Resumo
O objetivo deste artigo é articular a categoria da verdade e os registros de identidade e diferença na análise de Michel Foucault sobre a modernidade e o discurso de Freud. Por identidade entendemos a ordem de distribuição das palavras e das coisas num dado período da história, e por diferença aquilo que no pensamento está fora, é outro e surge como acontecimento. Ora, essa disposição entre o mesmo e o outro é a condição de possibilidade de uma análise do presente, análise que investiga a verdade histórica daquilo que somos, bem como de uma crítica de si, o que inclui a possibilidade de o pensamento se reinventar e ultrapassar seus limites. A psicanálise, nesse panorama, surge como um discurso do inconsciente, que aponta para a finitude do homem e para a experiência trágica da loucura. Trata-se, portanto, de uma modalidade de pensamento em que os acontecimentos introduzem novas formas de veridição.
Palavras-chave:
verdade; identidade; diferença; psicanálise; modernidade
Résumé
L'objectif de cet article est d'articuler la catégorie de la vérité et les registres d'identité et de la différence dans l'analyse de Michel Foucault sur la modernité et le discours de Freud. Par identité, nous comprenons l'ordre de distribution des mots et des choses dans une période de l'histoire donnée, et par différence, ce qui est en dehors dans la pensée, est autre et arrive comme un événement. Or, cette disposition entre le même et l'autre est la condition de possibilité d'une analyse du présent, analyse qui étudie la vérité historique de ce que nous sommes, ainsi que d'une critique de soi, ce qui inclut la possibilité de la pensée se réinventer, dépasser leur limites. La psychanalyse, dans ce scénario, apparaît comme un discours de l'inconscient, discours qui point vers la finitude de l'homme et l'expérience tragique de la folie. Il s'agit donc d'une modalité de la pensée où les événements introduisent des nouvelles formes de véridiction.
Mots-clés:
vérité; identité; différence; psychanalyse; modernité
Resumen
El objetivo de este artículo es articular la categoría de verdad y los registros de identidad y diferencia en el análisis de Michel Foucault acerca de la modernidad y el discurso de Freud. Por identidad comprendemos la orden de distribución de las palabras y de las cosas en determinado período de la historia, y por diferencia lo que en el pensamiento está fuera, es otro y surge como acontecimiento. Esta disposición entre el mismo y el otro es la condición de posibilidad para un análisis del presente, análisis que investiga la verdad histórica de lo que somos, así como de una crítica de sí, lo que incluye la posibilidad del pensamiento reinventarse, superar sus límites. El psicoanálisis, en este escenario, surge como un discurso del inconsciente, discurso que apunta a la finitud del hombre y a la experiencia trágica de la locura. Se trata, por lo tanto, de un modo de pensamiento donde los acontecimientos introducen nuevas formas de veridición.
Palabras clave:
verdad; identidad; diferencia; psicoanálisis; modernidad
Abstract
The purpose of this article is to articulate the category of truth and the records of identity and difference in the analysis of Michel Foucault on modernity and the discourse of Freud. By identity, we understand the order of distribution of words and things in a given period of history, and by difference, it is what is out from the thought, is foreign and appears as an event. However, this arrangement between the self and the other is the condition of possibility of this analysis, one that investigates the historical truth of who we are, as well as a criticism of yourself, which includes the possibility of the thought reinventing itself, overcoming its limits. In that scenario, psychoanalysis emerges as a discourse of the unconscious, which points to the finitude of man and to the tragic experience of madness. Therefore, it is a modality of thinking where the events introduce new forms of truthfulness.
Keywords:
truth; identity; difference; psychoanalysis; modernity
Este artigo investiga o estatuto da categoria de verdade na análise desenvolvida por Michel Foucault a propósito da modernidade, e propõe uma interpretação da constituição da psicanálise nesse panorama a partir de sua relação com a identidade e a diferença de um pensamento. A psicanálise é avaliada a partir de seu solo de formação e da ordem de que participa, e a modernidade é pensada a partir dos acontecimentos do presente, acontecimentos que, a priori históricos, definem a descontinuidade de um período em relação aos períodos precedentes e ao mes mo tempo a continuidade de pensamento nos arquivos da atualidade, expressa que é pela regularidade dos enuncia dos no plano do discurso. A possibilidade de surgir uma psicanálise enquanto unidade discursiva, ou mesmo de surgir Freud enquanto autor, está vinculada, portanto, de maneira bastante estreita às linhas de força dispostas por esses acontecimentos, que quando pensados por Foucault são incluídos numa história do presente. Nosso artigo buscará, por um primeiro eixo de pesquisa, retomar essa genealogia a partir de duas narrativas: uma narrativa do mesmo e uma narrativa do outro. O objetivo dessa reto mada é identificar que relações tem o pensamento com a identidade − esta sendo aquilo que constitui a ordem de distribuição das palavras e das coisas − e com a diferença − aquilo que quando excluído do pensamento não deixa de definir em relação a ele certa posição de descontinui dade possível. Ademais, examinaremos o modo com que Foucault inclui no interior dessas histórias a unidade dis cursiva da psicanálise: como ele pensa a presença da psi canálise na configuração da modernidade a partir de sua relação com o mesmo e com o outro, o segundo eixo de nossa pesquisa. Nosso objetivo será pensar em que sentido e sob que aspecto a psicanálise, como um pensamento do inconsciente, pode expressar um inconsciente do pensa mento. Identificaremos no interior do próprio discurso de Foucault um lugar privilegiado dado à psicanálise, particularmente no livro As palavras e as coisas, no que concerne à possibilidade de relação entre uma unidade discursiva e seu espaço de formação. Esse lugar privile giado será definido não apenas a partir da articulação que se pode estabelecer entre o objeto de um dado discurso e o jogo manifesto das opiniões, o espaço de superfície em que o impensado e a finitude podem se positivar, no caso da modernidade, mas a partir do fato de um discur so apontar para esse registro de inconsciência em que os acontecimentos definem em relação a um período campos de continuidade e de descontinuidade no pensamento: es paços de abertura e de ultrapassamento que introduzem a possibilidade do novo.
Realizar uma história do presente e investigar a relação entre a identidade e a diferença de um pensamen to − da modernidade − é pensar a história do pensamen to numa articulação estreita com a categoria de verdade. Ora, nesses termos, a verdade é entendida não como uma categoria que define as condições de um discurso verda deiro, ou se quiser, de um discurso que diz a verdade so bre o verdadeiro, mas como uma categoria incluída numa análise do presente, numa ontologia de nós mesmos. Pensar a psicanálise por essa tradição é incluir sua forma ção numa história de acontecimentos. Entre a identidade e a diferença, o discurso de Freud pode apontar para um espaço de continuidade e de descontinuidade a partir do qual pensamentos são possíveis. Assim, ao final do texto, buscaremos aproximar a tradição em que Foucault insere sua pesquisa, a tradição da análise do presente e a possi bilidade de um pensamento em psicanálise formado por acontecimentos. A análise se desdobraria numa crítica do presente, ou se quiser, numa crítica da possibilidade de transgressão.
Duas narrativas da modernidade
Logo no início de As palavras e as coisas, livro de 1966, Foucault menciona o seu outro grande projeto de descrição arqueológica, a História da loucura na idade clássica, de 1961, para pensar entre os dois uma articula ção de conjunto, uma articulação indicativa talvez de um mesmo programa submerso, mas presente e expressão de uma continuidade entre as duas obras (Foucault, 1966Foucault, M. (1966). Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris, France: Gallimard., pp. 15-16). Em História da loucura, teria proposto fazer uma história do outro, uma história daquilo que diante de cer to pensamento, de certa cultura, enfim, de certo cenário histórico, político e social, é entendido como estranho, e é colocado nesse lugar de alteridade, de exterioridade, cons tituindo uma espécie de fora do pensamento. Ora, resgatar essa história não deixaria de falar do que está dentro, do que determina e do que mantém no movimento mesmo de exclusão a identidade de um pensamento (Foucault, 1962Foucault, M. (1962). Maladie mentale et psychologie. Paris, France: PUF., pp. 71-75, 90-91); isso porque o motivo de alguma coisa estar fora é o mesmo motivo que define o pensamento que em relação a isso nada quer saber nem dizer, ou melhor, que define o pensamento que em relação a isso quer saber muito bem, tanto que desenvolve uma série de dispositi vos e mecanismos de poder visando minimizar, neutrali zar ou mesmo encarcerar as linhas da diferença. Assim, se Foucault retoma o outro por uma história arqueológica é para falar de todo um conjunto de práticas do discurso, que se constituiu na história do ocidente como sendo aque le da exclusão, aquele que pretende pensar o outro como experiência de loucura, como negatividade ou, para dizer nos termos do autor, como ausência de obra (Foucault, 1961/1994aFoucault, M. (1994a). Préface. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 159-167). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1961), pp. 161-164; Foucault, 1969Foucault, M. (1969). L'archéologie du savoir. Paris, France: Gallimard., pp. 26-27, 64). É essa recepção da experiência do outro no pensamento que é o objeto da História da loucura de Foucault, que trata de investigar como a loucura foi entendida, sob que formas de consciência foi pensada e que discursos se constituíram em relação a ela na idade clássica e na modernidade. Por um lado, o diagnóstico das práticas de exclusão, práticas que imputaram ao outro o caráter de loucura ou de desrazão, que fizeram ouvir de uma voz que outrora falava apenas silêncio. Por outro lado, todavia, é preciso também indicar uma outra retomada da loucura em Foucault, uma retoma da que pretende ser a história desse silêncio, uma retoma da que pretende localizar no limiar do Renascimento e no início da Idade Clássica o momento em que as linhas de divisão entre razão e desrazão ainda não se constituíram. É que esse outro excluído do pensamento por uma tradição crítica também pode ser pensado na história do ocidente por uma linguagem marginal, sepultada talvez, por uma linguagem trágica que perpetua a presença da loucura. A loucura excluída da identidade ocidental pode ser retoma da como experiência de obra, experiência que, como ex pressão do limite de nós mesmos, diz do ser da diferença, ou melhor, faz a diferença ela mesma falar. É nesse sen tido que a loucura pode ser presença e produção de obra (Foucault, 1972aFoucault, M. (1972a). Histoire de la folie à l'âge classique (2a ed.). Paris, France: Gallimard., pp. 338, 531-557). Assim, a história do outro ao mesmo tempo em que indica as linhas de força sob as quais o outro foi reduzido historicamente ao estatuto de ausência indica também algumas linhas de saída ou de fuga, linhas de um pensamento, que mesmo estando fora em relação à episteme participa de sua formação. A verda de a que aponta essa história entre um pensamento crítico e um pensamento trágico é o que permite a problematização do lugar da constituição histórica da loucura no ocidente. Se uma experiência é silenciada e dominada pela hierar quia dos saberes e dos poderes de um período, ela pode, por uma crítica do presente, deslocar-se para uma expe riência que é voz, presença e produção de obra. É dessa possibilidade de acontecimento que alguns autores listados por Foucault fazem referência, que são: Hölderlin, Nerval e Roussell na literatura; Artaud e Strindberg na dramaturgia; Goya e Van Gogh na pintura e Nietzsche na filosofia.
Em As palavras e as coisas, Foucault faria um deslocamento em relação ao seu projeto inicial. Quereria pensar doravante não a história do outro, mas a história do mesmo, não a alteridade de uma diferença marcada na arqueologia por uma exclusão, mas a identidade de uma or dem que, presente na narrativa de formação do pensamento moderno, seria a expressão da distribuição exata das pala vras e das coisas (Foucault, 1966Foucault, M. (1966). Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris, France: Gallimard., pp. 7-16). O que estaria em jogo, nesse caso, não seria mais o diagnóstico de uma exclusão, mas o diagnóstico de uma presença, presença pa tente nos discursos de um período e que se manifesta como mesmo do pensamento. O que define a sua segunda inter venção é a proposta de elaborar uma arqueologia a partir da continuidade entre os acontecimentos de uma episteme e da regularidade com que os enunciados surgem e se apre sentam no discurso. A ordem dessa continuidade e dessa regularidade indicaria a disposição das discursividades no espaço do saber e a visibilidade dos objetos na empirici dade do mundo, de modo que a arqueologia se constituiria como campo geral de formação do pensamento. Importará, portanto, a Foucault pensar sobre que solo se constituem os discursos, segundo que regras os discursos criam concei tos, formam objetos, produzem enunciados e operam esco lhas estratégicas, e a partir de que os enunciados circulam, revelando pontos de equivalência, de simultaneidade em um espaço geral que não é outro senão aquele da dispersão (Foucault, 1969Foucault, M. (1969). L'archéologie du savoir. Paris, France: Gallimard., pp. 31-93). A tese de Foucault é que esse solo é o mesmo para todos os discursos; é que se observa mais continuidade entre diferentes discursos de um mesmo período arqueológico do que entre discursos pertencentes a períodos arqueológicos distintos. Ora, o que deve indicar a verdade dos discursos é a identidade do solo arqueológico a que eles pertencem e de que eles são resultado. É a esse mesmo da arqueologia que Foucault visa em sua análise de As palavras e as coisas, desenvolvida como um tipo de história do presente, história que mostra as condições de possibilidade do surgimento do pensamento moderno.
Além disso, o subtítulo do livro, uma arqueologia das ciências humanas, é indicativo de uma temática sub jacente ou principal do texto, tanto faz, mas que tem uma importância central na trajetória de Foucault, quando ele pensa na relação que pode existir entre os acontecimentos de um período e a arqueologia de um pensamento. É por meio dessa temática que Foucault retoma uma reflexão presente desde a História da loucura e a Introdução à Antropologia de Kant, concernente à formação de um tipo de antropologia silenciosa no pensamento moderno. Em As palavras e as coisas, essa reflexão aparece sob as investigações a propósito do surgimento do homem como objeto no saber e da constituição das ciências hu manas para pensar esse homem. Ora, mas se nessa última obra Foucault retoma a ideia de antropologia para dedicar longas páginas de articulação sobre as ciências huma nas, a empiricidade do homem, o triedro dos saberes e o acontecimento da história (Foucault, 1966Foucault, M. (1966). Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris, France: Gallimard., pp. 355-398), não menos importante e talvez de importância inversa mente proporcional à sua apreciação na letra do texto foucaultiano, é a questão da formação de uma imagem de pensamento, imagem que reproduz por uma ilusão an tropológica a relação entre os discursos do homem e a disposição manifesta das empiricidades e dos saberes na experiência moderna. Se o homem surge no fim de um percurso sendo alguma coisa resultante da incursão da historicidade e da finitude na história do pensamento, é a partir dessa formação que uma antropologia derivada da pergunta kantiana a propósito do homem passa a pensar o ser mesmo das empiricidades e a verdade dos sabe res. Tudo se passa como se para além daquilo que surge diante dos olhos, como visibilidade, e daquilo que se pro jeta no discurso, como enunciação, estivesse o homem, como um fundamento, pensado nos termos de uma figu ra transcendental (Foucault, 2007Foucault, M. (2007). Introduction to Kant's Anthropology (K. Briggs, R. Nigro, trans.). Los Angeles, CA: Semiotext(e)., pp. 122-124; Foucault, 1966Foucault, M. (1966). Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris, France: Gallimard., pp. 351-354). Não mais como fim, o homem apare ceria como começo, como princípio a partir do qual as empiricidades e os saberes deveriam ser pensados, in troduzindo estes nos termos de uma gênese, de um senti do e de uma estrutura. Ao colocar o homem nesse lugar como um tipo de priori do pensamento, o pensamento deixar de ser pensado a partir dos a priori históricos, dos acontecimentos definidos pela análise do presente, para ser determinado por um a priori transcendental. É contra esse fundamento transcendental, construído a partir e por meio da formação da figura do homem como um tipo de sujeito antropológico, que a crítica de Foucault se es tabelece. O homem, ao contrário, antes de a priori do pensamento é uma figura passageira, um rosto de areia que, desenhado na praia, na orla do mar, sobre o qual, ad vindo poucas ondas, tão depressa como se formou deve desaparecer (Foucault, 1966Foucault, M. (1966). Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris, France: Gallimard., p. 398).
Para Foucault, o pensamento certamente não é uma imagem, não é definido por uma forma a que se pode apegar, agarrar e obter consolo. O pensamento tam bém não constitui um universal, não se trata de um fun damento a partir do qual se pode afirmar uma existência dita verdadeira. Não é ontologia, nem metafísica. Não é nada disso, porque é formado por acontecimentos, por que é sempre pensamento de a priori históricos, os quais atravessando sua configuração determinam na história as continuidades e as descontinuidades possíveis às formas de discursividade. São esses acontecimentos que consti tuem a categoria de verdade na história do mesmo. Como uma espécie de teatro, como uma espécie de palco em que as palavras e as coisas se encontram, formando cenas múltiplas, cenas construídas por gestos de afirmação, de produção e de simultaneidades, o pensamento se torna espaço de expressão da verdade como acontecimento (Foucault, 1970/1994bFoucault, M. (1994b). Theatrum philosophicum. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 75-99). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1970), pp. 83, 89-90, 97-98). É feito sem roteiros, sem planejamentos, enfim, sem sujeitos. De modo que é nesse lugar que os acontecimentos aconte cem, acontecimentos impessoais, involuntários, aconte cimentos que se introduzem por si no tempo e no espaço, afirmando a diferença e repetindo por sua própria afir mação o outro no pensamento. O projeto de pensar uma arqueologia da modernidade em Foucault corresponde a pensar uma análise do presente, profundamente marcada por acontecimentos. Seja por uma história do mesmo, seja por uma história do outro, a verdade dessa análise pro põe uma articulação estreita entre os acontecimentos e os pensamentos, sendo os primeiros entendidos como essa inscrição histórica que modifica de maneira profunda a disposição arqueológica da episteme, e os segundos como essa distribuição da ordem que orienta os enunciados de um dado período segundo uma gramática específica de formação. A dita ilusão antropológica surge como um problema para a verdade em Foucault justamente porque positiva uma referência transcendental no pensamento. Ela pretende a partir do acontecimento do homem fun dar todas as possibilidades de acontecimentos. Assim, o pensamento se torna imagem, cristalizado por uma única moldura e reduzido a esse cadáver petrificado do ser do homem; deixa de ser acontecimento, deixa de ser histó ria, deixa de ser continuidade e descontinuidade. Se essa relação entre pensamento e acontecimento é definida por um a priori transcendental, não há possibilidade de en contro efetivo com a diferença - daí o dogmatismo no pensamento (Deleuze, 1962Deleuze, G. (1962). Nietzsche et la philosophie. Paris, France: PUF., pp. 118-126; Deleuze, 1968Deleuze, G. (1968). Différence et répétition. Paris, France: PUF., p. 169-217). Se a diferença fala do que está além de uma identidade, do que circula como intensidade livre, dis persa e que incide sempre como acontecimento singular, um pensamento reduzido e forjado a partir de apenas um acontecimento, tornado ele mesmo transcendental, constitui uma miragem da diferença, miragem que não é outra coisa senão imagem de si. Ora, uma história do presente tem que ser uma história de acontecimentos, uma história que, investida pelo mesmo e pelo outro, dá lugar ao que é acaso, ao que corresponde necessariamen te ao involuntário do pensamento. Só é presente uma história formada por acontecimentos; só é presente um pensamento sem imagens. Como diz Foucault: "um pen samento tem que pensar o que o forma e se formar do que ele pensa" (Foucault, 1970/1994bFoucault, M. (1994b). Theatrum philosophicum. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 75-99). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1970), p. 85). A verdade desse pensamento é articulação dele mesmo com a diferença, é a articulação entre sua constituição e sua possibilidade de devir outro com os acontecimentos do presente. Ora, de que maneira a psicanálise pode ser incluída nessa his tória identidade e com a diferença do pensamento? E ainda, como sua inscrição produz na arqueologia uma afirma ção distinta daquela da antropologia transcendental?
O pensamento de Freud e o inconsciente do pensamento
A referência da psicanálise em Foucault é bastante dispersa. O autor efetivamente nunca escreveu um livro ou artigo exclusivamente sobre o discurso psicanalítico, embo ra tenha dado algumas entrevistas e tenha citado Freud e o próprio Lacan no decorrer de textos e artigos em diversos momentos de sua obra. De fato, é essa presença espalhada e distribuída que nos leva à hipótese de um tipo de encon tro, implícito ou explícito, entre o pensamento de Foucault e o de Freud. Freud e a psicanálise certamente marcaram as reflexões do filósofo francês: diversas vezes vemos as incursões de Foucault no terreno arenoso psicanalítico para pensar um conceito específico ou a função desse mesmo conceito no interior de um discurso, ou ainda as relações entre as determinações discursivas da psicanálise e as li nhas de saber e de poder na arqueologia ou na genealogia. De modo que, nesses termos, a psicanálise de Freud ou a de Lacan parece se constituir como um tipo de interlocu tor mantido presente no horizonte de reflexão de Foucault, com quem este estabelece articulações novas e produções cujas consequências podemos ainda identificar. Por parte da psicanálise, é evidente a importância dos enunciados de Foucault na elaboração de um tipo de crítica interna, que se desenvolve para pensar uma articulação entre psicanálise e outras modalidades discursivas na atualidade e, além disso, uma reflexão a propósito da rede de relações de poder que atravessa a experiência psicanalítica, seja no âmbito clínico ou no âmbito das instituições. Assim, observam-se no inte rior da comunidade psicanalítica as repercussões das teses de Foucault e os embates que se criam a partir dessas mes mas repercussões. De uma forma ou outra, é inegável a pro dução consequente da constituição histórica desse encontro, de um trabalho do pensamento trabalho de problematização e de transformação de si, tanto no interior da psicanálise quanto no campo da filosofia (Foucault, 1984Foucault, M. (1984). Histoire de la sexualité: l'usage des plaisirs. Paris, France: Gallimard., pp. 14-15). Nossa intenção aqui é retomar a leitura que Foucault de senvolve a propósito da psicanálise nas duas histórias que enunciamos, considerando que a presença da psicanálise entre o mesmo e outro da modernidade pode indicar o esta tuto de sua relação com a verdade de nosso presente.
A psicanálise se inscreve na História da loucura de maneira ambígua, vacilante. Trata-se de uma presença, de uma aparição, nas quais não é possível delimitar seu lugar de pertencimento nem mesmo sua posição definitiva diante das articulações entre pensamento e outro. Na realidade, não é que a psicanálise não se define entre uma e outra posição nesse debate, mas que ela afirma duas posições distintas, incompatíveis. Segundo Foucault, Freud parti cipa tanto de uma tradição crítica quanto de uma tradi ção trágica do pensamento em relação à loucura. Como um tipo de discurso construído entre dois, a psicanálise de Freud seria marcada por uma perspectiva que ora inclui a experiência do outro no registro da desrazão, definindo-a como ausência de obra, e ora pensa a loucura por uma via trágica, em que o que se vê no louco é não a ausência ou o silêncio, mas a produção de obra. O Freud herdeiro da tradição crítica é aquele da metapsicologia, aquele que in sere a loucura num sistema de interpretação, que formula o desenvolvimento do indivíduo nos termos de uma evo lução da cultura, ou que pretende positivar uma produção normal das subjetividades, para além dos descaminhos de uma sexualidade perverso-polimorfa (Foucault, 1962Foucault, M. (1962). Maladie mentale et psychologie. Paris, France: PUF., pp. 23-26; Freud, 1905/1996aFreud, S. (1996a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 119-232). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1905), 1906/1996bFreud, S. (1996b). Minhas teses sobre o papel da sexualidade na etiologia das neuroses. In S. Freud. Edição standard brasileira obras psicológicas completas de Sigmund Freud: (J. Salomão, trad., Vol. 7, pp. 255-266). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1906), pp. 260-265); além disso, é também aquele que assume na experiência clínica a distribuição hierárquica de poder do dispositivo asilar, e isso por meio da condensação das figuras dos serventes e dos vigilantes na figura do médico, transposta que é, sob transferência, para a figura do analista (Foucault, 1972aFoucault, M. (1972a). Histoire de la folie à l'âge classique (2a ed.). Paris, France: Gallimard., pp. 529-530). Assim entendida, a psicanálise reproduz uma consciência crítica da loucura, pois a examina segundo o critério da racionalidade ocidental, constituído no início da Idade Clássica. Existe, contudo, outra possibilidade de lei tura da experiência da loucura em Freud, possibilidade que é evocada por Foucault quando ele fala da necessidade de se fazer justiça a Freud (Foucault, 1972aFoucault, M. (1972a). Histoire de la folie à l'âge classique (2a ed.). Paris, France: Gallimard., p. 360). Ora, se no caso da experiência crítica o outro é tido como ausência de obra, por outro lado, no caso da experiência trágica, ele é retomado como ser por uma linguagem marginal, por uma linguagem que não se inscreve nos cânones da verdade e da obra, mas que se efetiva por uma significa ção particular. Para além da linguagem crítica, surge uma linguagem positivada pelos campos da literatura, da dra maturgia, das artes, da filosofia e por todos esses campos que, a despeito dos regimes ortodoxos do saber, compõem uma heterodoxia do pensamento (Birman, 2010Birman, J. (2010). Descartes, Freud e a experiência da loucura. Natureza Humana, 12(2). Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-4302010000200001&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?scr...
; Foucault, 1972aFoucault, M. (1972a). Histoire de la folie à l'âge classique (2a ed.). Paris, France: Gallimard., pp. 338, 531-557). No caso de Freud, essa tradição se expressa não por uma metapsicologia sistemática, mas por meio de narrativas clínicas. É no relato dos casos clínicos, quando Freud dá lugar à linguagem e ao delírio do lou co, que a loucura como experiência primitiva, experiência positivada antes da divisão entre razão e desrazão, pode ser resgatada, e isso por meio de um operador conceitual central que é a noção de fantasma (Deleuze, 1969Deleuze, G. (1969). Logique du sens. Paris, France: Minuit., pp. 245- 252). Quando o real das palavras e das imagens (Foucault, 1954/1994cFoucault, M. (1994c). Introduction. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp 65-119). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1954), pp. 69-73; Freud, 1915/2010aFreud, S. (2010a). O inconsciente. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, trad., Vol. 12, pp. 99-150). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915), p. 146) pode ser inscrito no universo fictício da linguagem e do pensamen to, o inconsciente pode enfim se positivar por vias sem pre novas e singulares de criação (Foucault, 1964/1994dFoucault, M. (1994d). Nietzsche, Freud, Marx. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 564-579). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1964), pp. 570-574; Freud, 1915/2010bFreud, S. (2010b). Os instintos e seus destinos. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, trad., Vol. 12, pp. 51- 81). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1915), p. 64; Freud, 1920/2010cFreud, S. (2010c). Além do princípio do prazer. In S. Freud, Obras completas (P. C. de Souza, trad., Vol. 14, pp. 161- 239). São Paulo, SP: Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1920), pp. 170-176). A verdade da relação entre o registro do in consciente e o real do pensamento em psicanálise aponta, nesses termos, para uma linguagem trágica da loucura, de modo que a alteridade que constitui essa presença da loucura, quando enfim deslocada para o registro da obra, produz um pensamento novo, um pensamento em que as possibilidades de invenção e de interpretação são infinitas.
É preciso também fazer menção a outra presença da psicanálise na modernidade de Foucault. Em As palavras e as coisas, sua leitura da psicanálise é muito mais oti mista do que em História da loucura. É que a psicanálise, em conjunto com a etnologia e com a linguística, aponta ria para o a priori de abertura do pensamento moderno, a priori histórico determinante de sua formação e de seu aparecimento (Foucault, 1966Foucault, M. (1966). Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris, France: Gallimard., pp. 385-387). A afirmação de um campo que, para além de objeto é conceito, o campo do inconsciente, faria surgir na experiência do pensamento moderno toda uma positivação da história e da finitude, determinante para a formação dos campos de empiricidade do trabalho, da vida e da linguagem, bem como dos campos de saber da economia política, da biologia e da filologia. Com o desaparecimento do discurso, a falência da lingua gem como representação, o homem se torna atravessado de ponta a ponta pela experiência da morte, experiência do que surge não somente como termo final de uma vida, mas do que percorre como elemento central toda a trajetória do vivente (Foucault, 1972bFoucault, M. (1972b). Naissance de la clinique: une archéologie du regard médical (2a ed.). Paris, France: PUF., pp. 201-202). Quando essa finitu de é positivada por um pensamento como a psicanálise, ela promove no interior das ciências do homem uma torção in terna radical: uma torção que aponta justamente para seus limites. A psicanálise positiva, para além das normas e das funções de uma psicologia, uma repetição incontornável da morte, para além das regras e dos conflitos de uma socio logia, a abertura de um desejo e, para além dos sistemas de linguagem e de significação de uma análise dos mitos e das literaturas, uma palavra que é lei (Foucault, 1966Foucault, M. (1966). Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris, France: Gallimard., p. 386). Por levar o pensamento a esse limite de si, por levar o pensamento a esse ponto de inconsciência, a psicanáli se retoma, por sua vez, os acontecimentos do presente. O pensamento moderno visita esse ponto de inconsciência do pensamento (Foucault, 1972/1994eFoucault, M. (1994e). Réponse à Derrida. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 281-295). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1972), p. 284), em que os acontecimentos produzem diferença e descontinuidade. Doravante, um novo pensamento é possível: um pensa mento formado por acontecimentos, um pensamento que não é imagem do homem, nem recorre a transcendências. Assim, seja pela psicanálise, etnologia, linguística ou lite ratura, as ditas contraciências do homem, o que Foucault promove na história do mesmo de As palavras e as coisas é a possibilidade de um encontro efetivo do pensamento com aquilo que o forma, com o ponto de sua abertura e com os obstáculos que impedem sua transformação, com aquilo que está fora e que como tal é acontecimento (Foucault, 1966Foucault, M. (1966). Les mots et les choses: une archéologie des sciences humaines. Paris, France: Gallimard., pp. 64, 353).
Ora, enquanto pensamento do inconsciente, a psi canálise visita o mesmo e o outro por diferentes vias na arqueologia de Foucault. Na história do outro, pertence a duas tradições distintas: por um lado é crítica, quan do entende a loucura por meio de uma metapsicologia e quando reproduz na clínica a disposição de um discurso de tratamento moral, e por outro lado é trágica, quando recolhe a palavra do louco para inscrevê-la em narrativas romanescas cujo personagem central não é um sujeito da razão, mas um fantasma, não uma realidade, mas uma ver dade do real. Na história do mesmo, a psicanálise afirma um pensamento do inconsciente, e isso quando promove no seio da experiência moderna da linguagem a finitude: desconstrói uma imagem do pensamento que toma como centrais as categorias de homem e de representação para falar de um pensamento sem imagem, de um pensamento que sem sujeito nem representantes da representação en contra os acontecimentos. Assim, seja pelo mesmo, seja pelo outro, o que se observa no caso da psicanálise é a possibilidade de encontro de um pensamento com o seu inconsciente (Foucault, 1972/1994eFoucault, M. (1994e). Réponse à Derrida. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 281-295). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1972), p. 284), em que essa categoria serve para indicar os estratos, as linhas de força de uma arqueologia e de uma genealogia que constituem o presente de um pensamento, assim como a possibilidade de novos acontecimentos, possibilidade afirmada de o pensa mento devir outro.
A verdade na análise do presente e um pensamento por vir
Até aqui fizemos algumas considerações sobre a re lação entre acontecimento e pensamento na modernidade e na psicanálise: vimos como em duas narrativas propostas por Foucault − a narrativa do mesmo e a narrativa do outro − se constituiu uma forma de pensar específica na história do ocidente, uma forma que estabelece o solo de nosso pre sente e que determina aquilo que podemos dizer e o que podemos ver; ademais, vimos também como a psicanálise se positiva sobre esse mesmo solo, como o pensamento de Freud delimita certa formação de conceitos, de objetos e de enunciados no campo do discurso. Resta abordar ain da, de maneira mais detida, a correlação entre essa análise do presente e a categoria de verdade; resta delimitar como uma reflexão, que pretende, por meio de uma arqueologia e uma genealogia do pensamento moderno, trazer para a superfície o solo dos acontecimentos do pensamento, e como essa reflexão pode apontar para aquilo que se pode ria chamar de verdade, ou nos termos de Foucault, de uma ontologia de nós mesmos (Foucault, 1984/1994fFoucault, M. (1994f). Qu'est-ce que les Lumières?. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 679-688). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1984), p. 687).
De fato, quando Foucault reintroduz a categoria de verdade em seu itinerário intelectual no final dos anos 1970 e no início da década de 1980, ele o faz no mesmo movimento de pensar a análise do presente por uma sig nificação bastante precisa, qualquer que seja a elaboração, para além do diagnóstico, de uma crítica da atualidade, ou mesmo de uma crítica da possibilidade de transgressão. Ora, se o campo dos acontecimentos, sendo essa possibi lidade sempre aberta de positivação das descontinuidades e das rupturas no espaço do pensamento, encontra uma história das práticas de transgressão, práticas de transfor mação que tocam nas possibilidades de reinvenção e de constituição de si, torna-se possível reinserir a história da arqueologia ou da genealogia numa história das formas de veridição, ou se quiser, reinserir essas histórias numa história arqueológica ou genealógica das relações do su jeito com a verdade (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Le gouvernement de soi et des autres, 1982-1983. Paris, France: Gallimard., p. 6; Foucault, 2009Foucault, M. (2009). Le courage de la vérité : le gouvernement de soi et des autres 2, 1983-1984. Paris, France: Gallimard., p. 161). Assim, quando Foucault avalia a contribuição da psicanálise nesse intercruzamento, ele identifica de manei ra bastante pontual na intervenção discursiva de Jacques Lacan a retomada de um problema antigo, pertencente à tradição da espiritualidade. É que quando Lacan discute "a questão do preço que o sujeito tem de pagar por dizer o verdadeiro, e a questão do efeito sobre o sujeito do fato que ele disse, que ele pode dizer e que ele disse, o verdadei ro sobre si mesmo" (Foucault, 2001Foucault, M. (2001). L'herméneutique du sujet, 1981-1982. Paris, France: Gallimard., pp. 31-32), ele retoma um problema que é o da espiritualidade e que diz sobre a possibilidade de um saber ser atravessado pelos registros do sujeito e da verdade (Lacan, 1965/1966aLacan, J. (1966a). La science et la vérité. In J. Lacan, Écrits (pp. 855-877). Paris, France: Seuil. (Trabalho original publicado em 1965), pp. 855-877; Lacan, 1966/1966bLacan, J. (1966b). Du sujet enfin en question. In J. Lacan, Écrits (pp. 229-236). Paris, France: Seuil. (Trabalho original publicado em 1966), pp. 229-236). Por essa via, o discurso da psicanálise efetivamente se desloca para o registro de uma ética; trata-se doravante da formação de uma subjeti vidade a partir da relação do pensamento com a verdade, e isso por um trabalho de problematização de si (Foucault, 1981/1994gFoucault, M. (1994g). Lacan, le "libérateur" de la psychanalyse. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 204-205). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1981), pp. 204-205). Ora, o que significa isso? Sob que aspecto essa perspectiva da psicanálise pode ser ar ticulada com o pensamento de Foucault, em especial com aquilo que ele propõe a propósito da análise do presente e das possibilidades práticas das formas de veridição na história da atualidade?
A verdade de que fala Foucault pertence a uma tradição muito específica de pensamento, que ele mesmo remete a Kant. Ora, foi Kant quem empreendeu a crítica da ideia de um sujeito universal, a-histórico e incondicional, aquele sujeito de Descartes. Ele fez isso quando perguntou a si mesmo: o que é o homem? E mais, quando se pergun tou: o que é o esclarecimento?, sendo esse momento histó rico chamado de Século das Luzes. Por meio de uma torção do pensamento, ele levantou o problema da determinação histórica do homem (Foucault, 1982/1994hFoucault, M. (1994h). Le sujet et le pouvoir. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 222-244). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1982), pp. 231-232), o problema da atualidade; assim, Foucault localiza nessa vi rada de Kant a possibilidade de se pensar a questão da ver dade como um tipo de interrogação crítica que se pergunta não como Descartes: quem sou eu, sujeito universal e sem história? E sim: quem somos nós, sujeitos históricos, incluí dos nesse tempo e nesse espaço a que pertencemos? Assim, constituir-se-ia na história do pensamento filosófico uma tradição que, a partir de Kant, tomaria a atualidade como objeto de problematização, problematização de aconteci mentos, uma vez que estes definiriam todo o horizonte de possibilidade da categoria de pensamento. Portanto, quan do se fala de verdade, nesses termos, quer-se pensar os acontecimentos determinantes da atualidade, esse jogo de forças e de oposição, esse jogo de identidades e diferenças que constitui a regularidade dos discursos num período da arqueologia e os diferentes mecanismos e práticas de poder na genealogia. A verdade assim pensada é atravessada por uma historicidade e, ao mesmo tempo, articulada com a maneira pela qual se vive (éthos) e com a forma pela qual se constitui uma estrutura política (politeía) (Foucault, 2009Foucault, M. (2009). Le courage de la vérité : le gouvernement de soi et des autres 2, 1983-1984. Paris, France: Gallimard., p. 63). Ora, na arqueologia e na genealogia não se trata de fazer uma analítica da verdade, analítica que insere a ques tão metodológica de uma teoria do conhecimento a respei to das condições de possibilidade de um conhecimento verdadeiro, conhecimento que em relação ao estado de pa lavras e de coisas encontra-se excluído dos registros ético e político, mas de promover uma analítica do presente por onde a questão da verdade encontra a dimensão da história (Foucault, 1984/1994fFoucault, M. (1994f). Qu'est-ce que les Lumières?. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 679-688). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1984), pp. 687-688), por onde os pensa mentos encontram os acontecimentos.
Ao retomar aqui uma análise do presente na moder nidade e uma leitura da psicanálise nesse período, temos como objetivo - e nesse ponto estamos na esteira do pen samento de Foucault - não apenas de descobrir, no sentido preciso de desvelar ou de trazer à tona a verdade a respeito daquilo que somos, mas de recusar essa identidade, rejei tar esse diagnóstico que nos foi imputado historicamente pelas formas de saber e de poder, enfim, pelas formas de sujeição ou de assujeitamento das subjetividades (Foucault, 1982/1994hFoucault, M. (1994h). Le sujet et le pouvoir. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 222-244). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1982), p. 232; Foucault, 1984/1994fFoucault, M. (1994f). Qu'est-ce que les Lumières?. In M. Foucault, Dits et écrits, 1954-1988 (pp. 679-688). Paris, France: Gallimard. (Trabalho original publicado em 1984), pp. 685-687). É preciso também considerar outro aspecto fundamental pre sente na investigação desenvolvida por Kant, quando ele articula a noção de esclarecimento à ideia de revolução; trata-se do aspecto que fala da saída da minoridade, saída de uma posição de submissão da subjetividade como forma de deslocamento e, ao mesmo tempo, também como forma de entrada, por assim dizer, na maioridade. Para Foucault, quando Kant fala do esclarecimento está em jogo um des locamento da posição do sujeito, deslocamento que não significa necessariamente transição, pertencimento a um ou a outro estado de consciência, nem mesmo conquista ou algum tipo de alcance de registros mais elevados de pen samento; trata-se de um movimento de saída, de partida, movimento pelo qual a gente se afasta de alguma coisa, de algum lugar, sem que nada seja dito sobre a direção a que se vai (Foucault, 2008Foucault, M. (2008). Le gouvernement de soi et des autres, 1982-1983. Paris, France: Gallimard., p. 27). Ora, é esse deslocamento, essa partida que está em jogo na irrupção da verdade nessa analítica do presente e que converte essa última numa pos sibilidade de crítica.
Assim, a verdade surge como aquilo que na his tória aponta para os acontecimentos descontínuos, para as rupturas do pensamento, para aquilo que manifesta no mesmo um espaço de outro e de alteridade, ou se qui ser, de inconsciência do saber. É por sua introdução que uma crítica se torna possível; é por sua presença que as palavras e as coisas, que a subjetividade e o pensamento encontram os acontecimentos. Seja por uma verdade do presente ou por uma verdade manifesta no pensamento psicanalítico, o que está em jogo na história do presente de Foucault é a possibilidade da afirmação de um pen samento novo que, atravessado por acontecimentos, se constitui como espaço de problematização e de expe rimentação de si. Como um tipo de lançar de dados, o pensamento é convocado a uma aventura do involuntário, aventura formada por acontecimentos em que a verdade é sem limite nem trégua, ligada ao que é acaso, ao que é propriamente outro em seu devir.
Referências
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Fonte de financiamento: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Jan-Apr 2016
Histórico
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Recebido
28 Mar 2014 -
Revisado
12 Fev 2015 -
Aceito
23 Mar 2015