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S.O.S. escola noturna: uma tentativa de intervenção

Resumo

Estudo de caso de uma escola pública, com problemas para o funcionamento do período noturno do 1º Grau. Foram entrevistados (a maioria dos alunos e 11 professores das séries finais, alem de membros do staff da escola). Foram analisados também livro-ponto e caderneta dos professores. Os resultados alertam para a rotatividade do corpo docente e direção como condicionante do fracasso escolar, que é evitado pelos alunos através do perverso mecanismo de evasão. Os alunos se mostram críticos agudos da escola, enquanto os professores se revelam isolados, impotentes e contraditórios em seu trabalho no curso noturno. O dado mais alarmante: frente ao fracasso, baseado na Resolução 244/94 da SE, a Delegacia de Ensino local optou por fechar o curso frustando pesquisadores, professores e alunos.


S.O.S. escola noturna: uma tentativa de intervenção

Maria Helena Galvão Frem Dias da SilvaI; Gisela LourencettiII; Maysa Nunes RachedII

IProfessor Assistente Doutor do Departamento de Didática da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP - Campus de Araraquara

IIGraduandas em Pedagogia - FCI/UNESP

RESUMO

Estudo de caso de uma escola pública, com problemas para o funcionamento do período noturno do 1º Grau. Foram entrevistados (a maioria dos alunos e 11 professores das séries finais, alem de membros do staff da escola). Foram analisados também livro-ponto e caderneta dos professores. Os resultados alertam para a rotatividade do corpo docente e direção como condicionante do fracasso escolar, que é evitado pelos alunos através do perverso mecanismo de evasão. Os alunos se mostram críticos agudos da escola, enquanto os professores se revelam isolados, impotentes e contraditórios em seu trabalho no curso noturno. O dado mais alarmante: frente ao fracasso, baseado na Resolução 244/94 da SE, a Delegacia de Ensino local optou por fechar o curso frustando pesquisadores, professores e alunos.

"Pelo amor de Deus, professora, a senhora precisa ajudar a gente, senão a escola vai fechar! Os professores não aguentam mais ficar nas classes, e os alunos também não saem da diretoria!!!! A supervisora da Delegacia de Ensino disse que fechar o noturno é um absurdo completo, mas também não sabe o que poderia ser feito, e sugeriu que procurássemos vocês. Por favor, ajude a gente!!!!"

(Diretora de uma EEPG)

Para um pesquisador afeito ao cotidiano escolar de professores de quinta a oitava series do Primeiro Grau (os chamados PIII), certamente muitos dos problemas enfrentados pela equipe de professores desta escola pública não poderiam ser considerados inéditos... (Cf. MIZUKAMI, 1983; CARVALHO, 1984; DIAS-DA-SILVA e CHAKUR, 1990; CHAKUR, 1992; DIAS-DA-SILVA, 1992, entre outros). Por outro lado, a emergencia da situação sugeria muito mais uma intervenção "de choque", do que a realização de um projeto de pesquisa educacional. Naquele momento, a única saída parecia ser uma U.T.I. e certamente a Universidade nunca foi um hospital...

Trazer para a escola a contribuição das pesquisas sobre o cotidiano escolar (cf ANDRÉ, 1989, DIAS-DA-SILVA, 1992) e, ao mesmo tempo produzir novas investigações sobre as alterações nas salas-de-aula e seus professores, analisando as possibilidades de mudança na escola pública eram, entretanto, formas possíveis de contribuição da Universidade.

Não há dúvida que os professores se beneficiariam mais imediatamente em sua rotina de trabalho mediante uma assessoria concreta e cotidiana de coordenadores pedagógicos, infelizmente inexistentes nas escolas públicas paulistas. Mesmo assim, a perspectiva de pesquisa que levamos como proposta de intervenção na escola foi criticamente aceita por todos - o que já revela de imediato um dado bastante promissor - pois talvez estes professores intuíssem que não há saídas mágicas para o cotidiano escolar...

Parece inegável que o funcionamento das escolas no período noturno é questão de natureza social, já que é expediente de país pobre para democratizar o acesso à escola pelas camadas populares. Por outro lado, os alarmantes índices de evasão e repetência, o acirramento da violência (urbana) e a ausência de projeto pedagógico revelam que esta democratização está longe de se concretizar...

Um primeiro levantamento das dificuldades enfrentadas pela escola em questão revela que nada a diferencia de tantas outras escolas públicas que funcionam à noite - incluindo desde problemas materiais, como falta de iluminação e segurança, até aspectos pedagógicos como o colocar-ponto-na-lousa ou interação agressiva entre professor-aluno (cf. CARVALHO, 1984). O Caderno CEDES, já em 1986, ao fazer um balanço dos principais resultados dos projetos para ensino noturno incentivados durante o Governo Montoro, mostra dados assustadoramente parecidos com o que nos defrontamos hoje. Mais de dez anos depois, o ensino noturno é, "no papel'', prioridade (cf. Projeto das Escolas-Padrão), porém poucas são as possibilidades reais de alternativas de ação e pensamento para seus professores e alunos.

O acirramento das dificuldades rotineiras, bem como a pressão exercida por professores e dirigentes visando a mudança, levaram o projeto "S.O.S." a dois caminhos paralelos: diagnosticar e mapear problemas específicos e, ao mesmo tempo, levantar alternativas de ação para alunos, professores e dirigentes garantirem condições de trabalho minimamente satisfatórios. Optamos, pois por realizar UM ESTUDO DE CASO, partilhado por estagiárias1 1 Vale salientar que, este projeto foi realizado sem nenhum vínculo administrativo ou financeiro, Todos os estagiários trabalharam gratuitamente, assim como os professores da escola. O Núcleo de Ensino do Campus de Araraquara apoiou o projeto cedendo sala e material de consumo. do curso de Pedagogia (também alunas "do noturno").

O Estudo de Caso visava:

□ Investigação dos condicionantes e características das séries finais do primeiro grau - com foco no período noturno.

□ Elaboração do diagnóstico das condições conflitantes desta EEPG em Araraquara/SP, mediante entrevistas com alunos, professores e funcionários.

□ Confronto dos diagnósticos de alunos e professores, análise e discussão dos problemas.

□ Estudo de propostas alternativas para a escola noturna já publicadas na literatura.

□ Investigação específica sobre resistência à mudança e/ou aspectos facilitadores das mudanças nos professores, bem como de procedimentos para socialização de resultados de pesquisas educacionais entre professores.

□ Integração de esforços e ações entre a comunidade, a escola, a Universidade e a Delegacia de Ensino.

A garantia da Delegacia de Ensino que as soluções apontadas pelo projeto seriam colocadas em prática já no ano seguinte (1994) assegurava para os participantes um fator decisivo - a confiança (ou esperança?)

Assim, ao longo de 1993, esta pesquisadora, junto com um grupo de estagiárias2 2 Além das autoras do texto, participaram do trabalho: Maria Célia Faria Ligabô), Patrícia T. Souza, Elaine Aparecida Rodrigues e Viviane de Caires. foi a esta escola de Primeiro Grau, uma escola "não padrão", ou "abandonada", como preferem os professores. Num bairro "não periférico" de Araraquara realizamos encontros periódicos com seus professores e alunos. A escola abriu espaço amplo para interação com seus funcionários, alunos e professores, além de diretora e assistente e a própria supervisora de ensino. O grande objetivo comum - CONHECER E MUDAR... Como fazer isto, a grande dificuldade...

A escola alvo do projeto possuía 5 classes no período noturno - sendo uma de cada série final do Primeiro Grau e uma de supletivo. A média de alunos matriculados era 32 por classe.

A escola dispunha de 11 professores no 1º semestre para lecionar as 8 disciplinas obrigatórias da 5ª a 8ª séries neste período.

O projeto "SOS" tomou como procedimentos básicos:

1- O mapeamento das dificuldades percebidas pelos alunos, realizado através de entrevistas coletivas, baseadas em roteiro elaborá-lo a partir de levantamento bibliográfico sobre o tema. Em um período letivo foram entrevistados cento e vinte alunos de 5ª a 8ª séries, em grupos de dez. A análise destes dados obtidos foi tanto qualitativa quanto quantitativa.

2- Para detalhar a situação da escola percebida pelos professores, foram realizadas reuniões com conjunto de docentes3 3 A cada 3 semanas os alunos eram dispensados nas últimas 3 aulas para os professores viabilizarem os encontros (que raramente incluiam todos, em função da Rotatividade). . A cada três anos, entrevistas individuais, mediante Roteiro previamente elaborado. Também foram entrevistadas duas diretoras e assistentes de direção, além de merendeira e inspetora. A análise dos depoimentos e entrevistas foi essencialmente qualitativa.

3- Análise do livro-ponto da escola foi decisivo para confirmação de hipótese apontada em trabalho anterior (DIAS-DA-SILVA e CHAKUR, 1990) sobre rotatividade e itinerância dos professores secundários como condicionantes do projeto pedagógico da escola.

4- Buscando índices reais de evasão e repetência, foram analisadas as cadernetas dos professores de 5ª a 8ª séries, durante o ano de 1992, nas classes do período noturno.

Foram também cotejados índices de aprovação neste período com os do diurno nas mesmas series.

5- Foi realizado levantamento bibliográfico sobre pesquisas a respeito das séries finais do 1º grau, seus professores e o ensino noturno. Foram também analisadas propostas da própria Secretaria de Educação nos anos 80 para o Noturno (Cadernos CEDES) e novas propostas explicitadas no Projeto Escola-Padrão e na Proposta do Município de São Paulo/gestão Paulo Freire.

II - Resultados/Diagnóstico

Evidentemente, são inúmeros os dados obtidos ao longo deste ano, e em sua maioria coincidentes com análises já presentes na obra "clássica" de Célia Pezzolo de Carvalho (1984). A mesmice perpetuada na escola de 1º grau paulista (AZANHA, 1987) pode, mais uma vez ser redatada.

Assim, relatamos aqui sinteticamente dados obtidos na escola, específicos da situação vigente, considerados imprescindíveis para o processo de reflexão com o corpo docente da escola.

1 - A Rotatividade do Staff...

A análise do livro-ponto da escola revela dado assustador: nos últimos 5 anos (1989-1993) passaram pela escola 6 diretores e 8 assistentes de direção! E mais, para lecionar em 4 classes de 1º Grau, nas 8 disciplinas obrigatórias (Português, Matemática, História, Geografia, Ciências, Educação Física, Educação Artística e Inglês) já passaram pela escola 85 professores. Aritméticamente, cada vaga da escola é preenchida por dez professores nestes cinco anos. E, especificamente, algumas classes chegaram a conviver com 15 professores para uma mesma disciplina de 5ª a 8ª séries... Mais de 70% destes professores sequer ficam 1 ano na escola!!

Talvez baste este dado para assegurar que qualquer projeto pedagógico para estas séries pareceria insano...

A Figura 1 revela detalhes desta perversidade administrativa que impede certamente qualquer finalidade didática séria.


2- O FRACASSO ESCOLAR

Análise das cadernetas dos professores no ano anterior (1992) revela discrepância imensa entre número de alunos aprovados no período diurno e noturno.

A Figura 2 mostra os dados da freqüência simples de aprovação, já que a ponderada tenderia a camuflar dados de evasão.


Apenas os alunos da 8ª série apresentam índice de sucesso escolar semelhantes nos dois períodos (dado de certa forma esperado, pois que o "filtro" já se concretizou...)

Nas demais séries, os índices de reprovação no período noturno são alarmantes.

Analisamos destacadamente os dados referentes às quatro séries finais do Primeiro Grau neste período, sintetizados na tabela abaixo:

Os dados confirmam a gravidade da situação com um agravante: OS ALUNOS PREFEREM ABANDONAR A ESCOLA A PERMANECER NELA, QUANDO SE ENCONTRAM FRENTE AO PERVERSO MECANISMO DE REPROVAÇÃO. Apenas os mais imaturos da 5ª série se submetem ao fracasso formal no final do ano. Todos os demais, prevendo a não reversão do quadro de insucesso (presente nos inúmeros Es vermelhos da caderneta dos professores), simplesmente param de freqüentar a escola em meados do ano... E como aponta RIBEIRO (1991), matriculam-se novamente no ano seguinte na esperança de "melhorarem"...

Os dados revelam a presença de uma filtragem devastadora no período noturno, considerada como "natural" pela maioria das escolas - que sempre camuflam estes números em seu Plano Escolar. Refletir sobre esta "naturalidade" é ponto de partida para qualquer transformação conseqüente...

3- Os alunos - críticos agudos

Os alunos foram capazes de construir um quadro abrangente e multidimensional do ensino noturno, apontando problemas referentes a: condições físicas; regras do dia-a-dia (diferenças com o diurno); interação direção-aluno, professor-aluno e aluno-aluno; e aspectos específicos do trabalho docente. O quadro apresenta semelhanças marcantes com resultados recentes de pesquisa sobre o cotidiano escolar, revelando a acuidade de observação destes alunos, que se mostram críticos conscientes da realidade da escola.

A agressividade e desrespeito com que são tratados, a falta de tempo e o cansaço de meninos trabalhadores, além da pouca relação entre a escola e a vida, são aspectos sempre apontados em todos os estudos (CARVALHO, 1984).

Mereceu destaque, no nosso estudo, a acuidade de percepção didática dos alunos, que não se restringiram a aspectos genéricos mas foram algozes críticos da rotina monótona das salas de aula:

"Só tem ditado, lousa cheia, cópias e questionários..."

Poucos alunos têm material didático, e clamam por "feedback" sobre sua performance (só presente no vermelho das notas das provas), e se ressentem da impossibilidade de perguntarem durante as aulas e ver suas questões respeitadas.

Eles não apenas criticaram a mesmice de livros didáticos e pontos-na-lousa, como também apontaram diferenças significativas quanto ao tipo de atividade realizada com os alunos do diurno. Pesquisas, excursões, aulas práticas, vídeos, exposições são atividades presentes na escola, mas nunca para estes "excluídos".

Eles denunciam a grande quantidade de faltas dos professores4 4 Que tem flexibilidade para atrasos, inexistente para os alunos. e a ausência de contacto pessoal e extra-sala com seus mestres - em sua maioria, agressivos. Apontam a falta de diálogo e excesso de punições como problemas mais graves. Eles reconhecem que aos professores falta incentivo para trabalhar (devido ao salário ínfimo), porém provocam: "muitos tem preguiça de dar aulas.."

A rigidez das regras de rotina da escola e a arbitrariedade com que são estabelecidas são também geradoras da insatisfação das classes. Alguns exemplos:

□ Período de recreio reduzido.

□ Professores e funcionários fumam no pátio e os alunos não podem.

□ Proibição de usar bermudas, chupar chicletes, e ir ao banheiro durante as aulas.

□ Gastos da APM são com diurno.

□ Ausência de diretor no período noturno.

□ Regras diferentes para alunos "marcados".

Quando analisam a si mesmos são precisos: "A gente passa o dia inteiro fazendo outras coisas, trabalhando, engolindo sapo... Chega à noite, a bomba estoura!" Na escola, "não há tempo pra conversar uns com os outros e nem com os professores..", "sempre nos julgam mal..."

Além das questões escolares e de trabalho, os problemas da adolescência evidentemente estão também presentes, sobretudo sexo e drogas. Há casos de gravidez e aborto entre eles, e lança-perfume e maconha muitas vezes estão na porta da escola. Os alunos se percebem impotentes: "na rua se aprende tudo errado"

Entretanto, apesar de ressentidos com a agressividade e desrespeito para consigo, por parte dos adultos, a fala dos alunos revela também estes traços na relação entre eles: "É na porrada, mesmo!". E a exclusão da escola é, várias vezes, reforçada: "Quem não dá mais, expulsa, dona!"

Quando questionados, os alunos apresentam sugestões adequadas de mudança em sua rotina na escola, nada sofisticadas ou impossíveis. Os alunos pedem pouco. Em geral, apenas o humana e pedagogicamente correto...

4- Os Professores - isolados e contraditórios

Em abril de 1993, a escola incluia 11 professores para o 1° Grau Noturno (em agosto, já não eram os mesmos...). Destes, foram entrevistados individualmente sete - todos formados pela UNESP. A média de idade é de 31 anos, a maioria tem 7 anos de experiência no magistério, sendo 5 mulheres e 2 homens. Todos trabalham em jornada integral (40 horas) e 5 tem outros empregos além da escola pública.

Vale destacar inicialmente os problemas comuns apontados por alunos e professores:

□ Agressividade Mútua.

□ Falta de Tempo e Diálogo.

□ Relação Traumática com a Direção.

□ Cansaço Físico e Mental.

□ Monotonia das Aulas.

□ Falta de Material Didático.

□ Falta de Relação entre a Escola e a Vida.

Por outro lado, os professores dão especial destaque a:

□ Isolamento do Trabalho do Professor.

□ Rotatividade da Direção e Corpo Docente.

□ Falta de um Projeto Pedagógico para o Noturno.

□ Indisciplina em Sala-de-Aula.

□ Falta de "Base" e Evasão dos Alunos e

□ Falta de Tempo para os Alunos Estudarem.

A rotatividade e inconsistencia da direção, a falta de condições materiais dos alunos e da escola e o desinteresse mútuo e excesso de faltas (de ambas as partes) são problemas considerados graves pelo grupo.

O discurso se revela contraditório quando os professores se referem ao rebaixamento de exigências (e tratamento diferenciado) para o curso noturno e ao interesse e necessidade de diálogo de seus alunos.

Dado intrigante neste grupo de professores é que a "estratégia de culpar a vítima" não se concretiza monotonicamente. Se há professores que consideram que "O aluno do noturno não tem interesse, só vem atrás desse diplominha pra trabalhar", há os que reconhecem que "eles são encantadores - param de estudar e voltam - dão muito valor à escola!".

Enquanto alguns professores são implacavelmente excludentes ("Aluno de noturno é projeto de marginal!"), outros apontam a necessidade de compromissos da escola com os meninos-trabalhadores que "são mais amadurecidos" e "tem vergonha de não saber".

E evidentemente, se as concepções de aluno divergem, o papel de professor também. Há os "linha dura" - ("não pode deixar os alunos folgarem porque senão eles não levam a sério") e os "amigos" ("no noturno você se impõe pela amizade").

Já as diferenças de trabalho do professor em cursos diurno e noturno são explicitadas, sugerindo, subliminarmente, as contradições da apregoada igualdade entre os períodos:

"Trabalho igual nos dois períodos. Mas, evidente, que minha aula das sete da manhã é diferente das da sete da noite, pois a paciencia é maior de manhã"

"Não pode ser igual. No noturno, voce não tem como exigir... Mas eu acho que eles têm que saber! A Educação é a maior arma que o povo tem. Queira ou não queira, sofrendo ou não, tem que saber!".

"Os procedimentos são iguais. Eu mudo a forma de passar o conteúdo, mas a forma de exigir é a mesma."

"É claro que o Noturno é diferente do Diurno! Mas você tem que mostrar que é igual! Eles têm que perceber que é igual para poder levar a sério, se não eles não levam!"

Certamente discutir e analisar estas contradições (ou dilemas, cf. DIAS-DA-SILVA, 1992), é procedimento inescapável para a transformação do trabalho destes professores.

Discussão

O referencial de análise presente no trabalho anterior (DIAS-DA-SILVA, 1992), sobretudo no Capítulo II - "A escola paulista, o ensino de 1º Grau e seus professores", revela-se absolutamente imprescindível para interpretar a situação enfrentada nesta EEPG em exame.

Como aponta CANDAU (1989), "Quando olhamos o panorama do ensino do 1º Grau no Brasil, a sensação que nos dá, a nós educadores e cidadãos, é de uma enorme impotência" (p.92). A burocratização, a falsa democratização da escolaridade, a pauperização da escola e seus professores, a precariedade didática do trabalho em sala de aula, a rotatividade e itinerância dos membros do staff escolar, e tantos outros problemas, são certamente acirrados no funcionamento noturno das escolas de 1º grau. (cf. CARVALHO, 1984) E, decididamente, interpretar esta realidade não é um jogo de mocinhos e bandidos, onde professores ora são apontados como réus, ora como vítimas.

Vale salientar que confrontando com dados de mapeamento das escolas de 1º grau, realizado em 1989 pelo Núcleo de Ensino do Campus de Araraquara (DIAS-DA-SILVA, 1989), fica evidente que as condições de trabalho desta EEPG se agravaram... Um exemplo decisivo: nestes 5 anos já passaram pela escola 4 diretores. O que esperar de um projeto pedagógico com 70% de professores itinerantes e diretores ausentes???? O mais curioso é que os indicadores sociais do bairro melhoraram, sobretudo pela abertura do Shopping Center local.

Durante meses, incessantemente colhemos dados e depoimentos. Levantamos bibliografia sobre o tema - incluindo propostas alternativas de trabalho para o período noturno. Realizamos encontros com os alunos que, acidamente, são capazes de apontar em minutos os mesmos problemas denunciados em anos de pesquisa acumulados.... Mantivemos encontros com os professores e funcionários. Entrevistamos a supervisora de ensino da escola. Fizemos levantamento real de repetência e evasão na escola, de faltas de alunos e professores... Inicialmente, dezesseis estagiárias se propuseram a "ajudar" a escola e trabalharam comigo durante a Semana Santa (único período em que o algoz noturno lhes permitia trabalhar em atividades extracurriculares). Num segundo momento, cinco terceiranistas da Pedagogia não mediram esforços e trabalho para compreender esta realidade escolar tão pouco educativa... Certamente todos concordamos que o Primeiro Grau noturno é problema muito mais social, que pedagógico!

As propostas alternativas de ensino para as séries finais do Primeiro Grau, bem como de pesquisas sobre o cotidiano escolar - sobretudo as referentes a professores bem sucedidos, são unânimes em reconhecer que não bastam soluções engendradas em gabinetes para que as mudanças na escola aconteçam.

O grupo envolvido no projeto considerou que a socialização dos resultados do diagnóstico efetuado era ponto de partida básico para um processo de reflexão na escola, buscando sua transformação.

Processo de reflexão que demanda tempo. Tempo coletivo. Tempo para pensar, ausente na escola... (cf NÓVOA, 1992).

Assim, em meados do 2º semestre, a pesquisadora, os estagiários, os professores e direção da EEPG decidiram sistematizar encontros para que todos os resultados obtidos anteriormente fossem relatados e discutidos. Que as alternativas de trabalho já implementadas em outras escolas públicas fossem analisadas e estudadas. E que, coletivamente, o corpo docente da escola discutisse com alunos, soluções para serem implementadas no ano seguinte na escola5 5 A supervisão de ensino tinha se comprometido a buscar mecanismos para efetivar as propostas de mudanças... . Não há engano em afirmar que o PROCESSO DE REFLEXÃO já havia começado e este era passo decisivo para concretização de ações alternativas ao caos vigente (que também já estava se alterando, provavelmente confirmando o "efeito HAWTHORNE"...).

Quando o professor passa a ter um período de trabalho dedicado à análise, reflexão, investigação de seu próprio fazer.... Quando os próprios professores são sujeitos da elaboração e teste de alternativas para seu próprio trabalho.... Quando alunos da Universidade se envolvem efetivamente com análise e reflexão da teoria e prática, com investigação da realidade escolar e pesquisa de alternativas para sua transformação.... Quando a escola se apropria da idéia que ela pode ser agente de transformação de seu cotidiano, uma gota de esperança de mudança emerge neste oceano de mazelas...

Foi neste contexto que eclodiu a greve dos professores das escolas públicas que durou mais de dois meses... Meses importantes para assegurar, no retorno às aulas, que o projeto só poderia continuar no início do 1º semestre de 1994, já que qualquer "benesse" da Secretaria da Educação aos professores (como dispensa das aulas para reuniões) estava proibida. Meses fundamentais para compreender que, dada a rotatividade dos professores e direção, e a esperada escolha de classes para professores efetivos recém concursados, o projeto deveria aguardar a composição do "novo" corpo docente para assegurar sua continuidade... (confirmando DIAS-DA-SILVA e CHAKUR, 1990).

Assim, para os professores, as frustrações se revelaram duplamente perniciosas: não apenas o salário ficou ainda mais ínfimo, como também as condições de trabalho foram perversamente pioradas...

Para a pesquisa, tal fato é mais do que mera contingência administrativa. É dado imprescindível para a compreensão da escola pública e para análise das condições para projetos de intervenção nesta realidade. Dado que frustra garantia da continuidade de qualquer projeto, dado que nega confiança no discurso "pró forma" dos dirigentes que "asseguram condições para o pesquisador trabalhar"...

Entretanto, a "estranha mania de ter fé na vida", dos professores, se manteve. E enquanto professores repunham aulas, os pesquisadores continuavam seus estudos de alternativas e análise dos dados obtidos6 6 Parte dos resultados foi apresentado no V Congresso de Iniciação Cientifica da UNESP em 1993. E o envolvimento das alunas foi progressivamente aumentando, revelando interesses, compromissos e competências imprescindíveis à pesquisa. - aguardando o início do ano letivo.

No ano de 1994, na eminência de (re)começo do projeto, a frustração se transformou em luto: a Delegacia de Ensino de Araraquara, baseada na Resolução 244/947 7 Conseqüência da greve, esta Resolução aumentou número de alunos por turma (40) e implicou em fechamento de classes com argumento de "corte de gastos" da Secretaria da Educação. da Secretaria de Educação decidiu FECHAR O PERÍODO NOTURNO daquela EEPG. Revolta de pais e professores, discussões, denúncias da APEOESP, artigos de jornais, debates, e até processo na Promotoria Pública do Município.

Em vão...

O Estado pune seus filhos e mesmo que os cidadãos não se calem, a arbitrariedade foi estabelecida...

Para a Delegacia de Ensino local, árbitra da decisão e autora do fechamento do funcionamento da escola no período noturno, o cumprimento da Resolução foi a concretização da solução mais algoz para os problemas existentes.

Ao invés de enfrentar as dificuldades (argumento apresentado para a escola e a Universidade), eliminou-as. Ou, como diz o ditado, a DE "jogou o bebê fora da bacia, junto com a água suja..."

Um garoto trabalhador que deixa de ter, em seu bairro, a possibilidade de estudar, certamente acirra a possibilidade de evadir-se, ou pior, abandonar a escola. É inegável que o sistema gera as condições para que a evasão ocorra, para que sejamos, de fato, o país dos "excluídos"... Por outro lado, se o caos existente anteriormente também não era fomentador do sucesso educacional, os germes da transformação estavam presentes. E um começo de movimento em direção a ela...

A patética conclusão deste estudo é que, infelizmente, se a escola pública estava ruim, conseguiram torná-la pior. Por que nada é pior que a ausência da escola...

Bibliografia

  • ANDRÉ, M.E.D.A. (1989) Em busca de uma Didática Fundamental. In: CANDAU, V.M. Rumo a uma nova didática. RJ: Vozes.
  • AZANHA, I.M.P. (1987) Educação: alguns escritos. SP: Ed. Nacional.
  • CANDAU, V.M. (1989) Ensinar, hoje, na escola de 1ş Grau: desafios e possibilidades. CADERNO IDÉIAS, 6, 92-100.
  • CARVALHO, CP. (1984) Ensino Noturno: realidade e ilusão. SP: Cortez
  • CADERNOS CEDES. (1986) Número 76. SP: Cortez
  • CHAKUR, C.R.S.L. (1992) Fracasso Escolar, representações e reações dos alunos de 5Ş a 8Ş séries. CADERNOS DOS NÚCLEOS DE ENSINO, SP/ UNESP, 21-34.
  • DIAS-DA-SILVA, M.H.G.F. et alii. (1989) O ensino e o momento atual em Araraquara- 5Ş a 8Ş séries. Núcleo Regional de Ensino/UNESP, (Relatório de Pesquisa-FUNDUNESP, 232p.
  • DIAS-DA-SILVA, M.H.F.G. & CHAKUR, C.R.S.L. (1990) O ensino de 5Ş a 8Ş series: pistas para a compreensão da escola pública. BOLETIM DEPARTAMENTO DE DIDÁTICA, IX, 6, 29-40.
  • DIAS-DA-SILVA, M.H.G.F. (1992) O professor como sujeito do fazer docente: a prática pedagógica nas quintas séries. SP: Universidade de São Paulo, 262p. (Tese Doutorado)
  • MIZUKAMI, M.G.N. (1983) Ensino: o que fundamenta a ação docente? RJ, Pontifícia Universidade Católica (Tese Doutorado).
  • NÓVOA, A. (1992) Os professores e a sua formação. Lisboa: Don Quixote Ed.
  • SECRETARIA DA EDUCAÇÃO. (1993) Resolução 244/93. SP: SEESP
  • RIBEIRO, S.C. (1991) A Pedagogia da repetência. ESTUDOS AVANÇADOS. IEA, 5, 12, 7-21.
  • 1
    Vale salientar que, este projeto foi realizado sem nenhum vínculo administrativo ou financeiro, Todos os estagiários trabalharam gratuitamente, assim como os professores da escola. O Núcleo de Ensino do Campus de Araraquara apoiou o projeto cedendo sala e material de consumo.
  • 2
    Além das autoras do texto, participaram do trabalho: Maria Célia Faria Ligabô), Patrícia T. Souza, Elaine Aparecida Rodrigues e Viviane de Caires.
  • 3
    A cada 3 semanas os alunos eram dispensados nas últimas 3 aulas para os professores viabilizarem os encontros (que raramente incluiam todos, em função da Rotatividade).
  • 4
    Que tem flexibilidade para atrasos, inexistente para os alunos.
  • 5
    A supervisão de ensino tinha se comprometido a buscar mecanismos para efetivar as propostas de mudanças...
  • 6
    Parte dos resultados foi apresentado no V Congresso de Iniciação Cientifica da UNESP em 1993. E o envolvimento das alunas foi progressivamente aumentando, revelando interesses, compromissos e competências imprescindíveis à pesquisa.
  • 7
    Conseqüência da greve, esta Resolução aumentou número de alunos por turma (40) e implicou em fechamento de classes com argumento de "corte de gastos" da Secretaria da Educação.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Abr 2012
    • Data do Fascículo
      Ago 1995
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