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Editorial

EDITORIAL

É sempre com renovado entusiasmo que apresentamos mais um número da REF. Acompanhar a trajetória dos artigos, da submissão até sua publicação, faz com que nossa equipe permaneça em constante contato com os mais diversos vieses dos estudos feministas e de gênero, e com abordagens sempre instigantes e originais, em áreas que se complementam e se cruzam. Os artigos aqui reunidos ilustram bem essa variedade, trazendo estudos que abrangem desde arte e cultura de massas até sexualidade e políticas sociais.

Em seu trabalho sobre Ofélia, Márcia Tiburi explora a relação entre a Ofélia do Hamlet shakespeareano e suas representações pictóricas, especialmente no século XIX. Considerando o discurso imagético como uma invenção do real, explora o caráter logocêntrico que universaliza a personagem como "a mulher" e a congela em objeto inerte, metáfora da própria imagem.

Também com foco na objetificação feminina, Marcio Markendorf faz uma avaliação crítica da "star" e da "diva", figuras que se tornaram elementos centrais da cultura de massas e dos mass media, como ícones inseridos "no repertório das formas de consumo ocidentais" do século XX.

No artigo que segue, Daniel Eduardo Jones analisa as expectativas e experiências relativas à primeira relação sexual de adolescentes, a partir de entrevistas com jovens de classe média, entre 15 e 19 anos, residentes em uma cidade da Patagônia argentina. Com base nos testemunhos, verifica a permanência de assimetrias entre os papéis esperados para homens e mulheres, o que pode resultar em atitudes coercitivas, dependendo do tipo de relação entre os pares.

Em "Divorciados, na forma da lei: discursos jurídicos nas ações judiciais de divórcio em Florianópolis (1977 a 1985)", Marlene de Fáveri e Teresa Adami Tanaka examinam os primeiros processos que se seguiram à Lei do Divórcio implantada no Brasil. Argumentam as autoras que, a despeito de algumas manifestações desfavoráveis, a lei foi recebida com tranquilidade como forma de legalizar situações já existentes. Ao observar os discursos jurídicos, entretanto, constatam um tratamento diferenciado a mulheres e a homens, notando-se a reprodução de valores prescritos pelo senso comum que sustentam a desigualdade nas relações de poder marcadas pelo gênero.

A partir da investigação do papel de um grupo de mulheres dentro da comunidade de software livre na Colômbia (Colibri), Tania Pérez Bustos problematiza o modo pelo qual a etnografia feminista contribui na (re)construção do gênero, como uma categoria analítica, nas próprias realidades sociais que analisa. Trata-se, segundo a autora, de uma delicada questão epistemológica, já que leva a refletir sobre como práticas de pesquisa podem legitimar formas mais, ou menos, inclusivas de se perceber o mundo.

A questão da invisibilidade feminina é abordada por Luiz Antônio Bogo Chies e Leni Beatriz Correia Colares, em estudo realizado na 5.ª Região Penitenciária do Rio Grande do Sul com mulheres confinadas dentro de presídios masculinos. A partir de uma análise das dinâmicas carcerárias, verificam que o acesso aos espaços, a distribuição do trabalho, a aplicação dos castigos e a definição das regras disciplinares são referenciados por uma orientação masculina. Nesse contexto, as mulheres são duplamente punidas, pois, além de terem suas necessidades específicas desconsideradas, seus corpos são utilizados como dispositivo de controle do corpo masculino.

Em "Transversalidade de gênero e políticas sociais no orçamento do estado de Mato Grosso", Rosângela Saldanha Pereira, Xavier Rambla, Cássia Daiane Ciriaco e Kamila Paceliuka Silva analisam e discutem a política social proposta no Plano Plurianual do Governo de Mato Grosso à luz do enfoque transformador (orientado às pessoas) e da teoria feminista. Ao verificar em que medida o orçamento público e as políticas sociais incorporam a transversalidade gênero, que parcela do orçamento é destinada para as políticas sociais com enfoque de gênero e o que foi efetivamente realizado, buscam, também, refletir sobre até que ponto o governo local está observando o compromisso político assumido com o Governo Federal de enfrentar as desigualdades de gênero e de realizar a gestão transversal de políticas públicas explicitadas no Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.

Concluindo a seção de artigos, Cássia Maria Carloto e Silvana Aparecida Mariano refletem sobre a relação entre público e privado na aplicação de políticas de assistência social, tendo por foco a família e o papel atribuído às mulheres. Ao elegerem a família como principal espaço de sociabilidade, tais políticas não viabilizam uma completa cidadania às mulheres ao restringir seu acesso à vida política propriamente dita, entendida como participação ativa nas discussões e deliberações dos assuntos coletivos, e à participação no mercado de trabalho por meio de atividades remuneradas e visíveis.

A relação entre mulher e trabalho é mais amplamente discutida nos vários artigos que compõem a seção temática apresentada a seguir. Coincidentemente, na semana em que escrevemos este Editorial, a revista Newsweek 1 1 BENNETT, Jessica; ELLISON, Jesse. "Women Will Rule the World." Newsweek, 12 July 2010, p. 33-37. traz um interessante artigo prognosticando que a partir da próxima década as mulheres dominarão o mundo profissional como consequência da recessão econômica dos anos de 2007 e 2008. Segundo a matéria, enquanto o desemprego atingiu em cheio a força de trabalho masculina, as mulheres passaram a encabeçar a lista das empresas emergentes e começam a se firmar como executivas e empreendedoras. Seja como for, existem ainda muitos problemas a resolver antes que a utopia da igualdade econômica se torne realidade.

A seção de artigos temáticos reúne vários textos apresentados à REF que se referem às ocupações de mulheres ligadas a profissões, trabalho e cotidiano. De acordo com sua organizadora, Cristina Scheibe Wolff, mostrou-se conveniente reunir as reflexões sobre esses temas, em face dos dados resultantes de várias pesquisas divulgadas nos últimos anos apontando para a persistência de muitos níveis de desigualdades entre homens e mulheres no mundo do trabalho e das profissões formais.

Como lembra Cristina, citando Michelle Perrot, a própria "'mixidade' de emprego não é jamais indiferenciação, mas uma nova hierarquia de diferenças".2 2 WOLFF, Cristina Scheibe. "Profissões, trabalhos: coisas de mulheres". Revista Estudos Feministas, v. 18, n. 2, p. 504, 2010. Essa hierarquia de diferenças se evidencia quando são analisadas profissões e atividades tradicionalmente consideradas masculinas, como o trabalho na construção civil, a participação na política, ou nas forças armadas, mas está presente também em outras profissões do mercado de trabalho em que as duplas jornadas colocam as mulheres em condições de desigualdade, mesmo quando contribuem majoritariamente para a renda familiar. Tais desequilíbrios ficam ainda mais evidentes quando se analisam as categorizações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), que atrelam a concepção de trabalho à execução de atividade remunerada, classificando um grande montante de mulheres brasileiras como inativas, mesmo que sejam elas as responsáveis quase exclusivas pelo trabalho doméstico. São essas algumas das preocupações de Paula Viviane Chies, Maria Rosa Lombardi, Regina Madalozo, Sergio Ricardo Martins, Ludmila Shiratori, Clara Araújo, Rebeca Buzzo Fertrin e Lea Maria Leme Strini Velho, cujos artigos são apresentados por Cristina Wolff.

Em seu ensaio, "Mulheres cientistas: aspectos da vida e obra de Khäte Schwarz", Eva Blay busca recuperar figuras de mulheres cientistas, subsumidas nos registros oficiais brasileiros. A partir de breves traços biográficos de quatro cientistas arroladas em página do Instituto Biológico de São Paulo na Internet, apresentadas numa galeria de Grandes Nomes constante de 22 pessoas das quais 18 são homens, Blay, procurando outras cientistas que atuaram no IB, encontra Khäte Schwarz, bióloga judia natural da Áustria que migrou para o Brasil em 1938. A autora detém-se na análise de relatos de Schwarz, entrevistada por pesquisadoras paulistas em 1981 e 1982, e que deixou, além de inúmeros artigos publicados em periódicos científicos nacionais e estrangeiros, textos autobiográficos datilografados.

A personagem que emerge desse ensaio antecipa a vivência de situações de diáspora, analisadas na entrevista publicada a seguir, embora referidas a outros tempos, bem como questões relativas ao trabalho e profissão femininos, na seção de artigos temáticos. Khäte Schwarz teve de estudar depois de casada, pois as mulheres de sua época deviam casar-se, tendo-se doutorado em Biologia, titulação rara para as mulheres de então. Saiu da Áustria com o marido e o filho pequeno devido à situação dos judeus na Europa sob a ameaça da guerra, vagando por vários países antes de conseguirem entrar no Brasil na ditadura de Getúlio Vargas. Aqui só começou a exercer sua profissão aos 50 anos. Nas entrevistas Schwarz fala da emigração, da vida num país estrangeiro, família, amizades e trabalho; nos textos inéditos ela reflete também sobre ciclo de vida e envelhecimento, passando do tema mulheres na ciência para um conhecimento sobre a vida de mulheres.

Saskia Sassen, entrevistada por Carmen Sílvia Rial, é professora na Columbia University e no London School of Economics. Apresentada pela entrevistadora como uma das mais brilhantes cientistas sociais contemporâneas, ela discorre sobre alguns dos temas que ocupam suas reflexões, como globalização, cidade global, processos de imigração, transformações do estado neoliberal no contexto transnacional, gênero e estratégias de gênero. O diálogo de ambas se detém em temas que Saskia caracteriza como complexos, como a questão dos direitos humanos no mundo globalizado, em que a entrevistada aponta o papel dos mais vulneráveis como impulsionadores das leis que buscam estabelecer direitos. A entrevistada discorre, ainda, sobre os efeitos da emigração nas vidas das mulheres migrantes e sobre a questão da imobilidade no mundo contemporâneo. Embora, pelo uso de novas tecnologias, existam imobilidades que são flexíveis, há também imobilidades subjetivas de pessoas que poderiam se deslocar. A entrevista trata também de questões como a feminização da sobrevivência, o tráfico de mulheres, trocas interculturais de mulheres em cidades globais, as passagens por fronteiras armadas. Constitui-se num importante documento sobre temas que falam da contemporaneidade.

Fecham este número seis resenhas de livros que tratam da violência de gênero e de diferentes perspectivas sobre história social. Agradecemos às/aos resenhistas, autoras/es, pareceristas, participantes da equipe editorial da REF, e a nossas leitoras e leitores pelo continuado apoio.

Mara Coelho de Souza Lago

Susana Bornéo Funck

  • 1
    BENNETT, Jessica; ELLISON, Jesse. "Women Will Rule the World."
    Newsweek, 12 July 2010, p. 33-37.
  • 2
    WOLFF, Cristina Scheibe. "Profissões, trabalhos: coisas de mulheres".
    Revista Estudos Feministas, v. 18, n. 2, p. 504, 2010.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      27 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Ago 2010
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