Avaliação de constituintes séricos em eqüinos e muares submetidos à prova de resistência de 76km, no Pantanal do Mato Grosso, Brasil

Serum biochemistry evaluation in horses and mules submitted to endurance ride of 76km in the Pantanal region, state of Mato Grosso, Brazil

ARTIGOS CIENTÍFICOS

CLÍNICA E CIRURGIA

Avaliação de constituintes séricos em eqüinos e muares submetidos à prova de resistência de 76km, no Pantanal do Mato Grosso, Brasil

Serum biochemistry evaluation in horses and mules submitted to endurance ride of 76km in the Pantanal region, state of Mato Grosso, Brazil

Cássio Ricardo Ribeiro^I; Edivaldo Aparecido Nunes Martins^II; José Antônio Silva Ribas^III; Ademir Germinaro^IV

^IMédico Veterinário, Professor do Departamento de Medicina Veterinária da União Pioneira de Integração Social (UPIS), Brasília, DF. Doutorando da Universidade estadual paulista (UNESP) de Jaboticabal. Q17, Ed. Mirante da Serra, AR6, apto 208, 73045-170, Sobradinho, DF. E-mail: [e-mail]

^IIMédico Veterinário, Professor da Faculdade de Medicina Veterinária, Universidade de Cuiabá (UNIC), Cuiabá, MT. Mestrando na Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia (FMVZ), Universidade de São Paulo (USP), SP

^IIIMédico Veterinário, Professor da Faculdade de Medicina Veterinária, UNIC, Doutorando na Universidade Estadual do Norte Fluminense, RJ

^IVMédico Veterinário, Professor da Faculdade de Medicina Veterinária da UNIC, Mestrando na UNIC

RESUMO

Estudaram-se as alterações nas concentrações séricas do sódio, potássio, cálcio ionizado, uréia, creatinina, glicose, creatino quinase (CK), aspartato aminotransferase (AST) e lactatodesidrogenase (LDH) em quinze eqüinos e cinco muares, durante prova de resistência de 76km de extensão, com dois dias de duração, no Pantanal de Mato Grosso. As amostras de sangue foram coletadas no primeiro dia, antes do início da prova (T1); ao fim do primeiro dia, após percorrer 38km (T2); no segundo dia, antes do início da prova (T3) e ao final da prova (T4). Nos eqüinos, foi observada queda na concentração sérica de sódio e LDH em T3 com retorno aos valores basais em T4. O potássio e o cálcio apresentaram queda da concentração em T2. Houve aumento da concentração sérica de uréia e creatinina em T2 e de glicose em T3. Os valores séricos de CK e AST permaneceram semelhantes aos de T1. Nos muares, as concentrações séricas do sódio, cálcio, uréia, glicose e LDH apresentaram perfil semelhante ao dos eqüinos, enquanto o potássio, creatinina, CK e AST permaneceram próximos aos de T1. Não foi observada diferença entre a bioquímica sérica de eqüinos e muares. Assim, pode-se concluir que a prova de resistência avaliada não impôs exercício de duração e/ou intensidade acima das condições fisiológicas dos animais participantes.

Palavras chave: eqüino, muar, prova de resistência, bioquímica sérica.

ABSTRACT

The alterations in serum concentrations of sodium, potassium, ionized calcium, urea, creatinine, glucose, creatine kinase (CK), aspartate aminotransferase (AST) and lactate dehydrogenase (LDH) were studied in fifteen equines and five mules, participating in a 76km, 2-day long endurance competition, in the Pantanal of Mato Grosso State - Brazil. The blood samples were collected in the first day, before the beginning of the competition (T1); at the end of the first day, after covering 38km (T2); the second day, before the beginning of the ride (T3); and at the closure of the competition (T4). In the horses a decrease was observed in serum concentration of sodium and LDH in T4 with a return to basal values in T4. Potassium and calcium presented a decrease in concentration in T2. There was an increase of serum concentration of urea and creatinine in T2 and of glucose in T3. The serum values of CK and AST remained similar to T1. In the mules, the serum concentrations of sodium, calcium, urea, glucose and LDH presented a profile similar to the equines, while potassium, creatinine, CK and AST remained near T1 values. A difference was not observed between equines and mules serum biochemistry. It can be concluded that the studied endurance race did not impose duration and/or intensity above the physiological conditions of the participating animals.

Key words: horse, mule, endurance ride, serum biochemistry.

INTRODUÇÃO

Cavalgadas de longa distância, ou melhor, provas de resistência que submetem os animais a exercícios de baixa intensidade e longa duração, tornaram-se uma forma popular de atividade eqüestre na região do Pantanal de Mato Grosso (Poconé, Cuiabá, Chapada dos Guimarães, Santo Antônio do Leverger e Barão do Melgaço). Esta região apresenta grandes obstáculos naturais às cavalgadas, devido às características climáticas e topográficas.

O acompanhamento médico veterinário nestes eventos visa ao controle de parâmetros fisiopatológicos e clínicos que possam ocorrer nestes animais e a avaliação do efeito do esforço físico sobre a performance dos mesmos. Vários trabalhos descrevem as concentrações séricas de enzimas, metabólitos e íons ao longo de provas de resistência em eqüinos, em percursos de distâncias e de velocidades distintas (ANDERSON, 1975; LUCKE & HALL, 1978; ROSE et al., 1980a/1980b); ROSE & HODGSON, 1982; RUDOLPH et al., 1993; ROSE & HODGSON, 1994; SANTOS et al., 1996; FERNANDES & LARSSON, 2000; TOLEDO et al., 2001; AGUILERA-TEJERO et al., 2001; SANTOS et al., 2001).

ROSE & HODGSON (1994) e KANEKO et al. (1997) descrevem que eventuais lesões musculares podem ser verificadas através da aferição da atividade da aspartato aminotransferase (AST), creatinoquinase (CK) e lactatodesidrogenase (LDH), embora seja menos específica. A elevação da atividade destas enzimas pode ser conferida em eqüinos com sinais de rabdomiólise. Alguns estudos associam o aumento da atividade enzimática à prática de exercícios intensos.

A função renal pode ser verificada através da obtenção das concentrações séricas de creatinina e uréia, as quais representam grupos de metabólitos que podem se elevar em resposta à desidratação e a exercícios. Concentrações anormais de eletrólitos no plasma como cálcio, potássio e sódio, podem desencadear distúrbios eletrolíticos associados com quadros de diarréia, doença renal, baixa performance atlética e sudorese (ROSE & HODGSON, 1994).

Alterações bioquímicas e hematológicas em eqüinos Puro Sangue de Corrida foram verificadas por MULLEN et al. (1979) e LUMDSEN et al. (1980) para eqüinos em fase de treinamento, e por ROSE & HODGSON (1994) em estudos seqüenciados (Tabela 1).

SANTOS et al. (1996) compararam alterações bioquímicas entre 12 cavalos Pantaneiros, Crioulos, Crioulos cruzados e quatro mulas durante enduro de 340km, por 12 dias, no Pantanal e observaram nos cavalos Pantaneiros níveis mais baixos e constantes de triglicerídeos, indicando provável adaptação às condições ambientais.A atividade das enzimas séricas CK, AST e LDH foi determinada por DA CÁS et al. (2000) mediante análise de 60 amostras de soro de animais da raça Crioula. Neste estudo, verificaram que a CK e AST são mais informativas para a avaliação da função muscular comparativamente à LDH.

Alterações nas concentrações séricas de glicose, sódio, potássio, uréia e creatinina em eqüinos submetidos à prova de enduro de 30km, com velocidade controlada foram demonstradas por FERNANDES & LARSSON (2000) e constataram aumento nas concentrações séricas de glicose, uréia e sódio. Posteriormente, SANTOS et al. (2001) avaliaram as variações séricas de glicose e ácidos graxos de oito cavalos Pantaneiros submetidos a uma prova de resistência de 76km. Constataram elevação nos níveis séricos de glicose e ácidos graxos livres durante a prova.

Frente à escassez de dados relativos ao desempenho de eqüinos e muares submetidos a provas de baixa intensidade e longa duração, neste estudo, avaliaram-se parâmetros da bioquímica sérica em participantes de prova de resistência no Pantanal de Mato Grosso.

MATERIAL E MÉTODOS

Utilizaram-se 15 eqüinos, de raças distintas (Pantaneiro, Quarto-de-Milha, Mangalarga e sem raça definida) e cinco muares, machos ou fêmeas, com idade entre três e nove anos, participantes de prova de resistência, em trilha previamente demarcada de 76km de extensão, no Pantanal de Mato Grosso, com velocidade de 6-8km h^-1. O trajeto entre Poconé e Barão de Melgaço foi percorrido durante dois dias (38km dia^-1), com duas paradas para descanso ao longo do dia, almoço (duas horas) e noturno (12 horas). Os animais foram divididos em dois grupos: grupo I, composto de cinco muares e grupo II, composto de 15 eqüinos.

Procederam-se as coletas de sangue nos seguintes horários: 1ª coleta - tempo zero (T₁), no primeiro dia, pela manhã, no momento da saída dos animais; 2ª coleta: tempo dois (T₂), imediatamente após a chegada para o descanso noturno (pouso), no final do primeiro dia; 3ª coleta: tempo três (T₃), no segundo dia pela manhã, antes da saída dos animais do pouso, após descanso de 12 horas; e 4ª coleta: tempo quatro (T₄), na chegada dos animais em Barão de Melgaço, ao final da prova.

As amostras de sangue foram obtidas por venóclise na veia jugular, utilizando-se agulhas 40x9mm e acondicionando-as em tubos Vacutainer^®a sem anticoagulante. Para a avaliação da glicose, foram utilizados tubos com anticoagulante (fluoreto de sódio). Ato contínuo procedeu-se a centrifugação imediata das amostras, que foram dessoradas e o soro, estocado à -20ºC até o momento da realização das provas laboratoriais, que não ultrapassaram 48 horas pós-coleta.

As concentrações séricas de glicose foram determinadas pelo método de hexoquinase, a uréia pelo método de urease UV e a creatinina pelo método de picrato alcalino, utilizando reagentes Synermed^®b. Para determinação da LDH, CK e AST, utilizou-se o método cinético UV e para a determinação das proteínas totais, o método de biureto, usando reagentes Labtest^®c (KANEKO et al., 1997). A leitura das enzimas foi realizada em autoanalisador ALGYON 300^®d. As concentrações de sódio, potássio e cálcio foram determinadas pelo método de íon eletrodo seletivo (IES), no analisador de eletrólitos AVL 9180^®e.

As concentrações dos constituintes bioquímicos séricos foram submetidas à análise estatística, pelo programa EPIINFO 6.04^®f, estabelecendo a média, desvio padrão, coeficiente de variação, análise de variância (ANOVA) e aplicação de teste “t” de Student para comparação de médias entre os grupos experimentais (p<0,05).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os resultados obtidos estão apresentados nas tabelas 2, 3 e 4. Nos grupos de muares e eqüinos submetidos a exercício de baixa intensidade e longa duração, no Pantanal de Mato Grosso – Brasil, as médias das concentrações dos constituintes séricos avaliadas não diferiram estatisticamente entre as espécies (Tabela 4).

As concentrações séricas de glicose, tanto em eqüinos como em muares, diminuíram em T₂ (final do primeiro dia de prova), devido à utilização da mesma durante o exercício. Além disso, a queda da glicemia pode ser explicada pela ausência de alimentação dos animais durante o percurso, fato que só ocorreu após a chegada no local de descanso, ao final do primeiro dia de prova. Exatamente por isso no dia seguinte, após o descanso e a alimentação, as concentrações voltaram a se elevar em T₃ (início do segundo dia de prova). A glicemia também se apresentou elevada em T₄ (final da prova), evidenciando assim, um aumento da gliconeogênese frente ao maior requerimento energético para manutenção da atividade muscular. Tais resultados corroboram com os encontrados por LUCKE & HALL (1978), ROSE & HODGSON (1994) e TOLEDO et al. (2001).

Nos muares (Tabela 2), observou-se queda significativa (p<0,05), no segundo dia da prova de resistência, das concentrações séricas de sódio (Na+) e cálcio ionizados (Ca⁺⁺). As concentrações de cálcio diminuíram entre o final do primeiro dia (T₂) e início do segundo dia de competição (T₃), e as concentrações de sódio mostraram-se reduzidas na última coleta (T₄). Não se constataram diferenças significativas entre os tempos de coleta avaliados e as concentrações séricas de potássio (K⁺), creatinina, CK e AST observadas em muares, apesar das discretas variações observadas. Tal fato pode, possivelmente, ser atribuído a maior adaptação destes animais à prova e/ou à região do Pantanal mato-grossense. A diminuição de sódio e potássio observada nesta prova pode ser atribuída à perda destes elementos pela sudorese (LUCKE & HALL, 1978; ROSE et al., 1980a), porém sem denotar evidente perda de fluidos circulantes. GUPTA et al. (1994) relatam, em mulas, concentrações séricas de sódio, creatinina e glicose inferiores, e AST, potássio e cálcio superiores aos resultados encontrados neste estudo.

Nos eqüinos (Tabela 3), as concentrações séricas de sódio apresentaram queda significativa no início do segundo dia da prova (T₃), elevando-se novamente ao final da mesma (T₄). Os níveis séricos de potássio apresentaram-se inferiores no final do primeiro dia de prova (T₂) e mantiveram-se baixos nas demais coletas (T₃ e T₄), provavelmente, devido à sudorese. Estes resultados assemelham-se aos descritos por WILLIAMSON (1974), LUCKE & HALL (1978), MULLEN et al. (1979); ROSE et al. (1980a/1980b), LUMSDEN et al. (1980), HARVEY et al. (1984), OOSTERBAAN et al. (1991), ROSE & HODGSON (1994), FERNANDES & LARSSON (2000). Quanto aos níveis séricos de cálcio ionizado obtidos, ressalta-se a utilização do método do eletrodo íon seletivo (EIS) que, atualmente, é o único capaz de mensurar a fração de cálcio ionizado, considerada a fração biologicamente ativa. Neste, constataram-se níveis séricos de cálcio ionizado menores ao final do primeiro dia de prova (T₂), que se elevaram no início do segundo dia (T₃), com novo decréscimo ao final da prova (T₄), demonstrando interferência da reposição alimentar ocorrida entre T₃ e T₄. Tais resultados corroboram com os encontrados por AGUILERA-TEJERO et al. (2001).

Os níveis séricos de uréia apresentaram-se elevados ao final do primeiro dia de prova (T₂), assim persistindo nas demais coletas (T₃ e T₄). Verificou-se aumento na concentração sérica de creatinina ao final do primeiro dia de prova (T₂), com redução no início do segundo dia (T₃) e posterior elevação ao final da prova (T₄). Segundo ROSE & HODGSON (1994) e FERNANDES & LARSSON (2000), os níveis séricos de creatinina e uréia podem se elevar em resposta à hemoconcentração decorrente de exercícios e conseqüente desidratação. Tais resultados corroboram os encontrados por MULLEN et al. (1979), ROSE & HODGSON (1994) e FERNANDES & LARSSON (2000).

Não se constataram diferenças significativas em eqüinos, entre os tempos de coleta avaliados e as concentrações séricas de CK e AST, apesar de ligeiras variações. Segundo ROSE & HODGSON (1994), o aumento na concentração sérica das enzimas de função muscular seria uma conseqüência fisiológica do tipo de exercício executado. Isto sugere que os animais envolvidos nesta prova de resistência estariam adaptados ao tipo de exercício imposto.

As concentrações séricas de LDH, tanto em eqüinos como em muares, apresentaram acentuada queda no início do segundo dia de prova (T₃). Ao término da prova (T₄), as concentrações séricas eram similares àquelas observadas no primeiro dia (T₁ eT₂). Talvez devido à menor especificidade desta enzima e situações que ocorram durante as provas de resistência, haja grande variação nos valores de LDH descritos na literatura (OOSTERBAAN et al., 1991 e RUDOLPH et al., 1993).

CONCLUSÕES

A análise dos resultados obtidos permite concluir que não houve diferenças significativas entre as médias das concentrações séricas de eqüinos e muares submetidos à prova de resistência de baixa intensidade e de longa duração, no Pantanal de Mato Grosso. Em eqüinos, as concentrações séricas de cálcio ionizado, potássio, uréia, creatinina, glicose e LDH apresentaram variações estatisticamente significativas entre os tempos de coleta avaliados. Em muares, as concentrações séricas de cálcio ionizado, uréia, glicose e LDH apresentaram variações estatisticamente significativas entre os tempos de coleta avaliados. A prova de resistência avaliada não impôs exercício de duração e/ou intensidade, acima das condições fisiológicas dos animais participantes.

FONTES DE AQUISIÇÃO

a - Vacutainerâ- Becton-Dickson – Rutherford, New Jersey, USA

b - Synermed do Brasil – São Paulo – SP

c - Labtest – Belo Horizonte – MG

d - Abbott – São Paulo – SP

e - AVL – Electrolyte Analyser – Mod. 9180 – São Paulo - SP

f - Epiinfo 6.04 - http:\\www.cdc.gov/epiinfo.

Recebido para publicação 28.03.03

Aprovado em 24.12.03

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  30 Ago 2004
• Data do Fascículo
  Ago 2004

Histórico

• Aceito
  24 Dez 2003
• Recebido
  28 Mar 2003