Resumos
O pensamento de W. Bion é apresentado. Considerando vários conceitos, suas articulações e implicações no quadro referencial da Psicanálise - Realidade, Verdade, Conhecimento, Pensamento, entre outros - a autora destaca a noção de "Zero da experiência".
Psicanálise; Realidade; Verdade; Conhecimento; Pensamento; Bion, Wilfred Ruprecht
The thought of W. Bion is presented. Considering several concepts, the autor articulates their implications in the referencial status of Psychanalysis - Reality, Truth, Knowledge, Thought within others - and highlihgts the notion of "Zero of experience".
Psychoanalysis; Reality; Truth; Awareness; Thinking; Bion, Wilfred Ruprecht
BION: O ZERO DA EXPERIÊNCIA1 1 Texto baseado na Tese de Doutorado Pensando o pensar com pensamentos de W. R. Bion, defendida no Instituto de Psicologia da USP em 05/12/85 e publicada com o título Pensando o pensar com W. R. Bion pela editora MG,1988
Maria Emilia Lino Silva
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
O pensamento de W. Bion é apresentado. Considerando vários conceitos, suas articulações e implicações no quadro referencial da Psicanálise - Realidade, Verdade, Conhecimento, Pensamento, entre outros - a autora destaca a noção de "Zero da experiência".
Descritores: Psicanálise. Realidade. Verdade. Conhecimento. Pensamento. Bion, Wilfred Ruprecht, 1897-1979.
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?
Álvaro de Campos / Fernando Pessoa
Transformações e Realidade
E stou agora escrevendo sozinha numa sala silenciosa. Se, no entanto, ligar o rádio ou a televisão, a sala será inundada por sons e imagens. Então este espaço vazio que me circunda só parece vazio porque não consigo captar, como os referidos aparelhos, as realidades que o percorrem. Quantos outros instrumentos poderiam ser fabricados para captar que outras faixas de fenômenos? Do mesmo modo, os lapsos, sonhos e atos falhos revelam uma dimensão que, ao mesmo tempo, nos habita e nos escapa. Como diz Groddeck (1984):
Acredito que o homem é vivido por algo desconhecido. Existe nele um "Isso", uma espécie de fenômeno que comanda tudo que ele faz e tudo que lhe acontece. A frase "eu vivo ..." é verdadeira apenas em parte; ela expressa apenas uma pequena parte dessa verdade fundamental: o ser humano é vivido pelo Isso. (p.9).
Freud nos fala do "aparelho da alma" que construímos para captar os mundos externo e interno. Como os aparelhos eletrônicos e científicos, que têm por função prolongar as capacidades de nosso aparelho mental, este também transforma o que chamamos de energia dos mundos até reduzi-los à freqüência e intensidade que se possa perceber. Além dessa redução, ocorrem ainda as deformações de desejo e de memória.
Assim, ver uma árvore é fotografá-la, selecionar um ângulo, uma dada iluminação, um recorte no ambiente. É perder todas as outras informações possíveis. Mesmo uma sucessão exaustiva dessas "fotos", mesmo a soma de todos os nossos sentidos - a integral deles - fica a dever ao "é" da árvore.
O saber sobre alguma coisa constitui, pois, uma interpretação pessoal sobre a coisa, supõe uma transformação equivalente a do artista quando pinta. Também na prática psicanalítica uma interpretação consiste numa transformação, em que uma experiência vivida de uma maneira é considerada segundo um outro registro.
A realidade é, pois, incognoscível. Tem-se notícias dela, mas não se a conhece. Tais notícias parecem-se a fotos ou quadros de uma paisagem: por mais que se lhe assemelhem, diferem sempre da paisagem em si. Esta, jamais se chega a conhecer, por mais que se a contemple "in loco". Conta-se apenas com notícias dela, trazidas pela atenção e pela sensibilidade. Estes, como os repórteres ou como os artistas, revelam-se seletivos e deformadores. Não fornecem fatos - porque não podem - mas uma interpretação dos fatos.
Um "fato" é, pois, essa "realidade" que, embora se possa rotular como existente, matéria prima para a vida mental, não pode, entretanto, ser percebida diretamente pelos processos habituais de conhecimento, mas por processos de transformação que o tornam captável. A dificuldade de apreensão da "coisa em si" ou da "realidade última" conduz à dificuldade em pensá-la, até mesmo em nomeá-la.
O conceito de realidade acarreta dificuldades muito grandes. Mesmo para Kant, que tratava do sujeito puro e do conhecimento transcendental, prévio a toda experiência, tal complexidade não lhe permitiu uma formulação única:
Na época crítica parece evidente que há dois usos do termo realidade. Um em sua significação modal, quando fala da realidade empírica (do espaço e do tempo), ou de realidade subjetiva do ideal transcendental, e nestes casos o termo pertence ao âmbito da faticidade, validez fática ou verdade. O outro quando se refere à categoria, e é uma função sintética de uma multiplicidade, e neste caso está diretamente ligado à tradição: realidade = coisicidade. Quer dizer, referida ao âmbito de ser essencial, não existencial; adquire porém um novo significado como categoria, como função sintética -constitutiva do objeto. (Belsunge, 1979, p.11).
Bion, contudo, não apenas trabalha com o que Kant chama de sujeito empírico, mas o focaliza dentro do quadro referencial da psicanálise, incluindo a noção de inconsciente - contexto em que toda experiência consiste numa construção em parceria, todo conhecimento se demonstra um vínculo entre o sujeito e o objeto, a razão pura não existe, nem o objeto puro. De modo que se tornou impossível conhecer a realidade (Bion, 1984).
Passando, no entanto, do plano individual para o coletivo do conhecimento humano, aparece um consenso, um processo comum levando a resultados semelhantes, garantindo uma certa adequação do construído com seu referencial ou ponto de partida. A mente humana precisa desse aval, sem o qual torna-se presa da angústia do desconhecido, acarretando sentimentos de perigo iminente, da incapacidade para a sobrevivência psíquica. Para acontecer esta concordância é preciso que haja algo anterior à construção, à qual esta se adapte, como diz Brügger em seu dicionário de filosofia: "A coisa, o ente, tal como existe independentemente de nosso conhecimento." (1969, p.89).
Nesta "coisa em si" Bion (1973, p.97) diz estar a realidade última incognoscível. Se a realidade absoluta reside em qualquer e todo objeto, material ou imaterial, a impossibilidade de conhecer a Verdade demonstra-se inerente a todos os domínios do conhecimento humano. Naqueles, porém, que tratam mais especificamente do inanimado, tal incapacidade pode passar quase desapercebida. O mesmo não acontece em psicanálise, que trabalha justamente com o imaterial, e exatamente quando o enfoque científico, a objetividade e consistência da atividade mais se fazem exigir.
Do ponto de vista da Psicanálise, o que é um fato? Aquilo que observadores externos podem constatar (Débora foi operada aos cinco anos de idade no aparelho urinário) ou aquilo que é vivenciado pelo sujeito ao experienciar (Débora sentiu tal cirurgia como significando ser ela estragada, e tendo por objetivo devolvê-la morta, mas apresentável)?
A psicanálise lida primariamente com a intersubjetividade, o afeto, a imagem-ação. O relacionamento entre analista e analisando pode parecer algo concreto e até mensurável a outros campos da psicologia. Mas a psicanálise lida com fenômenos tais como a transferência, identificação projetiva e alucinose: "Acredito que um sentimento é uma das poucas coisas que os analistas têm o luxo de serem capazes de encarar como fatos." (Bion, 1985, p.136).
Nem mesmo o relacionamento humano merece tal estatuto: "Suporei que o relacionamento é uma conjunção constante, isto é, que o relacionamento é um elemento na mente do observador e pode ou não ter uma contraparte na realidade." (Bion, 1984, p.86-7).
De modo que a tarefa metodológica que se coloca para a Psicanálise não está em fundamentá-la segundo os procedimentos positivistas, adequados para as ciências da natureza, mas ao desenvolvimento de uma disciplina adaptada ao seu objeto. Este não se apresenta sensorialmente, devendo, ao contrário, ser "intuído" - ou seja, captado através de outro canal que não os órgãos sensoriais. A tal "sentido psíquico" Bion (1973) denomina intuição, diferenciando sua atividade do conhecimento, ligado aos órgãos dos sentidos.
Um método de observação do que não emana forma, cor, cheiro, som, tato ou gosto; uma teoria sobre algo que não pode ser conhecido; uma técnica de trabalho que opera no escuro, ocultando paciente e operador - eis a Psicanálise. E não poderia ser de outra forma, ou estaria reduzindo a realidade humana a qualquer outra coisa que não ela mesma:
De modo sintético: há um inexaurível fundo de ignorância sobre o qual nos baseamos - e isto é tudo que temos para nos basear. Mas tenhamos a esperança de que existe uma coisa, tal como a mente ou uma personalidade ou um caráter, e que nós não estejamos apenas falando sobre coisa nenhuma. (Bion, 1985, p.137).
Zero
Bion (1973) propõe então que seja dado um nome ao que não é possível conhecer, empregando um termo derivado da matemática - o Zero. Na verdade, o signo que emprega é "O", podendo ser lido como letra ou algarismo: em inglês, o som é o mesmo. Pessoalmente eu falo pouco no "oh!" da experiência, preferindo falar no "0" da experiência, pelos motivos que estão sendo expostos aqui. Neste último termo, zero, pelo menos três linhas de significação se entrecruzam. As associações mais óbvias são com o nada, ou com a ausência, o que leva a pensar em frustração e sua importância para o pensamento.
Entretanto, como intermediário entre os números positivos e negativos, ou como o marco da interseção entre abcissa e ordenada nos eixos cartesianos, sugere a origem, a matriz de onde os números podem surgir. Deste modo, o Zero pode estar associado psicologicamente ao conceito aristotélico de potência: é preciso que se atualize em um número para que seja possível percebê-lo.
Tal "penumbra de associações" pode ser ampliada, aprofundada. Seu conjunto revela uma dissonância rica em significações - Nada, Origem, Potência - que excede cada uma delas, que escapa a uma definição, a uma identificação única. E exatamente essa multiplicidade que se recusa a uma simplificação fornece uma tênue imagem do que seja a experiência do 0: o inefável que escapa a toda e qualquer definição, apreensão, limite. Não se pode conhecer o Zero, só se pode vivê-lo.
Incognoscível, onipresente, o Zero constitui a Verdade de cada momento. Os processos habituais de conhecimento não conseguem chegar até lá. De fato, o Zero é um TODO cuja expressão global escapa a nossa percepção analítica. Dele emanam, contudo, aspectos que evoluem até se tornarem captáveis. Torna-se possível, deste modo, conhecer tais aspectos evoluídos de 0: suas expressões numéricas.
Não se pode descrever e muito menos classificar o contato direto, sempre inefável e inédito. Já os compromissos com os aspectos evoluídos de 0 - as transformações para torná-los inteligíveis - podem sofrer generalizações, descrições e tipologias.
Pode-se perguntar porque a representação do TODO é 0, e não 1. Acontece que o 1 já é um aspecto, uma manifestação. Digamos que o 1 seja o 0 tornado ato, para usar a linguagem aristotélica: a Unidade evoluída, captável e atualizada. O 0 lhe é anterior, representa um estado existente mas não manifesto: potência. (Potência em relação à percepção possível em que pode se "atualizar"; enquanto "coisa em si" já é um ato.) Por isso não pode ser conhecido, só admitindo um contato direto, anterior ao conhecimento sensório, implicando um estado negativo de mente ligado à intuição e não aos sentidos ou ao raciocínio.
Leva a conceber um in-consciente análogo ao in-manifesto, em que as coisas não se encontram nem irremediavelmente em estado de caos, nem logicamente ordenadas numa linguagem, mas em um estado potencial carregado de vitalidade, podendo se expressar em formas mais ou menos evoluídas, como há sonhos mais integrados e nítidos ou ao contrário. Pois seria o reino da espontaneidade, contrastando com as regras com que a razão determinista pretende enquadrá-lo.
Assim como, num gráfico cartesiano, um ponto se refere tanto a um valor de abcissa como a um valor da ordenada, também o número-evolução-de-zero se refere a um aspecto do objeto, assim como a um sentimento do observador.
Esta co-participação, esta intimidade acaba por se tornar ambígua, pois o ser humano requer certa distância para o conhecimento, que então é artificialmente forjada. Não se trata, pois, de uma incapacidade humana para o conhecimento da Verdade, mas de um fato histórico: até o presente, o ser humano só tem desenvolvido procedimentos que são inadequados para 0, especializando-se na captação cada vez mais eficiente de suas evoluções. Por isso Bion (1975) considera a mente humana em fase ainda embrionária, e uma missão de toda a nossa raça o seu desenvolvimento, presumivelmente até a possibilidade de captação de 0.
"Saber sobre" e "Transformar"
Ver uma árvore é fotografá-la, é selecionar um ângulo, uma dada iluminação, um recorte no ambiente. É perder todas as outras informações possíveis. Mesmo uma sucessão exaustiva dessas "fotos", mesmo a soma de todos os nossos sentidos - a integral deles - fica a dever ao "é" da árvore.
O saber sobre alguma coisa constitui, pois, uma interpretação pessoal sobre essa coisa, supõe uma transformação equivalente à do artista quando pinta. Também na prática psicanalítica uma interpretação é uma transformação, em que uma experiência vivida de uma maneira é considerada segundo um outro registro.
Foi dito que estas transformações eqüivalem às do artista tanto porque muda a forma - transforma, deforma - quanto porque conserva algumas características invariantes, isto é, deixa certos elementos inalterados, permitindo-se o reconhecimento. Na arte, a natureza, número e condição das invariantes alteram-se conforme o artista, o grupo e a época a que pertence. Diz-se, assim, que em pintura é possível distinguir várias escolas de transformação, como a clássica, a impressionista, a dadaísta e muitas outras.
Independente do domínio considerado, qualquer ciclo de transformação tem como ponto de partida o 0. Este não pode ser apreendido em sua vastidão, complexidade e caráter específico. Mas alguns elementos da experiência apresentam-se em condições de serem captados, unidos e articulados de modo a constituir uma "conjunção constante", ou um número.
Já este delineamento, em si, constitui uma forma de saturar em certa medida o insaturável, apresentando-se, pois, como uma hipótese definitória provisória, devendo ser submetida a investigações posteriores. Especialmente deformador é o delineamento que se baseia numa explicação linear - uma forma de imposição de um sentido a uma conjunção constante em si fortuita e sem significado.
Também os vínculos - seja amor, ódio ou conhecimento - possuem uma característica de incondicionalidade que tende a saturar previamente, e por isso não se prestam ao contato direto requerido por 0. Demonstram-se, antes, processos defensivos a um tal contato. O resultado desses vínculos, estabelecidos com aspectos evoluídos de 0, caracteriza-se pela constrição imposta por sua relação com os sentidos. Por mais que sejam compensadas tais saturações não deixam de ser o que são: limites, obstáculos, mediações.
Embora se possa crer que o contato emocional seja mais "verdadeiro" ou "inteiro" que o racional, Bion (1984) coloca o amor, o ódio e o conhecimento sob o mesmo rótulo: vínculos. A idéia de vínculo sugere dualidade e portanto distância, e nesse sentido constituem-se defesas ao contato direto, à comunhão: o "objeto amado" (ou odiado, ou conhecido) apresenta-se com uma verdade que ultrapassa a vivência presente com ele. E isso vale mesmo quando o "objeto" em questão é a própria realidade psíquica.
O resultado de uma transformação pelo pensar é um conhecimento. Resíduo de uma atividade, não se trata porém de uma "coisa" a ser possuída e armazenada. Antes de tudo, é a expressão de um vínculo entre um sujeito e o objeto de conhecimento, entre a pré-concepção e a realização, entre a experiência do "é" e a do "não é".
O modo habitual de conhecer é pois uma forma de relação: o vínculo C. Ao mesmo tempo que se trata de uma ligação, supõe também uma separação: sujeito e objeto. O produto desta dupla em ação é um conhecimento sobre algo, geralmente chamado objeto. Entre sujeito e objeto há um mediador: o aparelho sensório. Ou seus derivados: as lembranças e os desejos. Todos estes - sentimentos, memórias, desejos, conhecimentos - funcionam como uma ponte ligando/separando sujeito e objeto. Trata-se, portanto, de um vínculo indireto, mediado: um compromisso entre dois mundos.
Melhor dizendo, o mundo conhecido é uma "criação" em que concorrem dois "autores": a pré-concepção e a realização. E o que vem a ser realização - a contribuição do "mundo externo", da "realidade" - que satisfaz este continente à procura de um contido, a pré-concepção?
Não é, por certo, a realidade mesma - esta é incognoscível, pois nossos processos de apreensão não conseguem tocá-la: constituem-se em vínculos, em compromissos. O que conseguimos conceber como realidade está longe de se aproximar da verdade dos fatos. Trata-se, quando muito, de uma "realização": isto é, da ação de tornar real, confirmando, con-sentindo (pelo sentido comum) algo que afinal se mostra impossível de conhecer.
Esta realização consiste, pois, numa transformação. A ação de transformar a realidade informe, caótica, em uma forma, isto é, em algo que pode ser relacionado com um sentido.
O sentido impresso à realidade varia muito conforme as pré-concepções. Modificando tais expectativas, ou o ponto de observação, as conclusões sobre o que seja a verdade podem também variar, como num processo terapêutico, em que inclusive o passado pode ser "recuperado", assim como suas projeções no presente e no futuro.
Deste modo, mesmo em suas mais abstratas produções, o conhecimento supõe uma base sensorial que filtra a experiência permitindo e condicionando o vínculo C, que assim possibilita saber sobre o objeto, através de uma cadeia de transformações em que uma experiência é reproduzida em outro ciclo, funcionando como uma pré-concepção para aquisições mais novas, abstratas ou analíticas. Se esta descrição do conhecimento pode soar como uma visão associacionista e mecanicista, deve-se complementá-la com a visão do vínculo 0, que consiste em um contato intuitivo, sem mediações, fragmentações nem distâncias, em que se fica "sendo" 0.
Pode-se considerar, deste modo, uma frustração inerente ao conhecimento, ou ao vínculo C. Trata-se de uma transformação, e não da coisa em si; do produto de um relacionamento e não de um produto concreto; de um ajuste entre sujeito e objeto e não de verdade. Tolerado tudo isto, resulta uma síntese que representa não só essa situação, mas toda uma gama possível de experiências emocionais semelhantes ainda não acontecidas. Ou seja, o conhecimento exerce a função de pré-concepção, devendo se confrontar com realizações efetivas quando e se estas ocorrerem.
Atividade "C"
Como um vínculo, sujeito a frustrações, o conhecimento pode vir a sofrer distorções e, portanto, é possível falar em "conhecimento negativo" ou, como Bion (1975) o faz, em "atividade -C" em contrapartida à "atividade C", ou o conhecer habitual. Talvez o principal aspecto distintivo se refira à questão da alternativa: o que fazer com os elementos alfa, o início da cadeia das transformações.
Se a tolerância à frustração é suficiente, podem servir para a atividade C, que opera as transformações que conduzem ao conhecimento sobre algo. Caso contrário, os elementos alfa servirão para a atividade paralela, -C. Enquanto a atividade C utiliza seus contidos como pré-concepção, devendo ser confirmadas ou não pelo contato com a realidade, na sua contraparte -C a necessidade de comprovação fica substituída pela certeza resultante da manipulação onipotente dos dados, característica da transformação em alucinose.
O caminho inverso - abdicação à certeza alucinatória e passagem à incerteza do conhecimento, sujeito a contínuas verificações - só pode ser percorrido com muita cautela, pela resistência e dor que acarreta.
De modo que a existência de elementos alfa é condição necessária - mas não suficiente - para o contato com a realidade. São matérias-primas que devem ainda ser transformadas, e aqui aparece a outra opção: a do método. Transformações rígidas? projetivas? em alucinose? Novamente o grau de tolerância à frustração surge como um importante determinante do grau de contato com a realidade: a decisão entre investigá-la ou decretá-la onipotentemente.
Tal "decisão" não é, na verdade, intencional. Parece mais uma decorrência do grau de tolerância à frustração. Caso este esteja muito rebaixado, o contato com a realidade pode ser encarado como a própria destruição.
Realidade Última
Na verdade, pouco se sabe sobre a natureza do pensar, ou sobre o como e quando um estímulo experiencial se transmuda em um contido mental. Sabe-se, isto sim, de sua incompletude: uma pré-concepção jamais é perfeitamente saturada, seja devido às limitadas características do aparelho mental, seja devido às propriedades inapreensíveis de 0.
Para esse "estudo impossível" Bion (1984) não encontra subsídios na ciência, nem sequer na matemática. Procura-os, então, na "variedade dodgsoniana"2 1 Texto baseado na Tese de Doutorado Pensando o pensar com pensamentos de W. R. Bion, defendida no Instituto de Psicologia da USP em 05/12/85 e publicada com o título Pensando o pensar com W. R. Bion pela editora MG,1988 desta última, isto é, naquela matemática recarregada da experiência emocional de que foi abstraída, assim como na literatura religiosa. Por tratar da relação do homem com o inefável e o absoluto, as formulações religiosas apresentam pistas que ele não desdenha. Transforma-as, pelo contrário, em formulações de seu domínio: a psicanálise.
A "Realidade última", Deus, aparece como a verdade inalcançável de cada instante: o 0. Entrar em contato direto com a Divindade deixa de ser um êxtase reservado aos místicos: passa a ser uma tarefa para psicanalistas. Enquanto tal .pode ser pensado, pode ser tentada sua transformação em um procedimento. Uma base para isso reside na recomendação de Freud quanto à adoção de uma "atenção flutuante", em que, ao contrário da atenção focalizada, dirigida a algum objetivo pré-determinado, a atividade mental é deixada a seu próprio rumo, mantendo-se deste modo receptiva à emergência de um possível fato selecionado.
O contato direto com 0 também supõe um "estado negativo de mente" em que a atividade positiva de investigação se substitui por uma atividade receptiva de estar de acordo e comunhão, quando se deixa de querer "saber sobre" e se fica "sendo" 0. Neste terreno, a descrição vem melhor realizada por aqueles que proclamam sua possibilidade: os místicos. De modo que a terminologia e o delineamento desse campo de observação, mesmo sendo traduzido por Bion para a psicanálise, encontra-se fartamente colorida pela nomenclatura e características da experiência mística.
Com 0 é possível - dizem os místicos - ter um contato direto, breve e inefável. Em todo caso, o contato direto com 0 leva a Crescimento. O mais comum é um contato mediado - a Aprendizagem. No primeiro caso há uma mudança súbita e radical na continência mental, quando a pessoa se coloca de acordo com 0, deixa-se estar sendo 0. Na segunda, ou seja, no conhecimento mediado, mero acúmulo de habilidades, apenas se "sabe sobre" 0.
Existe ainda uma terceira possibilidade - é possível "criar" o 0, à imagem e semelhança de quem o faz, numa completa independência para com a Verdade: trata-se do sistema de alucinose.
Em relação a estas três possibilidades torna-se plausível estabelecer três sistemas de definição ou de critério para o que seja a realização que satura a pré-concepção.
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Alucinose - Segundo este sistema a pessoa não se preocupa em adequar seus procedimentos mentais com as indicações que pode retirar de suas ações, isto é, não aprende com a experiência. Contenta-se, ao contrário, em tomar as ejeções de sua personalidade como saturações apropriadas provendo-se portanto de um processo vicioso de auto-regulagem que cada vez mais se afasta da realidade. É possível, deste modo, viver no mundo sem assumi-lo, ter um corpo e não habitá-lo, erguer uma barreira quase intransponível aos mais íntimos familiares.
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Forma - No sistema platônico a psique traria de um outro mundo a visão esquecida das Formas Eternas - as Idéias - e um anseio não consciente para voltar a contemplá-las. Os fatos do mundo, como pálidas sombras ou lembretes, ativariam tais predisposições, despertando assim as idéias. Bion (1984) retoma esta formulação e utiliza o termo Forma para demarcar a transformação do acontecimento em representação, em idéia, através de uma determinação mais ou menos rígida, de modo que os elementos alfa se organizassem obedecendo tais moldes. O problema está em certo vício do processo, que atribui significado obedecendo a algo externo e anterior ao acontecido. Trata-se, portanto, de um procedimento que mantém um certo contato com a realidade, mas um contato mediado pela Forma-fôrma. Tais formas se fazem acompanhar de uma "penumbra de associações" que podem impedir ou facilitar o conhecimento. Ou seja, podem ser mais ou menos adequadas ao conteúdo em questão.
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Encarnação - Além de sua versão particular da Forma platônica, Bion (1984) adota também o que encara como a versão cristã desse primeiro modelo: a idéia de Encarnação. Não se trata mais de uma referência ao anteriormente conhecido mas de uma ocasião hábil para a pessoa conseguir comunhão com um aspecto "evoluído" da Verdade, "coisa em si" ou "Pessoa Nela Mesma". O modelo Forma de pensar parece mais próximo ao que ele denomina "conhecer sobre", de natureza mais perceptiva, enquanto o modelo Encarnação se assemelha melhor ao que designa como "sendo", "contato direto" ou apreensão intuitiva.
O conceito de encarnação supõe uma mudança de plano: do divino para o material. Não é possível conhecer a Realidade em Si mas suas encarnações: os fenômenos. Tudo que se conhece constitui noções adquiridas sobre a Divindade, aspectos seus: "toda formulação é uma transformação, às vezes de transformações".
Para esta comunhão os vínculos A, O, C não servem, pois produzem conhecimentos sobre: mediados, secundários. É possível, no entanto, chegar a um contato direto com aspectos evoluídos de 0. Tal possibilidade deve ser construída através de uma disciplina. Se o objetivo é contatar com Formas platônicas, a disciplina se refere ao relacionamento com os fenômenos: associo isto com o método e as técnicas da ciência positivista. Caso, entretanto, a meta seja contatar com o Absoluto, a disciplina se refere à submissão a uma Divindade encarnada, e consiste em preparar o estado negativo de mente em que a intuição pode se manifestar. A associação é com a atividade artística tal como formulada por Cocteau (s.d):
Seria inexato acusar um artista de orgulho quando declara que seu trabalho requer sonambulismo. O poeta está à disposição de sua noite. Seu papel é humilde. Ele deve limpar a casa e aguardar sua legítima visitação. (p.82).
O Vínculo 0
a. Memória, desejo, compreensão
A realidade última não pode ser alcançada pelos procedimentos desenvolvidos até agora com o sistema dedutivo científico, muito útil para o inanimado e para converter em conhecimento o contato direto com 0. Para conseguir este contato, entretanto, é outro o caminho, palmilhado até agora quase exclusivamente pelos místicos, e que Bion (1973) abre também aos psicanalistas, propondo uma disciplina sem misticismos.
O vínculo 0 requer uma abdicação do vínculo C, o que supõe uma disciplina árdua e perigosa para quem não tenha analisado suficientemente suas próprias posições esquizoparanóide e depressiva. Esta disciplina se resume numa lei tríplice e negativa: sem memória, desejo, compreensão.
Acontece que a realidade conhecida se constrói precisamente com base neste tripé. Afastá-lo constitui-se pois numa empresa perigosa, em que se abandonam os instrumentos cotidianos de orientação e se aventura a chegar muito próximo, especialmente, da vivência espontânea do psicótico.
Se o contato com 0 supõe supressão de memória, desejo e compreensão, estes são novamente necessários quando se trata de transformar depois este contato em um conhecimento. É assim que se torna possível ter vivências com aguda sensibilidade e no entanto não poder aprender da experiência. Isto se explica por essa maior captação, que exige um continente adequado, elástico e flexível, capaz de trabalhar esse incremento de contidos. A ampliação do continente, e mais ainda, a sua inadequação, provocam dor. Este "alargamento" se mostra fundamental para permitir o acolhimento de conteúdos incomuns, tais como a repercussão de acontecimentos corriqueiros em uma sensibilidade excessivamente exacerbada, como a psicótica.
O treino de um atleta ilustra o quão doloroso pode ser o esforço para atingir um novo recorde, ou seja, um novo alargamento da capacidade física. Também o treino de um psicanalista que se proponha a seguir a trilha apontada por Bion (1973) revela dor e medo. Dor inerente à privação de memória, desejo, compreensão, e também pela agudeza perceptiva que se lhe segue. Medo pela semelhança que o estado mental preconizado guarda com a loucura, uma vez que supõe e pesquisa uma outra realidade que não aquela do cotidiano. Desenvolver uma "rêverie" suficiente para "ver" a alucinação do paciente significa uma reforma do continente do analista, como o desenvolvimento de certas modalidades esportivas exige uma reestruturação da musculatura do atleta.
Uma tal abolição dos alicerces da realidade, em que difere do ódio à realidade? A resposta a esta pergunta requer uma consideração não apenas das características genéticas - estruturais e evolutivas - do fenômeno psíquico, mas também do aspecto funcional, ou seja, o como e para que está sendo usado.
Do ponto de vista estrutural, a disciplina prevê uma ruptura apenas parcial com a realidade. Do ponto de vista funcional trata-se de uso deliberado e consciente, ao invés de uma sujeição aos mecanismos psicóticos. Esta deliberação não obedece ao ódio à realidade mas ao amor à verdade - que o psicótico tenta destruir.
Trata-se, portanto, de uma cegueira artificial, voluntária e disciplinada, tal como já postulada por Freud, que Bion desenvolve como regra. O objetivo desta "cegueira artificial" é uma visão mais aguda para uma certa classe de fenômenos : os psicológicos.
Estes são fenômenos vivos, portanto em constante mutação. O aparelho para pensar especializado no inanimado não pode apreendê-lo a não ser por uma redução. O instrumento mais comum para a redução é a palavra: esta permite a ilusão de que todos os fenômenos abrangidos pelo mesmo termo são iguais. Assim, caso o paciente chegue dizendo que "ainda está com medo", pode-se chegar a um conluio com ele, estabelecendo que se trata do mesmo medo da sessão passada, e que, portanto, está-se defronte a algo conhecido, sem necessidade de investigação.
A vida, contudo, jamais se detém. Conserva, entretanto, algumas invariantes, e é preciso conhecê-las para conhecer a transformação operada. Isto significa estar sempre em busca do desconhecido - mesmo que tudo pareça já visto, mesmo que sua procura pareça descambar perigosamente no caos.
Sob este prisma a análise se reveste sempre - tanto para o analisando quanto para o analista - de atmosfera de privação, de solidão, e mesmo de um certo sentido persecutório. Todo desejo - mesmo o de cura, mesmo o de saber - precisa ser afastado para que a emergência da verdade possa ocorrer sem muito impedimento.
Esta renúncia do analista, este profundo respeito pela liberdade do analisando mas, sobretudo, pela verdade, pode ser sentida pelo paciente como um abandono, um não se importar. E mesmo como uma violência, uma vez que o confronta com sua própria liberdade e responsabilidade ou, em outros termos, uma vez que o coloca como Sujeito e não como Objeto da ação de viver.
Tal agudeza do analista pode ser dolorosa para o paciente, que pode se sentir invadido e ameaçado por ela, sem esconderijos, devassado. Para o analista talvez seja igualmente doloroso, uma vez que o separa dos instrumentos básicos de seu cotidiano, da construção de sua própria identidade, e assim se vê frente ao Desconhecido, sozinho e desarmado
O resultado deste trabalho - a personalidade "separada", ganha à confusão com o ambiente - significa mais riqueza e verdade, e também novos esforços de reajuste, assim como um sentimento de insegurança, uma vez que tudo é novo, e portanto ainda está para ser conquistado, vivido.
b. Fé, paciência, segurança
A instrução para abdicar de memória, desejos e compreensão - os instrumentos habituais de trabalhar a vida - pode parecer à primeira vista temerária. Considerando-se porém o trabalho do analista, vê-se que este lida com fenômenos que não são sensoriais , embora possam se expressar também sensorialmente.
O estímulo sensorial é tratado pelos sentidos. Que é que trata dos estímulos psíquicos, que não possuem forma, cor, cheiro, tato ou som? Bion (1973) propõe que seja a intuição. Pode chamar a atenção que os "sentidos sensoriais" sejam vários e o "sentido psíquico" seja apenas um. Isto se deve à limitação dos órgãos sensoriais, em consequência de serem especializados. Já a intuição é sensível a toda e qualquer realidade psíquica.
A disciplina para inibir a percepção sensorial e estimular a sensibilidade psíquica se justifica por uma vantagem prática: possibilitar ao psicanalista a capacidade de "intuir uma realidade psíquica que carece de imagem sensorial conhecida" e portanto estar mais próximo do analisando. Inclusive quando este alucina. Isto requer um "ato de fé". Tal ato consiste em um gesto deliberado e compartilhado, embora nem sempre chegue a ser consciente e explícito.
Há que se ter fé: acreditar no Zero, acreditar que existe uma verdade ou uma realidade última atrás de tudo o que já "sabemos" e que entulha nossa mente impedindo de viver o presente. Mas ter fé vai além de acreditar. Supõe, além disso, uma disposição ativa para o encontro, mesmo sem saber sobre o que vai encontrar, ou melhor, bastando saber que o encontro - se existir - vai ser com a verdade, ou com o que for possível saber da verdade. E, 'a priori', colocar-se de acordo com o ainda por surgir.
Tal acordo 'a priori' consiste em uma atitude científica e não religiosa: colocar-se de acordo com a verdade, qualquer que seja ela, sem saturações dogmáticas. Do mesmo modo, não se relaciona com memória, desejo ou compreensão, uma vez que se refere a algo ainda não acontecido. Por sua pertinência ao sistema 0 (e não ao sistema C) o ato de fé se relaciona com o inconsciente e precisa evoluir para ser apreensível no e pelo pensamento.
Colocar-se de acordo 'a priori', na fé em que algo surja, não porque se o deseja mas porque faz parte da natureza de 0 que evolua, e suas evoluções podem ser captadas. Estas já não requerem fé, mas percepções.
Para que 0 possa evoluir até poder ser captado é preciso que se suporte uma espera em que a privação disciplinar desautoriza não apenas os processos primários mas também os secundários. O raciocínio mais brilhante torna-se resistência.
O aspecto mais dificilmente suportado se refere ao despojamento simultâneo dos princípios do prazer e da realidade, em favor da fé. Esta deve ser desenvolvida pela disciplina supressora do vínculo 0, propiciando o "estado negativo de mente" que facilita o contato com 0. Todo este processo levanta fortes resistências do ego, que se sente ameaçado, até o estabelecimento da fé, quando enfim se torna possível e mesmo desejável a espera pela evolução captável de 0, ao invés da saturação apressada.
Na ausência da fé, tal espera pode parecer uma violenta desconsideração. Havendo fé, entretanto, o uso prematuro de conhecimentos é que torna o vínculo falso, forçado, até impossível
A fé nada tem a ver com um sentimento religioso num salvador ou com desejo piedoso de cura. Trata-se de um estado mental científico, fruto da convicção a respeito da natureza dos fenômenos psíquicos. Tal fé existindo, não há necessidade de recorrer a estruturações apressadas. Seria como adorar o Bezerro de Ouro porque Moisés se demora no Sinai. De modo que a fé pode ser vista como a contraparte subjetiva da disciplina da abolição da memória, desejo e conhecimentos.
Após o contato com 0 ter sido estabelecido, sua formulação irá requerer transformações, e estas requerem a concorrência de memória, desejo e conhecimentos. A formulação, no entanto, não é a verdade, mas delimita uma conjunção constante cujo significado só pode ser conhecido na ausência de memória e desejo.
Sendo 0
O conhecimento - como a memória e o desejo - reportam ao passado. O ato de fé é requerido em relação a algo que ainda não aconteceu. Por isso um conhecimento (passado) sobre alguma coisa pode ser uma forma de impedir o encontro - agora - com essa mesma coisa e sua atualização ainda por vir. O conhecimento pode ser, assim, uma defesa contra a transformação em 0 e todas as conseqüências desse encontro.
Não é apenas uma questão de posicionamento no tempo - também a modalidade de abordagem difere. O vínculo C é uma investigação. Uma atividade com um objetivo - conhecer sobre algo - mantendo-se a uma certa distância que protege do compromisso. Já o vínculo 0 é uma condição. Semelhante à descrição da inspiração artística, implica numa passividade receptiva, num aguardar a emergência do fato selecionado. Esta espera, mais do que passividade, exige renúncia. Implica numa tensão ativa de resistência à tentação do apego ao Conhecido.
A conseqüência - dolorosa - é enfrentar o caos. O caos assusta, persegue, é difícil de tolerar. Associados ao caos estão todas as características e angústias com que Melanie Klein caracteriza a posição esquizoparanóide. Ser capaz de tolerá-las, contá-las, constitui o que Bion (1973) chama de PACIÊNCIA. A necessidade de paciência é perfeitamente visível numa terapia, podendo ser consciente para ambos os elementos da dupla.
À fé e à paciência para tolerar a ignorância sucede a emergência do fato selecionado. A diferença do "fato consumado" este surge com uma força e certeza características. A este novo estágio - associado com a síntese e a depressão da posição depressiva Bion (1973) denomina SEGURANÇA.
A passagem de Paciência para Segurança se constitui numa experiência emocional intensa, equivalente à passagem EP ® D. Para o analisando, a intensa clareza de que se reveste, iluminando vários fatos à sua passagem, quer sejam passados ou presentes, reveste-se da emoção vitoriosa de quem encontrou uma verdade. Para o analista, a própria oscilação emocional indica o valor de seu trabalho: a passagem de paciência para a segurança indica que o trabalho frutificou.
Ter paciência com o caos é pois angustiante e requer muita fé na verdade que lhe subjaz, mesmo que desconhecida. A tentação aponta a direção da pressa, do saber sobre, da distância - outras faces do desejo, da compreensão e da memória. Conseguir conter tudo isto possibilita chegar à Segurança de sua superação.
O movimento de "Transformação em 0" apresenta características de revelação integradora, articulada a partir da própria mente, emergindo um sentido que não é imposto "de fora" mas que abarca sensações antigas e presentes, assim como lhe revela seu próprio funcionamento mental. Não se trata de uma compreensão teórica, alcançada através de uma distância proporcionadora de perspectiva. Trata-se, ao invés, de uma experiência da natureza do êxtase o que inclui um clima intensamente emocional - que já não se pode esquecer ou ignorar, pois passa a participar da constituição de sua mente, numa identidade com o revelado: "sendo" 0.
A dificuldade de uma tal Transformação em 0 reside no fato de envolver uma maturação em vindo a ser, diferente do crescimento peculiar às Transformações em C, que consistem em conhecendo sobre crescimento. O sofrimento envolvido pode ser melhor entendido em termos psicoterápicos quando se compara a necessidade de culpar os outros e o crescimento em sendo responsável.
LINO SILVA, M.E. Bion: the Zero of Experience. Psicologia USP, São Paulo, v.10, n.1, p.119-39, 1999.
Abstract: The thought of W. Bion is presented. Considering several concepts, the autor articulates their implications in the referencial status of Psychanalysis Reality, Truth, Knowledge, Thought within others and highlihgts the notion of "Zero of experience".
Index terms: Psychoanalysis. Reality. Truth. Awareness. Thinking. Bion, Wilfred Ruprecht, 1897-1979.
2 Referente a Lewis Carrol.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Set 1999 -
Data do Fascículo
1999