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Psicanálise e cultura pop: os mitos no contemporâneo

Psychanalyse et culture pop : les mythes dans la contemporanéité

El psicoanálisis y la cultura pop: los mitos en la contemporaneidad

Resumo

O que a cultura pop tem a dizer sobre os sujeitos de nosso tempo? Neste ensaio, os autores propõem uma via de leitura das produções da cultura pop apostando que, na contemporaneidade, ela floresce, no território tradicionalmente reservado à mitologia, como enunciante dos modos de subjetivação. Retomando a abordagem psicanalítica dos mitos a partir de Freud e Lacan, observa-se que a função de recobrir o Real do desamparo, em um tempo que se crê racionalista, passa a ser desempenhada por ficções que deixam rastros e possibilitam, através da variância e da repetição, desvelar a estrutura subjacente que lhes engendra. Por fim, propõe-se que, se essas produções são consumidas com tamanha voracidade, é porque dizem algo sobre os sujeitos que a elas se lançam - ou seja, sobre a subjetividade desta época.

Palavras-chave:
psicanálise; cultura pop; mitos

Résumé

Qu’est-ce que la culture pop peut dire sur les sujets de notre temps ? Dans cet essai, les auteurs proposent une voie de lecture des productions de la culture pop en pariant que, dans la contemporanéité, elle fleurit dans le territoire traditionnellement réservé à la mythologie comme énonciateur des modes de subjectivation. Si l’on reprend l’approche psychanalytique sur les mythes à partir de Freud et Lacan, on observe que la fonction de recouvrir le Réel de la détresse, dans un temps qu’on croit rationaliste, est accomplie par des fictions qui laissent des traces et permettent, grâce à la variance et à la répétition, de révéler la structure sous-jacente qui les engendre. Enfin, on propose que, si ces productions sont consommées avec une telle voracité, c’est parce qu’elles disent quelque chose sur les sujets qui sur elles se lancent - c’est-à-dire sur la subjectivité d’une époque.

Mots-clés:
psychanalyse; culture pop; mythes

Resumen

¿Qué tiene que decir la cultura pop sobre los sujetos de nuestro tiempo? En este ensayo, los autores proponen una vía de lectura de las producciones de la cultura pop asumiendo que, hoy en día, ella florece, en el territorio reservado tradicionalmente a la mitología, como enunciante de los modos de subjetivación. Al reanudar el enfoque psicoanalítico de los mitos de Freud y Lacan, se observa que la función de recubrir lo real del desamparo, en un tiempo que se cree racionalista, pasa a ser desempeñada por ficciones que dejan huellas y hacen posible, a través de la varianza y la repetición, develar la estructura subyacente que las engendra. Por último, se propone que, si estas producciones se consumen con tanta voracidad, es porque dicen algo sobre los sujetos que a ellas se arrojan, es decir, sobre la subjetividad de esta época.

Palabras clave:
psicoanálisis; cultura pop; mitos

Abstract

What does pop culture have to say about the subjects of our time? In this article, the authors propose a way of reading the productions of pop culture betting that, in the contemporaneity, it flourishes, in the territory traditionally reserved for mythology, as enunciator of the modes of subjectivation. In the psychoanalytic approach of myths from Freud and Lacan, the function of covering the Real of the helplessness, in a rationalist era, is played by fictions that leave traces and make it possible, through variance and repetition, to unveil the underlying structure that engenders them. Finally, it is proposed that if these productions are consumed with such voracity, it is because they say something about the subjects who are targeted - that is, about the subjectivity of this time.

Keywords:
psychoanalysis; pop culture; myths

Introdução

No momento em que as linhas iniciais deste texto foram tamboriladas, em dezembro de 2015, os portais de notícias informavam que O Despertar da Força, primeiro episódio da trilogia mais recente da franquia Guerra nas Estrelas, superava a barreira de U$ 1.000.000.000 de arrecadação ao redor do mundo com menos de um mês de exibição (para ser mais exato, precisou de apenas doze dias) (Abrams, 2015Abrams, J. J. (2015). Guerra nas estrelas: o despertar da força [Filme]. São Francisco CA ,: Lucasfilm. 136 min.). Na estreia do filme, milhares de pessoas reuniram-se nas salas de exibição ao redor do globo terrestre caracterizadas como os personagens do universo criado por George Lucas - que, aliás, não está sozinho no clube das produções de rendimentos bilionários: outras 23 películas figuram no grupo liderado por Avatar, de James Cameron (2009Cameron, J. (2009). Avatar [Filme] . Los Angeles, CA: Twentieth Century Fox. 162 min.)1 1 Dados extraídos do Box Office Mojo, em abril de 2016. Recuperado de https://goo.gl/RmU48c . Trata-se de um fenômeno inegavelmente recente; nesse conjunto, apenas três integrantes foram produzidos antes da virada do século XXI e quase todos fixaram residência em um território ainda muito pouco explorado pela psicanálise: a cultura pop. Embora o número de espectadores seja menos fácil de calcular, os dados de bilheteria revelam que, na virada do século XXI, o alcance do cinema chegou a patamares que os irmãos Lumière jamais poderiam sonhar.

Essa breve exposição situa as condições em que este ensaio é concebido: provocado por um expressivo e intrigante fenômeno social, por um lado, e, por outro, atravessado por uma pesquisa envolvendo o cinema contemporâneo que, incidentalmente, toca também a chamada cultura pop - pois, dependendo da abrangência do escopo, torna-se virtualmente impossível dissociar um do outro. A menção a Guerra nas Estrelas não é casual: é a partir do primeiro filme, de 1977, que o cinema deixou de ser só cinema para virar também linha de brinquedos, histórias em quadrinhos, séries de livros, videogames, propagandas de televisão, action figures e toda a sorte de derivados que o mercado conseguir imaginar, instaurando o fenômeno que hoje se reconhece sob o título de transmídia (Lucas, 1977Lucas, G. (1977). Guerra nas estrelas: episódio IV - uma nova esperança [Filme]. São Francisco, CA: Lucasfilme. 121 min.). Por sua potência, o cinema e a cultura pop - com as multidões que mobilizam, as imagens que oferecem e as constelações de significantes que colocam em movimento - não são algo que possamos desprezar ao nos debruçarmos sobre a constituição do sujeito contemporâneo. Daí a pergunta que mobiliza este ensaio: o que as produções culturais contemporâneas, especialmente as obras cinematográficas, têm a dizer sobre os sujeitos denosso tempo? Nossa aposta é que, na contemporaneidade, a cultura pop aflora no solo tradicionalmente reservado à mitologia como enunciante da subjetivação. Como propulsor dessa discussão, será importante recapitular o lugar que a psicanálise reserva aos mitos e à cultura pop.

Os mitos e a psicanálise

O estudo dos mitos antecede em muito o surgimento da psicanálise e revela-se demasiado amplo para poder ser sintetizado neste escrito. De sua abrangência, interessar-nos-á tecer um recorte que situe suas abordagens em relação ao discurso psicanalítico. Servimo-nos, de início, da etimologia do termo mito oferecida por Jassanan Pastore (2012Pastore, J. (2012). Psicanálise e linguagem mítica. Ciência e Cultura, 64(1), 20-23., p. 20):

A palavra mito tem sua origem grega em mythos, que deriva do verbo mytheio, contar, narrar, e mytheo, contar, conversar. Na Grécia arcaica, meados do século VIII ao século VI a. C., o sentido primordial do termo mythos era palavra ou discurso, atrelado a uma narrativa ligada aos deuses e heróis. Na literatura grega, mythos surge com o sentido de história ou narrativa a ser transmitida por meio da palavra. O narrador, um poeta/aedo escolhido pelos deuses, tem a palavra sagrada, pois advinda de uma revelação divina e, portanto, tomada como verdade.

Freud fez vasto uso das narrativas míticas em sua elaboração teórica. Independentemente de terem sido extraídas de tragédias gregas, de costumes polinésios, das escrituras judaicas ou da demonologia cristã, o instaurador do discurso analítico conferiu-lhes tratamento razoavelmente uniforme, utilizando-as para ilustrar, sustentar e expandir seus achados clínicos. A hipótese de Freud (1908/2006dFreud, S. (2006a). A interpretação dos sonhos I (Coleção Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, J. Salomão, trad., Vol. 4). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)), enunciada em Escritores criativos e devaneios, é de que os mitos constituiriam “vestígios distorcidos de fantasias plenas de desejos de nações inteiras, os sonhos seculares da humanidade jovem” (p. 242). Quando os mitos que tinha à disposição lhe pareceram insuficientes, o fundador da psicanálise propôs narrativas novas: em Totem e tabu (Freud, 1913/2006eFreud, S. (2006b). A interpretação dos sonhos II (Coleção Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, J. Salomão, trad., Vol. 5). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900)), enfatizou predominantemente a fenomenologia dos ritos e proibições de sociedades primitivas para montar a hipótese da horda primeva; em Moisés e o monoteísmo (Freud, 1939/2006fFreud, S. (2006c). Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 9, pp. 13-88). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1907)), tomou em consideração as narrativas egípcias e judaicas, com o intuito de compor uma verdade histórica sobre o assassinato de um líder religioso. Ambas as versões de um parricídio originário (o primeiro como fundador da civilização, o segundo como organizador do monoteísmo) são tratadas por Freud como realidade histórica. Lacan (1969-1970/1992Lacan, J. (1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970)), em O avesso da psicanálise, mostra-se particularmente crítico em relação às proposições freudianas. Ao psicanalista francês, parece desconfortável a insistência de Freud de que o assassinato do pai da horda assim como o assassinato de Moisés constituiriam fatos históricos. Seria demasiado generoso de nossa parte relativizar a acidez lacaniana e propor que, em ambos os casos, tratava-se, afinal, de estabelecer uma construção que buscava lançar luz sobre o recalcado da cultura?

Leitor de Freud, Lévi-Strauss fará dos mitos o fulcro de sua elaboração teórica. Em lugar de buscar uma versão original ou autêntica do mito, Lévi-Strauss sustentará a análise estrutural do mito, ou seja, a consideração de todas as variantes do mito na mesma medida, observando as repetições que revelam sua armação interna. Em Mito e significado, Lévi-Strauss (1978Lévi-Strauss, C. (1978). Mito e significado (A. Bessa, trad.). Lisboa: Edições 70.) entrevê o caráter de desamparo presente no mito, assinalando que ele oferece a ilusão de que o homem pode entender o universo e, mais do que isso, que de fato o entende. Embora para o antropólogo tal ilusão seja extremamente importante, ela fracassa em fornecer ao homem maior domínio sobre a natureza - diferindo, portanto, do êxito obtido pelo pensamento científico. Ao mesmo tempo que descreveu magistralmente as características, as funções e a estrutura dos mitos, Lévi-Strauss evitou circunscrevê-los em uma definição operacional - opção deveras mais prudente do que aquela tomada por Albino Magno que, nas linhas iniciais do volume endereçado a seus alunos, sentencia:

Dá-se o nome de mitologia às fábulas ou crenças erróneas que formavam a base da religião dos Gregos e dos Romanos e de todos os outros povos da terra, com excepção dos Judeus. Ao culto dos falsos deuses, ao culto dos ídolos, dá-se o nome de idolatria ou paganismo. (s/dMagno, A. (s/d). Mitologia: história do paganismo de vários povos da Antiguidade. Lisboa: J. Rodrigues & Cia., p. 7)

Abster-se de produzir uma conceitualização etnocêntrica acerca de um fenômeno cultural é um desafio que nunca se esgota; doutro modo, teríamos de nos questionar: toda forma de compreensão do mundo que se distancie da razão moderna ocidental é um mito? Ou a própria razão ocidental apresenta uma estrutura mítica? Deixemos essa interrogação em suspenso.

O mitólogo romeno Mircea Eliade (1972Eliade, M. (1972). Mito e realidade (P. Civelli, trad.). São Paulo, SP: Perspectiva.), sem deixar de reconhecer as dificuldades de delimitação de seu objeto de pesquisa, propôs que “o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial” (p. 9), em que algo foi trazido à existência pela intervenção do sobrenatural. Eliade pontua que sempre se trata de uma história “verdadeira” - as histórias “falsas”, como fábulas e contos vulgares, não se enquadrariam na condição de mito. A distinção entre narrativas verdadeiras e falsas constitui, todavia, um percalço metodológico; os relatos transmitidos sob o signo da verdade por um grupo podem ser percebidos como falsos por outro. Eliade pontua que o rito da transmissão desempenha um papel fundamental nessa diferenciação - as histórias verdadeiras não prescindiriam de cerimonial em sua contagem, ao passo que as histórias falsas são relatadas cotidianamente, sem observar os rigores que seriam devidos aos mitos genuínos.

Preservando a ideia de Eliade de que o mito fornece modelos para as atividades humanas, valoração e significação à existência, Junito de Souza Brandão (1986Brandão, J. (1986). Mitologia grega (Vol. 1). Petrópolis, RJ: Vozes.) oferece uma saída interessante: “os mitos são a linguagem imagística dos princípios . . . uma representação coletiva, transmitida através de várias gerações e que relata uma explicação do mundo” (p. 38). Entusiasmado com as formulações de Jung, Brandão observa nos mitos um inesgotável repositório de símbolos que permitiriam o acesso do “consciente ao inconsciente coletivo”, e lhe interessaram particularmente os mitos nos quais poderia localizar esse trajeto.

Roland Barthes traz uma concepção mais abrangente e flexível, com a qual Brandão concorda apenas parcialmente: o mito seria fundamentalmente um sistema de comunicação. “Eis por que não poderia ser um objeto, um conceito ou uma ideia: ele é um modo de significação, uma forma”, diz Barthes (2009Barthes, R. (2009). Mitologias (R. Buongermino, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Difel., pp. 297-298). A discordância de Brandão encontra-se no que ele considera uma redução do conceito de mito em Barthes, que o apresentaria como qualquer forma substituível de verdade. Se o mito é uma fala, tudo pode constituir-se como mito: “cada objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar das coisas”, provoca Barthes (2009Barthes, R. (2009). Mitologias (R. Buongermino, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Difel., p. 298).

A palavra de Jacques Lacan ajuda-nos a situar a questão do mito dentro do campo psicanalítico. Lacan, que, ao contrário de Freud, já podia contar com as contribuições de Lévi-Strauss, ressalta o aspecto linguageiro dos mitos: “o que se chama de um mito, seja ele religioso ou folclórico, em qualquer etapa de seu legado que se o considere, apresenta-se como uma narrativa” (1956-1957/1995, p. 258), acrescentando que o mito tem um caráter de ficção - ainda que seja uma ficção estável, não facilmente curvada aos sabores individuais. Trata-se, portanto, de uma ficção coletiva que, todavia, desencadeia efeitos singulares em cada sujeito. No seminário O avesso da psicanálise, Lacan (1969-1970/1992Lacan, J. (1993). Televisão (A. Quinet, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1974)) sintetiza o sentido do mito como um enunciado do impossível. Que impossível é esse? A impossível redução do Real ao Simbólico e ao Imaginário. Essa conclusão se apresenta ao considerarmos que Lacan (1956-1957/1995Lacan, J. (1995). O seminário, livro 4: a relação de objeto (D. Estrada, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1956-1957)), em um momento anterior, acentuara que a categoria mítica se refere à relação do homem “à existência do próprio sujeito e aos horizontes que sua experiência lhe traz” (p. 259), existência essa cuja gênese se coloca permanentemente como enigma. Não seria por outro motivo, aliás, que tão frequentemente os mitos se detenham em questões de criação, visando dar conta de uma cena originária. Poderíamos, amparados na leveza de Barthes e nas formulações de Lacan, tomar os mitos como ficções coletivas que recobrem o Real do desamparo. Dessa maneira, a análise do mito desvela a gramática do desamparo inerente à modalidade de subjetivação em que ele se inscreve. Em outras palavras, é possível extrair consequências clínicas do exame mitológico. A contribuição de Maria Rita Kehl (2002Kehl, M. R. (2002). Minha vida daria um romance. In G. Bertucci (Org.), Psicanálise, literatura e estéticas de subjetivação (pp. 57-91). Rio de Janeiro, RJ: Imago., pp. 68-69) ajuda a consolidar essa concepção:

Se o desamparo é parte da condição humana, as grandes formações da cultura funcionam para proporcionar, num mundo feito de linguagem, algumas estruturas razoavelmente sólidas de apoio para estes seres por definição desgarrados da ordem da natureza. A tradição, de certa forma, situa as pessoas na sociedade em que vivem, explicitando o que é esperado de cada um a partir do lugar que ocupam desde o nascimento. A religião produz sentidos para a vida e a morte, e orienta as escolhas morais; os mitos explicam por que as coisas são como são, e fundamentam as interdições necessárias à manutenção do laço social.

A mitologia, como linguagem imagística, condensa, por um lado, os arranjos simbólicos da cultura e, por outro, coloca em cena as armações do imaginário. Para Lacan (1954/2008Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 238-324). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953)), o mito se encontra no âmago da experiência analítica. Assim propõe o psicanalista francês:

Se nos fiamos na definição do mito como uma certa representação objetiva de um epos ou de uma gesta que exprime de maneira imaginária as relações fundamentais características de um certo modo de ser humano em uma época determinada, se o compreendemos como a manifestação social latente ou patente, virtual ou realizada, plena ou esvaziada de seu sentido, podemos então certamente reencontrar sua função na vivência do neurótico. (p. 10)

Ao descrever a estrutura do mito, percebemos que Lacan o aproxima da noção freudiana de romance familiar: ele é historicizável - na medida em que se permite converter em uma narrativa remetida a uma temporalidade outra - e histericizável - na medida em que o sujeito pode se fundar nessa narrativa interpelando o Outro sobre si. Seria essa a intenção de Lacan (1954/2008Lacan, J. (2002). El seminario, libro 22: R. S. I (R. Ponte, trad.). Buenos Aires: Escuela Freudiana de Buenos Aires. (Trabalho original publicado em 1974-1975)) ao propor a expressão “mito individual do neurótico”?

Que um mito seja ou não verossímil, que seja harmônico ou conflitivo com a noção de realidade, essas talvez sejam indagações secundárias. Lacan (1969-1970/1992Lacan, J. (2008). O mito individual do neurótico (A. Quinet, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1954)) diagnosticara que se pode falar muita besteira sobre os mitos, porque os mitos são o campo da besteirada - e aí a verdade reside. Em Atlas, Borges (2010Borges, J. (2010). O princípio. In J. Borges, & M. Kodama (Orgs.), Atlas (H. Jahn, trad., p. 37 São Paulo, SP: Companhia das Letras.) traz-nos a imagem de um colóquio entre dois gregos: “O tema do diálogo é abstrato. Aludem por vezes a mitos, dos quais ambos descreem. . . . Estão de acordo num único ponto; sabem que a discussão é o não impossível caminho para chegar a uma verdade” (p. 37). Os helenos imaginados por Borges, inseridos em um universo sabidamente fértil de mitologia, permitiam-se situar a uma distância crítica, mas ainda retornar aos mitos para buscar a verdade que supunham deles poder decantar. Semelhante é a posição de Lacan (1974-1975/2002Lacan, J. (2002). El seminario, libro 22: R. S. I (R. Ponte, trad.). Buenos Aires: Escuela Freudiana de Buenos Aires. (Trabalho original publicado em 1974-1975)) no seminário R. S. I., quando, ao observar que uma verdade negada (Verneinung) tem tanto peso quanto uma verdade confessada (Bejahung), aponta que o imaginário é o lugar onde toda verdade se enuncia. Em acréscimo, alguns anos antes Lacan (1969-1970/1992Lacan, J. (2008). O mito individual do neurótico (A. Quinet, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1954)) propusera que “o semi-dizer é a lei interna de toda espécie de enunciação da verdade, e o que melhor a encarna é o mito” (p. 103). Assim, o caráter imaginário dos mitos, prenhe das simbolizações que tanto intrigavam Freud, fornece o estofo para a veiculação das narrativas que permitirão seu esburacamento e sua decupagem, revelando a configuração do desamparo que se lhes encontra subjacente. Não seriam os mitos, pois, uma forma de confissão da verdade sob a estrutura de ficção que lhe é característica?

Se, como Lacan (1953/1998Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 238-324). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953)) assinala em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise, “o que ensinamos ao sujeito reconhecer como seu inconsciente é sua história” (p. 263), não podemos ignorar o fato de que essa história é recheada por outras histórias. No mesmo texto, pouco antes de pontuar que o inconsciente é o discurso do Outro, Lacan postula que o inconsciente é “o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por minha mentira: é o capítulo censurado” (p. 260). Mas a verdade pode ser resgatada; na maioria das vezes, já está escrita em outro lugar. Que outros lugares seriam esses? Lacan os nomeia: são os monumentos (o corpo, testemunha ocular da existência); os documentos de arquivo (as lembranças infantis em seu caráter de semi-impenetrabilidade); a evolução semântica (o léxico particular e os maneirismos que foram apropriados); os vestígios (as evidências das distorções percebidas ao nível da fala); e as tradições - descritas como as “lendas que sob forma heroicizada veiculam minha história” (p. 261). O psicanalista francês deixa sublinhado, assim, que uma parcela do inconsciente se encontra preservada nas grandes narrativas compartilhadas - nos epos, poemas épicos, e nas gestas, as façanhas heroicas; em outras palavras, nas formulações míticas - que comandam a subjetivação.

Tomemos então o mito como uma construção, na acepção freudiana do termo, que, como pontua Lacan (1974/1993Lacan, J. (1993). Televisão (A. Quinet, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1974)), tenta revelar o que se opera ao nível da estrutura do inconsciente. O mito funciona, portanto, como um enunciante daquilo que acontece nos bastidores, para utilizar a metáfora de Ana Vicentini de Azevedo (2004Azevedo, A. (2004). Mito e psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). A autora previne que o conteúdo mitológico, todavia, não deve ser interpretado como arquétipo (ou seja, como se portasse um sentido cristalizado e uniforme), visto que os próprios mitos se definem pela multiplicidade de significações: é nas relações entre os significantes presentes no mito, tanto em sua intratextualidade quanto em sua intertextualidade, que ele revela o tecido que o constitui. Como salienta Lévi-Strauss (2008Lévi-Strauss, C. (2008). A estrutura dos mitos. In Antropologia estrutural (B. Perrone-Moisés, trad., pp. 221-249). São Paulo, SP: Cosac Naify.), “a substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de narração, nem na sintaxe, mas na história que nele é contada” (p. 225). Essa história, como vimos, desliza sobre o tecido da cultura em direção a outras narrativas e substitui uma textualidade de outra ordem. A palavra, em sua dimensão significante, ganha ênfase na interpretação dos mitos. “Dito de outra forma, o mito põe na cena da palavra, da linguagem, muito do que a psicanálise vai mais tarde explicitar, a partir da lógica do inconsciente, tanto em sua teoria quanto em sua prática clínica”, esclarece Azevedo (2004Azevedo, A. (2004). Mito e psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., p. 19). Está colocada, assim, a relação entre as construções míticas e a lógica do inconsciente, estruturado como linguagem, na medida em que o mito se faz metonímia e metáfora, convocando, pois, à interpretação.

Abordando a cultura pop

Até aqui, uma série de termos foi evocada indistintamente - folclore, tradição, lenda - para designar modalidades de ficção bastante específicas e eventualmente heterogêneas entre si. Essas formas narrativas nos interessam na medida em que constituem pistas e aproximações para abordarmos a cultura pop, um conceito de circunscrição delicada. O próprio termo é capcioso: a contração pop sugere que o fenômeno pertence à ordem do popular, mas essa equivalência precisa ser interrogada. Da mesma forma que a MPB, sigla de música popular brasileira, hoje abarca um nicho sensivelmente apartado do que se poderia compreender como a música popular do Brasil, falar em cultura pop não é o mesmo que falar em cultura popular, mas essa última noção nos será útil.

A atual cultura pop não foi, por óbvio, tematizada por Freud - o que não significa que não possamos encontrar algumas guias em seu trabalho. Embora Freud tenha, em seus escritos, privilegiado produções notadamente eruditas, como as narrativas helenísticas (recordemos Édipo, Narciso, O banquete, de Platão - 428-347 a.C/2016Platão. (2016). O banquete. São Paulo, SP: Editora 34. (Trabalho original publicado em 428-347 a.C.)) e os expoentes da Renascença (vejamos a atenção dedicada a Leonardo da Vinci e Michelangelo), ele também reservou espaço para examinar um romance popular como Gradiva, de Wilhelm Jensen. Aliás, sob alguns aspectos, é possível notar o parentesco entre o comentário freudiano ao livro de Jensen e Os sonhos no folclore, redigido em 1911, em parceria com David Oppenheim, mas publicado somente em 1957: ambos os textos abordam relatos oníricos obtidos fora da cena clínica, evidenciando a possibilidade de interpretar processos culturais de forma similar àquela introduzida em A interpretação dos sonhos (Freud, 1900/2006aFreud, S. (2006d). Escritores criativos e devaneio. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 9, pp. 135-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1908), 1900/2006bFreud, S. (2006e). Totem e tabu. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 13, pp. 11-163). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1913)). Se em Delírios e sonhos na Gradiva de Jensen (Freud, 1907/2006cFreud, S. (2006f). Moisés e o monoteísmo. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 23, pp. 15-150). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1939)) trata-se de afirmar a viabilidade de ilustrar o método analítico utilizando um sonho artificial, no texto de 1911, contudo, a ênfase recai sobre os recortes oníricos captados por Oppenheim junto às tradições da comunidade. A opinião de Freud é categórica: “o folclore interpreta os símbolos oníricos da mesma forma que a psicanálise” (Freud & Oppenheim, 1957/2006Freud, S., & Oppenheim, D. (2006). Os sonhos no folclore. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 12, pp. 191-220). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1957), p. 220). Ou seja, o instaurador do discurso analítico tomava a cultura popular - o folk lore, o saber do povo - como um interpretante do psiquismo, reconhecimento similar ao conferido aos escritores e à arte de modo geral. Abre-se, assim, a via para utilizar o método de interpretação dos sonhos na análise das ficções produzidas pela cultura - conjunto onde se inserem os mitos.

Tradicionalmente, pensa-se em cultura a partir do par antitético “alta cultura” (ou cultura de elite) e “baixa cultura” (ou cultura popular). Peter Burke (2010Burke, P. (2010). Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500-1800 (D. Bottmann, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.), por exemplo, diante da dificuldade de circunscrever seu objeto de estudo - a cultura popular - opta por defini-la através de seu negativo: uma cultura não oficial, a cultura da não elite. No contemporâneo, porém, as fronteiras tornam-se menos nítidas; Gilles Lipovetsky e Jean Serroy (2011Lipovetsky, G., & Serroy, J. (2011). A cultura-mundo: resposta a uma sociedade desorientada (M. Machado, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) apontam para a erosão das barreiras que distinguiam a alta cultura da baixa cultura como resultantes de uma articulação midiática e mercantil na indústria cultural que opera em nível global2 2 Precisaríamos, ainda, averiguar se esse processo é, de fato, global e se os produtos culturais transitam de forma global ou ainda em uma relação colonial. No Brasil a cultura pop, por exemplo, carrega fortíssimos traços de americanização, embora seja possível encontrar, aqui e ali, referências latinas ou nipônicas, possivelmente tributárias de certas emissoras de televisão. Essa importante interrogação, todavia, ultrapassa as ambições deste trabalho. . “Pela primeira vez, há uma cultura produzida não mais para uma elite social e intelectual, mas para todo mundo, sem fronteiras de países nem classes” (p. 71). Atrelada à intensidade das rotinas de consumo, o efeito é uma mercantilização da cultura - e, simultaneamente, uma culturalização da mercadoria.

Produziu-se uma revolução: enquanto a arte, daí em diante, se alinha com as regras do mundo mercantil e midiático, as tecnologias da informação, as indústrias culturais, as marcas e o próprio capitalismo constroem, por sua vez, uma cultura, isto é, um sistema de valores, objetivos e mitos. (p. 10)

Também Jameson (1995Jameson, F. (1995). Reificação e utopia na cultura de massa. In As marcas do visível (J. Martins, trad., pp. 9-35). Rio de Janeiro, RJ: Graal.) atenta para a problemática dicotomia entre a “alta cultura” e a cultura de massas - dificilmente sustentável a partir de uma perspectiva histórica, visto que compõem uma dialética de interdependência na qual o erudito de hoje poderá ser o vulgar de ontem. O autor postula que, na cultura de massas, em decorrência do avanço do capitalismo, reside muito pouco do que se poderia reconhecer como cultura popular, exceto sob condições “muito específicas e marginalizadas”. Podemos concordar, nesse sentido, que, no que resta do popular, o folk é fagocitado pelo pop, perdendo seus distintivos locais para dar vazão à reprodutibilidade comercial - ampliando, com isso, sua capacidade de penetração nos estratos culturais: “a peça pop, por meio da repetição, torna-se insensivelmente parte do tecido existencial de nossas próprias vidas, de tal modo que aquilo que ouvimos somos nós mesmos”, declara Jameson (1995Jameson, F. (1995). Reificação e utopia na cultura de massa. In As marcas do visível (J. Martins, trad., pp. 9-35). Rio de Janeiro, RJ: Graal., p. 20).

O conceito de cultura de massa também auxilia na formulação da noção de cultura pop, embora não se confunda com essa. A cultura de massa é descrita por Lipovetsky (2009Lipovetsky, G. (2009). O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas (M. Machado, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) como uma “formidável máquina comandada pela lei da renovação acelerada, do sucesso efêmero, da sedução, da diferença marginal” (p. 238). Como efeito da incidência do mercado sobre as composições de massa, Lipovetsky enfatiza seu caráter de impermanência3 3 Em sua reflexão, Lipovetsky (2009) deixa entreaberta a porta para o diálogo com a psicanálise: “como os sonhos e os ditos espirituosos, a cultura de massa, no essencial, repercute aqui e agora” (p. 244). Os psicanalistas, todavia, conhecem bem a dilatação temporal das reverberações do inconsciente, que se estendem muito além do “aqui e agora” – afetam tanto a construção do futuro, quanto a ressignificação do passado. . Em razão disso, o filósofo presume que a cultura de massa é “uma cultura sem rastro, sem futuro, sem prolongamento subjetivo importante” (p. 244). Curiosamente, porém, boa parte das produções mencionadas pelo autor nesse já distante ano de 1987 - como James Bond (Glen, 1987Glen, T. (1987). 007 Marcado para a morte [Filme]. Londres, UK: Eon Productions. 130 min.), Star Trek (Roddenberry, 1987-1994Roddenberry, G. (1987-1994). Jornada nas estrelas: a nova geração [Seriado]. Los Angeles, CA: Paramount Television.) e Superman (Gupta, 1987Gupta, B. (1987). Superman [Filme]. India: Fine Art Pictures.) - seguem pulsantes na contemporaneidade: na última década, o agente secreto britânico estrelou quatro filmes, a nova tripulação da Enterprise alcançou as telas em duas ocasiões (e há mais um filme em produção) e o último filho de Krypton foi interpretado por dois atores diferentes em quatro produções distintas. Se a cultura de massas é evanescente, a cultura pop parece fundar pontos de resistência. Deve-se reconhecer, porém, que Lipovetsky destaca o cinema em relação às demais indústrias culturais pela aumentada durabilidade de seus produtos, em oposição à obsolescência programada de discos e livros. Nossa posição, portanto, é de que a cultura pop deixa, sim, rastros - e seus efeitos subjetivos estão longe de serem desprezíveis.

Uma cena do filme francês Intocáveis retrata esse fenômeno com muita acuidade: na comemoração de aniversário de Phillipe, um milionário tetraplégico, encontra-se uma orquestra de câmara, contratada para o entretenimento dos convidados (Nakache & Toledano, 2011Nakache, O., & Toledano, É. (2011). Intocáveis [Filme]. Clichy, FR: Quad Productions.). Destaca-se, dentre os empregados da casa, Driss, que pouca importância dá ao concerto privado, preferindo a sonoridade de bandas como Earth, Wind and Fire. Phillipe tenta introduzir Driss à música erudita e solicita à orquestra a execução de alguns clássicos. Ao ouvir os acordes de "O voo do besouro", de Nikolai Rimsky-Korsakov, Driss exprime um largo sorriso.

- Você conhece essa?, pergunta Phillipe.

- Claro!, responde Driss. - É de Tom e Jerry!

Evidentemente, a resposta cômica de Driss nada tem de ingênua. Antes de ser um equívoco, trata-se de uma provocação, uma torção, como se dissesse: esse tipo de cultura é também a minha cultura, também posso fruí-la e também faz parte da minha história, mesmo que minha trajetória passe pelos subúrbios de Paris e não por suas galerias de arte. E talvez a condição de possibilidade dessa democratização do acesso - e da própria constituição do campo da cultura pop - passe pela mercantilização da cultura. Acima de juízos de valor sobre um possível barbarismo e inautenticidade da cultura de massas - advindos especialmente dos teóricos da escola de Frankfurt, que não escaparam a Jameson, Lipovetsky e Serroy -, cabe-nos observar que os efeitos do mercado sobre a cultura em certos aspectos tornaram-na disponível a camadas da população que, doutra forma, lhe seriam absolutamente alheias.

Tomamos a referência à cultura popular e à cultura de massa para propor a cultura pop como uma terceira margem, não necessariamente localizada nas produções de alto prestígio e reconhecimento estético indubitável, nem exatamente situada ao nível do corriqueiro ou vulgar. A cultura pop não é vendida por milhões de dólares em leilões da Sotheby’s, nem exige a mais elevada erudição para a apreciação de seu valor estético. Em última análise, ela tampouco se restringe a constituir um intermediário entre a arte e o capital, entre o nobre e o populacho, entre o douto e o inculto; ela desmonta esses limites ao mesmo tempo que constitui um território inédito que fala a muitos sujeitos indiscriminadamente. Uma noção importante de cultura pop é trazida por Thiago Soares (2014Soares, T. (2014). Abordagens teóricas para estudos sobre cultura pop. Logos: comunicação e universidade, 24(2), 139-152., p. 140):

Atribuímos cultura pop, ao conjunto de práticas, experiências e produtos norteados pela lógica midiática, que tem como gênese o entretenimento; se ancora, em grande parte, a partir de modos de produção ligados às indústrias da cultura (música, cinema, televisão, editorial, entre outras) e estabelece formas de fruição e consumo que permeiam um certo senso de comunidade, pertencimento ou compartilhamento de afinidades que situam indivíduos dentro de um sentido transnacional e globalizante.

Ao estabelecer a noção de cultura pop não apenas a partir dos produtos que nela residem, mas também - e especialmente - em relação às práticas e experiências que se inscrevem ou derivam do território pop, Soares acentua que os sujeitos por ela atravessados não são apenas consumidores: são intérpretes. Esse entendimento ajuda a desmontar certa ilusão de passividade do consumidor da cultura pop em relação às suas mercadorias. Se a cultura pop se desenvolve como consequência da mercantilização da cultura, ela também manifestará o tensionamento dessa marca no seio de seus próprios objetos. Nesse sentido, a estética própria do pop merece ser reconhecida como um modo de existir e resistir às injunções e contradições do capitalismo tardio. Veja-se Deadpool, por exemplo: um filme de super-herói que, oscilando entre o humor autodepreciativo e a sátira escrachada, ironiza os super-heróis, a forma que Hollywood concebe os super-heróis e a forma que o público venera os super-heróis (Miller, 2016Miller, T. (2016). Deadpool [Filme]. Los Angeles, CA: Twentieth Century Fox. 108 min.). O filme só funciona porque absorve e devolve ao espectador o paradoxo de consumo do qual ambos são consequência - sem deixar de apresentar uma experiência estética suficientemente original.

Assim, a cultura pop compreende um território móvel, transnacional, autorreferencial, multiforme em sua constituição midiática, com rastros intergeracionais e cujo consumo não está circunscrito a uma única camada social. Concebida em uma radical interatividade entre público e obra, a própria cultura pop marca-se por sua indeterminação - é inviável reduzi-la a suas obras ou determiná-la a partir dessas pelo fato de que as próprias produções que a engendram possuem um estatuto móvel nesse conjunto: podem ser substituídas por novas, abandonadas ou, pior, esquecidas. Eis o porquê de a definição de cultura pop se mostrar tão espinhosa: quando se tenta circunscrevê-la, ela não está mais lá - embora possamos, a posteriori, identificar seus rastros. Esse campo se apresenta, pois, como litoral, evocando o conceito lacaniano que Edson Sousa (2006Sousa, E. (2006). Escrita das utopias: litoral, literal, lutoral. Revista da APPOA, 31, 48-60.), com grande sutileza, define como “encontro entre heterogêneos” (p. 49) -, mas um litoral voraz, arisco e bravio, permanentemente em atualização, que produz e devora ícones, que constrói e soterra representações, irredutivelmente contemporâneo, que dialoga com o erudito, o cult, o mainstream, o geek e o trash. Entendemos que é a partir dessa condição litorária, condensação de litorânea e literária, que a cultura pop assume, no mundo contemporâneo, uma parcela da função que fora anteriormente reservada às narrativas míticas.

A cultura pop e os mitos na contemporaneidade

Eis, portanto, o ponto que gostaríamos de tensionar neste escrito: o que, afinal, é hoje a nossa mitologia? Que histórias modelam o tecido de nosso tempo e exprimem as formações do inconsciente? Quais são as narrativas que nos constituem como sujeitos no contemporâneo? A experiência clínica nos sugere algumas transformações significativas operadas ao longo das últimas décadas. Na esteira do capitalismo tardio, as lendas locais foram quase completamente substituídas por ficções globais. As crianças do Brasil atual talvez desconheçam seres como o caipora ou o curupira, mas todas sabem quem são Batman e Homem-Aranha. Os adultos compartilham representações razoavelmente similares sobre o que seria um zumbi, seguramente mais próximas da imagem proposta pelos filmes de George Romero do que da tradição vodu, da qual essa figura partiu. As versões de maior difusão dos contos de Hans Christian Andersen não são de Hans Christian Andersen; são da Disney. As divindades romanas, destacadas de seu panteão, seguem regendo o destino dos homens desde as páginas do horóscopo. E as turbulentas relações de parentesco de Guerra nas Estrelas - uma admitida colcha de retalhos composta por fragmentos de histórias de samurai, faroeste, fantasia medieval e ficção científica - são decididamente mais famosas que as da Trilogia Tebana.

Mircea Eliade (1972Eliade, M. (1972). Mito e realidade (P. Civelli, trad.). São Paulo, SP: Perspectiva.) postula que, nas sociedades modernas, a prosa narrativa tomou o lugar ocupado nas sociedades tradicionais pela recitação dos mitos, e defende a possibilidade de dissecar a estrutura mítica presente em alguns romances - algo similar ao que percebe nos comics, as histórias em quadrinhos norte-americanas, cujos personagens, segundo o autor, “apresentam a versão moderna dos heróis mitológicos ou folclóricos” (p. 129). Eliade não é insensível à expressiva mobilização dos leitores diante de mudanças na concepção dos personagens - mudanças essas geralmente relacionadas a temas espinhosos, como a sexualidade e a morte. Se acompanhamos os gibis da atualidade, tal apontamento não nos surpreenderá: tanto a Marvel quanto a DC, as duas maiores editoras de comics dos Estados Unidos, desenvolveram arcos em que profundas transformações ocorriam aos personagens, nunca sem provocar reverberações em suas clientelas. Espantados ficaremos ao perceber que Eliade detectara a magnitude dessas intervenções editoriais já em 1962, um tempo em que a comunicação dos leitores com as editoras se dava por meio de cartas e telefonemas. De lá para cá, o uniforme do Homem-Aranha foi assumido por um personagem negro, Thor mudou de gênero e o Superman, o zênite da representação ocidental de heroísmo, morreu (mas, claro, depois ele se recuperou). E todos esses personagens ganharam versões fílmicas bastante sólidas. Expandindo-se para o cinema, o mundo dos quadrinhos tentou, a seu modo, acompanhar as mudanças da sociedade (com maior conservadorismo da parte da DC do que da Marvel, deve-se reconhecer) e, concordando que ele responde a uma função mítica, fica fácil entender a razão dos protestos quando das modificações implementadas - pois, como salientam Diana e Mário Corso (2011Corso, D., & Corso, M. (2011). A psicanálise na terra do nunca: ensaios sobre a fantasia. Porto Alegre, RS: Penso.), “a ficção não é apenas uma forma de diversão, é também o veículo através do qual se estabelece um cânone imaginário utilizado para elaborar algum aspecto da nossa subjetividade ou realidade social” (p. 24). E os psicanalistas sabem bem com que empenho os sujeitos preservam suas estratégias de defesa contra o desamparo, por mais instáveis, anacrônicas ou mal fundadas que sejam.

Acreditamo-nos racionalistas, como observa Mário Corso (2004Corso, M. (2004). Monstruário: inventário de entidades imaginárias e de mitos brasileiros. Porto Alegre, RS: Tomo Editorial.). A modernidade tardia encampou, de forma geral, o cientificismo, o tecnicismo e a razão como premissa e meta de seu projeto de humanidade. Em outras palavras, supomo-nos (ou desejamo-nos) livres das más influências do pensamento mágico, do dogmatismo religioso, da superstição e da crença. Mas, como lembra o autor, o tempo do mito não acabou. Seguimos sendo contados por ficções que nos constituem, embora o caráter dessas narrativas se encontre irremediavelmente atravessado pela racionalidade moderna, que despreza tudo aquilo que não segue seus próprios padrões de verdade. “A cada momento, a mídia fabrica uma geração de monstros (principalmente para o público infantil) que são consumidos à exaustão e depois descartados”, relembra Corso (2004Corso, M. (2004). Monstruário: inventário de entidades imaginárias e de mitos brasileiros. Porto Alegre, RS: Tomo Editorial., p. 14). Mas, mesmo nos descartes - e talvez especialmente neles -, podemos encontrar certas constâncias, pontos de retorno, repetições de forma e de conteúdo. Bastará recordarmos a observação de Lévi-Strauss sobre a função da repetição nos mitos, que opera no desvelamento de sua estrutura, para que sejam revigorados, na interpretação dessas narrativas, o valor da recapitulação e da dispersão. Seria possível deduzir que, no exercício de recontar a mesma história uma e outra vez, por meio de remakes, prequels, sequências, reboots e spin-offs, a indústria cinematográfica incorre em um automatismo de repetição, capitulando perante o esgotamento criativo e apelando a fórmulas batidas para manter os cofres forrados. É preciso considerar, contudo, que o fascínio exercido por essas recontagens se deve justamente ao fato de que a repetição expressa um atributo do mito - não apenas vício decorrente da mercantilização da cultura. Sendo o mito definido pelo “conjunto de todas as suas versões”, como propõe Lévi-Strauss (2008Lévi-Strauss, C. (2008). A estrutura dos mitos. In Antropologia estrutural (B. Perrone-Moisés, trad., pp. 221-249). São Paulo, SP: Cosac Naify., p. 233), cada retomada da narrativa, cada atualização, torna mais sensível a estrutura em que a narrativa se apoia, permitindo visualizar em que ponto as variações da narrativa pinçam o calcanhar de Aquiles da cultura.

Considerar que somos atravessados por narrativas míticas que habitam a cultura pop implica, reconhecendo seu caráter de entretenimento, tratar-lhe com a devida seriedade. Da mesma forma que o exame mitológico propicia desdobramentos clínicos, debruçar-se sobre a cultura pop e suas produções pode oferecer algumas chaves para a compreensão das configurações contemporâneas do mal-estar, especialmente se considerarmos que as ficções da cultura são formas de resistência às injunções do cotidiano. As grandes narrativas ficcionais, sejam elas histórias verdadeiras ou falsas, nos termos de Eliade, carregam uma estrutura que as faz portadoras de um saber sobre os sujeitos - um saber todavia velado, que requer a operação do interpretante para vir à tona. Seria importante problematizar as consequências psíquicas do deslocamento das narrativas subjetivantes do campo mitológico para o terreno da cultura pop: que efeitos na constituição do sujeito produz a projeção da indústria cultural como Outro, que formas de mal-estar se apresentam a partir do reposicionamento da tradição - não mais como tesouro dos anciões, mas como código dos contemporâneos -, que faceta do Real as produções da cultura pop se propõem a recobrir, e assim por diante. Como salienta Birman (2012Birman, J. (2012). O sujeito na contemporaneidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), “não existem mais dúvidas sobre as mudanças nas formas de mal-estar na contemporaneidade, em contraste patente ao que nos descrevia de maneira cortante o discurso freudiano. O quadro hoje é outro, francamente diferente” (p. 63). Estamos inteiramente de acordo e, se o cenário atual tem especificidades em relação ao panorama explorado por Freud, compete-nos interrogar sobre as modulações no discurso do Outro que redesenham os desejos, os ideais e o desamparo de nosso tempo - as quais, consequentemente, produzem efeitos no campo clínico, levando-nos a interrogar as próprias categorias diagnósticas que sustentam a prática analítica.

Acerca disso, contudo, este escrito tem poucas respostas a oferecer; contentamo-nos, por hora, em desenhar um método. Em síntese, o que se coloca aqui é a possibilidade de examinar as manifestações da cultura pop, e mais especificamente as produções fílmicas que nela se inscrevem, em seu aspecto mítico, como narrativas coletivas que significam e articulam o desamparo sob a consigna da ficção, interpretando-as segundo o modo que Freud reservou às composições oníricas. Em outras palavras, analisar os filmes como mitos e interpretá-los como sonhos. Pois, no fim das contas, talvez as alegorias míticas derivem dos mesmos processos de deformação que acometem os sonhos. Como propõem Christian Dunker e Ana Lucilia Rodrigues (2015Dunker, C., & Rodrigues, A. (2015). Cinema e psicanálise: a criação do desejo. São Paulo, SP: Nversos., p. 15):

Se os filmes são nossos mitos e se o psicanalista é uma espécie de xamã moderno, intérprete, tradutor e articulador dos mitos individuais dos neuróticos, estamos no plano da comensurabilidade entre diferentes sistemas ficcionais e suas eventuais obstruções simbólicas. Desta maneira, a psicanálise pode interpretar o cinema com eventuais ganhos e perdas para ambos os lados. Neste aspecto, o cinema é especialmente sensível para captar e nomear a gramática do sofrimento social, indicando com anterioridade as formas de sintomas e suportes narrativos com os quais a clínica virá a se deparar.

Trabalhar nessa via representa um resgate da cultura pop em relação à condição de dejeto da cultura, que lhe é normalmente atribuída nos meios mais prestigiados. Isso, de certa forma, constitui um empreendimento fielmente freudiano: o fundador da psicanálise tomou como matéria-prima os rejeitos do pensamento científico de seu tempo, como os sonhos, os atos falhos e os ditos espirituosos, e conferiu-lhes patente alta na composição de sua teoria. É o próprio Freud (1908/2006dFreud, S. (2006d). Escritores criativos e devaneio. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 9, pp. 135-148). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1908)) quem acentua a pertinência de voltarmos a escuta ao cotidiano da cultura ao eleger, em seu exame sobre o poeta e o fantasiar, não os autores “mais aplaudidos pelos críticos, mas os menos pretensiosos autores de novelas, romances e contos, que gozam, entretanto, da estima de um amplo círculo de leitores de ambos os sexos” (p. 139). Talvez Freud compartilhasse a hipótese de que, se essas produções são consumidas com tamanha voracidade, é porque dizem algo sobre os sujeitos que a elas se lançam. Se as narrativas míticas do contemporâneo fazem morada na cultura pop - e, em particular, no cinema -, há aí algo que interessa à psicanálise e que permite, acompanhando a recomendação de Lacan (1953/1998Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In Escritos (V. Ribeiro, trad., pp. 238-324). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1953)), sustentar no horizonte de nossa prática a subjetividade de nossa época.

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  • 2
    Precisaríamos, ainda, averiguar se esse processo é, de fato, global e se os produtos culturais transitam de forma global ou ainda em uma relação colonial. No Brasil a cultura pop, por exemplo, carrega fortíssimos traços de americanização, embora seja possível encontrar, aqui e ali, referências latinas ou nipônicas, possivelmente tributárias de certas emissoras de televisão. Essa importante interrogação, todavia, ultrapassa as ambições deste trabalho.
  • 3
    Em sua reflexão, Lipovetsky (2009Lipovetsky, G. (2009). O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas (M. Machado, trad.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.) deixa entreaberta a porta para o diálogo com a psicanálise: “como os sonhos e os ditos espirituosos, a cultura de massa, no essencial, repercute aqui e agora” (p. 244). Os psicanalistas, todavia, conhecem bem a dilatação temporal das reverberações do inconsciente, que se estendem muito além do “aqui e agora” – afetam tanto a construção do futuro, quanto a ressignificação do passado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2018

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2016
  • Revisado
    22 Jan 2017
  • Aceito
    12 Ago 2017
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