. 2016. 143f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática e Tecnológica) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016.; LUZ, 2011LUZ, P. S. Classificações nos anos iniciais do ensino fundamental: o papel das representações. 2011. 112f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática e Tecnologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2011.; MELO, 2010MELO, M. C. M. Fazendo média: compreensão de alunos e professores dos anos iniciais do Ensino Fundamental. 2010. 151f. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática e Tecnologia) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2010.; SANTANA, 2016SANTANA, M. S. Pensamento e Letramento Estatístico em Atividades para Sala de Aula: construção de um produto educacional. Bolema, Rio Claro, v. 30, n. 56, p. 1165-1187, 2016.; SILVA, 2013SILVA, E. M. C. Como são propostas pesquisas em livros didáticos de Ciências e Matemática dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. 2013. 131 p. Dissertação (Mestrado em Educação Matemática e Tecnológica) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.), priorizando atividades ligadas à leitura e interpretação de gráficos. Coutinho e Spina (2016)COUTINHO, C. Q. S.; SPINA, G. A Estatística nos livros didáticos de Ensino Médio. Revista Ensino da Matemática em Debate, São Paulo, v. 2, n. 2, 2016. afirmam que esses materiais são carentes de abordagem investigativa. Lopes (2008LOPES, E. C. O ensino da estatística e da probabilidade na educação básica e na formação dos professores. Cadernos Cedes, Campinas, v. 28, n. 74, p. 57-73, jan./abr. 2008., p. 62) corrobora, acrescentando que “Construir gráficos e tabelas desvinculados de um contexto ou relacionados a situações muito distantes do aluno pode estimular a elaboração de um pensamento, mas não garante o desenvolvimento de sua criticidade”.

Batanero (2002)BATANERO, C. Los retos de la cultura estadística. In: JORNADAS INTERAMERICANAS DE ENSEÑANZA DE LA ESTADÍSTICA, 2002, Buenos Aires. Actas […] Buenos Aires: Conferência inaugural, 2002. p. 1-11. considera que o ensino de Estatística, muitas vezes, é negligenciado pelos docentes, que o abordam de maneira incipiente, por não se sentirem seguros quanto aos conceitos da unidade temática. Ponte (2011PONTE, J. P. Preparing Teachers to Meet the Challenges of Statistics Education. In: BATANERO, C.; BURRILL, G.; READING, C. Teaching statistics in school mathematics. Challenges for teaching and teacher education: A Joint ICMI/IASE Study. New York: Springer, 2011. p. 299-310., p. 303) declara que “[…] há um consenso generalizado de que a formação de professores é um elemento essencial para a qualidade do ensino de qualquer assunto, incluindo Estatística […]”. Tal afirmação ganha relevo quando se tem o consenso de que o letramento Estatístico deve ser prioridade no atual contexto (LOPES, 2014LOPES, E. C. As Narrativas de Duas Professoras em seus Processos de Desenvolvimento Profissional em Educação Estatística. Bolema, Rio Claro, v. 28, n. 49, p. 841-856, 2014.), em meio a tantas informações e mensagens estatísticas, de modo que analisá-las tem sido habilidade fundamental. Assim, é necessário que professores desenvolvam o letramento estatístico, capacidade de compreender dados quantitativos, interagindo e se posicionando criticamente diante deles para a tomada de decisões. Para Gal (2002)GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002., o letramento estatístico é composto por elementos cognitivos e afetivos, conforme será discutido na próxima seção.

Diante dessas ponderações, chegou-se à seguinte questão de pesquisa: quais elementos do componente cognitivo, relativos ao letramento estatístico, os licenciandos demonstraram já ter desenvolvido, a partir de resolução de problemas de Estatística? Tal questionamento culminou no objetivo da presente pesquisa, que é investigar elementos do componente cognitivo, relativos ao letramento estatístico, manifestos por licenciandos. Esses elementos foram buscados através da aplicação de um instrumento diagnóstico proposto a onze estudantes de licenciatura.

2 Discutindo elementos do componente cognitivo

A formação necessária para o desenvolvimento da pesquisa estatística, nos moldes que propõe a BNCC, requer do docente o letramento estatístico estruturado, segundo Gal (2002)GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002., por dois componentes inter-relacionados:

a) a capacidade das pessoas de interpretar e avaliar criticamente informações estatísticas, argumentos relacionados a dados ou fenômenos estocásticos, que podem encontrar em contextos diversos, e quando relevante b) sua capacidade de discutir ou comunicar suas reações a tais informações estatísticas, como sua compreensão do significado da informação, suas opiniões sobre as implicações dessas informações, ou suas preocupações quanto à aceitabilidade de dados conclusões (GAL, 2002GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002., p. 02, tradução livre).

O autor menciona dois componentes para que se considere o sujeito letrado estatisticamente: 1. Componente Cognitivo, com os elementos: letramento, conhecimento matemático, conhecimento estatístico, conhecimento de contexto e capacidade de elaborar questões; 2. Componente Afetivo, composto por: crenças e atitudes, além da postura crítica, os quais interferem na relação do indivíduo com as informações e na leitura de mundo.

Neste artigo foram tratados os elementos do Componente Cognitivo, os quais, segundo Gal (2002)GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002., estão relacionados à compreensão, à interpretação, à avaliação crítica e à reação a mensagens estatísticas. Destes elementos, excluiu-se a capacidade de elaborar questões, por não se adequar ao instrumento diagnóstico proposto. Embora os elementos sejam analisados separadamente, é necessário atentar para o alerta do autor, a respeito da imbricação entre eles.

O conhecimento matemático consiste na compreensão de números (fracionários, decimais e percentuais) e de procedimentos matemáticos (porcentagem, operações fundamentais, regra de três etc.). Este conhecimento não se limita ao domínio do cálculo numérico, mas exige competências para o cálculo relacional, necessárias à produção e à interpretação de dados.

O conhecimento estatístico refere-se a conceitos e procedimentos estatísticos e probabilísticos básicos, apontados por Gal (2002)GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002., como: sentido de número; compreensão de variáveis; interpretação de tabelas e gráficos; planejamento de pesquisa; processos de análise de dados; relações entre probabilidade e estatística; raciocínio inferencial.

O conhecimento do contexto, de acordo com Gal (2002GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002.. p. 15), “[…] é a fonte de significado e a base para a interpretação dos resultados obtidos”. É referente à compreensão acerca da situação na qual foram produzidas as informações e é fundamental para dar-lhes sentido. Habilita os sujeitos à reflexão crítica sobre mensagens estatísticas e à compreensão de implicações referentes às descobertas ou aos números relatados.

O letramento é a habilidade de compreensão de texto em diferentes estilos, prosa, gráficos, tabelas etc., em mensagens escritas ou orais; percepção do texto circundante em que os dados estatísticos estão imersos; comunicação de opiniões acerca de dados quantitativos.

Os elementos do componente cognitivo do letramento estatístico estão aqui analisados a partir das respostas concedidas ao instrumento diagnóstico, conforme será visto na seção quatro.

3 Metodologia

Para aquilatar o desenvolvimento do componente cognitivo do letramento estatístico, foi proposto instrumento diagnóstico a onze estudantes de licenciatura, no início do minicurso intitulado “Desenvolvimento do pensamento estatístico nos Anos Iniciais”, realizado na XXIV Semana Universitária da UECE, em 2019, com carga horária de doze horas. O instrumento diagnóstico era composto por quatro questões, sendo a primeira definida para análise neste artigo, visto que possibilitou análise dos conhecimentos dos licenciandos em relação ao componente cognitivo proposto por Gal (2002)GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002.. A questão envolvia leitura, interpretação e construção de tabelas de dupla entrada e gráficos, prioritariamente de setor e de colunas.

Os participantes desta pesquisa foram nove estudantes de Pedagogia, dos quais apenas um registrou ter trabalhado com Estatística, como bolsista de Iniciação Científica, pois seu curso não oferece disciplina específica e o programa da disciplina Ensino de Matemática, na UECE, não contempla a Estatística. Participaram ainda dois alunos de licenciatura em Matemática que registraram terem estudado Estatística, uma vez que haviam cursado a única disciplina de seu currículo dedicada especificamente à área.

4 Revelando indícios do letramento estatístico

Para revelar os indícios de domínio dos elementos do componente cognitivo demonstrados pelos licenciandos, foram propostos os desafios ora analisados. Com relação ao Conhecimento Matemático, avaliou-se o domínio do conceito de porcentagem. Quanto ao Conhecimento Estatístico, foram tratadas a leitura e interpretação de tabela de dupla entrada; a construção de diferentes tipos de gráficos e sua adequação para tratamento dos dados e comunicação dos resultados. Para avaliar o Conhecimento de Contexto, observou-se a percepção dos participantes acerca da origem dos dados e de sua importância na compreensão das informações. A constatação do letramento foi buscada através de análise crítica, tendo em vista dados e relações estabelecidas entre resultados de pesquisa e conhecimento de mundo.

O conhecimento matemático contemplado na questão do instrumento diagnóstico tem a ver, exclusivamente, com domínio do conceito de porcentagem, um dos conhecimentos de número apontados por Gal (2002)GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002. como necessário à aprendizagem da Estatística.

Na Figura 1 abaixo, encontra-se um dos itens, a partir do qual o conhecimento matemático foi manifestado. Apresentou-se resultado de uma pesquisa amostral fictícia, realizada com 1000 pessoas, sendo 500 da classe baixa, 350 da classe média e 150 da classe alta. Os licenciandos deveriam ler a tabela 1, com números absolutos, e preencher a tabela 2 transformando em números percentuais, de modo que gerasse argumento para estabelecer a relação entre classe social e acesso ao Ensino Superior, compatível com a realidade brasileira.

Figura 1
Questão avaliativa acerca do domínio do conceito de porcentagem
Tabela 1
Porcentagem de pessoas segundo o acesso ao ensino superior e a classe social
Quadro 1
Síntese dos elementos do componente cognitivo apresentados pelos participantes da pesquisa

Observamos que sete estudantes obtiveram êxito (S1, S3, S5, S6, S7, S9, S11), indicando que, nesse particular, demonstraram conhecimento matemático (GAL, 2002GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002.). A regra de três foi a estratégia mais utilizada na resolução. Embora se trate de algoritmo amplamente utilizado nesse tipo de atividade, deve-se considerar que os participantes estão sendo habilitados para o trabalho com crianças, precisando desenvolver estratégias adequadas para a faixa etária.

Em contrapartida, quatro estudantes (S2, S4, S8 e S10) não apresentaram domínio da porcentagem, cometendo equívocos, tais como: atribuição de números arbitrários, desconhecimento de que as parcelas dos percentuais quando adicionadas deveriam compor a totalidade (100%) e consideração de totais distintos ao calcular diferentes percentagens. Exemplos de respostas desses diferentes extratos podem ser observados nas figuras abaixo:

Percebe-se na Figura 2a, que todas as células estão preenchidas corretamente com as percentagens correspondentes, o que indica conhecimento matemático de S1. Com relação a S4 (Figura 2b), os percentuais são colocados de modo que não se pode inferir como raciocinou para fazer a transformação, sequer todas as adições estão corretas. Percebem-se falhas no cálculo e o não estabelecimento de relações entre os valores absolutos dos números e as porcentagens.

Figura 2
Exemplos de resoluções de porcentagem

No item 2, foi solicitada a construção de gráfico para representação dos dados da tabela. Três sujeitos (S10, S9, S8) manifestaram não compreender o conceito de porcentagem ao não estabelecerem a relação do todo com as partes, isto é, não perceberam que 50% e 25% devem corresponder à metade e à quarta parte do todo, respectivamente, conforme a figura a seguir:

Figura 3
Falha no estabelecimento da relação parte todo e percentual

Percebe-se, portanto, que o conceito de percentagem foi elaborado por alguns sujeitos da pesquisa, embora cinco deles ainda não o tenham desenvolvido plenamente. Tal lacuna de formação compromete o letramento estatístico, conforme preconiza Gal (2002)GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002..

Quanto ao conhecimento estatístico, o item 1 (Figura 1) exigia leitura e interpretação da tabela de dupla entrada, para compor a tabela subsequente. Costa (2018)COSTA, L. M. Leitura, interpretação e construção de tabelas e gráficos nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Rio de Janeiro: Sociedade Brasileira de Matemática, 2018. destaca a compreensão de tabelas e gráficos como uma habilidade fundamental, visto que fornece subsídios para que os sujeitos se posicionem criticamente, interfiram e façam previsões sobre fatos ou fenômenos.

Lahanier-Reuter (2003LAHANIER-REUTER, D. Différents types de tableaux dans l'enseignement des statistiques. Revue de Recherches en Éducation, Spirale, Vol.I, n. 32, p. 143-154, jul/dez. 2003., p. 148, tradução nossa) expõe que as tabelas de dupla entrada são “[…] constituídas pelo cruzamento de duas variáveis informadas. A sua elaboração necessita voltar à tabela inicial de dados e levantamento dos assuntos que apresentam simultaneamente dois valores das variáveis consideradas”. A autora ainda destaca que esse tipo de representação tabular propicia a aferição da independência ou da relação entre duas variáveis.

Uma variável pode ser qualitativa ou quantitativa. Neste trabalho, será dada atenção à variável qualitativa definida por Cazorla, Utsumi e Monteiro (2017CAZORLA, I. et al. (org.). Estatística para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Brasília: Sociedade Brasileira de Educação Matemática - SBEM, 2017. E-book. 122 p., p. 38) como “[…] aquela cujos resultados se enquadram em categorias. Se as categorias assumem algum tipo de ordenação, elas são denominadas de ordinais […]. Caso contrário, são denominadas de nominais”. Na tabela 1 da questão, temos duas variáveis qualitativas: uma ordinal – classe social, variável independente, pois não sofre influência da outra variável; uma nominal – acesso ao Ensino Superior, variável dependente, por ser influenciada pela variável classe social.

Para gerar o argumento estatístico compatível com a realidade brasileira, em relação ao ingresso das diferentes classes sociais no Ensino Superior, era indispensável que a amostra referente à variável independente, a da classe social, fosse tomada individualmente, como uma totalidade (100%). Se as classes fossem analisadas dessa forma, os resultados seriam os presentes na tabela abaixo, em que se considerou cada classe e se manteve a coluna dos totais, mesmo que ela não expressasse a soma das porcentagens em cada linha, visto ser incorreta a soma de porcentagens entre diferentes amostras:

Observou-se que apenas S2 tentou estabelecer relação entre as variáveis dependente e independente; os demais, mesmo os que executaram corretamente as porcentagens, apenas converteram o valor absoluto dos números de cada célula da tabela original, chegando a respostas como a apresentada na Figura 2a, acima. Na figura a seguir, a resolução de S2:

Figura 4
Resolução do item a pelo S2

Percebe-se que o licenciando considerou cada classe em si, pois elas perfazem, individualmente, os 100%. Acrescente-se a sua percepção a respeito da impossibilidade de registrar na linha dos totais os 100% de cada classe e compor a totalidade de cada amostra. Dessa forma, ele optou por expressar os totais de cada classe fora da tabela, de modo a manter os 100% finais. Necessário ressaltar ainda que S2 cometeu equívocos nos cálculos referentes à classe alta. Em seus rascunhos, nota-se que foi apenas em relação a essa classe que ele não efetuou cálculo escrito, talvez optando pelo cálculo mental, o que pode ser a origem da falha.

A interpretação da tabela mostra que S2 tem conhecimento estatístico em nível mais elevado que o restante do grupo, pois demonstrou estabelecer relação entre os dados estatísticos e a realidade brasileira, conforme será discutido adiante ao tratar do conhecimento de contexto. A análise das resoluções correspondentes ao item b revelou o domínio dos licenciandos em relação à construção de gráficos e escolha de sua pertinência aos dados apresentados.

Essencialmente, a partir deste item foi analisada a transposição dos resultados tabulares para o gráfico. O gráfico é um tipo de representação que pode propiciar aos indivíduos a compreensão e sistematização de dados, constituindo-se, assim, um “[…] meio para se comunicar e classificar dados” (CURCIO, 1989CURCIO, F. R. Developing Graph Comprehension. New York: National Council of Teachers of Mathemathics, 1989., p. 1)

Os gráficos são classificados por Cazorla et. al. (2017)CAZORLA, I. et al. (org.). Estatística para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Brasília: Sociedade Brasileira de Educação Matemática - SBEM, 2017. E-book. 122 p. como: gráfico de colunas ou barras; gráfico de barras duplas; gráfico de setores e o gráfico de linhas. Na questão proposta, os estudantes poderiam optar por um dos suportes apresentados na Figura 5, acima. O suporte à esquerda poderia propiciar a escolha do sujeito entre a construção do gráfico de barras/colunas, pictórico ou de linha, enquanto o suporte da direita conduziria necessariamente à realização de gráfico de setores. Esses suportes foram disponibilizados propositalmente a fim de averiguar se os licenciandos poderiam estabelecer as relações necessárias entre as variáveis na representação gráfica. De acordo com Cazorla et al. (2021)CAZORLA, I.; UTSUMI, M.; MONTEIRO, C. Dos dados brutos à informação: o papel das técnicas transnumerativas no ensino de Estatística. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 23, n. 4, p. 109- 139, 2021. DOI 10.23925/983-3156.
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, é inadequada a representação de duas variáveis qualitativas em um único gráfico de setores.

Figura 5
Item b do instrumento diagnóstico

Dos onze sujeitos, seis fizeram uso de gráfico de setores (S1, S5, S7, S8, S9 e S10). Seis utilizaram a malha quadriculada, dos quais cinco traçaram gráfico de colunas/barras (S1, S2, S3, S6 e S11) e um construiu gráfico de linhas (S4). Observe-se que S1 utilizou os dois suportes. A opção majoritária pelo gráfico de setores pode ter decorrido do fato de a questão anterior já trazer a discussão de porcentagem, conhecimento necessário para elaboração da representação.

Os gráficos precisam apresentar componentes que comuniquem os dados, de modo sintético, ajudando o leitor a compreender as relações entre eles. Sendo assim, para que sejam uma representação eficaz, os gráficos precisam conter elementos formais como: título, legenda, fonte, unidades de medida, escala e marcações de referências (FRIEL; CURCIO; BRIGHT, 2001FRIEL, S. N.; CURCIO, F. R.; BRIGHT, G. W. Making sense of graphs: critical factors influencing comprehension and instructional implications. Journal for Research in Mathematics Education, New York, v. 32, p.124-158, Mar. 2001.). Assim, traz-se à luz a afirmação dos autores de que os gráficos mostram competência dos indivíduos em compreender e significar estruturas construídas por si ou por outrem.

Com relação aos sujeitos que optaram pela construção do gráfico de barras, percebeuse que S2 e S11 conseguiram representar as variáveis e respectivas categorias, de acordo com o que haviam produzido na tabela, na qual foram convertidos os dados em porcentagem. Permitiam, assim, que fosse percebida a relação que estabeleceram entre classes sociais e acesso ao Ensino Superior. Os gráficos construídos pelos outros sujeitos não permitiram tal visualização, pois S3 representou apenas o percentual de pessoas por cada classe, enquanto S6 representou a variável classe social, nas categorias baixa, média e alta e quantificou a variável acesso apenas na categoria sim, sem expressar categoria não acesso.

Observando-se os aspectos técnicos de construção dos gráficos, identificou-se que nenhum dos sujeitos que elaborou gráfico de coluna (S2, S3, S6 e S11) apresentou título e fonte. Apenas S2 e S11 apresentaram legenda, elemento necessário para a compreensão do gráfico.

As unidades de medidas, elemento que identifica as variáveis no gráfico, foram apresentadas por todos os sujeitos. Tal representação é fundamental para identificar as características do fenômeno que está sendo observado. S2, S3 e S6 expressaram, como unidade de medida, apenas as classes sociais, com as categorias alta, média e baixa sem considerar o acesso como uma variável a ser registrada no gráfico (Figura 6a). Já S11 utilizou as unidades de medida referentes às variáveis, classes sociais e acesso, entretanto a colocação de tais unidades foi feita erroneamente na parte superior do gráfico (Figura 6b).

Figura 6
Unidades de medida apresentadas

A escala e as marcações de referência são elementos que apresentam subsídios para a identificação das quantidades das variáveis consideradas. S11 expressou a escala como parte da legenda, sem utilizar as devidas marcações no eixo vertical do gráfico. Tal resolução pode ser vista na Figura 6b, apresentada acima. S2, por sua vez, expressou a escala e as marcações de referência, entretanto, não observou a exata colocação destas últimas, o que prejudicou a leitura dos dados quantitativos, no gráfico construído (Figura 7). S3 e S6 não expressaram esses elementos do gráfico.

Figura 7
Gráfico feito pelo S2

Embora a representação dos dados no gráfico de setores não seja adequada para a situação, esse foi o suporte escolhido pela maioria dos participantes (S1, S5, S7, S8, S9, S10, S11). Conforme Cazorla et al. (2021)CAZORLA, I.; UTSUMI, M.; MONTEIRO, C. Dos dados brutos à informação: o papel das técnicas transnumerativas no ensino de Estatística. Educação Matemática Pesquisa, São Paulo, v. 23, n. 4, p. 109- 139, 2021. DOI 10.23925/983-3156.
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, tal gráfico adequa-se à representação de apenas uma variável. Para o caso, seriam necessários dois suportes, o que não foi oferecido na questão. Ao se apresentarem duas variáveis no mesmo gráfico de setores, as relações não se estabelecem.

Apesar de já ter apresentado os dados em um gráfico de colunas duplas, S1 também utilizou o gráfico de setores. Nessa última representação, o participante dispôs as variáveis classe social e acesso, com suas respectivas categorias, acrescentando os percentuais em cada setor do gráfico. S5, S7 e S9 representaram exclusivamente a variável classe social e suas categorias, também expressando os percentuais em cada setor; S11, por sua vez, representou as classes sociais, mas não explicitou os percentuais; finalmente S8 e S10 representaram apenas dois setores, não sendo possível afirmar qual variável e quais categorias foram representadas. Exemplos dessas diferentes formas de representar encontram-se abaixo.

Em relação aos aspectos técnicos de construção de gráficos, observa-se na Figura 8 que nenhum dos sujeitos contemplou os elementos formais - título e fonte. A legenda foi usada apenas por S1, embora de maneira incorreta, visto que não contribuiu para o entendimento dos dados do gráfico.

Figura 8
Representações no gráfico de setores

O gráfico de linha foi adotado por S6. Trata-se também de um tipo inadequado aos dados que estavam sendo representados, uma vez que tal gráfico se adequa a “[…] variáveis contínuas e temporal, pois possibilita a observação do comportamento dos dados no decorrer do tempo […]” (SANTANA; LOBO; ALMEIDA, 2020SANTANA, E.; LOBO, W.; ALMEIDA, L. Texto Base de Estatística. Curso de Extensão Matemática #COmVIDa, (Material Didático) Ilheus, Universidade Estadual de Santa Cruz, 2020., p. 16). Os dados apresentados na questão em análise retratam um momento específico e não uma linha histórica. Dessa forma, o gráfico além de construído com números equivocados, ainda não se adequa à situação.

Figura 9
Representação no gráfico de linhas (S6)

Como pode ser observado na figura acima, S6 considerou a variável acesso ao Ensino Superior e suas categorias – sim; não –, tratando como categoria o total de sujeitos. Para a representação dos dados no gráfico, expressaram-se apenas as quantidades postas na tabela de referência do item 1; às quais foi acrescentado o símbolo de porcentagem e procedida organização em ordem crescente.

Conforme discutido, os sujeitos da pesquisa apresentaram níveis distintos de conhecimento estatístico. Nenhum deles exibiu pleno êxito na resolução das questões que envolviam conceitos estatísticos, mas em cada uma delas foi possível destacar indícios desse elemento do letramento estatístico. Pode-se inferir que S1, S2 e S11 demonstraram capacidade de interpretar criticamente os dados, escolher a representação adequada, expor as informações e comunicá-las, respeitando as características do gráfico escolhido.

Gal (2002GAL, I. Adult's Literacy: Meanigns, Components, Responsibilities. International Statistical Review, Haifa, v. 70, n. 1, p. 1-25, 2002., p. 9), em seus estudos sobre letramento estatístico, observa que “Um prérequisito óbvio para compreender e interpretar mensagens estatísticas é o conhecimento de conceitos e procedimentos estatísticos e probabilísticos básicos […]”. Embora os sujeitos pesquisados não tenham demonstrado plenitude nesses conhecimentos, percebe-se que já trilharam parte desse caminho.

É necessário, entretanto, ressaltar a permanência de lacunas relativas aos elementos formais na elaboração dos gráficos, tal como foi registrado em pesquisas de Oliveira (2016)OLIVEIRA, S. A. P. Educação Estatística em escolas do povo Xukuru do Ororubá. 2016. 152f. Dissertação (Mestrado Acadêmico em Educação Matemática e Tecnológica) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2016. e Veras (2010)VERAS, C. M. A estatística nas séries iniciais: uma experiência de formação com um grupo colaborativo com professores polivalentes. 2010. 137f. Dissertação (Mestrado Profissional em Ensino de Matemática) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.. Os autores, ao proporem a construção de gráficos, constataram que os docentes tinham dificuldade em utilizar elementos fundamentais na estrutura da representação gráfica, tais como eixo, escalas e legendas.

Para identificar o conhecimento de contexto, é necessário voltarmos o olhar para a compreensão dos participantes da pesquisa sobre a origem dos dados apresentados na tabela de referência. Percebe-se que o número de entrevistados em cada classe social não foi o mesmo e, desta forma, os licenciandos necessitavam considerar as categorias dessa variável individualmente, para que os resultados fossem fidedignos.

O indivíduo S2 demonstrou conhecimento de contexto ao perceber que as categorias da variável classe social – baixa, média e alta – eram diferentes e que tal informação deveria ser considerada no cálculo do percentual de ingressantes/não ingressantes de cada classe social. Assim, chegou à distribuição: 10% de acesso da classe baixa, 43% da classe média e 75% da classe alta.

Por outro lado, seis licenciandos (S1, S3, S5, S7, S9 e S11) calcularam a porcentagem considerando o todo da amostra (1000 pessoas), chegando aos resultados: 5% das pessoas da classe baixa, 15% da classe média e 10% da classe alta têm acesso ao Ensino Superior.

É importante salientar, com base em Batanero (2002BATANERO, C. Los retos de la cultura estadística. In: JORNADAS INTERAMERICANAS DE ENSEÑANZA DE LA ESTADÍSTICA, 2002, Buenos Aires. Actas […] Buenos Aires: Conferência inaugural, 2002. p. 1-11., p. 11), que “Dados não são números, são números em um contexto”. Isto posto, conclui-se que o trabalho com os dados executados pelos seis sujeitos mencionados os levou à percepção de que existe uma proximidade de acesso à universidade entre as classes (5%, 15% e 10%), fato que não condiz com a realidade brasileira. Por outro lado, S2 conseguiu demonstrar a disparidade de acesso à universidade que existe entre as classes sociais (10%, 43% e 75%), pois foi capaz de compreender que, para chegar à conclusão deste problema específico, deveria considerar o contexto no qual os dados foram produzidos.

Em relação a S4, S8 e S10, não foi possível analisar indícios de conhecimento de contexto, visto que, como já identificado, não apresentaram conhecimento matemático analisado na transformação dos números absolutos em percentuais. Tais participantes equivocaram-se no preenchimento da tabela e não consideraram nem o número total da amostra e nem os dados referentes às categorias da variável classe social.

Caso se considere que a estatística é uma ciência empírica, que tem como principal característica a análise de dados no contexto onde são produzidos (BATANERO, 2002BATANERO, C. Los retos de la cultura estadística. In: JORNADAS INTERAMERICANAS DE ENSEÑANZA DE LA ESTADÍSTICA, 2002, Buenos Aires. Actas […] Buenos Aires: Conferência inaugural, 2002. p. 1-11.; CAZORLA et al., 2017CAZORLA, I. et al. (org.). Estatística para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Brasília: Sociedade Brasileira de Educação Matemática - SBEM, 2017. E-book. 122 p.), a falta desse conhecimento pode ser prejudicial a esses licenciandos futuramente, na prática docente, tornando-se, portanto, um desafio a ser enfrentado para que essa unidade temática seja proposta na perspectiva investigativa.

O item c da questão em análise requeria o posicionamento crítico dos estudantes frente ao quadro discutido. Era necessário, entretanto, que as informações estatísticas fossem consideradas na argumentação, assim como o contexto no qual os dados foram produzidos e o conhecimento de mundo do sujeito em relação à pesquisa realizada – acesso dos estudantes ao Ensino Superior (Figura 10).

Figura 10
Item c do instrumento diagnóstico

A desigualdade social e a diversidade de oportunidades no ingresso às universidades entre as classes é assunto amplamente abordado na mídia. O conhecimento desse fato demonstraria que os sujeitos apresentavam indícios de letramento. Diante dessa consideração, observou-se que dos 11 licenciandos, três demonstraram indícios de letramento (S2, S7 e S11), uma vez que relacionaram a influência da classe social com o acesso ao Ensino Superior. A seguir, exemplos de argumentação apresentadas por esses sujeitos, no instrumental aplicado (2019):

Quanto maior é o nível social das pessoas, mais elas têm acesso ao ensino superior e, consequentemente, quanto menor é a classe social, o acesso é menor (S2).

Há uma grande variância na classe baixa, onde poucos têm acesso. Na média, nem tanto, mas ainda o aspecto negativo ganha. Quanto à alta, percebemos que a maioria tem acesso ao ensino superior (S11).

Percebe-se que esses sujeitos, além de buscar argumentação no conhecimento apreendido na vivência social, ou seja, no seu letramento, usam os dados expostos nas tabelas e gráficos, para dar sustentação às suas respostas. S2, conforme apresentado, demonstrou conhecimento de contexto, ao considerar os dados de cada categoria, e utilizou esses resultados para dissertar sobre o acesso ao Ensino Superior. S11 utiliza os resultados apresentados no gráfico de coluna, por ele elaborado, para mostrar a “variância” entre as categorias “acesso” e “não acesso”. S7 considera a categoria acesso ao Ensino Superior, na tabela elaborada, para justificar que as classes média e alta têm mais acesso ao Ensino Superior, se comparado com o acesso da classe baixa. Ao fazerem essas considerações, os três sujeitos conseguem utilizar os dados para justificar suas respostas e apresentam argumentação baseada em números e percepção da realidade ao seu redor.

Os indivíduos S1, S6 e S9, embora tenham identificado a relação entre classe social e acesso ao Ensino Superior, considerando que quanto mais baixa a classe social menor o acesso à universidade, não dispuseram dos dados estatísticos para justificar suas respostas, conforme exemplo a seguir, extraídos do instrumento aplicado (2019).

O acesso ao ensino superior é menor na classe social baixa e maior na classe alta (S9).

O excerto acima demonstra que esse sujeito compreendeu que o acesso ao Ensino Superior é maior na classe alta, porém ao fazer a análise da tabela, construída por ele, percebe-se que os resultados não são considerados em sua argumentação, já que em sua representação a classe média é a que possui o maior acesso (Figura 11).

Figura 11
Dados da tabela (S9)

A divergência entre a argumentação e os dados representados pode ser observada nos registros dos três sujeitos (S1, S6 e S9), fato que nos levou a considerar que o letramento não está consolidado.

Os sujeitos (S4, S5 e S10) demonstraram não conhecer a realidade brasileira em relação às diferenças de oportunidades de acesso à universidade entre as classes sociais. Ao mesmo tempo, não utilizam os dados estatísticos para sustentar a argumentação, conforme respostas concedidas através do instrumento (2019).

Existe mais gente da classe baixa [que tem acesso à universidade], talvez por ser a única saída para eles de terem um emprego melhor ou uma expectativa de vida melhor (S5).

A classe que possui baixa renda aparentemente apresenta mais qualidade em termos de acesso dos alunos ao nível superior (S10).

O indivíduo S5 destaca a necessidade da classe social baixa ingressar no mercado de trabalho como justificativa para a sua afirmação de que são os membros desta classe os que têm maior acesso. S10, por sua vez, argumenta em termos de qualidade das pessoas de baixa renda, sem deixar claro ao que se refere. Nesses casos, evidenciou-se a ausência de letramento, visto que os dados estatísticos não são levados em consideração na argumentação e por exibirem falta de conhecimento de mundo.

Não foi possível identificar o letramento nos licenciandos S3 e S8, visto que não apresentaram respostas para a questão.

No quadro abaixo, consta a síntese dos elementos do componente cognitivo aqui analisados, apresentados pelos sujeitos da pesquisa, no momento de resposta ao instrumento diagnóstico. As células com o “x” sinalizam os diferentes conhecimentos já desenvolvidos por cada sujeito.

Evidentemente, tais conhecimentos foram detectados aqui a partir da análise de apenas uma atividade, fato que não assegura que tenham sido efetivamente consolidados pelos participantes da pesquisa, registrando, entretanto, indícios de tal desenvolvimento.

5 Considerações finais

A análise acerca de indícios de letramento estatístico, manifestos por licenciandos, revelou que o grupo detém lacunas de formação que necessitam ser superadas, quer para a própria formação do sujeito, quer para prepará-lo para a docência. Considerando-se que os sujeitos analisados se encontram nos últimos semestres de formação na graduação, percebe-se que os cursos não conseguiram apoiar esses alunos no desenvolvimento de elementos do componente cognitivo, referente ao letramento estatístico.

No que se refere a tais elementos, foi percebido melhor desempenho do grupo no conhecimento matemático. Tal conhecimento aqui está restrito ao domínio da porcentagem. Também não se colocou em discussão as estratégias de tratamento desse conceito, de modo que não se pode afirmar sobre a possibilidade de os futuros docentes estarem aptos para a mediação no desenvolvimento desse ou de outros conceitos matemáticos, junto aos seus alunos.

Ao considerar o conhecimento estatístico, isto é, ao domínio dos conceitos estatísticos, é percebida fragilidade, diante do desempenho do grupo. Falhas na construção de ferramentas básicas de organização dos dados, como tabelas e gráficos aqui analisados, indicam desconhecimento por parte dos sujeitos dessas representações gráficas. A função dessas ferramentas também fica comprometida pela elisão das informações e sua estruturação. A não compreensão de conceitos estatísticos pode acarretar a ausência de sua abordagem em sala de aula ou a abordagem inadequada desses conteúdos, conforme apontado por outras pesquisas.

Com relação ao letramento, que se refere à leitura do mundo a partir das informações estatísticas, observou-se que esse elemento não foi revelado pela maioria dos licenciandos. Percebeu-se que alguns sujeitos identificaram a relação entre classe social e o acesso à universidade, porém não utilizaram dados para comprovar tal percepção. O fato de não demonstrarem domínio no conhecimento estatístico pode ter influenciado na identificação do letramento dos alunos, posto que realizar inferências a partir de representações truncadas pode ter sido um obstáculo para a utilização de dados na sua argumentação.

O conhecimento de contexto foi o elemento no qual se revelaram as maiores lacunas dos licenciandos. Apesar de o instrumento diagnóstico envolver um tema diretamente ligado à vida universitária, que está sendo vivenciada por eles, e ser um assunto amplamente discutido pela mídia, o grupo não conseguiu compreender o contexto no qual a pesquisa estava inserida e não demonstrou estranheza diante dos resultados alcançados.

Se pensarmos que a Educação Estatística passou a integrar os currículos da Educação Básica, desde a década de 1990, e que esses sujeitos vivenciaram todo seu processo de formação dentro dessa perspectiva, pode-se inferir que as determinações normativas não chegaram de fato às salas de aula.

Cada vez mais relevante na sociedade da informação, a Educação Estatística permanece como desafio. Afirma-se que a Estatística é ferramenta indispensável para o desenvolvimento da criticidade e formação cidadã. Realmente, a participação efetiva do cidadão no mundo contemporâneo como um sujeito de direitos está vinculada diretamente à sua relação com as informações e as inferências que faz a partir de dados.

No âmbito escolar, os documentos curriculares propõem que a Estatística assuma a perspectiva investigativa, trazendo para a sala de aula a pesquisa como fonte de construção de conhecimentos. Para tanto, esse trabalho exige letramento estatístico da parte dos docentes. Portanto, destaca-se a necessidade de aprofundamento de conceitos estatísticos na formação inicial dos futuros professores, dentro da perspectiva de letramento.

Finalmente, tem-se que considerar que indivíduos iletrados estatisticamente não estão preparados para desenvolver o ensino de Estatística. Quando se agrega a essa demanda a perspectiva investigativa, esse quadro se agrava, uma vez que exigirá competência na realização das fases da pesquisa científica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    12 Jul 2021
  • Aceito
    21 Abr 2022
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