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Cenas da vida amorosa brasileira na modernidade tardia

Cenas da vida amorosa brasileira na modernidade tardia

Reinvenções do Vínculo Amoroso

MATOS, Marlise.

Belo Horizonte: UFMG/IUPERG, 2000. 332p.

As relações de parentesco sempre foram, para as ciências sociais, um tema fecundo para se pensar a sociedade, de forma a poder compreendê-la em seus diferentes níveis institucionais. A família, território geográfico e rede social onde se mantêm as relações mais próximas, é um dos aspectos fundantes da sociedade por se constituir como uma estrutura dentro de muitos grupos sociais. Na realidade, a família é, depois da revolução burguesa e industrial, a "cápsula mãe" (atualmente já bastante terceirizada) do cidadão livre. Através das transformações da família moderna, as relações de parentesco vêm configurando novas redes amorosas junto com as sociais e as políticas. É nesse contexto que a ideologia do amor conjugal desempenha um papel importante no que concerne à estabilização e/ou transgressão de regras sociais na mudança da sociedade. A família, ou melhor, a relação conjugal, é um estado social no qual podemos renovar projetos individuais e ampliar o campo de possibilidades.

O belo trabalho desenvolvido por Marlise Matos em Reinvenções do vínculo amoroso ¾ cultura e identidade de gênero na modernidade tardia vem nos mostrar o surgimento de outras identidades de gêneros e de vínculos amorosos na modernidade. O livro está dividido em seis capítulos, nos quais a autora traça uma longa reflexão entre as macro teorias sociológicas, as psicanalíticas e os estudos de casos realizados por terceiros (nesse último aspecto, HEILBORN, 1992, 1996 parece ser a grande mentora intelectual da autora no que diz respeito à conjugalidade homossexual na cidade do Rio de Janeiro).

A pesquisa se baseou nos contatos realizados com 11 casais, hetero ou homossexuais, que mantinham relações estáveis, entre 3 e 15 anos (capítulo IV, p. 164). Exclusivamente membros da classe média carioca, o grupo de informantes foi constituído por profissionais de nível técnico especializado e por profissionais liberais de idades entre 22 e 54 anos. O trabalho de campo foi realizado na aplicação de survey. Os locais das entrevistas variaram entre os lares, os bares e o trabalho.

O primeiro capítulo é dedicado à análise do gênero em suas dimensões culturais, tanto objetiva quanto subjetivamente. Partindo de Simmel, sobre a questão da experiência da modernidade, da dominância da cultura objetiva sobre a cultura subjetiva (p. 36), Marlise Matos reafirma que a sexualidade é uma forma de hierarquizar a sociedade e portanto uma forma de estabelecer relações específicas entre homens e mulheres. Nesse sentido, ao estabelecer a dominação do masculino sobre o feminino, na sociedade burguesa, temos a predominância da "cultura fálica do gênero" (p. 40), na qual as relações patriarcais permeiam as múltiplas dimensões da sociedade — sexual, social, cultural, econômica e política. Dados os aspectos patriarcais dominantes na relação conjugal que a sociedade ocidental adotou como padrão e portanto uma "normatização compulsória da heterossexualidade" (masculina), assistimos em nossos dias ao surgimento de novas formas de estabilidade conjugal. Não só as relações homoeróticas tomaram maior visibilidade social e política, reivindicando direitos cívicos, como o heteroerotismo buscou outras combinações de relações conjugais (casamentos não formais, moradias separadas, mãe provedora do lar etc).

Atualmente, se o multiculturalismo entrou definitivamente na pauta das discussões sobre pós-modernidade, o tema do multissexualismo inova as reflexões sobre o que a autora denominou "culturas alternativas de gênero", ou ainda "experiências alternativas de conjugalidade". Indo além dos estereótipos dos modelos exclusivamente hetero ou homossexuais de casais, a autora aborda outras formas de relações amorosas, e conseqüentemente outras identidades de gênero, como os bissexuais, os travestis e os "trans". De fato, Marlise opta por analisar uma sexualidade heterogênea nos aspectos em que ela se apresenta em nossos dias.

O segundo capítulo é dedicado à contribuição teórica entre sociologia e psicanálise no que concerne às identidades de gênero. Tomando o interacionismo simbólico como referência teórica, Matos perpassa suas reflexões entre o plano individual e o coletivo. Uma vez que "a conduta humana é social e não pode ser explicada meramente como resultado de esforços individuais, e que, portanto, a tarefa do interacionismo simbólico foi tentar dar conta da formação e variedades das condutas humanas" (p. 76), Matos analisa as identidades de gênero, enfocando tanto a pessoal e a subjetiva quanto a coletiva e a social.

Posteriormente, a autora passa por meta-doutrinas como as de Freud e Marx, pela Escola de Frankfurt e chega à teoria dos papéis de Parsons, com o objetivo de discutir a divisão sexual do trabalho no interior da família e como essa divisão influencia na formação de gêneros coletivos, sejam eles pessoais, sexuais, afetivos ou emocionais. Finalmente, o último item do segundo capítulo aborda a estética e a ética na identidade de gênero. Performance e moral constituem uma dinâmica específica dos gêneros, dando à relação conjugal uma dimensão politicamente transgressora e ao mesmo tempo estabilizadora. Na realidade, Matos acredita que a ética e a estética são aspectos culturais e podem ser vistas como fronteiras (ou coexistência de vários gêneros) no tempo e no espaço. Segundo ela, "são formas sócio-culturais criativas, esteticamente reflexivas e eticamente orientadas de interação e reinvenção do vínculo amoroso" (p. 120).

"As parcerias" são recortadas por seis cenas e "montadas" (p. 186-205) para demonstrar as novas "estabilidades conjugais" nas experiências alternativas amorosas, homo ou heteroeróticas. A crise de certos paradigmas nos tempos atuais levou necessariamente a uma revisão das relações conjugais, e a família moderna se viu obrigada a se reorganizar e a flexibilizar os modelos tradicionais dos papéis masculinos e femininos. Essa mudança de papéis e o surgimento (maior visibilidade) de outras sexualidades, essas últimas não ancoradas no modelo heterossexual tradicional, permitiram que novos "códigos" e estéticas de relação conjugal pudessem aparecer.

No capítulo seguinte, Matos discute a construção de identidades de gênero segundo a visão psicanalítica.1 1 Essa discussão, na realidade, se inicia no segundo capítulo do livro, quando a autora se propõe a fazer uma reflexão teórica entre a psicanálise e a sociologia. Caracterizando a personalidade moderna a fim de distinguir os conceitos de subjetividade e identidade, o objetivo é se "libertar" teoricamente das amarras das discussões estruturalistas da psicanálise, não raro incisivas e "fundamentalistas" (a autora se refere ao aspecto "fundacionista" dessas teorias). Essas meta-teorias, nas análises do comportamento sexual humano, "pensa[m] a subjetividade como um status ontológico universal" (p. 209). De forma oposta, a intenção da autora é introduzir o conceito de transperformance, não apenas para pensar as novas identidades (hetero-)sexuais mas igualmente para confrontar outros estilos de gênero como gays, lésbicas, bissexuais, travestis. Mesmo que a autora analise as múltiplas e diversas formas de sexualidade e culturas de gênero, ela procura demonstrar formas de estabilidade conjugal a partir de comportamentos "marginais".2 2 Marlise Matos possui discussões interessantes acerca das relações amorosas na modernidade, sobretudo no que concerne às novas identidades de gênero. Porém, a autora está à procura de características estabilizadoras das relações conjugais nos tempos atuais. Principalmente no que diz respeito aos homossexuais, o movimento de libertação do modelo hetero-fálico de sexualidade é visto, num primeiro momento, como transgressor e renovador. Sincronicamente, existe um esforço (político e científico) em encontrar na sexualidade de gays e lésbicas uma situação de normatização como "prova" de idoneidade social.

De qualquer maneira, nas diversas e variadas identidades de gênero produzidas atualmente, e ao contrário das visões médica e psicanalítica tradicionais, Matos reconhece que as novas formas de sexualidade não são desvios ou distúrbios. Para ela, a multissexualidade se apresenta como novos campos de possibilidades na afirmação de diferentes "estilos de vida".

Por fim, Matos aborda a dimensão espaço-temporal do gênero e da sexualidade, e por extensão das relações conjugais. Assim como Butler (1993), a pesquisadora acredita que o gênero possa se transformar num espaço de renovação de identidades capaz de contestar a hegemonia do modelo hetero-fálico da sexualidade. Se novos espaços para novas relações estão em jogo, o tempo igualmente toma um aspecto particular. Já não podemos pensar o tempo das relações conjugais como fatos ordenados, fixados em rituais determinados. A dimensão espaço-temporal se transforma num "lugar" de fronteira onde os diferentes corpos e as mais diversas identidades e culturas de gênero se cruzam, se confrontam e se relacionam, produzindo novas configurações e sentidos às relações amorosas.

Sem dúvida, o trabalho de Marlise Matos é intelectualmente instigante. Ela conseguiu, com competência, reunir teorias da sociologia e da psicanálise para refletir as novas configurações amorosas na modernidade brasileira. Trabalhando com autores clássicos e pós-modernos de ambas as áreas, a autora procura demonstrar como a transgressão sexual se tornou um campo de inovação e renovação das identidades e das culturas de gênero.

A partir dos movimentos das minorias sociais nos anos 60 e 70, gays e lésbicas (entre outros) passaram da imagem de desviantes, com algum distúrbio psicológico, para um grupo de pessoas normais, livres e cidadãs. Antes da Aids, principalmente os gays incorporaram a imagem de "forasteiros", verdadeiros cowboys da modernidade, sem regras, sem lei ou territórios fixos nos quais se pudesse controlá-los. No entanto, depois da Aids, social e politicamente os fatos tomam outra direção. Vinculados a uma necessidade de maior garantia civil, a Aids veio impulsionar, ao menos nos debates políticos, gays e lésbicas a lutar pela normatização de suas relações conjugais. Atualmente, as pautas de reivindicação são a parceria civil e também a adoção e a criação de filhos. Para tanto, é preciso que os homossexuais "provem" que são passíveis de assimilar certas regras sociais como a redução e a fixação do/a parceiro/a sexual. Mais importante do que isso é a durabilidade das relações. Esse era o modelo heterossexual tradicional. Enfim, a identidade sexual e de gênero de gays e lésbicas, que antes era uma transgressão, uma atitude contestatória, tornou-se uma modalidade de relação normal e estável.

No que concerne aos casais heterossexuais, houve um movimento inverso. Durante muito tempo, presos ao rígido modelo fálico-patriarcal da classe burguesa, o movimento feminista trouxe, ainda que de forma um tanto eclipsada, a consciência "masculinista". Não só as mulheres heterossexuais reivindicam a mudança de papéis e comportamentos para ambos os sexos, como também obrigam os homens a se reposicionar com relação à família e ao gênero feminino. Mas as mulheres também mudaram ao liberar os homens da fidelidade eterna, entrando no mercado de trabalho, tornando-se provedoras dos lares e não se fixando a um só parceiro3 3 Esse aspecto implica que os parceiros extra-conjugais, tanto das mulheres quanto dos homens heterossexuais, não se definam pelo sexo oposto. (mesmo que a fidelidade seja ainda uma característica bastante feminina).

De fato, a grande renovação dos vínculos amorosos está, na modernidade tardia, nos casais heterossexuais que procuram outras formas de relações como moradias separadas, parceiros/as extra-conjugais, mulheres como chefes de família etc. Apesar da transgressão e da renovação que uma relação homossexual pode trazer às pessoas envolvidas, a conjugação amorosa homoerótica parece estar "condenada" a reproduzir o modelo heterossexual de relação estável.

DENISE PIRANI

  • 1
    Essa discussão, na realidade, se inicia no segundo capítulo do livro, quando a autora se propõe a fazer uma reflexão teórica entre a psicanálise e a sociologia.
  • 2
    Marlise Matos possui discussões interessantes acerca das relações amorosas na modernidade, sobretudo no que concerne às novas identidades de gênero. Porém, a autora está à procura de características estabilizadoras das relações conjugais nos tempos atuais.
  • 3
    Esse aspecto implica que os parceiros extra-conjugais, tanto das mulheres quanto dos homens heterossexuais, não se definam pelo sexo oposto.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Ago 2002
    • Data do Fascículo
      2001
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