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À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo

À brasileira: raciality and the writing of a destructive desire

Resumos

Se o erotismo, como afirma Bataille, diferencia a sexualidade humana - conforme institui o sujeito moderno como efeito do desejo - está corretamente classificado entre as análises críticas das condições de produção dos sujeitos modernos. Por isso, neste artigo, revisito as articulações do erótico na versão de Freyre do sujeito nacional brasileiro. Mapeio como o erotismo produz uma figura racial, o mestiço, cuja particularidade reside em ser um objeto escatológico, isto é, uma figura histórica destinada a desaparecer. Enquanto essa figura tem sido celebrada como o símbolo produtivo e unificador da brasilidade, tem efeitos materiais opostos. Como dispositivo político/simbólico, o mestiço institui sujeitos sociais subalternos. Isso é conseqüência de como a miscigenação, como significante histórico, antecipa a obliteração (física e simbólica) de negros e índios. Isso é resultado, como mostro, da construção da mulher não branca como um instrumento (não como objeto) do desejo colonial. Como tal, isso também está pressuposto dentro dos mecanismos do sujeito racial que prevalece no Brasil contemporâneo.

erotismo; sexualidade; miscigenação; Brasil; patriarcado


If eroticism, as Bataille states, distinguishes human sexuality - as it institutes the modern subject as the effect of desire - it belongs in critical analyses of the conditions of production of modern subjects. For this reason, in this paper, I revisit articulations of the erotic in Freyre's version of the Brazilian national subject. I trace how eroticism produces a racial figure, the mestiço, whose particularity resides in that it is an eschatological object, i.e. a historical figure destined to disappear. While this figure has been celebrated as the unifying, productive symbol of Brazilianness, it has opposite material effects. As a political/symbolic device, the mestiço institutes subaltern social subjects. This results from how miscegenation, as a historical signifier, anticipates the (physical and symbolic) obliteration of blacks and Indians. This, I show, results from the construction of the nonwhite female as an instrument (not as an object) of colonial desire. As such, it is also presupposed in the mechanisms of racial subject governing contemporary Brazil.

Eroticism; Sexuality; Miscegenation; Brazil; Patriarchy


ARTIGOS

À brasileira: racialidade e a escrita de um desejo destrutivo

À brasileira: raciality and the writing of a destructive desire

Denise Ferreira da Silva

University of California, San Diego

RESUMO

Se o erotismo, como afirma Bataille, diferencia a sexualidade humana – conforme institui o sujeito moderno como efeito do desejo – está corretamente classificado entre as análises críticas das condições de produção dos sujeitos modernos. Por isso, neste artigo, revisito as articulações do erótico na versão de Freyre do sujeito nacional brasileiro. Mapeio como o erotismo produz uma figura racial, o mestiço, cuja particularidade reside em ser um objeto escatológico, isto é, uma figura histórica destinada a desaparecer. Enquanto essa figura tem sido celebrada como o símbolo produtivo e unificador da brasilidade, tem efeitos materiais opostos. Como dispositivo político/simbólico, o mestiço institui sujeitos sociais subalternos. Isso é conseqüência de como a miscigenação, como significante histórico, antecipa a obliteração (física e simbólica) de negros e índios. Isso é resultado, como mostro, da construção da mulher não branca como um instrumento (não como objeto) do desejo colonial. Como tal, isso também está pressuposto dentro dos mecanismos do sujeito racial que prevalece no Brasil contemporâneo.

Palavras-chave: erotismo, sexualidade, miscigenação, Brasil, patriarcado

ABSTRACT

If eroticism, as Bataille states, distinguishes human sexuality – as it institutes the modern subject as the effect of desire – it belongs in critical analyses of the conditions of production of modern subjects. For this reason, in this paper, I revisit articulations of the erotic in Freyre's version of the Brazilian national subject. I trace how eroticism produces a racial figure, the mestiço, whose particularity resides in that it is an eschatological object, i.e. a historical figure destined to disappear. While this figure has been celebrated as the unifying, productive symbol of Brazilianness, it has opposite material effects. As a political/symbolic device, the mestiço institutes subaltern social subjects. This results from how miscegenation, as a historical signifier, anticipates the (physical and symbolic) obliteration of blacks and Indians. This, I show, results from the construction of the nonwhite female as an instrument (not as an object) of colonial desire. As such, it is also presupposed in the mechanisms of racial subject governing contemporary Brazil.

Key Words: Eroticism, Sexuality, Miscegenation, Brazil, Patriarchy.

Introdução

Penso que a história teria terminado se a disparidade de

direitos e padrões de vida fosse reduzida: esta teria sido a

pré-condição de um modo de existência a-histórico, do qual

a atividade erótica é sua forma expressiva. Desde este ponto

de vista necessariamente hipotético, a consciência da

verdade erótica antecipa o final da história; esta

consciência traz profunda indiferença ao tempo presente, a

"apatia" de um julgamento a-histórico, de um julgamento

atado a perspectivas que são muito diferentes daquelas de

homens totalmente engajados em lutas.

George Bataille, A parte maldita (The Accursed Share)

Por que se pode conceber o discurso como produtor de diferença sexual, mas, apesar disso, aceitar que as diferenças físicas são o referente "material" da diferença racial? O que acontece com os aspectos sexuais e raciais como qualificadores da diferença humana que concedem a estes um objeto menos atraente do desejo crítico?1 1 Ao distinguir, em sua História da sexualidade, entre "uma simbologia do sangue" e a "análise da sexualidade" – na medida em que posiciona essa simbologia no arranjo epistemológico no qual o corpo constituiu a superfície da significação da autoridade do rei , Michel FOUCAULT, 1978, faz mais que ensaiar o banimento moral do conceito de raça do período pós-Segunda Guerra Mundial. O que sua afirmação ambígua, que reconhece a operação da "simbologia do sangue" no Nazismo e no aparato da biopolítica, faz é refigurar a pobreza analítica que resulta de que nem as "pós"-críticas do pensamento moderno, nem a teoria racial crítica estabelecem o racial para guiar seus desafios a visões onto-epistemológicas modernas. Não é de surpreender que as apropriações da noção de Foucault de poder produtivo, tais como a de Judith BUTLER, 1993, vinculariam muito as críticas de considerações existentes de sujeição de gênero que se apóiam em uma visão naturalizada da diferença sexual, enquanto novas considerações críticas de sujeição racial tais como em Michael OMI e Howard WINANT, 1994 conservariam a diferença racial como um atributo natural, divino. Para uma elaboração dessa crítica da visão predominante da sujeição racial, ver Denise SILVA, 2001, 2005, e no prelo. Neste artigo introduzo a discussão sobre o modo de operação do aspecto racial e sexual como estratégias políticas simbólicas – mecanismos de sujeição social – que focalizam como o desdobramento do erótico na escrita do sujeito (nacional) brasileiro, o mestiço, institui um sujeito moderno, cuja trajetória temporal é um movimento em direção ao auto-apagamento. Mostrando como a versão hegemônica da especificidade, da democracia racial, do aspecto racial e sexual se combinam na escrita de um sujeito social subalterno, essa leitura de uma imagem pós-colonial do mestiço também mostra como a miscigenação, como ferramenta de análise de racialidade, opera como estratégia política/simbólica da sujeição racial.

A estruturação desse exercício de análise crítica mapeia conceitualmente o sujeito do Pós-Iluminismo, o "eu" transparente, que centraliza sobre as articulações o histórico, o sexual e o racial para escrevê-lo como um produto e instrumento da razão universal.2 2 Para uma já clássica crítica da suposição de que a transparência é o atributo distintivo do sujeito moderno, ver Gayatri SPIVAK, 1994. O que o movimento analítico que desenvolvo aqui faz é mostrar como, na escrita de Gilberto Freyre3 3 Freyre, 1987. sobre a especificidade brasileira, o sexual e o racial, como significantes de regulação – científicos e morais (patriarcais), respectivamente –, produzem a trajetória temporal do sujeito brasileiro (nacional) como um movimento dual de apagamento de "índios" e "africanos" e a autoprodução do europeu. Isto é, essa escrita introduz uma articulação de um "eu" transparente (histórico), no qual tanto as ferramentas da sociologia das relações de raça quanto da antropologia do século XX produzem o sujeito nacional privilegiado (branco/português), e o sujeito social subalterno mestiço que, por incorporar os atributos de "desaparecimento" do aspecto racial e cultural do "Outro europeu", emerge como o sujeito de um desejo destrutivo, o agente de sua própria aniquilação. Resumindo, a versão de Freyre sobre a democracia racial exemplifica como as narrativas da nação também desenvolvem os mecanismos políticos/simbólicos da sujeição social.

Minha leitura mostra como Freyre articula o erótico em um texto nacional, no qual o fato da miscigenação representa um papel crucial em sua escrita de um sujeito nacional como efeito da regulação tradicional (moral/patriarcal) – um movimento engenhoso, pois o patriarcado continuou sendo uma descrição autorizada do sujeito moderno na medida em que estivesse restrito ao domínio da vida doméstica (privada). Além disso, também permite a construção da miscigenação como um descritor positivo da configuração social brasileira moderna apenas porque o excesso que ela produz, o perigoso fruto da relação sexual entre senhores e escravas, pode ser entendido como sobra. Isto é, meu argumento é que, enquanto o produto do desejo português, o mestiço, se torna o símbolo da especificidade do Brasil, sendo uma figura fundamentalmente instável, pois é uma incorporação temporária da brasilidade, um passo necessário para sua expressão real, o sujeito brasileiro é sempre já branco, pois Freyre, assim como outros antes dele, constrói o português como o sujeito verdadeiro da história brasileira. Por trás desse texto está uma preocupação com as conseqüências dessa representação de brasilidade, mais especialmente com as escritas atuais sobre violência urbana, que, penso, são a materialização esperada de uma narrativa hegemônica nacional, que está fundamentada no desaparecimento do mestiço, o sujeito social que é, primeiramente e principalmente, o produto de um desejo destrutivo. Como tal, essa visão da sujeição racial no Brasil tanto parte das rejeições apressadas da democracia racial que descreve, quanto de um subterfúgio – isto é, um mascaramento da supremacia branca. Pois estou convencida de que essas escritas reposicionam o sujeito social brasileiro, o mais ou menos mestiço, brasileiro economicamente despossuído, solitário diante do horizonte da morte, quando afirmam que, por não conseguirem reconhecer sua diferença racial, não podem mudar suas condições. Assim, reproduzem o mestiço como o único responsável pelas circunstâncias que levam a essa perigosa situação social, que agora, mais do que nunca, mais do que sob a escravatura, está marcada por episódios de "total violência" – isto é, o controle altamente organizado e brutal que o narcotráfico tem sobre as favelas e periferias no Rio de Janeiro e outros centro urbanos.

Escritas do desejo

É certo que a vida erótica não pode ser regulada [réglé].

Foram dadas regras, mas estas regras apenas conseguiram

atribuir a ela um domínio fora das regras. E uma vez que o

erotismo estava descartado do casamento, este tendia a

pressupor um aspecto material primordial, cuja importância

Lévi-Strauss estava correto em enfatizar: as regras

assegurando a troca de mulheres como objetos desejados

de fato asseguraram a troca de mulheres como força de

trabalho.

George Bataille, A parte maldita (The Accursed Share)

Meu movimento neste texto é ler o mestiço como uma figura pós-colonial, que vejo como uma contribuição a uma teorização pós-colonial da relação entre a miscigenação (hibridismo ou mistura racial) e processos contemporâneos de sujeição racial. Pois, se a figura ontológica pós-Iluminismo dominante, o sujeito, é totalmente autodeterminado, uma coisa autoproduzida (moral/histórica) e auto-reguladora (jurídica),4 4 O sujeito nacional, o construto que dá a precisão da dimensão histórica (moral) dessa figura, ocuparia um lugar privilegiado nas últimas décadas do século XIX, como discutem Benedict ANDERSON, 1983, Eric HOBSBAWN, 1994, e outros. como ler a trajetória de um tipo particular de sujeito moral, um sujeito nacional (histórico), que parece renunciar à autodeterminação, para "abraçar" sua ameaça aos "outros"? Ao atentar para essa questão, parto da visão predominante do papel do mestiço, que o constrói ou como o significante de fantasias que serviu muito bem à dominação colonial, ou como a refiguração de um processo de exclusão fracassado. Isso, acho, resulta da permeabilidade da lógica de exclusão – como a versão privilegiada da sujeição racial – e da suposição de que a diferença racial é um atributo humano (pré-conceitual/pré-histórico)5 5 Ver SILVA, 2001, e no prelo, para uma crítica da lógica da exclusão. importante. Diferentemente, começo da suposição de que a diferença racial é produto de aparatos científicos estabelecidos para explicar uma variedade de configurações humanas corpóreas e sociais encontradas nas várias regiões globais.

Em Desejo colonial (Colonial Desire), por exemplo, Robert Young6 6 YOUNG, 1995. desafia posições "neo-racistas" de inglesidade como uma "identidade fixa", mostrando como uma "necessidade de alteridade" – uma obsessão em relação a "cruzamentos e invasão de identidades" – marca os escritos da identidade inglesa do século XIX.7 7 "Muitos romances do passado", ele discute, "exteriorizaram tais inseguranças e diferenças e estão preocupados com o encontro e incorporação da cultura do outro, seja de classe, etnicidade, ou sexualidade; eles sempre fantasiam cruzá-la" (YOUNG, 1995, p. 3). Essa "ansiedade" com o cruzamento, argumenta, é um efeito de projetos coloniais e imperiais que envolvem um maior movimento de pessoas e cultura que, para os europeus, tomou a aparência de "ruptura da cultura doméstica, e um aumento de ansiedade em relação à diferença racial e ao amálgama racial que era aparente como um efeito do colonialismo e da imigração compulsória".8 8 "Linguagem e sexo", ele alega, "constituem os predominantes loci de compromisso com essa afirmação de formas 'híbridas' igualmente produzidas", que "foram vistas como incorporação de formas ameaçadoras de perversão e degeneração e tornaram-se a base de uma extensão metafórica sem fim no discurso racial do comentário social" (YOUNG, 1995, p. 4). Descreve o colonialismo como uma 'máquina de administração de guerra desejante' cujas "conexões e disjunções" forçadas de territórios, histórias e povos também produziram sua "própria fantasia mais escura", as abundantes uniões sexuais (inter-raciais) 'não-naturais'. "O corolário deste [desejo do homem branco]", ele debate,

é que a adulteração da raça deriva da atração sentida pelo branco em relação ao negro ou ao amarelo e, portanto, por inferência, já que a produção de filhos misturados é o tema, pelo homem branco em relação à mulher amarela ou negra [...]. Quanto ao poder hierárquico, a resposta do homem branco ao apelo da exótica sexualidade negra é identificada com a posse e a dominação, sem dúvida alimentada pela resistência da mulher negra. Este imperativo sádico, aumentado pela repugnância sentida pelo negro ao branco, está inevitavelmente acompanhado pelo requisito de submissão masoquista da mulher subordinada, objetificada.9 9 YOUNG, 1995, p.108.

Sem dúvida, o mapeamento de Young da economia erótica colonial da atração e repulsão adiciona uma dimensão crucial, a sexual, aos momentos econômicos e jurídicos do poder colonial.

No entanto, enquanto tal abordagem apreende dimensões importantes dos escritos coloniais do final do século XIX, não creio que se aplique imediatamente a escritos pós-coloniais dos "outros da Europa", pois as construções do século XX da especificidade européia já encontraram uma reserva de formulações científicas do racial, do cultural e do sexual, que os produzem como efeito de um tipo característico de regulação, a saber, as "leis da natureza", que produzem categorias inegáveis e irredutíveis de seres humanos. O que quero dizer é: quaisquer análises críticas de como as representações de miscigenação operam como mecanismos de sujeição racial deveriam incluir um mapeamento das articulações existentes do sujeito moderno como um objeto desejante, ou seja, como um efeito da regulação (jurídica, científica ou moral) e como um efeito da representação (histórica). Farei isso em três movimentos. Primeiro, faço brevemente a distinção entre duas articulações do desejo, a histórica, a escrita inicial de Hegel do sujeito auto-representado (autodeterminada); e a psicanalítica, a visão de Freud do sujeito sexual como um efeito da regulação científica e moral. Segundo, também descrevo brevemente como, quando emprega o racial e o cultural como significantes de uma regulação científica, a analítica da racialidade produz uma versão do sujeito que se afasta radicalmente da visão única onto-epistemológica pós-Iluminista. Finalmente, retomo brevemente a reescrita de Bataille sobre o sexual além da regulação, além do casamento e da reprodução, para mapear sua própria articulação do sujeito como uma coisa consumidora. Esses movimentos guiarão minha análise dos efeitos da articulação do erótico no mais antigo texto regulado pela representação histórica do sujeito como coisa/objeto do desejo, ou seja, a versão de Freyre do texto brasileiro.

O histórico

A definição cartesiana do sujeito, figura central da representação moderna, estabelece uma conexão fundamental entre o objeto autodeterminado, o sujeito e a certeza no conhecimento. Enquanto o regente e o autor divinos sustentaram as visões morais modernas, a confiança do sujeito no conhecimento não foi um problema. Por volta do fim do século XVIII, depois da mudança epistemológica marcada pelo Iluminismo, pela mudança política indicada pela revolução americana e pelo momento econômico instalado pela revolução industrial, somente a razão universal forneceria a base para uma visão da especificidade humana. Embora do ponto de vista jurídico, econômico e científico a consolidação da razão universal como um princípio seria bem-vinda como um conforto tardio, o deslocamento do religioso deixaria uma lacuna de valores morais. Como explicar o contrato social? Como justificar laços humanos que não estão reduzidos ao interesse próprio, à necessidade de acumulação, sem recorrer a um significante religioso – de um primeiro exemplo, como Herder descreve a autoridade divina, que permaneceria então como o princípio que guiaria as vidas das pessoas na medida em que realizavam a tempo suas potencialidades e possibilidades coletivas e únicas? Mais importante, como poderia a razão universal, que até aquele momento havia sido considerada uma força limitante – nas instâncias científicas e jurídicas – encontrar um valor moral que não partisse da escrita inicial do sujeito na autodeterminação como um objeto de liberdade?

Ao ocupar-se dessas questões, em seu Fenomenologia do espírito (Phenomenology of Spirit), G. W. F. Hegel10 10 Hegel, 1977. reescreve a razão universal como a força soberana autodeterminada (autoproducente e auto-reguladora), cujas habilidades são postas em prática na configuração social (jurídica, econômica e moral) da Europa pós-Iluminismo. Com isso, ele consolida historicidade como o horizonte ontológico no qual o sujeito emerge como um objeto transparente (interior/temporal). Seu movimento é descrever a trajetória da consciência, o movimento dialético da razão universal – que ele renomeia como "Espírito" – como atividade autoprodutora e auto-representativa. Através dessa refiguração da razão universal, que marca sua consolidação como a regra soberana dos valores epistemológicos modernos, Hegel a reescreve como aquela que abriga todas as possibilidades e potencialidades que ela desdobra e recupera no tempo, um Sujeito Transcendental que é fundamentalmente um objeto interior/temporal. Para Hegel, a verdade da autoconsciência é

a unidade da autoconsciência consigo mesma; esta unidade deve tornar-se essencial para a autoconsciência, isto é, autoconsciência é Desejo em geral. A consciência, assim como a autoconsciência, daqui em diante, tem um duplo objeto: um é o objeto imediato, aquele da certeza do sentido e da percepção que, para a autoconsciência, no entanto, tem o caráter de uma negativa; e o segundo, o próprio ser (itself), que é a verdadeira essência, e está presente na primeira instância apenas em oposição ao primeiro objeto. Nessa esfera, a autoconsciência exibe-se como o movimento no qual essa antítese é removida, e a identidade do ser consigo mesmo se torna explícita.11 11 HEGEL, 1977, p.105. Itálicos no original.

Na interpretação de Hegel, a realização do sujeito como um objeto autodeterminado requer um envolvimento tanto com a essência 'abstrata' quanto com a existência 'concreta' dos objetos (coisas e outros "eus"), pois ambas precisam estar engajadas para a realização da trajetória da autoconsciência em direção à Liberdade (autodeterminação). Isso ocorre quando a autoconsciência adquire "universalidade verdadeira", ao completar-se sua trajetória depois que recupera a morte, negação, como uma dimensão do próprio ser (itself) –, autoconsciência como "ser para si mesma", isto é, o momento da transparência. Os relatos históricos posteriores da especificidade humana assumirão a formulação de Hegel, que institui o sujeito como um "eu" transparente. Na articulação histórica do sujeito como um objeto desejante, o outro como o momento da morte, já está definido como um aspecto da autoprodução do sujeito. No entanto, este outro também está articulado como aquele sem o qual a transcendência, a transparência da morte (o "outro", o objeto) não pode ser alcançada. Para resumir, a articulação histórica do sujeito como objeto desejante – aquela que finalmente reconcilia o jurídico e o moral e, como afirma Habermas,12 12 HABERMAS, 1987. forneceu à modernidade um fundamento cultural (moral) – resolve o perigo que a alteridade anuncia como um momento necessário e produtivo da trajetória temporal (histórica) da autoconsciência, de sua compreensão como uma coisa moral. O sucesso de Hegel foi consolidar a historicidade como o horizonte ontológico privilegiado, aquele pressuposto pelos relatos onto-epistemológicos do pós-Iluminismo e no princípio moral que descreve o sujeito (autoconsciente) como um objeto desejante.

O sexual

Na descrição psicanalítica do sujeito do desejo, encontro uma inversão que descreve a emergência do sujeito social (civilizado) como um objeto desejante, não como uma manifestação da autoprodutividade humana, de liberdade, mas de necessidade – tanto de instintos como das regras (tradições sociais e costumes) que a família heterossexual estabelece e incorpora – que distingue o humano de outros animais. Em seu Compêndio de psicanálise (Outline of Psychoanalysis),13 13 Freud, 1940. Sigmund Freud faz um resumo do arsenal conceitual que guia sua reformulação científica do estudo da psique humana, que começou com sua declaração sobre a existência de determinantes inconscientes dos processos conscientes. "Os processos com os quais se preocupa [a psicanálise]", afirma,

são em si mesmos tão indescritíveis quanto aqueles com que lidam outras ciências, a química e a física, por exemplo; mas é possível estabelecer as leis que obedecem e seguir suas relações mútuas e interdependências... resumindo, chegar ao que é descrito como uma 'compreensão' do campo do fenômeno natural em questão.14 14 FREUD, 1940, p. 158.

Ademais, além de ser um efeito das "leis da natureza", cuja operação a psicanálise mapeia, de acordo com Freud, a economia psíquica humana também reflete as operações das regras sociais (exteriores) – através de confirmação do superego sobre o id (instintos), crucial no desenvolvimento do ego – que os pais representam e reforçam. "Esta influência parental", diz, "inclui em sua operação não somente as personalidades dos pais, mas também a família, tradições raciais e nacionais passadas através deles, assim como as demandas do meio social imediato que eles representam". Aqui encontramos uma articulação do social como um domínio de regulagem distinto do de Locke, em que as suas leis são efeitos do consentimento, enquanto na psicanálise, como em outros escritos científicos sobre o humano, a regulação produz o sujeito social porque é a condição de possibilidade para sua emergência como tal. O que distingue as articulações históricas e sexuais do desejo? Entre elas, creio, está uma transformação onto-epistemológica que os escritos de Hegel sobre o sujeito como um objeto desejante tanto permitiram quanto exigiram. Para a reescrita de Freud, o desejo é um aspecto do indivíduo como um objeto moral, isto é, as regras que instituem o indivíduo como sexual não operam em nível legal como as leis da sociedade mas em um domínio jurídico que as precede e também é regulada por elas.

O racial & o cultural

Muito próximos à psicanálise, os projetos científicos – a Ciência do Homem, a sociologia das relações de raça, e a antropologia do século XX – que, a partir do século XIX, escreveriam configurações corporais e sociais encontradas nas várias regiões do globo como significantes de diferentes tipos de mentes humanas, também introduziram uma visão de consciência como um efeito da regulagem científica. Em outros artigos,15 15 SILVA, 2001, e no prelo. mapeio esses lugares de produção do racial e do cultural como significantes da diferença mental (moral e intelectual). O que farei a seguir é resumir esse argumento, descrevendo os tipos de sujeitos que esses lugares produzem.

O que diferencia os relatos da diferença humana informados por essas estratégias políticas/simbólicas, argumento, é que não pressupõem a historicidade como o único horizonte ontológico. Ao invés disso, as representações científicas do racial e do cultural pressupõem um horizonte ontológico, globalidade, que não pode ser reduzido, diluído, em autoprodutividade, pois isso não pressupõe autodeterminação. Como uma ferramenta política/simbólica que refigura a espacialidade, diferença irredutível, entre os habitantes da Europa e aqueles de outros continentes, o racial produz sujeitos modernos como objetos fundamentalmente exteriores, como autoconsciências que permanecem fixadas naquele momento que Hegel descreve no trecho do senhor/escravo, que se engaja na luta de vida e morte antes de a escravidão transformar o perdedor numa ferramenta, num instrumento, do vencedor. Como objetos raciais, os sujeitos modernos, afirmo, olham com horror o horizonte inapreensível da morte. Este artigo é guiado por dois movimentos analíticos. Em primeiro lugar, essa abordagem da escrita sobre o mestiço emprega a racialidade como uma estratégia de significação científica, como uma ferramenta política/simbólica, cujo papel primordial é produzir configurações sociais modernas, em que institui as regiões morais habitadas pelos: a) sujeitos transparentes (autodeterminados) da vida – brancos/europeus – que incorporam o vencedor na visão de Hegel da luta de vida e morte, os que alegremente dividem as vantagens da vida ética, aqueles cuja existência social é regulada pela universalidade e autodeterminação – princípios que governam as dimensões econômica e jurídica; e b) os sujeitos vulneráveis da morte (determinados pelo exterior) – os "outros da Europa" –, aqueles obliterados na luta que condensa o momento da exterioridade, aqueles para quem os princípios que distinguem as configurações sociais modernas não se aplicam, aqueles que não são nem o sujeito legal pressuposto pelo aparelho jurídico – execução da lei e administração da justiça – nem o sujeito atendido pelas políticas públicas.

Minha leitura dos efeitos do erótico, quando empregados na representação de Freyre do sujeito brasileiro, que é governada pela articulação histórica do sujeito, mostrará como esse uso do arsenal da analítica da racialidade constrói o mestiço como um símbolo do sujeito da morte. Isso, como mostro, resulta de um emprego da atividade erótica que, por presumir um soberano (sujeito absoluto do desejo), o português, não antecipa o desejo do "outro" feminino, que, aqui, emerge como um objeto – o material cru e instrumento que, como tal, não apresenta ameaça à sua autonomia. Pois, não tendo nenhum atrativo para si além de sua disponibilidade autorizada (legal), como fêmea e como escrava, ela é a "morta-fixa", que o mestiço efetiva uma vez que incorpora seu apagamento, o uso de seu corpo africano, necessário para a construção da configuração social moderna (jurídico-econômica, moral) fora do continente europeu, nas terras tropicais onde os primeiros articuladores de racialidade, os cientistas do homem do século XIX, disseram que nunca prosperaria. Em resumo, a eficiência da racialidade como estratégia política/simbólica moderna reside no fato de seu arsenal de racialidade reconciliar os valores científicos aos históricos da diferença humana porque escreve os "outros da Europa" como sujeitos vulneráveis, como aqueles cujo destino não é a transparência, mas o apagamento.

Desejo patriarcal

Digamos que o desejo sempre busca dois objetos, um que é

móvel e vivo, outro que é fixo e morto. E o que caracteriza o

erotismo não é o vivente-móvel, mas o morto-fixo que,

sozinho, é separado do mundo normal. Este é o fim para o

qual queremos levar o vivente-móvel. É questão de se

quebrarem as seqüências comuns e conscientes de forma a

encontrar o que foi separado: o que foi separado existe

apenas como um objeto ou como uma fusão.

– George Bataille, A parte maldita (The Accursed Share)

Se a representação psicanalítica do objeto desejante nega essa essência, liberdade, para instituir o sujeito moderno como um objeto social, como um efeito de uma regulação pré-simbólica, qual seria o efeito da articulação do erótico na escrita de um sujeito moderno, um objeto moral? Como o erótico produz um sujeito histórico, um ser cuja trajetória é um retorno à transparência, a superação da 'universalidade simples', a universalidade da regulação (divina e jurídica) que acontece apenas quando comprometida com a exterioridade, a autoconsciência percebe que sempre já é ela mesma, que a regulagem não é necessária, pois um vínculo fundamental a liga com aquilo que não é ela mesma; que o episódio da luta pela vida, no trecho senhor/escravo, no qual a violência, a possibilidade da morte, marca sua relação com uma outra autoconsciência, nunca seria repetido, pois alcançou a "vida ética"?

Para lidar com essa abrangente questão, cuja resposta demandaria uma visão de cada articulação do sexual nos escritos dos sujeitos históricos e nacionais, revisito um texto histórico no qual o erótico representa um papel crucial na produção de um sujeito histórico. Ao fazer isso, também indico como a versão de Freyre é informada pelas estratégias significantes científicas – A Ciência do Homem, a antropologia do século XX (Antropologia) e a sociologia das relações de raça (Relações de Raça) – que constituem a analítica da racialidade. Esse aparelho político/simbólico, institui o racial como uma ferramenta onto-epistemológica, aquela que institui o sujeito como um objeto global (exterior/espacial), que sempre já pressupõe a violência, pois emerge ao lado e diante de um outro cuja existência o horizonte ontológico privilegiado, a historicidade, não pode levar em conta, pois pressupõe que a emergência do próprio sujeito está baseada na redução/negação de tudo que é interior a ela. Antes de descrever como Freyre constrói o mestiço como um sujeito sempre já em movimento em direção ao horizonte da morte, volto a uma discussão do ponto de vista de Bataille sobre o erotismo, que ajudará a mostrar como ele escreve o desejo irreprimido do português como uma força produtiva que é levada pela necessidade de consumir aquilo que é necessário para demarcar sua particularidade.

A crítica da produtividade regulada

O que vejo na escrita de Georges Bataille sobre a atividade erótica em seu A parte maldita (The Accursed Share)16 16 BATAILLE, 1993. é tanto uma crítica e uma re-articulação da construção do sujeito quanto um efeito da regulação social (jurídica e moral).17 17 Não vou me envolver em uma crítica da apropriação de Bataille da tese de Lévi-Strauss de que o tabu do incesto é produto do social, e de que a circulação de mulheres produz alianças que permitem a existência social. Para Bataille – assim como para Locke e Hobbes, os estruturadores da regulação jurídica – a emergência do humano ocorre no ato radical da separação do animal. É um efeito de uma aversão à natureza como aquela que é dada aos seres humanos – que é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de regras e o início da história. Dessa ruptura, Bataille argumenta, emergem os dois qualificadores exclusivamente humanos – o racional, que ele associa à lógica da aquisição da produção material, e o erótico, que ele coloca como o oposto, a saber, a lógica excessiva do consumo sexual. Para ele, no entanto, não tanto as regras, mas o estabelecimento de regras mais sua transgressão distinguem a sexualidade humana. A "formação do erotismo", discute, "implica uma alternância de repulsão e atração, de negação e de afirmação, uma alternância imediata em que é humano (erótico) e não simplesmente sexual animal".18 18 BATAILLE, 1993, p. 48. Pois o erótico institui o humano através da oposição entre as regras produtivas (da história e da economia) e a transgressão, o retorno à animalidade rejeitada que deriva seu poder precisamente do fato de que é um rompimento com a regulação produtiva. Na atividade erótica, o consumo não está submetido à produção regulada que é levada tanto pela infinita abundância de vida quanto pelo vazio anunciado pela morte. Isto é, ele critica a produtividade econômica, a lógica utilitária da regulação na qual a produção é ajustada em direção à maximização do resultado com a menor despesa possível de recursos disponíveis.

De qualquer forma, o relato de Bataille sobre o erótico indica mais claramente a diferença entre essas duas articulações do sujeito como um objeto desejante, a saber: (a) histórica, aquela que submete a regulação à autoprodução; e (b) a sexual, aquela que reduz a autoprodução à regulação daquele aspecto da particularidade humana que concebe o consumo como um momento de produção, aquele que reduz a vida a uma atividade produtiva sempre ajustada em direção à sua própria prevalência – aquele, em resumo, que não pode produzir a morte, a negação de assumir qualquer papel na determinação de ser/vir a ser. Exatamente porque o erótico desafia e ignora esse privilégio de tornar-se e anuncia a concepção de vida como aquela que é produtividade não-regulada, que não apenas retorna à animalidade, mas também abraça a morte como uma possibilidade capacitante, não cai nem na articulação do desejo hegeliana nem na freudiana. Para Bataillle, o outro, o objeto do desejo sexual, não pode ser reduzido nem à regra histórica, nem à patriarcal, pois só existe como uma rejeição a ambas. Como tal, o erótico é o máximo significante de liberdade. Não apenas não marca uma volta para a animalidade, um retorno à natureza sem a mediação das regras que a arrancam dela, como também apenas existe por ser uma transgressão das regras, as regras que definem a humanidade. Nem um efeito da necessidade (como a natureza o concebe), nem um objeto de regulação (apropriação da natureza pelos próprios seres humanos), o erótico, na representação de Bataille, significa humanidade e aquilo que a especifica, a vida, sem regulação. Mesmo assim, precisamente porque não pode estar sem regulação, o erótico já anuncia como esta regulação que institui o ser humano, como ela inscreve o ser humano não como efeito de qualquer tipo de regulação, mas aquela cujas ontologias modernas tiveram de negar quando o divino foi deslocado para assunção das onto-epistemologias humanas.

Ao discutir a crítica de Bataille da regulação, em minha leitura da democracia racial, focalizo como, na versão de Freyre do contexto colonial brasileiro (jurídico, econômico e moral), uma instância particular de regulação – a significação científica – permite uma apropriação do erótico como a expressão do desejo que segue a lógica da produção em que o excesso não é um significante da efusão que carateriza a produção não-regulada (apenas por ser transgressora). Isto é, minha tarefa é mostrar como, na narrativa do sujeito brasileiro, o retorno ao rejeitado/abjeto, a transgressão das regras – do intercurso sexual, do consumo produtivo, do casamento – da humanidade, a articulação simultânea do racial e do sexual produzem tanto um sujeito nacional que é um sujeito histórico de poesis quanto um sujeito de abjeção, isto é, aquele cuja única trajetória é o gasto, cujo destino é o apagamento. O que discuto é o efeito do excesso, a articulação de Freyre dos lugares eróticos no âmago da narrativa do sujeito brasileiro.

Luxúria produtiva

Nesta leitura da versão de Gilberto Freyre do sujeito brasileiro, vejo sua escrita contraditória de um sujeito moderno (nacional) como um "eu" tradicional (patriarcal), como um efeito do uso das ferramentas da Antropologia e das Relações de Raça que, por volta de 1930, constituíram os relatos científicos autorizados da diferença racial e cultural. O emprego dessas significativas estratégias científicas tem dois efeitos primários. Por um lado, o arsenal da sociologia das relações raciais permitiu uma narrativa que mostra que, desde suas "origens", o sujeito brasileiro exibiu os atributos necessários para construir uma "civilização moderna" nos trópicos, ou seja, a habilidade de "assimilar" as "culturas e raças inferiores", preencher o "ciclo de relações de raça". Por outro lado, tanto a escrita antropológica do "nativo" como sempre já "desapa-recendo" quanto a afirmação das relações de raça da sociologia de que a miscigenação constitui a única solução do "problema de relações raciais" apoiariam a tese de que o Brasil é uma democracia racial exatamente devido à falta de "preconceito racial" dos portugueses, que resultou no rápido desaparecimento de índios e africanos vulneráveis do Brasil. Enquanto índios, africanos e europeus estão sempre já democraticamente unidos no sujeito nacional transparente, a miscigenação constituiria a "diferença intrínseca" do Brasil, endossando assim a realidade dos brasileiros desesperançadamente miscigenados com uma transparência precária (tropical). Isto é, a miscigenação inscreve com segurança um movimento histórico duplo, a saber, a trajetória teleológica – o movimento em direção à transparência – do sujeito branco/europeu de uma "civilização moderna" patriarcal, a trajetória escatológica de seus "outros"; mas, mais importante, também institui um sujeito social precário, o mestiço – o brasileiro mais ou menos negro ou branco –, cujo destino é realizar um desejo de auto-apagamento.

Em Casa-Grande & Senzala, Gilberto Freyre19 19 FREYRE, 1987. dá uma visão do sujeito brasileiro na qual o patriarcado marca a especificidade brasileira (nacional). Na medida em que ele descreve como os atributos raciais e culturais dos "outros da Europa" contribuíram para a especificidade brasileira, ele escreve que a trajetória temporal do sujeito nacional é um efeito do desejo português. Seu movimento crucial é escolher o patriarcado, dentre as concepções modernas de autoridade jurídica e relações econômicas, para fazer da "família" e da "vida sexual" lugares privilegiados do emprego do desejo do português (masculino). Por considerar o escravo adulto, o trabalhador dos latifúndios, absolutamente irrelevante no relato da história brasileira e, conseqüentemente, enfatizar a posição privilegiada do colonizador europeu branco, para Freyre, somente a escrava representaria o "outro da Europa" que ajudou na produção daquilo que marca a "diferença intrínseca" brasileira, a saber, o mestiço. Dessa forma, Freyre escreve os "outros da Europa" como duas vezes vulneráveis: não apenas a escrava é jurídica e economicamente subjugada, mas a sua é uma forma particular de sujeição de gênero, pois, numa configuração patriarcal/escravista, a família constitui o centro das concepções prevalecentes de moralidade. Aqui a diferença racial não tem nenhuma função na configuração jurídica, econômica e moral do Brasil colonial. Ao contrário, está determinada na interioridade do sujeito "levemente bronzeado" do patriarcado. Não surpreende que a lógica da exclusão não possa capturar o modo da sujeição racial que esse relato autoriza, pois assume que a miscigenação, como um processo e como indicador da obliteração da diferença racial, institui configurações sociais em que o racial não opera como estratégia de poder.

O que leio na versão de Freyre sobre o sujeito brasileiro é uma descrição da produção de dois tipos de sujeito: o sujeito histórico, o português, cuja falta de preconceito racial permite a construção da "civilização moderna" em terras tropicais, inóspitas; e um sujeito social (um produto da regulação jurídico-econômica), o mestiço, que resulta de dois momentos de violência autorizada, o uso econômico dos corpos dos escravos como máquinas produtivas e a apropriação do corpo da escrava não como um sujeito erótico, mas como um objeto, como uma bananeira ou uma ovelha, que produziria o tipo de corpo adequado para a tarefa de construir uma civilização tropical. Precisamente porque a figura soberana jurídica da casa-grande é aquela à qual Freyre atribui as características que marcam a especificidade moral do Brasil – adaptabilidade, miscibilidade e falta de preconceito racial, o sujeito brasileiro herda apenas o corpo, mas nada do espírito africano da escrava, instrumento que o senhor da casa-grande usa na produção do sujeito social – o trabalhador, o concreto, em oposição ao abstrato, o material em oposição ao construtor espiritual da civilização brasileira. Ele é o resultado da violência produtiva (autorizada). É total e exclusivamente o exterior, o social, a incorporação de um desejo que se realiza na violência autorizada, a apropriação, uso e abuso dos corpos de escravos e escravas cujo único papel é assegurar que se reproduzam sem nunca submeter-se aos comandos da natureza, aquilo de que se precisa para a reprodução física, comida e sexo.

No entanto, grande parte do texto de Freyre é dedicada a um relato da influência do "escravo negro na vida sexual e familiar brasileira". É aqui que a representação de Freyre da interpretação antropológica da diferença cultural para escrever o sujeito brasileiro como um sujeito tradicional (patriarcal) de uma democracia está condicionada à articulação dos "outros da Europa" em vulnerabilidade que estabelece uma versão histórica de seu necessário apagamento. O que essa centralidade da família patriarcal permite é o deslocamento imediato do escravo adulto, o que é abarcado por referências gerais ao "Negro" ou ao escravo, mas virtualmente nunca entra no texto em relatos do trabalho duro nos latifúndios.

Na suavidade, na mímica excessiva, no catolicismo no qual divertimos nossos sentidos, na música, na caminhada, na fala, nas canções de ninar para o menino, em tudo que é uma expressão sincera de vida, trazemos a marca da influência africana: do escravo ou ama que nos segurou, que nos amamentou, que nos alimentou, depois de amaciar a comida em sua boca; da velha negra que nos contou as primeiras histórias de terror; da mulata que nos tratou e que nos iniciou no amor físico e nos deu, no barulhento colchão de ar, a primeira sensação de masculinidade; e do menino negro que foi nosso primeiro companheiro.20 20 FREYRE, 1987, p. 283.

Quando recusa o argumento da Ciência do Homem da "inferioridade mental do Negro", na citação inicial, Freyre se refere aos estudos antropológicos contemporâneos da cultura africana para reescrever a vulnerabilidade dos negros como um efeito dos processos sócio-históricos. Segundo a lógica da obliteração estabelecida na "teoria dos contatos culturais e raciais" das Relações Raciais,21 21 SILVA, no prelo. Freyre descreve como o escravo africano "seria assimilado" dentro da configuração social patriarcal portuguesa.

Em ordem de influência, as forças do sistema escravocrata que agiram sobre o escravo africano recém-chegado são: a igreja, isto é, a pequena igreja da fazenda patriarcal; a senzala; e a própria casa-grande isto é, considerada como parte e não como centro do sistema dominante brasileiro de colonização e da formação patriarcal. O método de desafricanização do 'novo' negro, a seguir, era misturá-lo com a massa de 'ladinos' ou veteranos, de forma que a senzala tornou-se a escola prática de abrasileiramento.22 22 FREYRE, 1987, p. 357.

Embora ele também passe algum tempo enumerando as "influências culturais africanas" não determinantes – culinária, folclore, etc. – que o colonizador português recebeu de sua ama negra (escravizada) e seus jovens companheiros negros, para Freyre a única contribuição relevante dos africanos foi o corpo da escrava.

Além disso, a constituição antropológica do conceito do que é cultural, organiza de forma total e consistente, as escritas de Freyre sobre a nação brasileira. Ao descrever as condições coloniais, ele elabora um quadro vivo de uma configuração social tradicional (patriarcal), uma sociedade religiosa, centrada na família, e agrícola, o que constitui a "diferença intrínseca" brasileira. A tradição conservadora no Brasil", discute,

tem sido sustentada somente pelo sadismo de comando, disfarçado no "princípio de Autoridade" ou na "defesa da Ordem". Entre estes dois mitos – de Ordem e de Liberdade, e de Autoridade e Democracia – nossa vida política, que deixou o regime senhorial e escravocrata cedo demais, tenta encontrar equilíbrio. De fato, o equilíbrio permanece entre as realidades tradicionais e profundas: sádicos e masoquistas, senhores e escravos, doutores e iletrados, indivíduos com uma cultura predominantemente européia e outros com uma cultura primariamente indígena e africana.23 23 FREYRE, 1987, p. 52.

Em relação à articulação da presença dos "outros da Europa", essa reescrita do dilema da cultura brasileira, que, como vimos anteriormente, é reinterpretada pelas investigações sociológicas, permite tudo a Freyre, menos ignorar os aspectos violentos da colonização e escravatura, para privilegiar sua influência sobre a família colonial. Com isso, ele reescreve a vulnerabilidade de indígenas e africanos, embrulhando-os no aspecto culinário, afetivo e patológico da vida familiar patriarcal. Ao descrever o lugar dos indígenas nesse contexto, Freyre rapidamente escreve sua irrelevância, entendendo que sua "preguiça" exigia uma substituição imediata pelo africano. O que resta do indígena é, além dos itens de culinária e folclore, "a parte feminina de sua cultura, que era apenas feminina em sua técnica", porque as mulheres eram responsáveis pelo trabalho de agricultura necessário à "organização econômica agrária que o português estabeleceu nestas terras americanas".24 24 FREYRE, 1987, p. 159.

Ao deslocar o contexto jurídico-econômico do colonialismo/escravagismo, a casa-grande patriarcal torna-se o microcosmo político no qual a história brasileira se desenvolve. Nesse contexto jurídico-econômico, o senhor da casa é soberano, incorpora a própria regulação (jurídica e econômica), como o regente soberano do latifúndio, de sua mulher, filhos, empregados e escravos. Não é meramente um sujeito legal, e não é um sujeito econômico, pois outros, mulheres e escravos, são responsáveis por sua reprodução, sua descendência, e a reprodução de sua riqueza. Aqui está a primeira indicação de que a estrutura de Bataille do erótico não serve para articular o erótico no texto nacional brasileiro. Primeiro, nem a religião, nem o Estado poderiam reivindicar a sujeição do senhor na casa-grande, pois no contexto privado jurídico-moral ele é o soberano, uma prerrogativa que os dois lhe dão. Assim, o casamento, uma das regras que demarcam o campo erótico (como transgressão sexual), é a condição de possibilidade para seu poder absoluto, então não pode reprimi-lo. Segundo, a aversão ao objeto do desejo que compõe a economia erótica por causa da ameaça do retorno à animalidade também não se sustentaria, pois o senhor é duplamente removido de sua natureza. Isto é, a divisão do trabalho reprodutivo e da própria escravatura, que permite que ele fique longe do trabalho – aqui a narrativa de senhor/escravo de Hegel funciona muito bem para descrever –, adia um engajamento imediato com a natureza, uma submissão a seus comandos que a necessidade de auto-reprodução – procriação e alimentação – exigiria. Finalmente, porque todas as mulheres do latifúndio estão legalmente disponíveis para ele, sua mulher e suas filhas através do casamento e suas escravas através da compra, a atração – esse momento do erótico no qual, mesmo que frágil, o objeto feminino do desejo tem grande importância, pois seu lindo corpo é tão irresistível que o sujeito masculino do desejo arriscará a morte, a quebra das regras que o constituem como humano para abraçar esse ser feminino irresistível – não tem lugar. Ao contrário da versão de Bataille, a versão de Freyre sobre o erótico não descreve uma transgressão. Enquanto é, do começo ao fim, possibilitada pela regulação, não é estabelecida como uma quebra de normas, mas é possível justamente porque o sujeito do erótico é também o sujeito soberano das regras. Por essa razão, não é um significante de produção sem acumulação, que Bataille25 25 BATAILLE, 1999. descreve como a atividade prolífica, efusiva, que engaja a morte, o dejeto, e o próprio sexo tudo o que é não-humano, porque está muito próximo do animal – porque concebe a vida como "o movimento tumultuado que explode e se consome... [cuja] explosão perpétua é possível em uma condição: que os organismos gastos dêem lugar aos novos, que entram na dança com novas forças".26 26 BATAILLE, 1999, p. 84-85. Desde o início, a erótica de Freyre pertence à lógica da reprodução regulada: a primeira regra, o casamento, a aliança que fundamenta o social, mas também a casa-grande como uma unidade jurídico-econômica; a escravidão, um modo de produção econômica na qual o corpo do trabalhador é uma propriedade legal; e mais importante, a histórica, na qual os direitos absolutos do patriarcado sobre os corpos dos escravos também incluem o direito de usar o corpo da escrava como instrumento sexual e o direito de reclamar como seus os filhos dessas uniões sexuais.

Estando a miscigenação no centro do texto nacional, o sujeito subalterno gendrado/racial é inscrito como exibindo uma dupla vulnerabilidade. Mais importante, a escrita do indígena e dos corpos femininos africanos escravizados como os instrumentos do desejo português tornam produtiva a violência que cria o sujeito brasileiro. De acordo com Freyre, a "promiscuidade" que caracteriza a sociedade colonial resultou de uma combinação do desejo incontrolado do próprio homem português com o fácil acesso que ele tinha ao corpo da escrava. Assim, enquanto o escravo e a mulher branca tinham sua sexualidade controlada pelo sistema patriarcal, o homem português e a escrava apareciam como os principais agentes de miscigenação (ao invés de agente e instrumento). "As mulheres negras ou mulatas", diz,

[eram] responsáveis pela precipitação da vida erótica e da dissolução sexual dos jovens brasileiros. Com a mesma lógica se poderiam responsabilizar os animais domésticos; a bananeira; as melancias... Quase todos eles eram os objetos sobre os quais a precocidade sexual do jovem brasileiro era, e ainda é, exercitada.27 27 FREYRE, 1987, p. 371.

O efeito mais importante dessa celebração da sexualidade incontrolada não foi apenas mascarar a violência inerente à escravidão. O subalterno gendrado/racial é duplamente vulnerável. Nem paixão (que embora não determinada pela razão institui um sujeito na medida em que a pessoa afetada é determinada por certo objeto), nem amor (que também se refere a um modo de afeição, mas que não parte dos limites da moralidade racional), nem consentimento (que é um privilégio do objeto racional autodeterminado) podem ser tomados para inscrevê-la como um sujeito transparente. Suas razões e paixões, atributos de quem deseja, de um sujeito, são escritos como irrelevantes na afirmação que a compara a uma bananeira, um objeto que deveria ser engolido – negado/desintegrado –, um objeto exterior cuja apropriação é necessária para a realização do desejo do português, aquela que ele necessitava para liberar o desejo incontrolado que marca sua força produtiva especial.

Inscrevendo o subalterno racial/gendrado como o objeto da luxúria do português, o texto de Freyre institui uma maneira de sujeição racial, que é, ao mesmo tempo, a própria condição de possibilidade para a escrita de uma trajetória de um "eu" transparente. Na democracia racial, a miscigenação (física e cultural) escreve a negritude e a africanidade como "resíduos" do espírito africano, capturados pelos antropólogos brasileiros companheiros de Freyre, para diferenciar o sujeito nacional. Isto é, tais "resíduos" não são características determinantes, porque a diferença racial dos negros integra a narrativa da trajetória temporal do sujeito brasileiro em vulnerabilidade, como a cultura africana "desaparecendo", que lhe confere características culturais não-determinadas (a culinária e o folclore), e como a mulher escravizada, cuja sujeição é duplamente vulnerável, determinada pelo exterior, a saber, por sua posição jurídico-econômica e por estar fora da lei (moral) do patriarcado, que, de acordo com a articulação psicanalítica do sexual, diferencia a humanidade da animalidade.

Dito de outra forma, a democracia racial poderia descrever a trajetória temporal do sujeito nacional para escrevê-la como uma história particular porque, em seu relato da miscigenação, a apropriação dos corpos femininos negros permite o emprego do desejo produtivo do português, que é necessário para a escrita de uma teleologia. No entanto, o significado escatológico da miscigenação é necessário aqui para escrever o mestiço, o sujeito brasileiro para significar somente a força produtiva do português. É apenas porque a democracia racial é um texto gendrado explícito, em que a escrava vulnerável escreve a força produtiva do português, que o uso do racial num texto normatizado pelo cultural (histórico e antropológico) poderia escrever a teleologia de um sujeito transparente (branco/europeu) mesmo se ele pudesse apenas ser articulado como um "eu" patriarcal. Essa versão bem-sucedida do sujeito brasileiro teve um preço. Uma vez que o "Espírito" da nação condensa a cultura européia, mas seu corpo (configuração social) retém as características físicas africanas e (nativas), nesta versão do texto brasileiro a negritude não pode significar um sujeito autodeterminado e produtivo, mesmo se subalterno. No entanto, exatamente porque a apropriação do corpo feminino negro tomava como premissa a idéia de que apenas a branquitude/o europeísmo significa o "eu" transparente, a negritude e a africanidade que seus descendentes herdam dela continuam como significantes perigosos de uma vulnerabilidade.

Dejeto

De maneira mais geral, o erotismo é contrário ao

comportamento habitual assim como o gasto é contrário à

aquisição. Se nos comportamos de acordo com a razão,

buscamos aumentar nossos recursos, nosso conhecimento,

ou, geralmente, nosso poder. Somos inclinados, usando vários

meios, a possuir mais. Nossa auto-segurança na esfera social

está sempre ligada ao comportamento que busca o

crescimento. Mas na febre da paixão sexual nos

comportamos de forma contrária: gastamos nossas forças

sem contabilizar, e perdemos substancial quantidade de

energia sem controle e sem ganho. O prazer sensual está tão

estreitamente ligado com a ruína que chamamos o momento

de seu paroxismo de "la petite mort." Conseqüentemente, os

objetos que evocam a atividade sexual para nós estão

sempre ligados a algum tipo de desordem.

– George Bataille, A parte maldita (The Accursed Share)

Esta versão do texto brasileiro está deslocada? Caso haja qualquer dúvida em relação à resposta correta a essa questão, em Guerra e paz, Ricardo B. Araújo28 28 ARAÚJO, 1994. oferece uma leitura "pós-moderna" dos textos de Freyre, que indica como as perigosas instituições de miscigenação ainda assombram os antropólogos brasileiros. Em sua leitura da versão de Freyre da democracia racial, Araújo desafia o que diferencia a sociologia de Freyre, primeiramente (mas não apenas) em termos de sua reescrita do texto brasileiro. Ele se opõe à "acusação" de que Freyre tenha usado a miscigenação para produzir uma imagem do Brasil como um "paraíso racial" – mascarando a brutalidade inerente à escravidão – argumentando que Freyre escreve o colonizador português como híbrido, enfrentando a tarefa de reconciliar suas tendências distintas. Não haveria problema nesse argumento se Araújo não tivesse colocado hybris (que ele traduz como excesso) no centro da sociologia freyreana. Para ser mais precisa, Araújo captura uma dimensão crucial da versão de Freyre da "democracia tropical", quando ele identifica hybris como um tropo consistente na construção que Freyre faz do português, do trópico e da escravidão brasileira. Mas a figura retórica que Araújo emprega para responder ao porquê de as tendências incongruentes permanecerem numa situação de equilíbrio incluindo aquela entre a natureza despótica e íntima das relações (sociais) do escravo – torna-se um correspondente interpretativo da violência apagada na leitura de Freyre da escravatura. Pois Araújo argumenta que "o excesso sexual é, de fato, o principal responsável pela criação de 'zonas de fraternização' [...] o que contrabalançou, até certo ponto, o despotismo típico da escravatura".29 29 ARAÚJO, 1994, p. 24-25. Que esse excesso permaneça como um atributo português, uma metáfora para a brutalidade, torna-se irrelevante quando Araújo sugere que é exatamente a perda dessa dimensão de intimidade entre senhores e escravos que caracteriza a modernização da sociedade brasileira. Mais importante, como o projeto de Araújo é recuperar Freyre como crítico do essencialismo, uma espécie de ancestral da cosmopolita e pós-moderna da modernidade, a apologia freyreana do hibridismo se repete na reapropriação de Araújo, assim como o 'objeto' do desejo incontrolado (excessivo) do português permanece sendo a condição de possibilidade não para a modernidade brasileira (tropical), como Freyre escreveu, mas para escrever o brasileiro como sempre já uma configuração social pós-moderna.

Na leitura de Araújo, o sujeito gendrado/racializado emerge outra vez em sua dupla vulnerabilidade. Em contraste, o reconhecimento da posição da escrava teria levado o autor a perceber que essa libido incontida (a força da miscigenação) é, de fato, outro momento (gendrado) de violência da relação (intrinsecamente violenta) senhor/escravo. Enquanto o desejo do sujeito feminino subalterno – paixão, amor e consentimento (ou falta dele) – não pode ser articulado no texto que (re)produz sua sujeição, sua posição silenciosa não é irrelevante.30 30 SPIVAK, 1994. Toda e qualquer leitura do contexto significante de seu apagamento deveria focalizar os seus efeitos produtivos. Se não o faz, atuará no sentido de seu apagamento, que, no caso do Brasil, articula o desejo de apagamento de cerca de metade da população. Quando a leitura pós-moderna de Araújo da democracia racial estabelece uma outra versão da demanda ética de eliminar o racial da gramática política moderna, ela apaga precisamente o fato de que a miscigenação tem operado apenas como uma solução para o dilema das elites brasileiras porque significa a obliteração da diferença racial. Somente através do reconhecimento de que esse dilema é produto das mesmas estratégias de significação estabelecidas para resolvê-lo, que escreveram o Brasil e seus habitantes sempre já levemente mais escuros para habitar o domínio da exterioridade, será possível formular estratégias emancipatórias que possam escrever um futuro não apenas para a grande maioria de seus habitantes, que nossa estratégia de sujeição racial escreveu não sempre já exterior, mas como chegando perto do momento da obliteração final. O que muitos hoje deploram como a violência irrestrita que está assombrando as elites brasileiras, levando-as a se esconder em carros blindados e condomínios de alta segurança e seqüestrando o futuro de gerações inteiras de negros e mulatos brasileiros, não é mais do que a última manifestação do desejo nacional de obliterar o povo brasileiro, que, independentemente do desejo da elite pela brancura, insiste em significar o contrário. O que sugiro aqui é que o excesso que Freyre escreve e Araújo rearticula é apenas algo a ser celebrado se não se consegue ler como o erótico, em Casa-Grande & Senzala, não é uma transgressão, mas um outro momento da regulação produtiva – no sentido utilitário que Bataille deplora. Mais importante, a celebração do sujeito social que ele produz, o significante da liberdade do português, de sua vontade de se engajar e sua atitude destemida perante o outro, pode apenas se sustentar se esquecemos que esse desejo produtivo é somente português, que escravos, homens e mulheres, constituem somente ferramentas, instrumentos de produção, e que, dentre as coisas úteis – o material bruto – que as escravas produziram estava o mestiço, um objeto condenado ao consumo, um excesso apenas necessário porque ao português faltavam atributos físicos indispensáveis à construção de uma civilização nos trópicos. Agora, no entanto, na medida em que as estruturas e os processos econômicos globais exigem menos e menos trabalho humano, quando menos material bruto é preciso para reproduzir a riqueza, o excesso finalmente atingiu o destino que a lógica utilitária proporciona, ele tornou-se um dejeto.

Recebido em outubro de 2005 e aceito para publicação em janeiro de 2006

Tradução de Maria Isabel de Castro Lima

Revisão da tradução por Simone Pereira Schmidt e Claudia de Lima Costa

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  • YOUNG, Robert. Colonial Desire London: Routledge, 1995.
  • 1
    Ao distinguir, em sua
    História da sexualidade, entre "uma simbologia do sangue" e a "análise da sexualidade" – na medida em que posiciona essa simbologia no arranjo epistemológico no qual o corpo constituiu a superfície da significação da autoridade do rei , Michel FOUCAULT, 1978, faz mais que ensaiar o banimento moral do conceito de raça do período pós-Segunda Guerra Mundial. O que sua afirmação ambígua, que reconhece a operação da "simbologia do sangue" no Nazismo e no aparato da biopolítica, faz é refigurar a pobreza analítica que resulta de que nem as "pós"-críticas do pensamento moderno, nem a teoria racial crítica estabelecem o racial para guiar seus desafios a visões onto-epistemológicas modernas. Não é de surpreender que as apropriações da noção de Foucault de poder produtivo, tais como a de Judith BUTLER, 1993, vinculariam muito as críticas de considerações existentes de sujeição de gênero que se apóiam em uma visão naturalizada da diferença sexual, enquanto novas considerações críticas de sujeição racial tais como em Michael OMI e Howard WINANT, 1994 conservariam a diferença racial como um atributo natural, divino. Para uma elaboração dessa crítica da visão predominante da sujeição racial, ver Denise SILVA, 2001, 2005, e no prelo.
  • 2
    Para uma já clássica crítica da suposição de que a transparência é o atributo distintivo do sujeito moderno, ver Gayatri SPIVAK, 1994.
  • 3
    Freyre, 1987.
  • 4
    O sujeito nacional, o construto que dá a precisão da dimensão histórica (moral) dessa figura, ocuparia um lugar privilegiado nas últimas décadas do século XIX, como discutem Benedict ANDERSON, 1983, Eric HOBSBAWN, 1994, e outros.
  • 5
    Ver SILVA, 2001, e no prelo, para uma crítica da lógica da exclusão.
  • 6
    YOUNG, 1995.
  • 7
    "Muitos romances do passado", ele discute, "exteriorizaram tais inseguranças e diferenças e estão preocupados com o encontro e incorporação da cultura do outro, seja de classe, etnicidade, ou sexualidade; eles sempre fantasiam cruzá-la" (YOUNG, 1995, p. 3).
  • 8
    "Linguagem e sexo", ele alega, "constituem os predominantes
    loci de compromisso com essa afirmação de formas 'híbridas' igualmente produzidas", que "foram vistas como incorporação de formas ameaçadoras de perversão e degeneração e tornaram-se a base de uma extensão metafórica sem fim no discurso racial do comentário social" (YOUNG, 1995, p. 4).
  • 9
    YOUNG, 1995, p.108.
  • 10
    Hegel, 1977.
  • 11
    HEGEL, 1977, p.105. Itálicos no original.
  • 12
    HABERMAS, 1987.
  • 13
    Freud, 1940.
  • 14
    FREUD, 1940, p. 158.
  • 15
    SILVA, 2001, e no prelo.
  • 16
    BATAILLE, 1993.
  • 17
    Não vou me envolver em uma crítica da apropriação de Bataille da tese de Lévi-Strauss de que o tabu do incesto é produto do social, e de que a circulação de mulheres produz alianças que permitem a existência social.
  • 18
    BATAILLE, 1993, p. 48.
  • 19
    FREYRE, 1987.
  • 20
    FREYRE, 1987, p. 283.
  • 21
    SILVA, no prelo.
  • 22
    FREYRE, 1987, p. 357.
  • 23
    FREYRE, 1987, p. 52.
  • 24
    FREYRE, 1987, p. 159.
  • 25
    BATAILLE, 1999.
  • 26
    BATAILLE, 1999, p. 84-85.
  • 27
    FREYRE, 1987, p. 371.
  • 28
    ARAÚJO, 1994.
  • 29
    ARAÚJO, 1994, p. 24-25.
  • 30
    SPIVAK, 1994.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      30 Ago 2006
    • Data do Fascículo
      Abr 2006

    Histórico

    • Recebido
      Out 2005
    • Aceito
      Jan 2006
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