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O que se passa em Hamlet? Pontos e contrapontos entre Freud e Lacan

What happens in Hamlet? Points and counterpoints between Freud and Lacan

Que se passe-t-il dans Hamlet ? Points et contrepoints entre Freud et Lacan

¿Qué pasa en Hamlet? Puntos y contrapuntos entre Freud y Lacan

Resumo

Lacan (1958-59) definiu a tragédia de Hamlet como a tragédia do desejo, vendo na trama da peça uma espécie de armadilha de pássaro, em que o desejo do homem estaria essencialmente enredado. Como disse, Hamlet não lhe veio por acaso, havia se imposto graças aos ecos do “ser e não ser o falo”, recolhidos do paciente da analista inglesa Ella Sharpe, que acabaram por conduzi-lo a um dos temas germinais do pensamento de Freud sobre a forma como se organiza a posição do desejo, ou seja, às coordenadas articuladas por Freud, na Interpretação dos Sonhos, entre Hamlet, Édipo e castração. O objetivo deste estudo é apresentar os pontos e contrapontos da interpretação de Hamlet empreendida por Freud e Lacan.

Palavras-chave:
clínica psicanalítica; psicanálise e literatura; interpretação psicanalítica

Abstract

Lacan (1958-59) defined Hamlet’s tragedy as the tragedy of desire, seeing the plot as some kind of bird trap, in which man’s desire would be essentially entangled. The psychoanalyst did not come to Hamlet by chance; the character imposed himself through the echoes of a “to be and not to be” from the phallus Lacan collected from Ella Sharpe’s patient, which led him to one of Freud’s key themes concerning how the position of desire is organized, that is, the coordinates articulated by Freud in the Interpretation of Dreams, between Hamlet, Oedipus, and castration. This study presents the points and counterpoints of Hamlet’s interpretation by Freud and Lacan.

Keywords:
psychoanalytic clinic; psychoanalysis and literature; psychoanalytic interpretation

Résumé

Lacan (1958-59) a défini la tragédie d’Hamlet comme la tragédie du désir, voyant l’intrigue comme une sorte de piège à oiseleur, dans lequel le désir de l’homme serait essentiellement enchevêtré. Le psychanalyste n’est pas arrivé à Hamlet par hasard ; le personnage s’est imposé par les échos d’un « être et ne pas être » à partir du phallus qu’il a recueilli auprès du patient d’Ella Sharpe, ce qui l’a conduit à l’un des thèmes clés de la pensée de Freud concernant l’organisation de la position du désir, c’est-à-dire les coordonnées articulées par Freud dans l’Interprétation des rêves, entre Hamlet, Œdipe et la castration. Cette étude présente les points et les contrepoints de l’interprétation d’Hamlet par Freud et Lacan.

Mots-clés :
clinique psychanalytique; psychanalyse et littérature; interprétation psychanalytique

Resumen

Lacan (1958-59) definió la tragedia de Hamlet como la tragedia del deseo al ver en la trama de la obra una especie de trampa para pájaros en la que el deseo del hombre estaría esencialmente enredado. Hamlet no sucedió por casualidad al autor, él se había impuesto gracias a los ecos del ser y no ser el falo que recogió del paciente de la analista inglesa Ella Sharpe que acabó por conducirlo a uno de los temas más primitivos del pensamiento de Freud sobre la forma en que se organiza la posición del deseo, es decir, a las coordenadas articuladas por Freud, en la Interpretación de los Sueños, entre Hamlet, Edipo y la castración. El objetivo de este estudio es presentar los puntos y contrapuntos de la interpretación de Hamlet desde Freud y Lacan.

Palabras clave:
clínica psicoanalítica; psicoanálisis y literatura; interpretación psicoanalítica

Que Hamlet seja uma ilusão.

Uma ilusão não é o vazio.

Jacques Lacan

Shakespeare escreveu Hamlet durante o reinado de Elizabeth I (1558-1603), a “Era Dourada” (Golden Age) da história inglesa, cujo Renascimento viu florescer a literatura, a poesia, a música e, sobretudo, o teatro. Hamlet teria sido mais uma trama de vingança, tema em voga no teatro elisabetano da época, se o talento do bardo não o tivesse transformado na “Mona Lisa da literatura” (Eliot, 1921/2015Eliot, T. S. (2015). Hamlet e seus problemas. In W. Shakespeare, A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Lawrence Flores Pereira, trad., pp. 33-41). São Paulo, SP: Penguin-Companhia. (Trabalho original publicado em 1921), p. 37), não por sua excelência estética, mas, e principalmente, por seu inexaurível mistério. Nas palavras de Dover Wilson (1935/2007Dover Wilson, J. (2007). What happens in Hamlet. London, England: Cambridge University Press. (Trabalho original publicado em 1935), p. 19), uma autoridade em Shakespeare cujo livro clássico inspirou o nome deste artigo, “Hamlet é um ensaio dramático em mistério; o que significa dizer que é tão bem construído que quanto mais se examina, mais há para se descobrir” na sua fina rede de jogos semânticos, homofônicos e anagramáticos.

Se Hamlet ainda nos afeta é porque se trata de um grande tema mítico cuja variante escandinava encontra suas raízes na antiga lenda persa do rei Kaikhosrav que, na juventude, simula loucura para ludibriar o tio vilão. O drama de nascimento do herói persa também apresenta incríveis semelhanças com a lenda do Rei Édipo (Rank, 1914Rank, O. (1914). The myth of the birth of the hero: A psychological interpretation of mythology. New York, NY: The Journal of Nervous and Mental Disease.). Ernest Jones (1949/1970)Jones, E. (1970). Hamlet e o complexo de Édipo (Álvaro Cabral, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Zahar. (Trabalho original publicado em 1949) e Otto Rank (1914)Rank, O. (1914). The myth of the birth of the hero: A psychological interpretation of mythology. New York, NY: The Journal of Nervous and Mental Disease. isolaram, na estrutura mítica de Hamlet, a sua variante mais simples: a saga de um jovem em luta contra um rival tirânico, em geral, o pai. Desde sua origem, a vida do herói é ameaçada, e ele tem de escapar de inúmeras ciladas até, por fim, obter êxito em executar sua vingança, algumas vezes inadvertidamente, matando o genitor. Édipo é um excelente exemplo dessa forma simplificada do mito.

Nas mãos de Shakespeare, o mito se tornou um fenômeno literário sem precedentes na história da dramaturgia ao deslocar um roteiro bruto de vingança para o campo da cogitação filosófica e existencial. Espirituoso, poético, reflexivo, desconcertante, sublime, o príncipe dinamarquês transbordou a própria obra para se tornar um “mito independente”, ao lado de D. Quixote, Helena de Troia e Ulisses (Bloom, 2000Bloom, H. (2000). Shakespeare: A invenção do humano (José Roberto O’ Shea, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Objetiva., p. 480). Um mito que há mais de três séculos inspira uma legião de jovens atraídos pelo seu estilo sensível e autorreferente, e instiga movimentos juvenis (hoje chamados de tribos urbanas), tais como o romantismo, o byronismo, o gótico, o emo… Fenômenos sociais que atestam a fina observação de Lacan (1958-59/2002)Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59) de que as criações poéticas engendram mais do que refletem as criações psicológicas.

Mas a Hamlet-mania provocou também um outro fenômeno, desta vez no campo literário e acadêmico: a abundante proliferação de ensaios críticos e controvérsias literárias em torno de um enigma central, que neste estudo investigaremos a partir de Freud e Lacan: por que Hamlet se demora tanto para executar o plano de vingança que prometera ao fantasma do pai no início da peça? Cito:

Hamlet [ao fantasma do pai]: Fala logo, que eu, com asas bem mais rápidas

Que a meditação e os pensamentos do amor

Voarei pra vingança. (Shakespeare, 2015Shakespeare, W. (2015). A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Lawrence Flores Pereira, trad.). São Paulo, SP: Penguin-Companhia ., Ato I, cena V)

Apesar da disposição inicial exaltada do herói, que nos faz crer que a sede de vingança precipitaria a conclusão imediata de sua tarefa, o que se assiste, ao longo da peça, é um longo movimento em zigue-zague no qual o príncipe se perde em elucubrações e procrastinações descabidas que nem mesmo ele consegue explicar:

Hamlet: É incrível, cada fato que surge me acusa,

Atiçando-me a frouxa vingança. O que é um homem,

Se seu mais alto bem e seu uso do tempo

É dormir e comer? . . .

Mas não sei por que vivo

Dizendo para mim que só falta essa ação,

Já que tenho a causa, a vontade, a força e os meios

Pra executá-la. (Shakespeare, 2015Shakespeare, W. (2015). A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Lawrence Flores Pereira, trad.). São Paulo, SP: Penguin-Companhia ., Ato IV, cena IV)

Ainda que a peça se detenha em torno desse problema central, ficamos à deriva quanto às razões de tamanha hesitação. Uma das primeiras soluções foi lançada pelo poeta alemão Johann W. von Goethe através da voz do protagonista de Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister. Considerada uma concepção subjetiva ou de teor psicológico, a hipótese de Goethe (1795/1994) para a misteriosa inibição de Hamlet repousa em seu temperamento frágil e hipersensível. Nesse sentido, ele seria incapaz de levar a cabo qualquer tarefa que lhe fosse exigida. Trata-se, portanto, de

Uma grande ação imposta a uma alma que não está à altura de tal ação. . . . Vemos aqui um carvalho plantado em rico vaso, que não deveria receber em seu seio senão lindas flores; as raízes se estendem, e o vaso se quebra. Um ser belo, puro, nobre, extremamente moral, mas sem força física que faz os heróis, sucumbe sob um fardo que ele não consegue suportar nem tampouco rejeitar. . . . Por mais que ele se envolva . . . está sempre obrigado a recordar-se e sempre se recorda, e finalmente chega quase a perder de vista seu objetivo, sem nunca mais recuperar sua alegria. (Goethe, 1796/1994Goethe, J. W. (1994). Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister (Nicolino Simone Neto, trad.). São Paulo, SP: Ensaio. (Trabalho original publicado em 1796), p. 181)

Em suma, para Goethe, a conduta errática do herói se deve ao seu temperamento nobre e sensível, mais propenso à contemplação do que à ação. O pensamento demasiado lhe perturbaria o foco, a paz de espírito, a determinação inicial e a capacidade de agir. A interpretação de Goethe alcançou enorme sucesso, influenciando os ensaios críticos posteriores e até mesmo a interpretação no palco, perdurando com êxito até o fim do século XIX.

Freud (1900/1987)Freud, S. (1987). A interpretação dos sonhos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 4-5). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900) conhecia bem a análise de Goethe, e a ela se opôs veementemente no breve comentário que dedicou a Hamlet no capítulo V da Interpretação dos Sonhos. Nesta primeira interpretação psicanalítica do herói, Freud não avalia Hamlet como alguém incapaz de adotar qualquer atitude, muito pelo contrário, ele se mostra bastante ágil e cruel em duas cenas cruciais da peça: aquela em que ele envia de maneira premeditada Guildenstern e Rosencrantz para a morte e aquela em que, num rompante de cólera, mata sem piedade o pai de Ofélia. Hamlet, conclui Freud (1900/1987)Freud, S. (1987). A interpretação dos sonhos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 4-5). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900), é capaz de muitas coisas, menos de se vingar do tio Claudio: por que justamente aí, nesta tarefa específica, se encontra inibido?

A proposta de Freud é que a solução deve ser buscada não em algum suposto defeito da personalidade de Hamlet, mas em sua posição conflituosa em relação à tarefa que lhe foi imposta. Um conflito de natureza inconsciente, logo desconhecido do herói, faz sucumbir seu desejo de vingança contra o homem que assassinou seu pai e ocupou o lugar deste junto à mãe. Se Hamlet se detém aí é porque este homem “lhe mostra os desejos recalcados de sua própria infância realizados” (Freud, 1900/1987Freud, S. (1987). A interpretação dos sonhos. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 4-5). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Trabalho original publicado em 1900), p. 260).

A interpretação freudiana repousa nas motivações inconscientes de natureza edípica. Hamlet deriva do mesmo solo mitológico de Oedipus Rex, com todo o tratamento textual que separa duas civilizações e épocas distintas. Se em Édipo encontramos um material bruto que expõe e realiza abertamente a fantasia incestuosa infantil, em Hamlet, aparece um enredo modificado pela operação de recalcamento, tal como se dá nos casos de neurose. O príncipe não consegue realizar seu plano de vingança porque se encontra identificado com o tio Claudio, assim, o ódio que deveria alimentar seu plano acaba convertido em autorrecriminações e escrúpulos que presentificam o desejo recalcado e o lembram que ele próprio não é mais nobre do que aquele que deve punir. Alguns poucos anos mais tarde, Freud (1905 ou 1906; 1942/1987Freud, S. (1987). Personagens psicopáticos no palco. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. 7). Rio de Janeiro, RJ: Imago . (Trabalho original publicado em 1942)) dirá que o fascínio que Hamlet exerce sobre nós se deve justamente ao uso bem-sucedido da “neurose no palco” (p. 293): os espectadores (neuróticos) se identificam com o herói que luta arduamente para manter sob recalque seus próprios desejos inconscientes; uma luta que se mostra, de partida, condenada. E se somos condescendentes com os crimes e erros cometidos por Hamlet é porque reconhecemos em nós as mesmas batalhas e fracassos.

Quanto a Lacan, sua interpretação é apresentada no seminário O Desejo e sua Interpretação, nas lições de março a abril de 1959. Conforme Lacan, Hamlet não lhe veio por acaso, ele havia se imposto graças aos ecos do “ser e não ser o falo”, recolhidos do paciente da analista inglesa Ella Sharpe, que acabaram por conduzi-lo a “um dos temas mais primitivos do pensamento em Freud, desse algo onde se organiza a posição do desejo”, ou seja, às coordenadas articuladas por Freud, na Interpretação dos Sonhos, entre Édipo, castração e desejo (Lacan, 1958-59/2002Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59), p. 250).

A peça se tornou particularmente interessante e propícia à interpretação analítica dada a maneira atípica de Shakespeare apresentar o enredo desse mito clássico. Em sua versão magistral, a estrutura básica do mito foi modificada: a realização do drama edipiano se produz não na própria geração do herói, como no caso de Édipo, mas na geração precedente, e o crime foi deliberadamente praticado. Trata-se de uma traição, e a vítima - o velho rei Hamlet - sabe muito bem disso.

Chegamos assim no ponto crucial da diferença entre a leitura de Freud e a de Lacan. Enquanto Freud centralizou sua interpretação no drama edipiano em revolta contra o pai, Lacan (1958-59/2002)Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59) ressaltou a dissimetria entre as posições de Édipo e Hamlet em relação ao saber. A posição de Édipo se resume no fato de ele nada saber do conflito com o pai, e é nesse desconhecimento que ele realiza seu crime. Édipo é aquele que faz uma “reprodução ritual do mito” e entra sem o saber “no sonho que é a sua vida” (Lacan, 1958-59/2002Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59), p. 362). Em Hamlet, o pai sabe que está morto segundo o voto de seu irmão que queria tomar seu lugar. Ou seja, o crime edípico é sabido, e é a própria vítima que surge das sombras para denunciá-lo e clamar por vingança. A revelação da verdade pelo próprio pai distingue as duas tragédias. A comunhão do saber entre pai e filho revela que algum véu que diz respeito à proteção daquele que fala e que o manteria no desconhecimento foi rompido e está na raiz da dificuldade de Hamlet em realizar seu ato.

Édipo tem, nesse sentido, a vantagem da ignorância, e é somente no final, após um longo tempo de percurso, que ele fica sabendo tudo e a tragédia se conclui com a autopunição, momento em que ele fura os próprios olhos. Em outros termos, Édipo assume a punição pelo seu crime, restaurando, desse modo, a ordem da lei e aparecendo, ao final do mito, como alguém castrado. Já em Hamlet, “o tempo está disjunto” (Shakespeare, 2015Shakespeare, W. (2015). A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Lawrence Flores Pereira, trad.). São Paulo, SP: Penguin-Companhia ., Ato I, cena V): O véu da ignorância foi erguido no início e não no final. O drama edipiano aberto no início e não no fim o encontra ainda preso na encruzilhada do problema de existir que ele coloca nos termos do “ser ou não ser o falo”. Ele é surpreendido pelo fantasma do pai, devendo aí tomar seu lugar quando algo de essencial na constituição do sujeito (barrado) ainda parece lhe faltar. O próprio retorno imajado do pai, em forma de espectro em vez de imagem onírica ou outros modos de insurgência do recalcado, dá indícios de que algo no simbólico não está ainda bem-posto. Daí se deduz sua conduta cambaleante, seu caminhar desviante das vias que o confrontariam com um saber sobre a castração, acontecimento realizado somente no final, no momento em que ele precipita seu ato, mas também sucumbe.

Portanto, a situação inicial de Hamlet é bem distinta da de Édipo. De partida, ele é intoxicado por um saber trazido pelo pai acerca da traição do irmão e de sua adorada rainha, que até então, aos seus olhos, realizaria com o pai o casal perfeito. Como se não bastasse, o pai ainda revela que ele mesmo também não era nenhum santo. Abatido em plena fruição de seus pecados, o velho rei, diferentemente de Édipo, entrou na outra vida sem purificar-se de seus crimes, uma dívida inexpiável que o seguirá pela eternidade e que deixa Hamlet na terrível posição daquele que “não pode nem pagar por seu lugar e nem deixar a dívida aberta” (Lacan, 1958-59/2002Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59), p. 262).

Em um comentário sobre essa mesma passagem, Berta (2007Berta, S. L. (2007). O exílio: Vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político dos argentinos (1976-1983) (Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo). Recuperado de https://bit.ly/3bqZmtY
https://bit.ly/3bqZmtY...
), com quem concordamos, sugeriu que

Hamlet está envenenado por um excesso de saber vindo do Outro, encarnado pelo ghost. . . . Se for preciso que no Outro exista uma falha no saber para localizar a falta do Outro [S(Ⱥ)], com Hamlet isto não acontece. O fantasma do pai sabe e envenena seu filho com esse saber. (p. 42)

Em outras palavras, ele está contaminado não pelo enigma do desejo do Outro, que produziria um furo no saber, mas pela vontade do pai, que nele se mostra absoluta. É como se o Outro [A] não lhe houvesse transmitido algo do enigma do desejo que o fizesse se perguntar: “O que me tornei em tudo isso? A resposta, eu lhes disse, é o significante do Outro com a barra, S(Ⱥ)” (Lacan, 1958-59/2002Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59), p. 313). Se um furo no saber tivesse sido produzido, ele poderia ter relativizado ou mesmo confrontado as palavras do pai em vez de recebê-las como se fossem uma verdade última sobre a existência, uma verdade absoluta que lhe deixou “na encruzilhada de seu desejo” (Berta, 2007Berta, S. L. (2007). O exílio: Vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político dos argentinos (1976-1983) (Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo). Recuperado de https://bit.ly/3bqZmtY
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, p. 42). Como Hamlet poderá encontrar seu lugar a partir do que interpretou das falas do ghost? Qual resposta ele escreverá? O que, afinal, ele se tornará em tudo isso?

A grande perturbação de conduta que observamos em Hamlet após esse encontro infernal dá notícias, como indica Lacan, de que algo muito grave abalou o nível da fantasia. No seminário 6, a fantasia é abordada essencialmente pela via da fórmula grafada como “$ ◊ a”, escrita mínima que, segundo propõe Lacan (1958-59/2002Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59), p. 387), é “a forma verdadeira da pretensa relação de objeto”, em outros termos, a verdadeira relação de objeto se dá no nível do desejo, por meio da fantasia. Ao longo deste seminário, o estatuto do objeto passa por um deslocamento importante. Inicialmente apresentado como objeto do desejo em sua versão imaginária, ele surge como objeto impossível, inacessível, anúncio do que mais tarde se constituirá como objeto a causa do desejo.

O abalo fantasmático1 1 O termo lacaniano “fantasme” tem sido traduzido em português brasileiro tanto como “fantasia” quanto como “fantasma” e, apesar das controvérsias, ambas as traduções têm sido amplamente aceitas. No Dicionário de Psicanálise, por exemplo, ao comentar o verbete “fantasia”, Elizabeth Roudinesco e Michel Plon (1998) destacam que no Brasil também se usa “fantasma”. de Hamlet - traduzido como uma “experiência de despersonalização” ou, freudianamente falando, como uma experiência de estranhamento (Unheimliche) que atinge o corpo próprio e o objeto - é esclarecido por Lacan em termos de uma decomposição dos elementos da fórmula da fantasia, isto é, haveria uma separação entre $ e o pequeno a. Tendo por referência o grafo do desejo, vê-se que o objeto pequeno a disjunto da fórmula da fantasia recairia nesse ponto de imagem do outro, i(a), que é o próprio eu (moi). O objeto absorvido, identificado ao eu, perderia a sua função de objeto no desejo vindo a ser reintegrado em seu quadro narcísico. Em Hamlet, a destruição do objeto se deduz da maneira deplorável como o príncipe passa a tratar Ofélia: inicialmente louvada como objeto de um amor sublime, após o encontro com o ghost, torna-se o signo da rejeição de seu próprio desejo.

A irrupção dessa dolorosa desorganização subjetiva nos faz considerar que a resposta que Hamlet escreveu na linha do inconsciente como mensagem que recebeu do pai foi a “irremediável, absoluta, insondável traição do amor. Do amor mais puro” (Lacan, 1958-59/2002Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59), p. 313). É como se, na hora do encontro do sujeito com a verdade, encontro com o Outro, Hamlet tivesse registrado a significância do Outro como uma “uma verdade sem esperança”, “falaciosa”, “que não vale nada” (Lacan, 1958-59/2002Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59), p. 314), em vez de registrar a falta de um significante que garantiria, no Outro, sua essência de verdade ou a suficiência dos outros significantes, S(Ⱥ).

Se o Outro, por essência, é carente, não há nada na significância que possa garantir a verdade ou dar o significante último da existência. Não há outra garantia da verdade, insiste Lacan (1958-59/2002)Lacan, J. (2002). O seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Porto Alegre, RS: Associação Psicanalítica de Porto Alegre. (Trabalho original publicado em 1958-59), senão “a boa fé do Outro, isto é, alguma coisa que se passa sempre para o sujeito sob uma forma problemática. Quer dizer que o sujeito fica no extremo de sua questão, dessa inteira fé concernindo ao que para ele faz surgir o reino da fala?” (p. 420). Nesse momento de seu ensino, Lacan põe em relevo a separação entre o campo da verdade e o campo da realidade. A transmissão da verdade repousa inteiramente na fala e não na realidade. O sujeito fica aí suspenso na inteira fé no Outro, cuja inconsistência torna possível exprimir algo da verdade apenas de forma mítica2 2 Cito: “O mito é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição da verdade, porque a definição só pode se apoiar sobre si mesma, e é na medida em que a fala progride que ele a constitui. A fala não pode apreender a si própria, nem apreender o movimento de acesso à verdade como uma verdade objetiva. Pode apenas exprimi-la - e isso de forma mítica” (Lacan, 1953/2008, p. 13). , isto é, uma verdade que só se sustentaria como um semi-dizer.

Se Hamlet tivesse escrito algo da insuficiência do Outro em dar garantias, qualquer resposta surgida na cadeia significante seria suscetível de repercutir e deslizar de significação a significação, sem alcançar o estatuto de verdade última sobre o problema da existência. Mas não é o que ocorre, e ele estanca nesse ponto de revelação radical do fantasma que sabe, e por ter a resposta, revoga nele qualquer possibilidade de ele mesmo responder a partir de seu desejo e do jogo deste com a fantasia. As palavras do pai lhe garantem que a “traição é absoluta, . . . não há nada mais total que a traição da qual foi objeto” (p. 427). Dali por diante, os ideais desabam e junto com eles arruína-se toda a boa-fé (do Outro) que pode mover alguém a sustentar alguma aposta na vida, apesar de…

Tudo o que parecia “boa fé, fidelidade e voto” se provou não apenas falso, mas revogável, revogado: “A anulação absoluta diferente dessa carência de algo que garantisse; o termo que é garantido é a não-verdade; essa espécie de revelação, se pode-se dizer, da mentira representa o espírito de Hamlet” (p. 427). Nessa condição de “sem fé”, não se escutará no seu discurso melancolizado, derrisório e desafiador nenhuma expectativa elevada de reparação, perdão ou redenção.

Hamlet, assim como os filhos de Édipo, sofre e arca com as consequências dos crimes de seus pais, porém com uma diferença: enquanto os dois filhos de Édipo (Etéocles e Polinices) se trucidam sem hesitação pelo trono, permanecendo ambos no crime, Hamlet não consegue levar a cabo seu ato, só consegue executá-lo no momento final, quando expia sua dívida de modo radical, uma castração total, empenhando não apenas uma libra de carne à dívida simbólica, à maneira de Édipo, mas o corpo inteiro, abandonando para outro, não qualquer um, como veremos, o trono ao qual teria direito.

Se o mito edípico é o ponto de convergência das abordagens de Freud e Lacan na tentativa de solucionar o problema central da peça, a saber, a demora de Hamlet em realizar o ato de vingança, a dissimetria das abordagens diz respeito, essencialmente, à posição de Hamlet diante da castração. Em poucas palavras, Freud supõe Hamlet como um sujeito neurótico, portanto castrado. Logo, sua inibição em realizar a tarefa revelaria que a operação de recalcamento está em vigor, impedindo o desvelamento e realização do desejo edípico inconsciente (incesto, de um lado; desejo de vingança e morte do genitor, de outro). Já Lacan interpreta o drama de Hamlet a partir da dialética do ser ou ter fálico que ele havia explicitado nos três tempos do Édipo no seminário 5, As Formações do Inconsciente. Se Hamlet procrastina seu ato é porque ainda se encontra detido no tempo da dialética do ser ou não ser (o falo), tempo anterior à operação de castração. Porém, na interpretação de Hamlet, Lacan aponta uma versão um pouco diferente daquela apresentada por ele nos três tempos do Édipo. Com a morte do pai, Hamlet se vê frente a frente com o falo encarnado pelo tio Cláudio. O rei está morto, mas o falo continua lá assombrando. Por Cláudio encarnar esse falo, não se trata de golpear a pessoa dele, mas de algo para além, que faz Hamlet tremer a cada vez que a situação se apresenta a ele. Se Hamlet hesita é para preservar esse “ser fálico” do qual não quer abrir mão e, em última instância, preservar o falo da mãe, segurando-se nesse laço narcísico no qual recusa a castração do Outro.

Submetido ao campo da demanda, Hamlet encontra-se desviado do seu próprio desejo, o ato só jorra no final, não sem antes ter feito o sacrifício do falo, isto é, não sem ter realizado o desapego de suas exigências narcísicas. É na condição de privado do falo - castrado, portanto - que Hamlet pode realizar seu ato, mas, como sabemos, apenas quando ele estiver sem outra saída, tal é seu apego narcísico, ferido de morte e ciente disso.

É notável ainda, nesse momento derradeiro, a recuperação dos ideais, da boa-fé do Outro, que faz Hamlet sustentar uma re-aposta de que nem tudo estava irremediavelmente perdido, nem todos eram “podres” e “corruptos” (Shakespeare, 2015Shakespeare, W. (2015). A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Lawrence Flores Pereira, trad.). São Paulo, SP: Penguin-Companhia ., Ato I, cena II). Suas últimas palavras foram dedicadas a conceder seu voto agonizante de herdeiro do trono ao valente Fortinbrás, um dos nomes de seu alter ego, e a delegar ao fiel Horácio a função de passador do seu discurso para que sua voz continuasse a ressoar, co-movendo outras.

Hamlet: Eu estou morto, Horácio, e tu estás vivo.

Dá parte a meu respeito e sobre minha causa

Aos que não a conheçam. . . .

Deus, Horácio, meu nome ficará manchado,

Se tudo o que ocorreu continuar ignorado. . . .

Predigo que a escolha irá a Fortimbrás.

Meu voto agonizante recai sobre ele.

Conte-lhe tudo e os fatos, grandes ou pequenos,

Que terminaram aqui. E o resto é só silêncio. (Shakespeare, 2015Shakespeare, W. (2015). A tragédia de Hamlet, príncipe da Dinamarca (Lawrence Flores Pereira, trad.). São Paulo, SP: Penguin-Companhia ., Ato V, cena II)

Referências

  • Berta, S. L. (2007). O exílio: Vicissitudes do luto. Reflexões sobre o exílio político dos argentinos (1976-1983) (Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, São Paulo). Recuperado de https://bit.ly/3bqZmtY
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  • 1
    O termo lacaniano “fantasme” tem sido traduzido em português brasileiro tanto como “fantasia” quanto como “fantasma” e, apesar das controvérsias, ambas as traduções têm sido amplamente aceitas. No Dicionário de Psicanálise, por exemplo, ao comentar o verbete “fantasia”, Elizabeth Roudinesco e Michel Plon (1998)Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar . destacam que no Brasil também se usa “fantasma”.
  • 2
    Cito: “O mito é o que dá uma formulação discursiva a algo que não pode ser transmitido na definição da verdade, porque a definição só pode se apoiar sobre si mesma, e é na medida em que a fala progride que ele a constitui. A fala não pode apreender a si própria, nem apreender o movimento de acesso à verdade como uma verdade objetiva. Pode apenas exprimi-la - e isso de forma mítica” (Lacan, 1953/2008Lacan, J. (2008). O mito individual do neurótico ou poesia e verdade na neurose. In J. Lacan, O mito individual do neurótico (Claudia Berliner, trad., pp. 9-44). Rio de Janeiro, RJ: Zahar . (Trabalho original publicado em 1953), p. 13).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Set 2019
  • Revisado
    02 Mar 2021
  • Aceito
    06 Jun 2022
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