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Da transfobia ao racismo: experiências de transição de homens transexuais negros* * Os autores agradecem o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) pela Bolsa concedida à primeira autora - Código de Financiamento: 88887.600239/2021-00 e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 1A, concedida ao segundo autor.

From transphobia to racism: Black trans men’s transition experiences

Dès la transphobie au racisme : des experiences de transition des hommes noirs

De la transfobia al racismo: vivencias de la transición de hombres transexuales negros

Resumo

A visibilidade social e acadêmica de homens transexuais deu-se tardiamente em comparação com mulheres trans. Ainda mais invisíveis são as experiências de transição dos homens trans negros, que agregam a intersecção gênero-raça. Este estudo qualitativo teve por objetivo analisar como homens transexuais negros vivenciam suas experiências de transição de gênero, à luz do conceito de interseccionalidade. Participaram quatro homens que se autodeclararam transexuais e negros, de 22 a 33 anos. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, seguidas de análise temática. Os resultados apontam que o reconhecimento social das identidades transmasculinas advém do racismo, quando este se intersecciona com a transfobia. À medida que o sujeito passa a ser lido como homem, recebe o atributo racista de “perigoso”. A baixa empregabilidade é uma das consequências perversas dessa leitura que articula dois eixos de subordinação: transgeneridade e raça. Há urgência de políticas públicas para que se interrompa esse ciclo de desempoderamento interseccional.

Palavras-chave:
transexualidade; relações étnicas e raciais; racismo; identidade de gênero; interseccionalidade

Abstract

The social and academic visibility of transsexual men happened later than that of transgender women. Even more invisible are the transition experiences of Black trans men as they aggregate the gender-race intersection. This qualitative study aimed to analyze how Black transgender men experience their gender transition in light of the concept of intersectionality. In total, four men, aged 22-33 years, who declared themselves Black and transsexual participated in this study. Semi-structured interviews were conducted, followed by thematic analysis. Results indicate that the social recognition of transmasculine identities crosses racism when it intersects with transphobia. To the extent that they are recognized as men, they receive the racist attribute of “dangerous.” Low employability is one of the perverse consequences of this reading, which articulates two axes of subordination: transgender and race. Breaking this cycle of intersectional disempowerment urgently requires public policies.

Keywords:
transsexuality; racial and ethnic relations; racism; gender identity; intersectionality

Résumé

La visibilité sociale et académique des hommes transgenres est arrivée tardivement, par rapport aux femmes transgenres. Plus invisibles encore sont les expériences de transition des hommes noirs transgenres, qui cumulent l’intersection entre le sexe et la race. Cette étude qualitative visait à analyser la manière dont les hommes transsexuels noirs vivent leurs expériences de transition de genre à la lumière du concept d’intersectionnalité. Quatre hommes qui se sont déclarés noirs et transsexuels, âgés de 22 à 33 ans, ont participé à l’enquête. Des entretiens semi-structurés ont été menés, suivis d’une analyse thématique. Les résultats montrent que la reconnaissance sociale des identités transmasculines passe par le racisme, lorsqu’il s’entrecroise avec la transphobie. Au fur et à mesure que le sujet est lu comme un homme, il reçoit l’attribut raciste de « dangereux ». La faible employabilité est l’une des conséquences perverses de cette lecture qui articule les deux axes de subordination: le transgenre et la race. Il est urgent que les politiques publiques brisent ce cycle de désautonomisation intersectionnelle.

Mots-clés:
transsexualisme; relations ethniques et raciales; racisme; identité de genre; intersectionnalité

Resumen

La visibilidad social y académica de los hombres transexuales llegó tarde en comparación con la de las mujeres transexuales. Aún más invisibles son las experiencias de transición de los hombres negros trans, que agregan la intersección género-raza. Este estudio cualitativo tuvo por objetivo analizar las vivencias de los hombres negros transexuales respecto a la transición de género a la luz del concepto de interseccionalidad. Participaron cuatro hombres que se declararon negros y transexuales, de entre 22 y 33 años de edad. Se realizaron entrevistas semiestructuradas, y posteriormente análisis temáticos. Los resultados muestran que el reconocimiento social de las identidades transmasculinas se da mediante el racismo cuando este se cruza con la transfobia. Cuando el sujeto es visto como un hombre, recibe el atributo racista de “peligroso”. La baja empleabilidad es una de las consecuencias perversas de esta lectura que articula los dos ejes de subordinación: la transexualidad y la raza. Es urgente que las políticas públicas rompan este ciclo de desempoderamiento interseccional.

Palabras clave:
transexualidad; relaciones étnicas y raciales; racismo; identidad de género; interseccionalidad

Introdução

As análises elaboradas neste estudo derivam dos resultados coligidos em uma dissertação de mestrado, cujo objetivo foi compreender as experiências vividas por homens transexuais em sua transição de gênero. Nesse cenário, destacaram-se as narrativas de homens transexuais negros acerca de seus processos de validação social (Boffi, 2022Boffi, L. C. (2022). Tornando-se homem: processos de agenciamento de corporalidades de homens trans - contribuições para o campo emergente das transmasculinidades (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.). O conceito de interseccionalidade foi utilizado como balizador teórico-metodológico. A pesquisa aborda sujeitos em situação de marcada vulnerabilidade social e possibilita pensar experiências identitárias e sociais ainda pouco exploradas na literatura. A temática abordada tem relevância científica e social, ao tratar de questões contemporâneas que desafiam a construção de políticas públicas e que podem contribuir para fortalecer experiências concretas de enfrentamento e superação das contradições geradas pelas condições de desigualdade racial no Brasil, na interface com as transgeneridades.

Homens transexuais - ou homens trans - podem ser compreendidos como sujeitos que foram designados como mulheres ao nascimento, em decorrência de seus genitais, e que em algum momento de suas vidas contestaram essa atribuição de gênero e passaram a se identificar como homens. Neste estudo, as nomenclaturas “homens transexuais” e “homens trans” são utilizadas como intercambiáveis e se intercalam ao longo do texto a fim de englobar as diversas possibilidades narrativas sobre tais sujeitos.

A categoria homem trans emergiu no cenário nacional tardiamente (Almeida, 2012Almeida, G. (2012). “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades? Estudos Feministas, 20(2), 513-523. Recuperado de https://www.scielo.br/pdf/ref/v20n2/v20n2a12
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) quando comparada às categorias mulher trans e travesti, que desde a década de 1970 já ocupavam seu espaço e organizavam sua agenda de demandas de saúde, lutando pelo reconhecimento de seus direitos sociais (Santos et al., 2019Santos, M. A., Souza, R. S., Lara, L. A. S., Risk, E. N., Oliveira, W. A., Alexandre, V., & Oliveira-Cardoso, E. A. (2019). Transexualidade, ordem médica e política de saúde: controle normativo do processo transexualizador no Brasil. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 10(1), 3-19. doi: 10.5433/2236-6407.2019v10n1p03
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). Os homens trans só viriam a despontar no cenário social a partir da última década, buscando dar visibilidade às suas pautas específicas.

Esse período histórico recente coincide com o avanço das tecnologias de comunicação, incrementando a massificação do acesso à internet e a virtualização dos relacionamentos, o que possibilitou a fundação de várias comunidades on-line que promovem oportunidades de encontro virtual de homens trans e permitiu a difusão e divulgação da existência dessas identidades na sociedade, revigorando os movimentos sociais (Alexandre & Santos, 2019Alexandre, V., & Santos, M. A. (2019). Experiência conjugal de casal cis-trans: contribuições ao estudo da transconjugalidade. Psicologia: Ciência e Profissão, 39(spe 3), 1-13. doi: 10.1590/1982-3703003228629
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; Ávila, 2014Ávila, S. N. (2014). FTM, transhomem, homem trans, trans, homem: a emergência de transmasculinidades no Brasil contemporâneo (Tese de doutorado). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC. Recuperado de https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/129050/329117.pdf?sequence=1
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). Outro marco histórico relevante foi a admissão de homens trans no Processo Transexualizador do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da promulgação da Portaria no 2.803, em 2013. Esse foi um importante passo para a intensificação da exposição desses sujeitos e para aumentar a visibilidade de suas demandas específicas (Santos & Oliveira, 2019Santos, A. O., & Oliveira, L. R. (2019). Abordagem CTS diante das interpelações da afrocentricidade: a saúde da população negra. Psicología, Conocimiento y Sociedad, 9(2), 47-61. doi: 10.26864/pcs.v9.n2.3
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). Assim, os homens trans emergiram também como sujeitos de direitos no campo da saúde, ao mesmo tempo que atraíam a atenção da comunidade acadêmica, despertando o interesse dos estudiosos e se inserindo nas agendas de pesquisa (Alexandre, Oliveira-Cardoso, & Santos, 2020Alexandre, V., Oliveira-Cardoso, E. A., & Santos, M. A. (2020). A banalidade transfóbica e o estado brasileiro conservador. In S. R. Pasian, A. P. S. Silva, C. M. Corradi-Webster, M. G. Sticca, D. S. Zanini, & S. Grubits (Orgs.), Identidade e vulnerabilidade humana em diferentes contextos: contribuições da psicologia (pp. 79-94). Curitiba, PR: CRV.; Dullius & Martins, 2020Dullius, W. R., & Martins, L. B. (2020). Training needs measure for health care of the LGBT+ public. Paidéia (Ribeirão Preto), 30, e3034. doi: 10.1590/1982-4327e3034
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).

Apesar de os homens trans serem comumente descritos como uma categoria única e homogênea, Almeida (2012Almeida, G. (2012). “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades? Estudos Feministas, 20(2), 513-523. Recuperado de https://www.scielo.br/pdf/ref/v20n2/v20n2a12
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) contesta essa visão simplificadora, lembrando que alguns grupos de homens transexuais se aproximam ou se afastam em decorrência de demandas de alterações corporais e de busca por espaços de reflexão acerca de suas identidades e singularidades. Entretanto, algumas especificidades desses sujeitos não são reclamadas e tampouco visibilizadas, como a diversidade de experiências pós-transição vivenciadas pelos homens trans brancos e negros.

As questões étnico-raciais têm uma longa tradição de debate científico, em contextos que articulam relações raciais e desigualdade social no Brasil (Santos, 2009Santos, G. (2009). Relações raciais e desigualdade no Brasil. São Paulo, SP: Selo Negro.; Pinto & Ferreira, 2014Pinto, M. C. C., & Ferreira, R. F. (2014). Relações raciais no Brasil e a construção da identidade da pessoa negra. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 9(2), 257-266. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ppp/v9n2/11.pdf
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), porém pouco se conhece sobre o imbricamento da construção da identidade da pessoa negra com a temática da transgeneridade1 1 A transgeneridade é a condição possível de alguns indivíduos assumirem uma identidade de gênero diferente daquela designada por ocasião do seu nascimento. Em outros termos, descreve uma pessoa cuja identidade de gênero não “coincide” com o sexo biológico. . Para compreender a questão do racismo no Brasil é preciso recorrer ao conceito de raça (Guimarães, 1999Guimarães, A. S. A. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo, SP: Editora 34.).A noção de que a humanidade pode ser classificada em hierarquias étnico-raciais triunfou na história do pensamento social dominante nas sociedades ocidentais nos últimos séculos (Munanga, 2004Munanga, K. (2004). Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. In Programa de educação sobre o negro na sociedade brasileira. Niterói, RJ: Eduff. Recuperado de https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4275201/mod_resource/content/1/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf
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). Ainda que não exista qualquer evidência científica que ofereça comprovação biológica ou respaldo cultural para a existência de “raça” enquanto categoria empírica, esse construto permanece impregnando o imaginário social. Enquanto categoria social, raça é um componente essencial da estrutura social, na medida em que ainda é utilizada para diferenciar, hierarquizar e subjugar diferentes grupos marcados fenotipicamente (Guimarães, 1999Guimarães, A. S. A. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo, SP: Editora 34.). Por conseguinte, raça é um conceito essencialmente político e socialmente construído (Almeida, 2018Almeida, S. L. (2018). O que é racismo estrutural? Belo Horizonte, MG: Letramento.).

Hoje se reconhece que recortes de classe e raça redesenham a maneira pela qual homens e mulheres percebem e vivenciam o racismo e suas implicações (Conrado & Ribeiro, 2017Conrado, M., & Ribeiro, A. A. M. (2017). Homem negro, negro homem: masculinidades e feminismo negro em debate. Estudos Feministas, 25(1), 73-97. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p73
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). Para as mulheres negras cisgêneras, os desdobramentos negativos incidem sobre todas as dimensões da vida, repercutindo em danos à saúde física e mental, rebaixamento da autoestima, expectativa de vida menor em cinco anos em comparação à de mulheres brancas, menor índice de casamentos e, sobretudo, desempenho laboral limitado às ocupações de menor prestígio e remuneração, principalmente o emprego doméstico (Akotirene, 2019Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. São Paulo, SP: Pólen.; Carneiro, 2011Carneiro, S. (2011). Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo, SP: Selo Negro.).

No horizonte das experiências de homens negros cisgêneros2 2 Cisgênero refere-se à condição de identificação do sujeito com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento em decorrência de seu órgão genital, acatando, assim, a noção binária de feminino ou masculino. (homens não transexuais), a condição racial é considerada um marcador importante na constituição da masculinidade em decorrência da herança do longo processo de escravidão, que aliou a brutalidade da exploração mercantil do trabalho escravo às torturas físicas e psicológicas, incluindo a emasculação dos corpos negros hooks3 3 A autora afirma que seu nome deve ser grafado em letras minúsculas, em respeito ao seu desejo de dar destaque ao conteúdo de sua escrita, e não a sua pessoa. , (1992ahooks, b. (1992a). Ain’t I a woman: black woman and feminism. Boston, MA: South End Press.).

Virilidade, hipermasculinidade, truculência, hiperssexualização e anti-intelectualismo são características culturalmente atribuídas ao homem negro, delineando no imaginário coletivo um modelo de sujeito agressivo, tosco, viril, materialista e incapaz de aceder a um pensamento sofisticado. Essa imagem é amplamente difundida na sociedade em geral (hooks, 2000hooks, b. (2000). All about love. New York, NY: New Visions.). Tal concepção estereotipada da socialização do homem negro resultou na sua definição, no imaginário coletivo, como um sujeito abrutalhado, truculento e agressivo, dominado por seus instintos e dotado de uma energia corporal pura que o capacitaria para as asperezas do trabalho rude, incapacitando-o para o trabalho intelectual (hooks, 1992bhooks, b. (1992b). Reconstructing black masculinity. In Black looks: race and representation (pp. 87-113). Boston, MA: South End Press.). Nesse sentido, o estereótipo atribuído ao homem negro, no seio de uma sociedade patriarcal de passado escravocrata, reserva a ele um lugar de predestinado ao trabalho braçal, seja por sua resistência física ou pela suposta indigência intelectual.Por essa razão, a sociedade lhe designa o exercício de funções de baixa qualificação profissional e menor remuneração.

Uma vez naturalizada, essa concepção dominante constitui um dos elementos de força do racismo estrutural (Almeida, 2018Almeida, S. L. (2018). O que é racismo estrutural? Belo Horizonte, MG: Letramento.). Essa leitura se estende aos homens transexuais negros que apresentam certa passabilidade e que herdam essas atribuições quando transicionam para o gênero masculino. Passabilidade pode ser definida como um processo social pelo qual o sujeito transexual passa a ser reconhecido visualmente pelo gênero que reivindica e com o qual se identifica; no caso deste estudo: o ser homem.

Originalmente, o entrecruzamento dos marcadores das diferenças sociais foi denominado de interseccionalidade pela intelectual afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw (2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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). A autora compreende interseccionalidade enquanto indissociabilidade estrutural entre racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado.

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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, p. 177)

A autora vale-se da analogia de avenidas que se entrecruzam para demonstrar que os marcadores sociais da diferença operam como eixos de poder. Esses marcadores constituem avenidas que estruturam os terrenos sociais, econômicos e políticos. A interseccionalidade corresponde à soma de múltiplas opressões, que resulta em menor empoderamento do sujeito (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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). A partir da noção de que os sujeitos podem agregar vários marcadores sociais da diferença, verticalizando diversas intensidades de fluxo nas avenidas, deve-se analisar a interseccionalidade das opressões, ou seja, como as subordinações se inter-relacionam nos diferentes contextos, de modo a despotencializar os sujeitos. Portanto, interseccionalidade constitui um potente instrumento analítico para investigar as experiências dos sujeitos a partir da noção de que não existe um tipo fundamental de opressão e que diferentes estratégias opressivas se combinam e atuam juntas na produção de injustiças que legitimam e perpetuam desigualdades (Collins, 2009Collins, P. (2009). Black feminist thought: knowledge, consciousness and the politics of empowerment. New York, NY: Routledge.). Esse dilaceramento identitário é vivenciado literalmente na própria pele pela população negra.

As experiências dos homens transexuais negros tendem a ser circunscritas a partir da intersecção entre os marcadores sociais das diferenças, tais como: etnia, classe social, orientação sexual, identidade de gênero, territorialidade, geração e outros, como afirma Leonardo Peçanha (2018Peçanha, L. M. B. (2018). Visibilidade trans para quem? Parte II: um olhar transmasculino negro. Negros Blogueiros. Recuperado de http://negrosblogueiros.com.br/author/leonardombpecanha
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), homem transexual negro, professor e ativista:

Ser homem negro trans gay, homem negro trans nordestino, ser homem negro trans grávido, ser homem negro trans bissexual, ser homem negro trans gordo, ser homem negro trans com deficiência e por aí vai. Esses são apenas alguns exemplos dentre tantos outros. E entre esses e demais, podem se interligar, fazendo com que as interseções fiquem maiores. (Peçanha, 2018Peçanha, L. M. B. (2018). Visibilidade trans para quem? Parte II: um olhar transmasculino negro. Negros Blogueiros. Recuperado de http://negrosblogueiros.com.br/author/leonardombpecanha
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)

No cenário nacional, outro homem transexual negro, Bruno Santana (2019Santana, B. S. (2019). Pensando as transmasculinidades negras. In H. Restier, & R. M. Souza (Orgs.), Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades (pp. 95-104). São Paulo, SP: Ciclo Contínuo Editorial.), reflete acerca da invisibilidade dessa identidade e da ausência de representação, inclusive na própria comunidade transmasculina, na qual o referencial de masculinidade continua sendo branco e heterossexual. Utilizando o pensamento interseccional, o autor afirma que, embora homens transexuais brancos e negros também possam sofrer com machismo, misoginia e transfobia, os primeiros não vivenciarão o racismo e não perceberão a eficácia de sua passabilidade a partir dos olhares desconfiados de pessoas brancas e da violência policial estrutural (Martínez-Guzmán & Íñiguez-Rueda, 2017Martínez-Guzmán, A., & Íñiguez-Rueda, L. (2017). Discursive practices and symbolic violence against the LGBT community within the university setting. Paidéia (Ribeirão Preto), 27(Suppl. 1), 367-375. doi: 10.1590/1982-432727s1201701
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).

Começo a vivenciar na pele a transfobia a partir do momento em que meu corpo é visto como transgressor, ao passo que as mudanças corporais trazidas pelo uso da testosterona ficam mais evidentes, e passo a ser lido pelo outro como homem; “automaticamente o peso do racismo cai sobre mim e saio do lugar de vítima para o lugar de ameaça. (Santana, 2017Santana, B. S. (2017). Trajetória de um homem trans no curso de licenciatura em educação física na universidade pública: uma narrativa subversiva (Monografia). Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, BA., pp. 45-46)

Conrado e Ribeiro (2017Conrado, M., & Ribeiro, A. A. M. (2017). Homem negro, negro homem: masculinidades e feminismo negro em debate. Estudos Feministas, 25(1), 73-97. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p73
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) afirmam a potencialidade do uso da leitura interseccional na compreensão de como os estereótipos de raça e gênero afetam diretamente os homens negros - e as mulheres negras - no acesso a bens simbólicos e direitos sociais. Considerando esses argumentos, identifica-se uma lacuna na literatura no que se refere à compreensão sobre o imbricamento dos marcadores etnia e identidade de gênero no homem negro que faz sua transição de gênero. Assumindo a necessidade de elucidar essa questão, este estudo teve por objetivo analisar, à luz do conceito de interseccionalidade, como homens transexuais negros vivenciam suas experiências de transição de gênero.

Método

Trata-se de um estudo qualitativo de caráter descritivo-exploratório, cujo propósito é interpretar os dados a partir de uma descrição minuciosa e contextualizada, a fim de compreender as diferentes facetas do fenômeno (Campos, 2001Campos, L. F. (2001). Métodos de técnicas de pesquisa. São Paulo, SP: Alínea.). Esta pesquisa deriva de uma dissertação de mestrado, que analisa as singularidades do processo de subjetivação que acompanham a transição de homens transexuais.

A pesquisa obteve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP - USP), sob Parecer nº 3.926.604 e CAAE nº 25897819.8.0000.5407. O estudo respeitou os preceitos éticos estabelecidos pela Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, bem como as normativas da Resolução nº 510/2016, que versa sobre os aspectos éticos envolvidos nas pesquisas em ciências humanas e sociais. Todos os nomes próprios utilizados são fictícios e escolhidos pelos próprios participantes, e foram tomados os cuidados recomendados pela literatura na abordagem de participantes de contextos e temáticas sensíveis da população LGBTQIA+ (Braga, Santos, Farias, Ferriani, & Silva, 2018Braga, I. F., Santos, M. A., Farias, M. S., Ferriani, M. G. C., & Silva, M. A. I. (2018). As múltiplas faces e máscaras da heteronormatividade: violências contra adolescentes e jovens homossexuais brasileiros. Salud & Sociedad: Investigaciones en Psicología de la Salud y Psicología Social, 9(1), 52-67. doi: 10.22199/S07187475.2018.0001.00003
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; Freitas, Coimbra, & Fontaine, 2017Freitas, D. F., Coimbra, S., & Fontaine, A. M. (2017). Resilience in LGB youths: a systematic review of protection mechanisms. Paidéia (Ribeirão Preto), 27(66), 69-79. doi: 10.1590/1982-43272766201709
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; Moscheta, Souza, & Santos, 2016Moscheta, M. S., Souza, L. V., & Santos, M. A. (2016). Health care provision in Brazil: a dialogue between health professionals and lesbian, gay, bisexual and transgender service users. Journal of Health Psychology, 21(3), 369-378. doi: 10.1177/1359105316628749
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).

Foram incluídos no estudo participantes de acordo com os seguintes critérios de inclusão: ter idade superior a 18 anos, autodeclarar-se como homem transexual negro e estar em transição de gênero com hormonização. Entende-se por transição de gênero o processo psíquico e social de desidentificação com o gênero atribuído ao nascimento e de identificação com outro ou nenhum gênero; neste caso, ocorre a identificação com o gênero masculino. O processo de hormonização não é uma condição necessária à transição de gênero, nem sua presença torna essa experiência mais ou menos legítima. Especificamente neste estudo considerou-se que estar em processo de hormonização e, consequentemente, experimentar as modificações corporais resultantes dessa intervenção médica facilitam o reconhecimento social desses sujeitos enquanto homens. Aproximar-se de suas experiências de transição de gênero em uma chave de leitura interseccional constitui a proposta desta investigação.

O primeiro participante foi arregimentado por meio da rede de contatos da primeira autora; e os demais, a partir do método bola de neve, que consiste na utilização de cadeias de referência. Essa estratégia de seleção dos participantes se mostra útil em estudos qualitativos por permitir alcançar determinados grupos considerados difíceis de acessar (Vinuto, 2014Vinuto, J. (2014). A amostragem em bola de neve na pesquisa qualitativa: um debate em aberto. Temáticas, 22(44), 203-220. doi: 10.20396/temáticas.v22i44.10977
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).

Participaram do estudo quatro homens que se autodeclararam transexuais e que se reconhecem como negros, de acordo com a classificação de cor autoatribuída do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (Osório, 2003Osório, R. G. (2003). O sistema classificatório de “cor ou raça” do IBGE. Brasília, DF: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.). As características sociodemográficas dos participantes são sumarizadas na Tabela 1.

Tabela 1
. Caracterização sociodemográfica dos participantes

Para coleta dos dados, foram utilizados os seguintes instrumentos: (1) formulário de dados sociodemográficos, para obter informações como idade, procedência, escolaridade, ocupação, renda, estado marital, religião e configuração familiar - esse formulário foi complementado pelo Critério de Classificação Econômica Brasil (Abep, 2020Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa. (2020). Critério de Classificação Econômica Brasil. São Paulo, SP: Abep. Recuperado de http://www.abep.org/criterio-brasil
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); (2) roteiro de entrevista semiestruturada, contendo questões que favorecem a livre expressão e valorizam o modo singular de construção das narrativas dos sujeitos, com foco na experiência de transição, nas relações familiares, nos relacionamentos afetivo-sexuais e nas estratégias utilizadas para enfrentar os desafios na vivência da transexualidade; e (3) diário de campo, que consiste no registro complementar de observações sobre o comportamento do entrevistado durante a entrevista.

Após esclarecimentos dos objetivos da pesquisa, os participantes que aceitaram o convite assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), por meio do qual expressaram sua concordância com a audiogravação e divulgação dos resultados sob as condições de preservação do anonimato e do direito ao sigilo e à confidencialidade.

A coleta dos dados teve duração mínima de 55 minutos e máxima de 90 minutos e foi audiogravada mediante concordância dos participantes. As entrevistas ocorreram entre março e setembro de 2020. Duas foram realizadas de modo presencial - na casa do participante e em uma praça pública, por solicitação do colaborador - e duas ocorreram na modalidade on-line, em cumprimento às medidas de distanciamento social decorrentes do combate à pandemia de covid-19, respeitando-se os protocolos de segurança sanitária e as condições de privacidade (Santos, Oliveira, & Oliveira-Cardoso, 2020Santos, M. A., Oliveira, W. A., & Oliveira-Cardoso, É. A. (2020). Inconfidências de abril: impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de covid-19. Psicologia & Sociedade, 32, e020018. doi: 10.1590/1807-0310/2020v32240339
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). Os registros audiogravados foram transcritos integralmente, constituindo o corpus de análise.

Para examinar os dados utilizou-se a análise temática reflexiva, cujos passos foram descritos por Braun e Clarke (2019Braun, V., & Clarke, V. (2019). Reflecting on reflexive thematic analysis. Qualitative Research in Sport, Exercise and Health, 11(4), 589-597. doi: 10.1080/2159676X.2019.1628806
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). O procedimento de análise dos dados se iniciou com a leitura e releitura exaustiva dos dados, seguidas pela codificação a partir da identificação de conteúdos latentes ou semânticos. Na sequência, realizou-se a agregação de códigos semelhantes em seus sentidos, resultando em temas analíticos que apresentavam homogeneidade interna e heterogeneidade externa. Na fase final, uma análise detalhada sobre os temas foi elaborada, alocando-os de acordo com o objetivo da pesquisa. Os resultados são descritos a partir de um processo criativo, reflexivo e subjetivo, no sentido de que a subjetividade dos pesquisadores é considerada e explorada como um recurso potencial da produção de conhecimento (Braun & Clarke, 2013Braun, V., & Clarke, V. (2013). Successful qualitative research: a practical guide for beginners. Los Angeles, CA: Sage., 2019Braun, V., & Clarke, V. (2019). Reflecting on reflexive thematic analysis. Qualitative Research in Sport, Exercise and Health, 11(4), 589-597. doi: 10.1080/2159676X.2019.1628806
https://doi.org/10.1080/2159676X.2019.16...
). Dessa forma, trata-se de um processo de análise temática que demanda uma atitude recursiva, com movimentos orgânicos e profundo envolvimento entre os pesquisadores e os dados gerados nas entrevistas (Braun & Clarke, 2006Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using thematic analysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101. Recuperado de https://uwe-repository.worktribe.com/preview/1043068/thematic_analysis_revised_-_final.pdf
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).

A interpretação dos dados se deu a partir do diálogo estabelecido com os estudos do campo da transexualidade e das relações étnico-raciais (Ávila, 2014Ávila, S. N. (2014). FTM, transhomem, homem trans, trans, homem: a emergência de transmasculinidades no Brasil contemporâneo (Tese de doutorado). Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC. Recuperado de https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/129050/329117.pdf?sequence=1
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; G. Almeida, 2012Almeida, G. (2012). “Homens trans”: novos matizes na aquarela das masculinidades? Estudos Feministas, 20(2), 513-523. Recuperado de https://www.scielo.br/pdf/ref/v20n2/v20n2a12
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; Santana, 2019Santana, B. S. (2019). Pensando as transmasculinidades negras. In H. Restier, & R. M. Souza (Orgs.), Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades (pp. 95-104). São Paulo, SP: Ciclo Contínuo Editorial.). Para sistematizar essa análise foi utilizado o software QDA Miner Lite (versão 2.0.7), que assegura o rigor metodológico e permite a realização de diversos tipos de investigação.

Resultados e discussão

Seguindo os passos da análise temática reflexiva, foram elaboradas duas categorias: o racismo como ato de validação da identidade masculina e a dificuldade da empregabilidade em decorrência do racismo estrutural.

O racismo como ato de validação da identidade masculina

Perceber-se como sujeito submetido a atos de discriminação e injúria racial é uma experiência complexa. Os relatos dos participantes se mostraram diversificados nessa questão. Houve aqueles que referiram não perceber manifestações racistas em suas vidas (Henrique e Christopher) e outros que relataram vivências nítidas de racismo e ameaças à sua integridade e segurança (Hugo e Gabriel).

Christopher, por se identificar como negro4 4 Ao discorrer sobre suas experiências de transição de gênero, os participantes utilizaram o termo negro (portanto, um termo êmico, da perspectiva do sujeito), à exceção de Gabriel, que enunciou, uma única vez, o termo preto. de pele clara, afirma não ter tido experiências diretamente relacionadas ao que ele entende por racismo. Entretanto, ele compartilha vivências de um amigo negro que já foi alvo de preconceito.

. . . eu ainda não passei por esta questão da pele, mas já vi amigo meu passar por isso e eu fiquei muito indignado com isso porque são duas coisas de que eu tenho o maior orgulho de ser, e ele também. E ele é negro mesmo, negrão, e isso me deixou bem abalado porque ainda tem a questão da parte negra e juntou os dois . . . mas, sendo eu mais claro, comigo ainda não tive a questão dessa diferença de ser homem trans e negro. (Christopher)

O tom da pele negra também constitui um marcador que interfere na leitura social sobre o ser negro, influenciando as vivências decorrentes do racismo. Quando questionado acerca de sua percepção sobre os privilégios sociais desfrutados pelos homens, pelo simples fato de serem lidos como homens, Henrique afirma ter percebido esses benefícios; entretanto, reflete que ser lido como um corpo negro retira alguns desses privilégios, diferentemente do que ocorre com um homem trans branco, que preserva todos os poderes conferidos pelo prestígio da masculinidade.

Enquanto homem, só falando no gênero especificamente, sim. Como eu falei, aquela questão que às vezes você vai num lugar, um restaurante, por exemplo, e você tem a palavra dirigida a você, eu sinto isso quanto ao gênero, né? Porque, se você for ver em outros aspectos, de características, eu ainda sinto que eu não estou tão assim, né? Por conta de eu ser baixinho, de eu ser negro, eu sinto que ainda não tenho . . . assim, minha cara . . . . Já tenho 22 anos, mas não aparento, então, nesses aspectos, eu ainda não me sinto tão no poder assim. (Henrique)

Gabriel corrobora tal pensamento, entendendo que a intersecção experienciada pelo homem transexual negro limita os privilégios adquiridos com a transição para o gênero dominante: “Talvez eu tenha certo privilégio por ser homem e, para a sociedade, o homem tem que receber mais, então creio que realmente tenho esses privilégios, mas por ser preto eu não vejo tanto privilégio” (Gabriel). Nessa vertente, homens trans que passam pela hormonização, com uso regular de testosterona (como é o caso de todos os participantes), e que apresentam características interpretadas socioculturalmente como masculinas - barba e voz grave - percebem ganhos de privilégios sociais. Entretanto, ao serem lidos como homens negros, certos poderes e vantagens conferidos ao gênero masculino lhes são retirados. Henrique não soube precisar quais, mas afirma que consegue perceber essas restrições em seu cotidiano.

Esse contexto de desempoderamento resulta, principalmente, do entrecruzamento de gênero e raça, como postula Crenshaw (2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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), tendo em vista que a interseccionalidade produz opressões específicas relativas a esses eixos de subordinação. Ser homem e ser negro, no contexto de uma sociedade patriarcal e escravocrata, expõe quem transiciona seu gênero ao paradoxo de “ganhar” (o status masculino) e “não receber” (os poderes conferidos a esse status recém-conquistado), uma vez que ele “herda” a visão estereotipada por meio da qual os homens pretos são percebidos.

Os participantes Hugo e Gabriel - ambos negros de pele escura - foram os que mais relataram percepções e experiências de racismo e seus impactos disruptivos em suas vidas. Hugo aponta que, após a transição e a partir de sua leitura social como homem negro, ele passou a ser lido como um “homem perigoso”.

Mudou, assim, em relação às pessoas ficarem com um certo receio agora. Porque eu vejo muito de racismo sendo mais escancarado, de eu estar . . . tipo, eu fui sentar em um banco [de ônibus] e tinha uma senhora e a bolsa dela estava no banco, ela pôs a bolsa do outro lado e segurou [gestos explicativos] como se eu quisesse alguma coisa que tivesse dentro daquela bolsa . . . . As pessoas às vezes atravessam a rua, olham pra trás com medo . . . é mais questão desse tipo, assim. O homem trans negro, ele é muito . . . ele é visto como um provável marginal, aliás, como todo homem negro que é visto na rua. (Hugo)

. . . enquanto mulher preta, eu era assediado, eu era visto como a empregada que tem que trabalhar pra famílias ricas e que eu servia só pra isso. Como homem, já é diferente: eu não sou assediado, eu sou perseguido! Eu entro dentro de uma loja e fico receoso porque eu sei que alguém vai ficar me olhando - ainda mais pelo jeito como eu me visto, porque eu gosto de roupas mais largas, bermudas e sempre estou de chinelo, raramente uso tênis - então, quando eu entro numa loja grande ou mercado um pouco maior, sempre tem alguém me olhando pra ver se eu não vou roubar alguma coisa. Correr na rua eu não posso nunca na vida, porque se eu estou correndo e passa a polícia, é porque estou fazendo alguma coisa errada. Então, muda um pouco o fato de ser um homem trans negro para um homem trans branco, o privilégio fica um pouco diferente. (Gabriel)

No último excerto apresentado, o participante explicita algumas situações preconceituosas e discriminatórias às quais é submetido cotidianamente em decorrência de sua nova identidade de homem negro. Uma estratégia que ele criou para evitar - ou pelo menos mitigar - as consequências perversas do racismo consiste em frequentar lojas e supermercados na companhia de sua filha, ostentando sua posição de pai de uma criança como forma de angariar respeitabilidade.

. . . Aqui no meu bairro não tem muito [situações de violências decorrentes do racismo] porque as pessoas já me conhecem, mas se eu for no supermercado à noite, por exemplo, eu sempre opto por levar a minha menina comigo, porque aqui no meu bairro tem muita biqueira, então pra chegar no mercado eu passo por umas três biqueiras. Então, no período noturno, se eu tiver passando na porta da biqueira sozinho e passar a polícia, eu sei que vou tomar enquadro, mesmo só passando na porta . . . então, sempre que eu vou sair à noite, eu opto por levar minha menina comigo, porque, querendo ou não, ela é criança e já é menos um motivo pra tomar enquadro. (Gabriel)

A fala a seguir mostra a não ascensão ao “privilégio” concedido aos homens brancos cisgênero de se sentirem em segurança quando circulam nas vias públicas: “Eu estava na praça com meus amigos e tinham várias pessoas brancas e só eu e mais uma pessoa negra tomamos enquadro, porque na cabeça da polícia a gente estava fazendo alguma coisa errada”. (Gabriel)

Os relatos dos participantes permitem compreender que a leitura social do homem negro ainda é filtrada pelo estereótipo da periculosidade e violência associado ao homem negro, que a autora negra bell hooks (1992bhooks, b. (1992b). Reconstructing black masculinity. In Black looks: race and representation (pp. 87-113). Boston, MA: South End Press.) descreve com precisão. Para o participante Hugo, a percepção das experiências derivadas do racismo torna-se muito mais evidente do que a transfobia, entendendo que a leitura social é de um sujeito homem negro cisgênero.

[entrevistadora] Então, a questão da raça aparece para você mais intensamente do que a questão de gênero?

[Hugo] Sim, muito mais, porque “ai, um menino negro e tals”, a gente entra no mercado pra ver alguma coisa, aí você vê segurança de zóio em você, essas coisas que eu não vivia antes da transição.

Refletindo sobre como percebia a “transição” do [ser alvo de] racismo à [ser exposto à] transfobia, Gabriel relata:

Depois que comecei a usar roupas masculinas, na primeira vez em que eu fui numa loja chique aqui na cidade, o segurança ficou me seguindo o tempo todo. Eu pegava uma peça de roupa pra olhar e ele já levantava a cabeça pra ver o que eu estava fazendo e se eu não ia esconder a roupa dentro da bolsa.

Quando o sujeito trans negro é submetido a situações vexatórias e humilhações, o enfrentamento geralmente é evitado. Hugo utiliza um mecanismo de esquiva da situação.

Eu finjo demência, eu ignoro, eu evito contato, eu evito ter que falar alguma coisa porque é perda de tempo, vai ser um bate-boca longo, vai todo mundo falar um monte de coisa e ninguém vai entender nada, então, eu prefiro evitar.

Gabriel conta que se sente muito mal com essa (nova) realidade, mas que já se acostumou de tanto que essas situações se repetem, sentindo-se o tempo todo colocada à prova:

Tem coisa que acontece que eu fico muito mal. Tem coisas que eu já me acostumei, como o fato de entrar em lojas . . . é uma coisa que eu já me acostumei porque eu sei que em todo lugar em que eu entrar vai ser do mesmo jeito.

A adequação buscada pelo homem trans negro implica “outro” tipo de transição, que é justamente o que este estudo permitiu desvelar. Ao adequar seu corpo ao gênero, ele se desloca da objetificação e hiperssexualização a que era submetido na condição anterior de mulher negra para uma posição atual de homem negro, que, apesar de usufruir de alguns privilégios por ser lido como homem, será percebido como ameaça ao convívio social, além de ser visto como dotado de uma hipervirilidade inquestionável: “Deixei de ser objeto para ser ameaça” (Peçanha, 2018Peçanha, L. M. B. (2018). Visibilidade trans para quem? Parte II: um olhar transmasculino negro. Negros Blogueiros. Recuperado de http://negrosblogueiros.com.br/author/leonardombpecanha
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); “saio do lugar de vítima para o lugar de ameaçador” (Santana, 2017Santana, B. S. (2017). Trajetória de um homem trans no curso de licenciatura em educação física na universidade pública: uma narrativa subversiva (Monografia). Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, BA., p. 46).

Os resultados sugerem que as experiências dos homens transexuais negros divergem ainda em decorrência da leitura visual da tonalidade da pele. Henrique e Christopher, ambos homens trans negros de pele clara, afirmaram não vivenciar situações de racismo direcionado a eles. Contudo, Hugo e Gabriel, ambos negros de pele escura, relataram vivenciar o racismo estrutural diariamente e em todos os aspectos de suas vidas. Seus relatos corroboram as experiências descritas por Santana (2019Santana, B. S. (2019). Pensando as transmasculinidades negras. In H. Restier, & R. M. Souza (Orgs.), Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades (pp. 95-104). São Paulo, SP: Ciclo Contínuo Editorial.), que concluiu que homens transexuais negros vivenciam a passabilidade pela via do racismo. Esse seria o marco do reconhecimento e da validação social do gênero almejado por esses sujeitos. O que este estudo acrescenta em relação ao conhecimento já produzido nesse campo é que o racismo pode, sim, funcionar como ato de validação da identidade masculina, mas não em todos os homens trans que se autodeclaram negros. Isso é encontrado apenas naqueles que têm a pele escura.

Dificuldade da empregabilidade em decorrência do racismo estrutural

Esse eixo temático repercute a questão da empregabilidade como ponto crítico na vivência transexual (Boffi & Santos, 2020Boffi, L. C., & Santos, M. A. (2020). Pose: reflexões acerca da construção do corpo travesti. In L. R. S. Carvalho, & A. C. Bortolozzi (Orgs.), Leituras sobre a sexualidade em filmes: identidades dissidentes e opressões (Vol. 7, pp. 11-44). São Carlos, SP: Pedro & João.; Soares, Feijó, Valério, Siquieri, & Pinto, 2011Soares, M., Feijó, M. R., Valério, N. I., Siquieri, C. L. S. M., & Pinto, M. J. C. (2011). O apoio da rede social a transexuais femininas. Paidéia (Ribeirão Preto), 21(48), 83-92. doi: 10.1590/S0103-863X2011000100010
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). Hugo relata ter encontrado mais facilidade para conseguir emprego após sua transição, o que ele reputa ao fato de passar a ser lido como pertencente ao gênero masculino. Por outro lado, todos os participantes apontam que a intersecção gênero e raça interfere na qualidade dos postos de trabalho e serviços que lhes são ofertados e, consequentemente, impacta a renda recebida. Hugo comenta: “Eu não vou receber o mesmo salário que um homem cisgênero recebe. Para mim vai ser um valor abaixo por ser transgênero, por ser negro, tem todo uma classificação que vai diminuindo o salário por conta disso”. Há uma hierarquia de prestígio associada ao gênero, assim como à tonalidade da pele.

O racismo estrutural a que o homem negro é submetido faz com que ele tenha suas qualidades, habilidades e aptidões para o trabalho não reconhecidas. Mais do que isso, ele é exposto em seu local de trabalho a tentativas, sutis ou escancaradas, que buscam desmoralizar e desqualificar sua pessoa. A “raça”, como componente fundamental da estrutura social, é utilizada para diferenciar, hierarquizar e subjugar os grupos marcados fenotipicamente (Guimarães, 1999Guimarães, A. S. A. (1999). Racismo e anti-racismo no Brasil. São Paulo, SP: Editora 34.).

Na experiência de Gabriel, o eixo principal de subordinação no mercado de trabalho é a transgeneridade. Cabe indagar até que ponto o racismo não estaria interseccionado nessa construção, considerando que sua expressão frequentemente é camuflada na sociedade brasileira - o racismo velado ou “racismo silencioso” (Ferreira, 2002Ferreira, R. F. (2002). O brasileiro, o racismo silencioso e a emancipação do afro-descendente. Psicologia & Sociedade, 14(1), 69-86. doi: 10.1590/S0102-71822002000100005
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).

Até que hoje é mais tranquilo, eu até consigo arrumar trabalho mais fácil, só que isso vai até o momento em que ninguém sabe que eu sou trans, porque, quando as pessoas descobrem, muda tudo . . . . E quando eu arrumo emprego, são serviços pesados, como descarregar caminhão, servente de pedreiro . . . . Enquanto as pessoas não sabem que eu sou trans, me tratam normal, mas a partir do momento que descobrem, parece que começa o receio: “não vai dar conta de fazer isso porque não é homem de verdade, não vai conseguir fazer certas coisas”. E aí começam a querer me dispensar. (Gabriel)

Essa narrativa aponta para uma forma particular de discriminação e opressão, que se produz conforme se racializa a existência. Não se trata apenas de sobrepor racismo e transfobia, pois o que se evidencia no relato de Gabriel é a produção de formas particulares de discriminação e opressão. A situação exposta demonstra que, como homem negro, ele supostamente apresenta maior aptidão e valia para o trabalho braçal, contudo, à medida que ele se identifica - ou é identificado - como homem trans, os estereótipos da fragilidade atrelados à imagem do feminino emergem com vigor. Nesse sentido, a aproximação com o gênero no qual ele fora anteriormente alocado (feminino) confere desvalor, gerando questionamentos que desestabilizam os eixos fundantes do “ser homem negro emasculado” (hooks, 1992ahooks, b. (1992a). Ain’t I a woman: black woman and feminism. Boston, MA: South End Press.), resultando em desempoderamento do sujeito (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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).

Segundo Pinto e Ferreira (2014Pinto, M. C. C., & Ferreira, R. F. (2014). Relações raciais no Brasil e a construção da identidade da pessoa negra. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 9(2), 257-266. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ppp/v9n2/11.pdf
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), o longo período escravagista no Brasil foi marcado pela forma coisificada e animalizada como o africano escravizado era tratado, o que resultou na construção de uma imagem desumanizada e desvalorizada do negro. No Brasil Colônia e no Império, o escravo era uma mercadoria, nomeado como “peça” por seu rico proprietário. Essa herança do período escravocrata gerou um conjunto de atributos destinados a desqualificar a identidade da pessoa negra, um legado que permanece vivo e atuante no imaginário coletivo brasileiro. Essa dinâmica racista esteve na base da exclusão das pessoas negras do processo produtivo durante o período republicano. O desamparo social a que a população negra foi submetida após a abolição e a falta de acesso à escolarização se agregam ao lugar de subalternidade a que os negros foram relegados na história do país. Isso se reflete nos empregos precários e na exclusão de parte substancial da população negra do mercado formal de trabalho.

Mas a diferença é que um homem cis branco hoje consegue um emprego muito mais fácil do que eu, porque as pessoas ainda ficam meio que: “hum, mas é menino mesmo ou não é?”. Tanto é que eu não consegui emprego até hoje . . . . Emprego formal está difícil, você passa por uma minientrevista na hora e falam assim: “ah, vamos entrar em contato”. Esse “vamos entrar em contato” nunca acontece. Quando eles falam assim, nunca vão entrar . . . . Eu participei de uma seleção de emprego em um restaurante. Estou esperando a resposta até hoje. (Hugo)

A discriminação, agravada pela instabilidade e baixa oferta de empregos de melhor qualidade no mercado formal de trabalho, leva os participantes a recorrerem à informalidade, em geral no ramo de atividades braçais. Contribuem para isso os problemas de qualificação profissional, decorrentes das exclusões a que a pessoa trans é submetida em seu processo de escolarização, o que resulta em futura inserção em postos de trabalho de baixo prestígio social e menor remuneração (Figueiredo, 2017Figueiredo, C. R. L. V. (2017). Essa pele que habito - reflexões sobre transexualidade, discriminação e abuso às garantias constitucionais no contexto do direito do trabalho. JURIS - Revista da Faculdade de Direito, 27(1), 67-80. doi: 10.14295/juris.v27i1.6680
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; Santos et al., 2020Santos, M. A., Oliveira, W. A., & Oliveira-Cardoso, É. A. (2020). Inconfidências de abril: impacto do isolamento social na comunidade trans em tempos de pandemia de covid-19. Psicologia & Sociedade, 32, e020018. doi: 10.1590/1807-0310/2020v32240339
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; Menezes, 2020Menezes, L. M. J. (2020). Experiências vividas por mulheres transexuais e travestis negras na cidade de São Paulo (Trabalho de conclusão de curso). Departamento de Ciências Sociais, Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP.).

Aí eu fico sem opção, por isso que eu meio que escolhi trabalhar como autônomo, porque aí eu não tenho que me preocupar com essas coisas, porque eu posso fazer meu serviço sem me preocupar se as pessoas vão achar que eu dou conta ou não. E não tenho que passar por essas situações humilhantes das pessoas acharem que eu sou incapaz de fazer as coisas porque eu sou negro ou porque eu sou trans. (Gabriel)

Todos os participantes se classificaram como profissionais autônomos, que também é uma estratégia defensiva para evitarem esbarrar no racismo e na transfobia nos locais de trabalho. A experiência de falta de acesso ao emprego formal vivenciada pelos homens trans negros também é observada no cotidiano das mulheres transexuais e das travestis negras, em sua maioria confinadas ao exercício do trabalho sexual e expostas à extrema vulnerabilidade nas ruas (Boffi & Santos, 2021Boffi, L. C., & Santos, M. A. (2021). Corpos travestis: (re)existências em territórios confinados e regulação do trabalho sexual na composição Mulher, de Linn da Quebrada. In L. R. S. Carvalho, & A. C. Bortolozzi (Orgs.), Leituras sobre a sexualidade em filmes: animações e músicas (Vol. 11, pp. 103-122)..). Tal cenário social ilustra o que Conrado e Ribeiro (2017Conrado, M., & Ribeiro, A. A. M. (2017). Homem negro, negro homem: masculinidades e feminismo negro em debate. Estudos Feministas, 25(1), 73-97. doi: 10.1590/1806-9584.2017v25n1p73
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) afirmam corresponder a estruturas que impedem e coíbem o acesso desses sujeitos aos bens simbólicos e materiais produzidos pelo conjunto da sociedade, assim como aos seus direitos sociais e a uma existência digna.

A população negra foi e continua sendo historicamente submetida a uma exposição prolongada a situações de humilhação e desqualificação. Isso se consolidou ao longo da história de formação da nação brasileira, com a criação de teorias racistas, da ideologia do branqueamento e do mito da democracia racial, que promoveram situações nas quais preconceitos e estereótipos, que reproduzem e legitimam o racismo, foram e continuam sendo reforçados nos dias atuais (Pinto & Ferreira, 2014Pinto, M. C. C., & Ferreira, R. F. (2014). Relações raciais no Brasil e a construção da identidade da pessoa negra. Pesquisas e Práticas Psicossociais, 9(2), 257-266. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/pdf/ppp/v9n2/11.pdf
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; Ribeiro & Bicalho, 2017Ribeiro, M. C. C., & Bicalho, P. S. S. (2017). Entre a história e a identidade dos africanos e seus descendentes na terra brasilis: da escravidão ao movimento negro. Mosaico, 10(2), 153-163. doi: 10.18224/mos.v10i0.5747
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; Veiga, 2019Veiga, L. M. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, 31(spe), 244-248. doi: 10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
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).

Em outra loja eu estava olhando as alianças e o segurança ficou o tempo todo do meu lado, mesmo com várias pessoas na loja, e eu pegava a aliança e colocava no meu dedo - pra ver se ia servir, porque eu tenho a mão muito fina, então eu tenho que experimentar - e ele ficou o tempo todo em cima de mim pra ver se eu não ia pegar alguma coisa. (Gabriel)

Grada Kilomba (2019Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano (J. Oliveira, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Cobogó.) define o racismo cotidiano como todo vocabulário, discurso, imagens, gestos, ações e olhares que posicionam o sujeito negro não só como o “Outra/o”, mas também como Outridade, ou seja, a negritude é situada como alteridade, esse indesejável outro que não é o branco tomado como referência. Os efeitos psíquicos e subjetivos do racismo cotidiano constituem, em diferentes perspectivas, a condição que a autora descreve como passar a vida “sendo falada”, ou seja, sendo deliberadamente posicionada no lugar de objeto. Esse lugar prescreve a imposição de ser definido, determinado, fixado e estabelecido pela sociedade branca.

O sentimento de pertencer a um grupo socialmente desvalorizado potencializa defesas como alienação, negação da própria negritude e preconceito internalizado, que deixam marcas indeléveis na constituição subjetiva do indivíduo negro (Boffi & Santos, 2020Boffi, L. C., & Santos, M. A. (2020). Pose: reflexões acerca da construção do corpo travesti. In L. R. S. Carvalho, & A. C. Bortolozzi (Orgs.), Leituras sobre a sexualidade em filmes: identidades dissidentes e opressões (Vol. 7, pp. 11-44). São Carlos, SP: Pedro & João.). No caso dos homens negros trans, a complexidade é ainda maior, dado o caráter de atravessamento dos sistemas de subordinação de uma sociedade profundamente racista, excludente e cis-heteronormativa como a brasileira. Só uma análise interseccional permite compreender de que forma ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo desses sistemas discriminatórios (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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; Sardenberg, 2015Sardenberg, C. M. B. (2015). Caleidoscópios de gênero: gênero e interseccionalidades na dinâmica das relações sociais. Mediações, 20(2), 56-96. doi: 10.5433/2176-6665.2015v20n2p56
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) que criam e cristalizam desigualdades ao fixarem as posições relativas que homens negros trans irão ocupar na hierarquia social, realimentando a dinâmica de desempoderamento.

Considerações finais

A análise das narrativas permitiu compreender que a transição de gênero empreendida pelos participantes, potencializada pela utilização regular de testosterona, confere a eles uma aparência física que favorece o reconhecimento social enquanto sujeitos pertencentes ao gênero masculino. As validações obtidas a partir da rede de relações lhes permitem ter acesso a certos privilégios sociais destinados aos homens, quando comparados às mulheres. Entretanto, o principal privilégio relatado pelos homens transexuais brancos - sentir-se em segurança quando circulam nas vias públicas (Soares, 2020Soares, M. C. M. (2020). “Homens de verdade”:(des)construção de masculinidades de homens trans (Dissertação de mestrado). Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação, Universidade do Porto, Porto.) - não é compartilhado pelos homens transexuais negros, o que é consistente com as experiências descritas por Santana (2019Santana, B. S. (2019). Pensando as transmasculinidades negras. In H. Restier, & R. M. Souza (Orgs.), Diálogos contemporâneos sobre homens negros e masculinidades (pp. 95-104). São Paulo, SP: Ciclo Contínuo Editorial.) e Peçanha (2018Peçanha, L. M. B. (2018). Visibilidade trans para quem? Parte II: um olhar transmasculino negro. Negros Blogueiros. Recuperado de http://negrosblogueiros.com.br/author/leonardombpecanha
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), ambos homens transexuais negros. Isso decorre da imagem cristalizada no imaginário coletivo de homem-negro-perigoso-ameaça-social-potencial-bandido, estigma que é reservado aos homens transexuais negros. A baixa empregabilidade é uma das consequências deletérias decorrentes dessa leitura dos corpos negros trans, reforçando o sistema excludente que perpetua a situação de marginalização social.

Desse modo, entendemos que as duas categorias elaboradas - o racismo como ato de validação da identidade masculina e a dificuldade da empregabilidade em decorrência do racismo estrutural - são duas faces da mesma moeda perversa. Os resultados sugerem que o reconhecimento social das identidades transmasculinas negras advém, em alguns casos, da via do racismo, quando este se intersecciona com a transfobia e os sujeitos que transicionaram passam a ser lidos como “homens perigosos”. Na realidade, duplamente perigosos, na medida em que são lidos como potenciais agressores - pela “índole má” imputada devido à cor da pele - e percebidos como ameaçadores à concepção dominante de masculinidade. Junto a esse processo, no qual é investido com o mandato da masculinidade - prerrogativa concedida a pessoas que carregam um corpo “inquestionavelmente” masculino -, o homem trans recebe uma lista de exigências e sacrifícios que deverá honrar em troca dos privilégios que lhe são conferidos. Porém, na experiência do homem negro trans, nota-se uma particularidade: o lugar oferecido a ele na estrutura social é moldado pela dupla subordinação interseccional que marca a interface gênero e raça. O ônus a ser pago pela transgressão da cisnormatividade pelo homem trans negro terá um sobrepreço, quando comparado ao que se observa no homem trans branco.

O imaginário racista é uma construção social e histórica remanescente do período colonial escravocrata, que tende a se perpetuar nos dias atuais, mesmo após mais de um século da abolição da escravidão. Tal representação, enquanto legado do racismo sistêmico e estrutural, aloca os homens transexuais negros em uma posição de inferioridade e submissão ao escrutínio e à vigília constante do olhar do branco. Isso se materializa no olhar desconfiado e armado da polícia, dos seguranças de lojas e hipermercados e das pessoas brancas que circulam nas vias públicas. Quando interseccionados os marcadores de etnia e gênero, como se observa na condição de homem transexual negro, o sujeito alcança sua passabilidade à custa do racismo. Assim, paradoxalmente, a passabilidade de certo modo o protege da transfobia (Alexandre et al., 2020Alexandre, V., Oliveira-Cardoso, E. A., & Santos, M. A. (2020). A banalidade transfóbica e o estado brasileiro conservador. In S. R. Pasian, A. P. S. Silva, C. M. Corradi-Webster, M. G. Sticca, D. S. Zanini, & S. Grubits (Orgs.), Identidade e vulnerabilidade humana em diferentes contextos: contribuições da psicologia (pp. 79-94). Curitiba, PR: CRV.) ao mesmo tempo que o expõe aos ataques racistas, em uma barganha social que evidencia um lado ainda mais invisibilizado do racismo estrutural e suas consequências tóxicas. Tais efeitos resultam na exclusão do homem trans negro como sujeito de direitos - por exemplo, o direito de ter acesso a postos de emprego de qualidade, o que origina ocupações de baixo rendimento que reforçam a vulnerabilidade decorrente da crônica precarização das condições de trabalho.

A análise interseccional ganha força na medida em que mostra que não se trata apenas de identificar os vários efeitos do entrecruzamento entre os eixos do racismo e da transfobia. É necessário ir além e evidenciar a produção de formas particulares de discriminação e opressão. Outro aspecto para o qual vale a pena chamar a atenção é que as experiências individuais estão longe de ser homogêneas, uma vez que os sujeitos também se relacionam com outros marcadores sociais da diferença, conforme aponta a discussão da interseccionalidade.

No que concerne às limitações deste estudo, pode-se apontar que a pesquisa circunscreveu-se a participantes oriundos das duas regiões (Sudeste e Sul) com maior índice de desenvolvimento humano (IDH). Esse indicador se baseia em parâmetros de acesso à saúde, educação e renda. Sendo o Brasil um país continental e marcado por desigualdades abissais na distribuição de renda, as diferenças regionais configuram distintas realidades socioculturais, que certamente influenciam os processos de subjetivação de homens negros trans e condicionam ou delimitam suas possibilidades de acesso à plena cidadania. Ademais, os participantes concentram-se em uma estreita faixa etária (22 a 33 anos), o que suprime a possibilidade de aprofundamento nas questões geracionais, lembrando que geração é um marcador social da diferença que contribui para a discussão da interseccionalidade. A propósito, Gaspodini e Falcke (2018Gaspodini, I. B., & Falcke, D. (2018). Sexual and gender diversity in clinical practice in Psychology. Paidéia (Ribeirão Preto), 28, e2827. doi: 10.1590/1982-4327e2827
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, 2019Gaspodini, I. B., & Falcke, D. (2019). Estudos psicológicos brasileiros sobre preconceito contra diversidade sexual e de gênero. Estudos Interdisciplinares em Psicologia, 10(2), 59-79. doi: 10.5433/2236-6407.2019v10n2p59
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) observaram que a maioria dos estudos brasileiros sobre diversidade sexual e de gênero investiga o preconceito em amostras jovens, o que reforça a necessidade de expandir os limites etários de modo a abarcar outros estágios do ciclo vital.

Em que pesem tais limitações, pode-se afirmar que os resultados obtidos fornecem indícios substanciais que merecem ser aprofundados por estudos futuros. Subjugados pelas circunstâncias sociais que engendram e articulam racismo e gênero, os sujeitos negros trans percorrem um caminho contínuo de vulnerabilização social. Por essa razão, seus corpos estão sistematicamente expostos a atos de violência em suas distintas configurações: intolerância, preconceito, injúria e discursos de ódio, que se potencializam nas manifestações veladas ou explícitas do racismo e da transfobia.

Neusa Santos Souza (1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro, RJ: Graal.) afirma que uma das formas de exercer autonomia - e refutar predefinições sociais aprisionadoras - é aceder a um discurso sobre si mesmo fundamentado na realidade, recusando os véus encobridores da ideologia dominante. A autora descreve como as expectativas e exigências dos brancos impactam na ausência de autonomia dos negros na aquisição de um discurso emancipador sobre si mesmos. Neste estudo, é possível pensar que a escuta oferecida às histórias compartilhadas pelos homens trans negros pode ser um elemento transformador na medida em que contribui para ampliar a tomada de consciência do processo histórico-ideológico que os delimita na perspectiva de homens-perigo e/ou homens-de-mentira. A partir da desconstrução dos mecanismos encobridores, perpetuadores de iniquidades, podem-se criar novas possibilidades de consciência de si, com o propósito de reafirmar a dignidade dos homens trans negros, alheia a qualquer nível de redução e exploração (Souza, 1983Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social. Rio de Janeiro, RJ: Graal.).

Este estudo fornece alguns elementos que permitem chamar a atenção para a necessidade de ampliar o debate sobre a questão racial e as políticas públicas de combate à desigualdade e à discriminação racial no Brasil, de modo a incluir o vértice ainda negligenciado da transexualidade. Como fortalecer experiências concretas de enfrentamento e superação das iniquidades raciais no Brasil sem atentar para as necessidades específicas do segmento trans?

Sabe-se que as iniquidades raciais reverberam em disparidades de saúde. Nesse cenário, A. Santos e Oliveira (2019Santos, A. O., & Oliveira, L. R. (2019). Abordagem CTS diante das interpelações da afrocentricidade: a saúde da população negra. Psicología, Conocimiento y Sociedad, 9(2), 47-61. doi: 10.26864/pcs.v9.n2.3
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) afirmam que não há visibilidade da população negra nos textos da ciência psicológica. Esse movimento revela que o papel crítico-analítico atrelado ao objetivo de desarmar os mecanismos perversos do racismo não está sendo exercido a contento pela psicologia. Pelo contrário, a produção do conhecimento reproduzido nas práticas psi continua servindo aos aparatos de objetificação da população negra, a partir do que os referidos autores chamam de embranquecimento dos saberes: ausência da bibliografia de intelectuais negras/os e, especialmente, de espaços para discussão sobre experiências clínicas e sociais que considerem o racismo e suas decorrências intersubjetivas. “A situação de apagamento da condição social da população preta nas pesquisas em psicologia diz algo do esquecimento da população brasileira inteira” (Santos & Oliveira, 2019, p. 66)Santos, A. O., & Oliveira, L. R. (2019). Abordagem CTS diante das interpelações da afrocentricidade: a saúde da população negra. Psicología, Conocimiento y Sociedad, 9(2), 47-61. doi: 10.26864/pcs.v9.n2.3
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.

De acordo com Sousa e Cavalcanti (2016Sousa, D., & Cavalcanti, C. (2016). Entre normas e tutelas: pensando (im)possibilidades da Psicologia em interface com transgeneridades. In A. Denega, D. S. V. Andrade, & H. M. Santos (Orgs.), Gênero na psicologia: saberes e práticas (pp. 126-139). Salvador, BA: CRP-03.), a psicologia tem sido reinventada por pessoas negras, indígenas, lésbicas, gays, bissexuais, homens e mulheres transexuais, travestis, pessoas trans não binárias, pessoas com deficiência, entre outras, que há muito não acessavam esse campo de saber-fazer. De forma consistente com essas proposições, este estudo identificou alguns elementos que permitem localizar saberes contra-hegemônicos existentes nas transexualidades negras que podem ser acionados para romper com a produção de conhecimentos e instrumentos que se baseiam exclusivamente na cisgeneridade e na branquitude como balizas norteadoras e normatizadoras das vivências humanas.

Por vezes, os danos infligidos às populações que enfrentam o entrecruzamento de opressões são potencializados quando o impacto vindo de uma direção lança as vítimas no caminho de um fluxo contrário, resultando em colisões simultâneas (Crenshaw, 2002Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, 10(1), 171-188. doi: 10.1590/S0104-026X2002000100011
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). O “esquecimento” da questão racial nas análises sobre transexualidade masculina pode ser interpretado como um caso de racismo por omissão. Gênero e raça são dispositivos relacionais que se baseiam em dinâmicas de exclusão e de precarização dos corpos. Dessa forma, o primeiro passo para pensar as políticas de saúde da população transmasculina negra é o reconhecimento e a valoração positiva das experiências divergentes e específicas dessa população.

Novos estudos são necessários para aumentar a visibilidade das questões de gênero, raça e subjetividade, sob um olhar interseccional. A ampliação desse conhecimento é crucial para subsidiar programas que possam acolher e empoderar os sujeitos trans negros em suas formas de resistência à opressão, vislumbrando novas e criativas possibilidades de re-existir, que contribuam para a construção de uma sociedade democrática, mais justa, igualitária e solidária.

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  • 1
    A transgeneridade é a condição possível de alguns indivíduos assumirem uma identidade de gênero diferente daquela designada por ocasião do seu nascimento. Em outros termos, descreve uma pessoa cuja identidade de gênero não “coincide” com o sexo biológico.
  • 2
    Cisgênero refere-se à condição de identificação do sujeito com o gênero que lhe foi atribuído ao nascimento em decorrência de seu órgão genital, acatando, assim, a noção binária de feminino ou masculino.
  • 3
    A autora afirma que seu nome deve ser grafado em letras minúsculas, em respeito ao seu desejo de dar destaque ao conteúdo de sua escrita, e não a sua pessoa.
  • 4
    Ao discorrer sobre suas experiências de transição de gênero, os participantes utilizaram o termo negro (portanto, um termo êmico, da perspectiva do sujeito), à exceção de Gabriel, que enunciou, uma única vez, o termo preto.
  • *
    Os autores agradecem o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) pela Bolsa concedida à primeira autora - Código de Financiamento: 88887.600239/2021-00 e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq pela Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 1A, concedida ao segundo autor.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2022
  • Aceito
    15 Mar 2022
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