Resumo:
Diante da crescente serialização subjetiva e captura biopolítica dos corpos, das práticas estéticas e desejos, faz-se cada vez mais necessário pensarmos na expansão inventiva de nosso território subjetivo como forma de resistência e criação. É diante desse contexto de captura e docilização que recorremos ao feminismo pós-estruturalista, para pensarmos uma possível estética feminista enquanto força afirmativa que tanto desconstrói a ideia de sujeito/a e subjetividade tradicionais quanto produz outras figurações para os corpos e para as subjetividades. Nesse sentido, lançaremos nosso olhar para duas artistas paranaenses, Elisa Riemer e Fernanda Magalhães, para localizar, em seus trabalhos, um artivismo feminista que em um só tempo provoca a desconstrução e a construção de outras relações com os corpos, com as práticas e com a subjetivação.
Palavras chave:
estética feminista; figurações pós-identitárias; artivismo
Abstract:
Given the growing subjective serialization and biopolitics capture of bodies, of the aesthetic desires and practices, it is increasingly necessary to think about the inventive expansion of our subjective territory as a form of resistance and creation. It is against this capture and docilization context that we recall the poststructuralist feminism to think about a possible feminist aesthetics as an affirmative strength that both deconstructs the traditional idea of subject and subjectivity as it produces other figurations to bodies and subjectivities. In this sense, we will take a closer look to two female artists from Parana-Brazil, Elisa Riemer and Fernanda Magalhães. We aim to talk about the relation among artvism, feminism and art in/through their work. These works of art causes the (de)construction and invention of new relations with (other) bodies, with practices of existence and subjectivation.
Keywords:
Feminist aesthetics; Post-identity Figurations; Artvism
Introdução
Este artigo tem como foco ressaltar as contribuições de algumas teses e provocações lançadas por autoras relevantes aos ditos Estudos Feministas, em relação a uma tendência do feminismo que defende a naturalização do sexo, mas, sobretudo, em torno da crítica às identidades de gênero. Tal crítica faz-se necessária por entendermos que esta mesma identidade, por séculos, enquadrou as pessoas em papéis sociais que reificam desigualdades. Após um breve passeio pelas provocações de algumas feministas libertárias sobre os modelos de feminilidade, entramos no terreno da arte para pensar a relação entre arte e política, sintetizada no termo artivismo. É nesse território que pensaremos também uma possível estética feminista, tendo como foco de análise o trabalho de duas artistas plásticas paranaenses, Elisa Riemer e Fernanda Magalhães. O trabalho das artistas nos interessa, pois neles conseguimos vislumbrar uma arte de existir enquanto estilísticas de existências, nas quais a subjetividade é lugar de múltiplos posicionamentos, afetos e sensibilidades que se dão no campo social e em nossa interação/criação com ele. Notamos, nos trabalhos das artistas, um movimento de desnaturalização dos corpos, que passam a ser apropriações performáticas singulares.
Assim, tais artistas, com seus posicionamentos estéticos, figuram formas e modos possíveis de relações ético-políticas que podemos estabelecer com nossos corpos: para além das designações discursivas hetero-euro-andro centradas, podemos também nos relacionar com eles como fontes de resistências ao poder, às desigualdades, valorizando mais as inorganicidades, as aformidades, as sensações, as experiências, do que as representações capitalísticas territorializantes que capturam e encerram nossos corpos em carapuças identitárias. Esse novo posicionamento encontra-se no hibridismo arte e ativismo, aqui denominado de artivismo. Nesse contexto, o artivismo embebido numa estética feminista, torna-se um potente conceito para pensarmos a relação da arte, da política e do feminismo dentro de uma perspectiva das novas tecnologias, a serviço da transformação social, difusão e divulgação de imagens que colocam as mulheres no centro da produção visual contemporânea.
Em termos gerais, a ênfase na identidade e as estratégias biopolíticas de controle e docilização são artifícios políticos naturalizados social e subjetivamente que operam, de forma sutil ou declarada, no cerceamento e despotencialização de nossos territórios de existência. Operam para limitar e/ou dirigir nossas práticas de liberdade, reduzindo-as às experiências calculadas e planejadas e fazendo com que nos creiamos livres e autônoma/os. É diante desse panorama que se faz necessário instaurar uma subversão da identidade, uma reapropriação do corpo enquanto território de existência e a inclusão de perspectivas de análise que procedam por uma política da diferença. Como protagonistas dessa luta, juntamente com outros movimentos sociais, podemos citar os feminismos, com destaque para algumas vertentes como o feminismo libertário, latino-americano, negro, pós-estruturalista, enquanto crítica teórica e como ativismo social que, mesmo em mutação não consentiu com as excludentes políticas de governabilidade.
De acordo com Stuart Hall (2006HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006., p. 44), o movimento feminista se alinha aos "novos movimentos sociais" que eclodiram nos anos 1960 "[...] juntamente com as revoltas estudantis, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos civis, os movimentos revolucionários do 'Terceiro Mundo', os movimentos pela paz e tudo aquilo que está associado com '1968'“. Estes movimentos inauguram a definitiva inclusão das identidades culturais e sociais excluídas da agenda política mundial, por serem negros, 'pobres', indígenas, mulheres, gays, lésbicas, latino americano, etc. Todos esses "outros", problematizam o estigma de exclusão e inferioridade que marcam suas identidades culturais e reivindicam lugares e posições de voz política e existencial, colocando em questão o modo de funcionamento que exclui o/a outro/a a partir de um referencial identitário dominante.
Margareth Rago, expoente libertária das memórias dos anarco-feminismos expandidos no início do século XX, aponta para as transgressões e pioneirismo de Maria Lacerda de Moura, das Libertárias, do grupo que ficou conhecido como “Mujeres Libres” na Espanha e de Luce Fabbri, a anarquista ítalo-uruguaia. No contexto nacional, ela diz que os Jornais ‘Brasil Mulher’ (1975-1980) e ‘Nós Mulheres’ (1976-1978) colaboravam na sensibilização das mulheres trabalhadoras utilizando a linguagem marxista, que logo em seguida seria questionada, no início dos anos 1980, com a ‘explosão desconstrutivista’:
Nesse momento de crítica acentuada à racionalidade ocidental masculina, já não é mais definida apenas como burguesa, partiu-se para a afirmação do universo cultural feminino, em todas as dimensões possíveis. Isto implicava, no campo conceitual e teórico, a emergência de uma linguagem especificamente feminina e daquilo que se considerou como uma epistemologia feminista, suficientemente inovadora em suas conceitualizações e problematizações para apreender as diferenças. Fundamentalmente, o feminismo aproxima-se das correntes do pós-modernismo, voltadas para a crítica da racionalidade burguesa ocidental (RAGO, 1998RAGO, Margareth. “Epistemologia feminista, gênero e história”. In: GROSSI, Miriam Pillar; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres, p. 25-37, 1998., p. 36-37).
A autora mostra que o período foi bastante fecundo nas discussões feministas, mas aponta a década de 1920/30, no Brasil, como um momento rico na produção de debates, conceitos e possibilidades para os feminismos. Diz Rago (1998RAGO, Margareth. “Epistemologia feminista, gênero e história”. In: GROSSI, Miriam Pillar; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres, p. 25-37, 1998.) que, de um lado havia as Liberais e, de outro, as Feministas Libertárias, criando práticas e teorias fundadas no solo das preocupações com as desigualdades entre homens e mulheres. Se, para as liberais havia uma preocupação em torno dos problemas das mulheres burguesas, para as libertárias não havia negociação com as Instituições burguesa; suas lutas eram para mudar as estruturas viciadas: Estado, Igreja, família. Rago vislumbrava, nas lutas empreendidas principalmente pelas Libertárias, uma antecipação das discussões que emergiriam nos anos posteriores: “a bandeira da união sexual, fundada no amor livre, que será levantada na década de 1970, já aparecia na imprensa anarquista, no Brasil, desde os primeiros anos do século” (RAGO, 1998RAGO, Margareth. “Epistemologia feminista, gênero e história”. In: GROSSI, Miriam Pillar; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres, p. 25-37, 1998., p. 28).
A autora (RAGO, 1998RAGO, Margareth. “Epistemologia feminista, gênero e história”. In: GROSSI, Miriam Pillar; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres, p. 25-37, 1998.) mostra que quarenta anos após o ‘arrefecimento’ dos ideais libertários, após a conquista do voto, após a vitória dos padrões e das normas sexuais e da cristalização da domesticidade, emerge uma crítica radical ao modelo de feminilidade e ao modelo familiar então vigente. Dessa forma, nos anos 1960-70, ao lado de outros movimentos, os feminismos adquirem importância ao questionarem a organização sexual e social de um mundo hierarquizado.
O ativismo feminista nas artes visuais
No campo das artes visuais, foi grande a influência do ativismo feminista, desdobrando-se no que hoje podemos chamar de artivismo1 1 Atualmente, muitas artistas e pesquisadoras feministas tem se autodenominado artivistas e assumido sem ressalvas a arte como ferramenta de luta e resistência. Cito aqui Marian Pessah e Elisa Riemer como artivistas, e Patricia Lessa como pesquisadora que tem levado para dentro da academia o artivismo como forma de produção de conhecimento e meio de reivindicação. Marie Hélène Bourcier (2015) também utilizou o termo para dialogar com as propostas pós-pornô. . Seu principal efeito foi imprimir um tônus social e político à arte. Várias artistas, influenciadas pelo feminismo, levantaram inúmeros questionamentos acerca da natural dominação masculina na arte, fazendo ver o caráter excludente e discriminatório daquele estado de coisas. Entre as questões levantadas citamos: a predominância de artistas homens e a quase ausência de artistas mulheres na história da arte; a tácita e naturalizada desvalorização das mulheres artistas nesse cenário, tanto por parte dos homens quanto das mulheres; e a escassa presença das mesmas no cenário artístico da década de 1960 e 1970.
O século XIX é responsável pelo desenvolvimento de um discurso médico normativo moralizante e com ele a higienização nas relações afetivo-sexuais, que apaga outras formas de relação. Nesse contexto, a figura da mulher como autora e produtora de subjetividade, ou mesmo a produção de outras figurações para os corpos femininos como a relação mulher/mulher, é silenciada, menos valorizada e não problematizada enquanto tal. Marie-Jo Bonnet (1998BONNET, Marie-Jo. La reconnaissance du couple homosexuel: normalisation ou revolution symbolique? Paris, 1998. Disponível em: Disponível em: http://semgai.free.fr/contenu/textes/articles.html
. Acesso em 11/2003
http://semgai.free.fr/contenu/textes/art...
, p 6-7) cita o exemplo da pintura Le Buisson (O arbusto, 1910-1911), de Marcel Duchamp, que retrata um casal de mulheres nuas, uma obra que não pode ser considerada subversiva, e que, para a autora, é banalizada com um título, que cria uma disjunção entre tema e título dando a entender que mais que o tema é o aspecto iconoclasta do artista que interessa. Nesse sentido, a autora acrescenta: “quando a imagem desaparece, é o discurso dos gêneros que ressurge e, com ele, o risco da disjunção dos sexos quando não origina o velamento completo das relações mulher/mulher.” (BONNET, p. 7)
A temática do casal de mulheres nas Escolas de Artes em Paris à época, torna-se bastante presente, fazendo eco aos movimentos feministas e transformando as imagens das mulheres. Porém, mesmo com essa explosão de imagens, são os artistas homens que terão as honras e os títulos, como é o exemplo de Duchamp (BONNET, 1998BONNET, Marie-Jo. La reconnaissance du couple homosexuel: normalisation ou revolution symbolique? Paris, 1998. Disponível em: Disponível em: http://semgai.free.fr/contenu/textes/articles.html
. Acesso em 11/2003
http://semgai.free.fr/contenu/textes/art...
). Bonnet vê, igualmente na expressão artística, as marcas de gênero. Ao analisar a obra do casal de mulheres, Claude Cahun (pseudônimo de Lucy Schwob, 1894-1954) e Marcel Moore (pseudônimo de Suzanne Malherbe, 1892-1972) perguntam-se: “por que elas duas adotam pseudônimos masculinos? Para contornar a misoginia do mundo literário ou porque a identidade é precisamente o que lhes faz falta?” (BONNET, 1998). Muitas outras artistas como George Sand, irão adotar nome e vestuários masculinos para entrar no mundo artístico tradicionalmente masculino. Fica claro, portanto que, se a imagem abre horizontes de sentidos, a inserção da ou do artista em um mundo gendrado limita ou amplia suas possibilidades de expressão.
Em resistência às frequentes limitações de gênero impostas às mulheres, podemos pensar as “artes da existência” no feminismo, artes de existir tal como definida por Rago (2013) a partir de suas incursões no pensamento de Foucault, enquanto estilísticas da existência, enquanto práticas de liberdade e de relações inventivas com o mundo. Os discursos feministas libertários, como expressão de outra arte de existência, vislumbram modos de transformar as experiências individuais e sociais com o mundo, a vida e a produção de saberes, mostrando formas de resistência às normatizações e disciplinamentos dos corpos. Assim, ajudam a pensar que vestir outras formas de ser mulher, incluindo aí uma masculinidade sem homens, pode ser uma forma de arte para (trans)formar a si e criar uma estética de si que reverbere socialmente, rompendo binarismos.
Nas décadas de 1970 e 1980 era frequente o uso do corpo nu como forma de reapropriação política do próprio corpo, assim como ressignificação do espaço cotidiano enquanto extensão relacional do corpo. Num só tempo, também a partir dos jogos performativos da vestimenta, as pessoas, independentemente da sua orientação sexual, puderam ter acesso a novos modos de romper os laços entre a compulsão para a heterossexualidade e a dominação de um gênero sobre o outro. Nessa ruptura, o que conta é a perda de referência ou a encenação enquanto ficção política de um gênero específico (Judith HALBERSTAM, 2008HALBERSTAM, Judith. Masculinidad Femenina. Espanha: Egales, 2008.). Para a autora, as masculinidades femininas são importantes estratégias para transgredir os gêneros, mostrando suas aparições em diferentes momentos da história, por meio das artes com destaque para a literatura, a fotografia e o cinema.
O trabalho destas pensadoras e artistas alinha-se com o que podemos chamar de pós-modernidade, que tem como uma de suas primeiras características, a “crise da identidade” (HALL, 2006HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.). Os tempos atuais são tempos de descentramento, de desterritorialização das certezas sobre nossos referentes sociais, culturais, corpos e percepção de si. A própria definição de humano é posta em cheque, de modo que o voltar-se para o corpo como matéria expressiva da arte ou mesmo o seu suporte, assume tanto um posicionamento político de afirmação de si, de sua potência, quanto de sua redefinição na e pela multiplicidade. Como aponta Thiago Cardassi Sanches:
Entre as áreas de estudos responsáveis por uma série de descentramentos recentes na noção de humano, encontramos os animal studies que evidenciam a condição animal do homo sapiens sapiense, questionam o antropocentrismo que demarca a supremacia humana sobre as outras espécies; os estudos queer e as teorias feministas, que denunciam a identidade de gênero e sexual enquanto representações socialmente construídas, que pretensamente naturalizam o corpo e a sexualidade; a biotecnologia, que, há décadas, tem mapeado o código genético do humano e de outras espécies, realizando experiências de modificação de suas propriedades, seja na cura de doenças, no controle de pragas, ou mesmo no fenótipo das espécies; e a cibernética e nanotecnologia, que tem mediado nossa relação direta com o mundo, proporcionando conforto, maximizando a produtividade, potencializando nossos corpos, transmitindo um enorme volumes de dados por milésimos de segundo, conectando pessoas em rede, e alterando nossa percepção em relação ao mundo visível e não visível ao miniaturizar a tecnologia ao ponto de permitir que ela coexista dentro de nós. (SANCHES, 2015SANCHES, Thiago Cardassi. Os replicantes não vão para o céu: agenciamentos humano-máquina e a produção de subjetividades no filme Blade Runner. Dissertação (Mestrado em Comunicação). Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Estadual de Londrina, 2015, 164p., p.53-54)
Desde o início do século XX, no Ocidente, notadamente desde a década de 60, com as contribuições da psicanálise, da filosofia do pós II Guerra Mundial, dos Estudos Culturais e das contribuições antro e sociológicas, eclodiu, um repensar sobre a condição humana no planeta e também do próprio conceito de humano. Para a filósofa e feminista Rosi Braidotti, a pós-modernidade traz consigo a possibilidade do pós-humano. Trata-se de um pós-humano não humanista e mais conectado com as sensações, o campo sensível, as máquinas, as maquinarias, o sensorial, a desconstrução da memória e a retenção identitária; menos interessada em questões sobre origens ou identidades, o pós-humano busca experimentar as possibilidades de relações entre os seres visíveis e invisíveis que nos rodeiam (BRAIDOTTI, 2013BRAIDOTTI, Rosi. The Posthuman. Cambridge: Polity, 2013. 230 p. ISBN 978-0-7456-4157-4.).
Podemos dizer que, imersas nesses questionamentos provocados pelas feministas dentro do contexto do pós-humanismo, muitas artistas visuais incorporaram essas questões em suas práticas, mesmo não se autodenominando feministas. Nos Estados Unidos, onde a arte de estética feminista se destacou cultural e politicamente, enquanto grupo e organização, é mais fácil localizar artistas que se auto intitulam feministas. Por outro lado, no Brasil, por exemplo, onde não houve uma organização nesse sentido, muitas artistas não se autonomeavam feministas, mas produziam obras muito íntimas e próximas daquilo que a arte de estética feminista americana, por exemplo, fazia.
Por uma estética feminista
Para fugir de uma possível armadilha identitária, usaremos o termo estética feminista (Silvia BOVENSCHEN, 1985BOVENSCHEN, Silvia. “Existe uma estética feminista?” In: ECKER, Gisela (Org.). Estética Feminista. Barcelona: Icaria Editora, 1985. pp. 21-58.; Roberta STUBS, 2015STUBS, Roberta. A/r/tografia de um corpo-experiência: arte contemporânea, feminismos e produção de subjetividade. Tese (Doutorado em Psicologia). Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) Campus de Assis, 2015, 277 p.) para designar um certo modo de produção artística que, independentemente de estar ou não ligada a movimentos feministas, possue uma força inventiva/afirmativa enquanto estratégia ética/estética/política de subversão, resistência e criação de possibilidades de vida2 2 Utilizar o termo “arte de mulheres”, ou “mulheres artistas”, ou “arte feminina” pode incorrer em algumas dúvidas, incertezas e naturalizações identitárias que não queremos reforçar nesse texto. Uma arte feminina, por exemplo, traz consigo uma série de naturalização no que tange aos atributos da mulher e de uma suposta feminilidade que não queremos reproduzir: frágil, delicada, sensível, etc. Ao mesmo tempo, nem toda mulher artista se propõe a ter sua obra com um campo de problematizações sociais, políticas, estéticas e culturais. Muitas artistas se alinham mais à arte-reprodução do que à arte- problematização/criação. No nosso entendimento, todos os termos acima citados estão carregados e contaminados por atributos identitários que mais limitam e estereotipam nosso campo de visão do que o ampliam. . Termo que se amplia para além do campo artístico. Segundo Margareth Rago (1998RAGO, Margareth. “Epistemologia feminista, gênero e história”. In: GROSSI, Miriam Pillar; PEDRO, Joana Maria (Orgs.). Masculino, feminino, plural. Florianópolis: Mulheres, p. 25-37, 1998.), muitas mulheres, independentemente de serem artistas, mas principalmente aquelas que se identificam como feministas, tem criado "novos padrões de corporeidade, beleza e cuidados de si, propondo outros modos de constituição da subjetividade, ou o que bem poderíamos chamar de estéticas feministas da existência" (idem, p. 8).
Nesse sentido, em uma aproximação entre arte e modos de viver, ao invés de arte feminista, preferimos o termo estética feminista, justamente por entender que, concordando com Bovenschen (1985BOVENSCHEN, Silvia. “Existe uma estética feminista?” In: ECKER, Gisela (Org.). Estética Feminista. Barcelona: Icaria Editora, 1985. pp. 21-58.), uma possível estética feminista teria como característica fundamental a liberação da imaginação da mulher. Essa liberdade imaginativa caracteriza o movimento feminista como um todo e, com um tônus político, figura nas artes visuais por intermédio de algumas linhas entre elas: a recuperação histórica das artistas mulheres; o uso do corpo de forma autônoma e com um cunho reivindicatório; a desconstrução de estereótipos; a incorporação de atividades estritamente relacionadas ao universo feminino, como o bordado e a costura, assim como o uso de elementos ligados ao cotidiano e à rotina; e a problematização combinada de questões de gênero, raça, etnia e classe social (Roberta STUBS, 2015STUBS, Roberta. A/r/tografia de um corpo-experiência: arte contemporânea, feminismos e produção de subjetividade. Tese (Doutorado em Psicologia). Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) Campus de Assis, 2015, 277 p.).
Tratam-se, portanto, de estéticas feministas da existência como formas de marcar um lugar no mundo, imprimindo um modo de criar, escrever e reinscrever-se no cotidiano (RAGO, 2013). Desse modo, arte e vida se irmanam compondo experiências estéticas muito peculiares e localizadas. Assim como outros grupos denominados “minorias”, as feministas buscavam criar uma linguagem própria, capaz de orientar seus rumos na construção da identidade das mulheres como novos atores políticos (RAGO, 1998). Nesse sentido, uma estética feminista tem como característica um elo indissociável entre arte e vida, entre arte e experiência, entre arte e produção de subjetividade. Rago (2007RAGO, Margareth. Anarquismo e feminismo no Brasil: audácia de sonhar: memória e subjetividade em Luce Fabbri. 2. ed. (revisada e aumentada). Rio de Janeiro: Achimé, 2007.) acrescenta que as mulheres trazem uma experiência histórica e cultural diferenciada da masculina, uma experiência marginal, da construção miúda, da gestão do detalhe, que se expressa na busca de uma nova linguagem. Assim fazendo, inovam libertariamente a multiplicidade de sujeitos/as sociais.
Nesse sentido, a partir da experiência singular de ser mulher, uma estética feminista produz linhas de subjetivação que apontam para horizontes plurais e libertários. Sobre esse aspecto, concordamos com Tereza De Lauretis (1994LAURETIS, Teresa De. “A tecnologia do gênero”. In: Heloisa Buarque de Hollanda (Org). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. p. 206-242, Rio de Janeiro: Rocco, 1994.), quando concebe a subjetividade como um lugar de posições múltiplas e variáveis dentro do campo social, ao mesmo tempo em que entende a experiência como o resultado de um conjunto complexo de determinações e de lutas, um processo de renegociações contínuas das pressões externas e das resistências internas. Segundo ela, “Experiência é o processo pelo qual, para todos os seres sociais, a subjetividade é construída. Através desse processo a pessoa se coloca ou é colocada na realidade social (...)” e na história (LAURETIS, 1994LAURETIS, Teresa De. “A tecnologia do gênero”. In: Heloisa Buarque de Hollanda (Org). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. p. 206-242, Rio de Janeiro: Rocco, 1994., p. 213). Experiência é, pois, um conceito-chave nessa perspectiva. O cotidiano do lugar social das mulheres, incluindo o trabalho doméstico, os cuidados das crianças, o emprego mal remunerado, a dependência econômica, a violência sexual e sua exclusão de cargos de poder, ganhou um novo significado por meio do olhar feminista, na medida em que deixou o domínio das certezas para o questionamento de suas evidências.
No que tange ao corpo, sabemos que ele é também subjetivado pelo gênero a partir da performatização (BUTLER, 2006BUTLER, Judith. Défaire le Genre. Paris: Éditions Amsterdam, 2006.) de uma série de normas que nos chegam via tecnologias de gênero (LAURETIS, 1994LAURETIS, Teresa De. “A tecnologia do gênero”. In: Heloisa Buarque de Hollanda (Org). Tendências e impasses: o feminismo como crítica da cultura. p. 206-242, Rio de Janeiro: Rocco, 1994.)3 3 Considerando que o foco central deste artigo não é a discussão sobre as teorias de gênero no feminismo, podemos dizer, sumariamente, que a teoria butleriana de construção do gênero ( BUTLER, 2003), destaca a importância da linguagem em sua relação com a cultura e articulações sociais na produção dos gêneros, a partir das relações simbólicas e imaginárias de interpelação dos sujeitos/as para as suas correspondências com as normas naturalizadas de corpos, gêneros, tornando, portanto, o gênero um desdobramento performático de atos de linguagem. Já em De Lauretis, o gênero é incitado, imposto, tornado desejável a partir de tecnologias espalhadas em diversos territórios socioculturais como artes visuais, cinema, literatura, mídia, que não cessam de condicionar nosso olhar a (re)produzir representações de gênero que reificam as normativas das políticas sexuais, de sexuação, de reforçamento das relações de poder estabelecidas entre os gêneros já produzidos, para a manutenção de privilégios específicos, geralmente, do masculino. . Sabemos também que naturalizamos e objetivamos o gênero em nossas performances existenciais. Nesse contexto, podemos desconstruir estrategicamente este funcionamento e inventá-lo outro, agenciando e dando visibilidade e passagem a outras e variadas estilísticas da existência. Assim, o mesmo “mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, poderia ser muito bem o dispositivo pelo qual estes termos são desconstruídos e desnaturalizados.” (BUTLER, 2006, p. 59)
Assim, é nessa perspectiva de (des)construção e (des)naturalização, em um posicionamento contrário a essa ficção regulatória, que uma estética feminista tem operado. Problematizando as limitações de gênero que incidem sobre o campo de experiência das mulheres, e tendo em vista a ampliação desse território de existência, a combinação arte e feminismo, traçou vias e linhas de fuga para ultrapassar, tensionar e explodir essas barreiras de gênero. Desconstruindo os atributos de gênero, ou antes, as relações de poder que sobre o gênero e o corpo incidem para defini-los como tais (Joan SCOTT, 1995SCOTT, Joan. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Revista Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul/dez de 1995.), uma estética feminista tem se proposto a problematizar o controle biopolítico sobre a mulher, seu corpo e sua experiência.
Pode-se dizer que esse combate mobilizou uma poderosa força inventiva, pois uma estética feminista e os feminismos em geral, não somente se posicionam criticamente diante das situações contestadas, mas inventam saídas e espaços para criação de outros modos de ser mulher, outros modos de viver e gestar a própria vida. Nesse sentido, concordamos com Braidotti (2000BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades. Buenos Aires: Paidós, 2000., p. 70), quando diz que entende o feminismo como uma prática e um impulso criativo movidos por uma força que afirma a vida em sua diferença e multiplicidade. Concordamos também com Butler (2003BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003., p. 59), para a qual a "mulher é um termo em processo, um devir, um construir de que não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e ressignificações".
Assim, se à mulher atribuiu-se um não-lugar irrepresentável (IRIGARAY, 1984IRIGARAY, Luce. L´étique de la difference sexuelle. Paris: Les Éditions de Minuit, 1984.), um lugar de subalternidade (Gayatri SPIVACK, 1988) ou de outro-excluído (Simone de BEAUVOIR, 1949BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1949.), por vezes enredado numa ficção biopolítica de suposta autonomia, os feminismos em geral sempre problematizaram e criaram outros espaços de expressão neste contexto. Por carregar a marca da exclusão e do não lugar, as mulheres, assim como outros grupos minoritários, carregam, enquanto forma de (r)existir, uma força afirmativa de vida, uma disposição para inventar e reinventar constantemente os territórios existenciais. É essa dimensão inventiva e imaginativa que nos interessa por demais. É preciso inventar novas relações no e com o mundo, novas suavidades e contornos para o real; uma relação intensiva e potente que dê passagem às diferenças e à multiplicidade que pulsam e fazem pulsar nossos territórios de existência.
Figurações pós-identitárias: uma crítica radical do sujeito/a
Falamos, pois de um posicionamento crítico que não se limite ao jogo das oposições binárias e das disputas de saber e poder. Falamos de uma crítica inventiva que incorpore a afirmação das diferenças enquanto multiplicidade possível, realizada por meio de um processo "activo, afirmativo, de inventar nuevas imagenes de pensamiento" (BRAIDOTTI, 2000BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades. Buenos Aires: Paidós, 2000., p. 118). É nessa perspectiva que podemos pensar em algumas figurações pós-metafísicas e pós-identitárias de sujeito/a e de subjetividade. De acordo com Beatriz Preciado (2011PRECIADO, Beatriz. “Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’”. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11-20, jan./abr. 2011.), estamos diante de um movimento de desontologização do sujeito/a da política sexual:
Nos anos 1990, uma nova geração emanada dos próprios movimentos identitários começou a redefinir a luta e os limites do sujeito político "feminista" e "homossexual". No plano teórico, essa ruptura inicialmente assumiu a forma de uma revisão crítica sobre o feminismo, operada pelas lésbicas e pelas pós-feministas americanas, apoiando-se sobre Foucault, Derrida e Deleuze. Reivindicando um movimento pós-feminista ouqueer, Teresa De Lauretis, Donna Haraway, Judith Butler, Halberstam (nos Estados Unidos), Marie-Hélène Bourcier (na França), mas também as lésbicas chicanas como Gloria Andalzua ou as feministas negras como Barbara Smith e Audre Lorde, atacarão a naturalização da noção de feminilidade que havia sido, inicialmente, a fonte de coesão do sujeito do feminismo. A crítica radical do sujeito unitário do feminismo, colonial, branco, proveniente da classe média alta e dessexualizado foi posta em marcha (PRECIADO, 2011PRECIADO, Beatriz. “Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’”. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11-20, jan./abr. 2011., p. 17).
Essa crítica radical do sujeito/a do feminismo e da filosofia ocidental pede a criação de novas figuras de pensamento e ferramentas conceituais para compreender e criar uma nova ideia de sujeito/a e de subjetividade. Para tanto, Haraway utilizou o termo ‘figuração’. Para a autora, pensar e criar figurações para a subjetividade contemporânea é tanto uma maneira de exercitar a imaginação para visualizar novos contornos à subjetividade, quanto uma forma de situar essa figura da subjetividade em determinado espaço-tempo social. Segundo Braidotti (2000BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades. Buenos Aires: Paidós, 2000., p.28), a criação de novas figurações para a subjetividade diz de um comprometimento radical com a tarefa de subverter as representações e perspectivas convencionais acerca da subjetividade humana, especialmente no que tange à subjetividade da mulher.
Nessa perspectiva, Haraway cria a figura do ciborgue "como uma ficção que mapeia nossa realidade social e corporal e também como um recurso imaginativo que pode sugerir alguns frutíferos acoplamentos" (HARAWAY, 2013HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. p. 35-118., p. 37). Essa mesma autora nos traz outro conceito importante para a revolução epistemológica da experiência. Trata-se da ideia de saberes parciais, localizados, que diz respeito ao saber produzido pelos “subalternos nas relações de poder”. Assim, não se reduz a um saber de gênero, por exemplo, ao saber produzido por mulheres (que são subalternas nas relações de gênero), mas a todo saber não homogeneizado, não normativo, não universal, mas específico, parcial, abjeto, que escapa dos universais dominantes. Como alternativa ao “relativismo” epistêmico, a “localização” é uma alternativa muito interessante para se deixar descrever a situação contextualizada dentro das relações de poder (HARAWAY, 1995HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, n. 5. p. 7-41. Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 1995. ISSN 0104-8333. Disponível em: http://www.biblioteca digital.unicamp.br/document/?down=51046.
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).Reiterando a necessidade de uma perspectiva não-naturalista que transcenda uma visão cunhada em unidades identitárias, Haraway (2013) aponta a subjetividade ciborgue como figura híbrida de ligação homem-mulher-máquina/homem-mulher-mundo. O híbrido seria uma figura “pós-identitária” e pós-humana (HARAWAY; GANE, 2010HARAWAY, Donna; GANE, Nicholas. “Se nós nunca fomos humanos, o que fazer?”. Ponto Urbe: Revistado Núcleo de Antropologia Urbana da USP, ano 4, n. 6, p. 02-18, ago. 2010. São Paulo. ISSN: 1981-3341. Disponível em: http://www.pontourbe.net/edicao6-traducao.
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) que desloca o sistema heteronormativo, sai dos polos masculino e feminino e seus correlatos identitários, e lança o corpo em um território de fronteira, mais afeito à experiência que à representação.
Em processo de desterritorialização/reterritorialização, essas novas figurações para a subjetividade se experienciam em fronteiras, seguem por vias de diferenciação, as abrem, as criam, viabilizando fusões potentes e a insurgência de possibilidades de vida. O primado aqui não é a unidade homogênea, mas a singularidade por heterogeneidades. Uma subjetividade híbrida, em devir, que ganha forma via conexões e vizinhanças que podem se estabelecer parcialmente, contendo também dissensos e dessemelhanças. Nessa perspectiva, abre-se caminho para conexões não-identitárias e temporárias de diferentes ordens, uma via ética-estética-política que prevê a negociação constante das partes envolvidas, a criação de linhas e territórios de existência e, finalmente, a não reprodução dos enredos tidos moralmente como certos e errados.
Susana Penedo (2008PENEDO, Susana. El laberinto queer: la identidad en tiempos de neoliberalismo. Barcelona: Egales, 2008.) afirma que, em um contexto biopolítico, o híbrido de Haraway se perfila enquanto identidade estratégica no sentido apontado pelos teóricos queers: “Em efecto, para los teóricos queer, las identidades son siempre múltiples, o como poco, compuestas por, literalmente, um número infinito de formas em las que los ‘componentes identitários’ se pueden interrelacionar o cambiarse.” (p.116). Nesse sentido, podemos falar em uma concepção pós-identitária na qual a afinidade substitua a identidade, e a conexão seja uma fonte inesgotável de heterogênese. Nesse contexto, os fluxos e devires que compõem os processos de subjetivação não serão motivos de medos sobre uma possível e eminente desintegração do eu. Pelo contrário, os fluxos e devires tornam-se inesgotáveis possibilidades conectivas, fonte de formas de viver ainda sem nome, medida ou representação. Falamos, pois de figurações que dizem de um processo intensivo e múltiplo de produção de subjetividade e modos de viver.
De acordo com Braidotti (2000BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades. Buenos Aires: Paidós, 2000.), a criação dessas figurações hibridas é uma estratégia política, epistemológica e imaginativa de abandonar as identidades fixas. Ainda segundo a autora, que criou a figura da subjetividade nômade, essas figurações são comuns a algumas teorias feministas que têm produzido poderosas ficções políticas para desontologizar o sujeito/a, e figurar a mulher, não enquanto outro do homem, mas como o outro em sua imensa diversidade:
Monique Wittig (1991) escolhe chamar o (pós-mulher) sujeito feminista - lesbiana - o que é ecoado por Judith Butler (1991), com a "política paródica da mascarada". Nancy Miller (1986) denomina 'mulher' - fêmea, feminista, sujeito de outra história. De Lauretis (1990) a chama "sujeito excêntrico"; Trinh Minh (1989) de "o outro inapropriado"; Gayatri Spivak (1995) de "o sujeito pós-colonial"; Alice Walker (1984) de "a mulherista" (womanist); Glória Anzaldua (1987) trabalhando a partir da área de NAFTA, aponta-a como a "mestiza" (BRAIDOTTI, 2000BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades. Buenos Aires: Paidós, 2000., p. 11).
Como marco radical de abertura e pluralização do campo das diferenças, caímos no território da teoria queer, que resulta de um confronto reflexivo "do feminismo com as diferenças que o feminismo apagou em proveito de um sujeito/a político 'mulher' hegemônico e heterocêntrico" (PRECIADO, 2011PRECIADO, Beatriz. “Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’”. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11-20, jan./abr. 2011., p.17). De acordo com a autora, na política queer não existe a diferença sexual, "mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vida" (ibid, 2011, p.5). Nesse sentido, o queer seria um movimento que briga contra a captura identitária que atinge também a luta pelas diferenças. Como estratégia política, o queer faz a utilização máxima da produção performativa das identidades desviantes. Tudo que é abjeto, monstruoso, anormal e não representável entra aqui como modo de subjetivação possível, potencialmente resistente à hegemonia e serialização da subjetividade. Nesse sentido:
[...] a política da multidãoqueernão repousa sobre uma identidade natural (homem/mulher) nem sobre uma definição pelas práticas (heterossexual/homossexual), mas sobre uma multiplicidade de corpos que se levantam contra os regimes que os constroem como "normais" ou "anormais": são osdrag kings, asgouines garous, as mulheres de barba, os transbichas sem paus, os deficientes ciborgues... O que está em jogo é como resistir ou como desviar das formas de subjetivação sexo-políticas (PRECIADO, 2011PRECIADO, Beatriz. “Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’”. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11-20, jan./abr. 2011., p.16).
Em uma perspectiva queer, o corpo sobre o qual atua o biopoder e as biopolíticas de controle reapropria-se de sua própria experiência e torna-se um potente campo de incorporação das várias tecnologias de gênero enquanto resistência e criação de outras performances existenciais. Contra todo e qualquer efeito normalizador e disciplinar, no avesso de qualquer base natural que possa legitimar discriminações identitárias, Preciado aponta o território da sexo-política como um campo de resistência e produção de outras formas de desejar e se relacionar com o corpo, desimpedidos de forças reguladoras. Para a autora:
A sexopolítica torna-se não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais, intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais. As minorias sexuais tornam-se multidões. O monstro sexual, que tem por nome multidão, torna-sequeer. (PRECIADO, 2011PRECIADO, Beatriz. “Multidões queer: notas para uma política dos ‘anormais’”. In: Revista Estudos Feministas. Florianópolis, v. 19, n. 1, p. 11-20, jan./abr. 2011., p.14).
Nessa perspectiva, a luta pela ampliação de nossos horizontes de experiências, assim como pelo aumento exponencial de nossas práticas de liberdade não pode se restringir a categorias e identidades de gênero, sejam elas referentes às mulheres, aos gays, às lésbicas, aos trans, etc. É enquanto horizonte expandido, povoado de uma multidão minoritária, que podemos pensar a produção de subjetividades e a criação de novas figurações pós/trans/pluri-identitárias. Nesse sentido, enquanto produção de subjetividade e intensificação do campo de experiência dos/das sujeitos/as, a liberação da capacidade imaginativa e inventiva, própria de uma estética feminista, não se restringe ao universo feminino.
Uma estética feminista, portanto, nos interessa enquanto campo expandido, enquanto estética da existência sem limitações de sexo, gênero, etnia, classe social, raça, matéria ou volume. Se refizermos a pergunta: ‘De que mulher falamos quando falamos em mulher?’, poderíamos respondê-la do seguinte modo: falamos de algo ou alguém vivo, múltiplo e desejante, que expande suas forças num plano de coexistência de heterogeneidades, sem se deixar castrar por linhas de poder que limitam a potência de existir (STUBS, 2015STUBS, Roberta. A/r/tografia de um corpo-experiência: arte contemporânea, feminismos e produção de subjetividade. Tese (Doutorado em Psicologia). Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade do Estado de São Paulo (Unesp) Campus de Assis, 2015, 277 p.).
Acreditamos que, no horizonte da contemporaneidade, a capacidade imaginativa enquanto potência de resistir, própria de uma estética feminista, se desdobra em várias faces e visualidade. Nesses desdobramentos múltiplos, não temos dúvidas de que muitas combinações são geradas, as quais linhas de identificação próprias do movimento gay, lésbico, trans, negro, indígena, etc., acoplam-se, fundem e metamorfoseiam-se em figuras híbridas e dissonantes. Figuras monstros, mestiças, ciborgues e nômades carregadas de um poder de gerar novas formas de ver, sentir, significar e existir num mundo habitado por uma multidão de diferenças, muitas ainda a serem criadas. É nesse sentido que seguiremos refletindo sobre arte, vida, experiência e produção de subjetividade.
As artes da insubordinação voluntária em algumas artistas paranaenses
Pensando a arte como forma de resistência e criação de novos lugares de luta, podemos utilizar o termo artivismo para pensar a produção de algumas artistas que saem do campo do espaço físico e navegam por fronteiras virtuais, que, também, são corporais e geográficas, transitando pelo ciberespaço e protagonizando contestações feministas. Suas criações circulam no mundo por meio das redes sociais, uma nova forma de apostar nas lutas feministas e libertárias. Vale pontuar que, atualmente, as redes sociais tem sido um importante campo de militância para as mulheres e para os grupos feministas. Sadie Plant (1999PLANT, Sadie: Mulher digital. O feminismo e as novas tecnologias. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 1999.) no livro “A mulher digital” diz que as mulheres eram o objeto da informação, mas nunca o sujeito/a na comunicação. Segundo a autora, a princípio, as mulheres não eram sujeitos/as na comunicação, mas com o passar do tempo, elas passaram a utilizar as tecnologias que, a priori, foram criadas para mover regulamentação, contenção e controle, como ferramenta de emancipação e militância. Nesse contexto, as mulheres se apropriam do espaço virtual para ampliarem o debate sobre o feminismo e criar novas experiências estéticas.
Diante dessa discussão, segue a apresentação de duas artistas paranaenses que se valem muito do espaço virtual como forma de artivismo. A primeira delas é Elisa Riemer, artista e militante paranaense, nascida em Paranavaí-PR em 1986. Tendo participado da fundação do Coletivo Maria Lacerda de Moura4 4 Coletivo Feminista criado em Maringá em 2011, que se caracteriza por seu ativismo interseccional: jovem, negro, anarquista e performático. , e da organização da Marcha das Vadias de Maringá. Aos 7 anos fazia desenhos para vender, já adolescente se dedicou ao designer gráfico, depois veio o grafite e o ativismo. Em entrevista5 5 Texto extraído da entrevista cedida a uma das autoras desse artigo. Riemer completa: “meu ápice no feminismo foi depois de sofrer violência pelo irmão em 2011. Mudei o rumo: antes eram várias bandeiras, depois disso o foco ficou mais dirigido para os feminismos". Hoje seu artivismo abrange as seguintes técnicas: arte gráfica, grafite, foto montagem, recorte, pintura em tela e escultura.
De acordo com Lessa (2013LESSA, Patrícia. Uma proposta transfeminista na poética visual de Elisa Riemer. SEMINÁRIO INTERNACIONAL DESFAZENDO GÊNERO. Natal: Universidade Federal de Rio Grande do Norte, 14-16 de ago. 2013. Disponível em: Disponível em: http://nucleotiresias.ufrn.br/pagina.php?alias=anaissidg
. Acesso em 09/01/2015.
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), à Poética visual de Elisa Riemer, somam-se os trabalhos realizados com o Coletivo Maria Lacerda, grupo formado durante a primeira Marcha das Vadias em Maringá. Na ocasião, foram criadas as oficinas de artes Pré-Marcha. Riemer também teve participação no grupo de Maracatu feminino Flores do Ingá, proporcionando uma articulação entre educação, arte, ativismo. A chegada das Marchas das Vadias ao Brasil levou para as ruas novas experiências feministas de juventude com fortes traços de criatividade e ironia.
Entre suas produções e militâncias, Riemer criou trabalhos de cartazes para o Coletivo Pão e Rosas de São Paulo; para a Marcha das Vadias de São Paulo, capital, de Maringá no Paraná e de São Carlos em São Paulo; para o Movimento Free Pussy Riots na Rússia; para a Parada LGBT de Maringá, para o Movimento anticorrupção; para eventos em várias universidades como Universidade de São Paulo, Universidade Federal de Santa Catarina, Universidade Estadual de Maringá, Universidade Estadual de São Paulo Campus de São Carlos); para a Marcha contra a Mídia Machista de Belo Horizonte e de São Paulo; para a Marcha contra o Estatuto do Nascituro de São Paulo; e para o FEMEM6 6 Grupo feminista fundado em 2008 na Ucrania por Anna Hutsol, hoje com sede em Paris, ver em FEMEN. Manifeste Femen. Paris: les Éditions Utopia, 2015 da Ucrânia e do Brasil.
Em julho de 2013, a revista TPM publicou na capa, com letras em cor vermelha, o título “Sem Violência, sem violência sexual”. A matéria apresentou algumas das artistas cujos trabalhos promovem o debate sobre a violência sexista e Elisa Riemer foi uma das quatro artistas destacadas na matéria. Nesta matéria, a artista e militante Elisa Gargiulo foi entrevistada sobre arte, ativismo feminista, destacando seus contatos e inspirações. O trabalho em redes sociais foi destacado como uma das características desse movimento feminista ativista, que dentre outras atividades, está construindo as Marchas das Vadias no Brasil.
Segundo Elisa Riemer, seu artivismo tem por objetivo fazer releituras do corpo feminino como ferramenta de questionamento, ironia, transformação social. É uma releitura feminista que contesta o caráter religioso que marca as políticas e práticas sociais do Brasil contemporâneo. Diz ela:
O conceito surge da associação da arte com as novas tecnologias usadas a serviço dos movimentos de contestação. As leituras surgiram de uma necessidade de expressão artística que foi movimentada e criada através de redes sociais. As primeiras artes foram utilizadas como movimento contra a política de direita que acontece há 12 anos na cidade de Maringá, e isso me ajudou muito a evoluir de forma que eu conseguisse expressar o que eu queria, e ao mesmo tempo dando identidade à minha arte, às minhas ilustrações, amadurecendo o meu traço.7 7 Texto enviado para apresentação no Fazendo Gênero 2013. Anais, ver:http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/
Um dos trabalhos da Elisa que chama bastante atenção para a ironia feminista, aos símbolos dos poderes instituídos pela Igreja e reforçados pelo Estado, é uma arte feita inicialmente para o Coletivo Feminista de Maringá, criado em 2012 para a organização da primeira Marcha das Vadias na cidade e, atualmente nomeado de Coletivo Maria Lacerda. A imagem é de um quadril e a genitália feminina é desenhada a partir da imagem invertida da Catedral Basílica Menor de Nossa Senhora da Glória, símbolo religioso de Maringá.
Virar a Catedral de “ponta cabeça” e usá-la como genitália feminina representa reposicionar as mulheres na cidade, usando os símbolos fálicos ao modo da ironia e do deboche, pois a interferência religiosa na vida sexual e reprodutiva das mulheres vem operando através dos poderes do Estado e assim, legitimando um controle baseado na moral cristã na administração dos corpos. A crítica a essa forma de controle e vigilância sobre os corpos das mulheres é parte das agendas feministas. A catedral, símbolo religioso de Maringá e popularmente conhecida como símbolo fálico, é bastante utilizada pela artista, que em 2012 e 2013 criou o Cartaz da Marcha das Vadias e da Parada LGBT tomando-a, respectivamente, como tema ou pano de fundo.
As produções visuais de Elisa Riemer navegam o mundo pela internet, entre fronteiras virtuais, corporais e geográficas. Transitando pelo ciberespaço e protagonizando as contestações feministas e as rebeldias de juventude é um artivismo que faz da desconstrução de estereótipos e padrões normativos, um canal para a produção de corpos híbridos e plurais. É via suas artes gráficas que ela marca sua assinatura no mundo como artivista.
Patricia Karina Vergara e Lessa (2014VERGARA, Patrícia Karina; LESSA, Patrícia. Arte e feminismos na América Latina. IV JORESP - JORNADA REGIONAL DE EDUCAÇÃO SEXUAL DO PARANÁ E II CISEX - COLÓQUIO INTERNACIONAL DE SEXUALIDADES DA UENP: Olhares plurais para as questões de gênero e sexualidade. Jacarezinho, Universidade Estadual do Norte do Paraná, 29/10 a 01/11, 2014.) dizem que as tecnologias como a Internet, proporcionaram a formação de novos movimentos sociais e novas formas de artivismo. Estas passam a se caracterizar com base em uma atuação cada vez mais comum em forma de rede, pela formação de amplas coalizões e pelo enlaçamento ou agregação de grupos identitários, como é o caso das redes que se formam para discutir feminismo e organizar atividades e manifestações. Algumas artistas vêm tentando romper o binarismo de gênero e mostrar que há outros tipos de mulheres, outros tipos de corpos femininos, criando, inclusive, trânsitos e confusões entre si.
Ao fazerem isso, tais artistas acionam novas tecnobiopolíticas que iluminam os estilos de vida e os modos de existência que resistem às normalizações e tradições. Produzem, pois, corpos e subjetividades híbridas que se acoplam com o mundo para criar outras sensibilidades e perspectivas existenciais. Nesse contexto, o artivismo embebido numa estética feminista, torna-se um potente conceito para pensamos a relação da arte e do feminismo dentro de uma perspectiva das novas tecnologias a serviço da transformação social, difusão e divulgação de imagens que colocam as mulheres no centro da produção visual contemporânea.
A conexão entre arte e feminismo fez as mulheres reverem sua localização subalternizada nas relações de gênero/poder e tomarem consciência do elemento gênero nesta relação, levando-as a intervir na prática contra a dominação e às injustiças (Luana TVARDOVSKAS, 2008TVARDOVSKAS, Luana. Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó. 2008. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil.). Mostrar-se nas artes também é interferir na realidade e levar a reflexão sobre a dominação, repensando a construção da subjetividade. Tvardovskas, que escreveu a Dissertação de Mestrado “Figurações feministas na arte contemporânea: Márcia X., Fernanda Magalhães e Rosângela Rennó”, defende que as artistas envolvidas na desconstrução das imagens convencionais de feminilidade provocam um deslocamento e revertem signos de dominação por meio da ironia e da paródia, investindo em novos suportes e tecnologias (TVARDOSKAS, 2008).
Ao narrar os processos de subjetivação nas criações das artistas selecionadas, esta última autora encontra eco às suas reflexões na série de fotografias manipuladas e nomeadas “Auto Retrato, nus no RJ” de Fernanda Magalhães. De acordo com Tvardoskas (2008, p. 98), diante das exigências mais duras "de ser magra e sedutora, Fernanda ousa mostrar um corpo que “ninguém quer ver” e transformar também sua própria visão sobre si, explicitando o pudor e a rejeição que permeavam a relação consigo”.
Fernanda Magalhães é a segunda artista que queremos discutir e apresentar nesse artigo. Artista visual e fotógrafa brasileira, Fernanda tem ganho projeção nacional e internacional por problematizar a questão da produção do corpo gordo feminino, comumente sentido e entendido como corpo feio, aversivo, disforme e abjeto, em nossa sociedade. A desconstrução das imagens de feminilidade e a crítica ao culto do embelezamento feminino padronizado pela mídia comum é um traço importante na produção de Fernanda Magalhães. Artista que não se deixa capturar facilmente, versátil, ela transita por vários caminhos: fotógrafa, performer, artista visual, criadora e diretora do Coletivo Fotocuir, pesquisadora, doutora em artes e professora de Artes Visuais na Universidade Estadual de Londrina (Paraná, Brasil).
Sua obra é marcada por uma intimidade com seu corpo, corpo gordo, que escapa às regras estéticas. Esta intimidade consigo denota uma estilística marcada por um empoderamento contínuo de si por meio de um aprofundamento em suas experiências, memórias e afetos. Em uma entrevista cedida para uma das autoras do texto8 8 Fernanda Magalhães concedeu uma entrevista para umas das autoras desse artigo em 2013, por conta da pesquisa de doutorado da entrevistadora, realizada com o apoio da FAPESP, processo número 16383-3/2012 em 2013, Fernanda Magalhães afirma que a "rejeição e o preconceito estão na base dos sentimentos que levam ao trabalho". Tais sentimentos, por sua vez, abordam também "as normas e ditaduras do corpo através de posicionamentos políticos" (Sic). Enquanto posicionamento político, como bem pontuou o crítico de arte Paulo Herkenhoff, em visita ao atelier da artista, em suas obras, Fernanda Magalhães rejeita a rejeição,
O que faço com o trabalho é impor um corpo, em geral desconsiderado, corpo entendido como um corpo “errado”, inadequado, feio, grotesco, fora das normas, um corpo que deve ser modificado. O corpo da mulher gorda é um corpo considerado doente, um corpo que não deve existir, tem que ser manipulado, controlado, cortado, extirpado (ao menos em partes) para que caiba nos moldes impostos socialmente. Portanto, quando me posiciono e me exponho nua, estou mostrando o corpo em sua dimensão e dizendo que este corpo é possível sim, existe e pode sim continuar existindo fora das formas idealizadas e, ainda assim, ser pleno. Um corpo que não quer se normatizar, se adequar, para continuar existindo e que também não vai se recolher, se esconder, se anular (como em geral acontece com as mulheres gordas). Então, sou um corpo que transgride as regras e ainda se exibe em ações performáticas. Performar foi uma forma de ir além das representações e assumir uma postura política, ativista, se expor em locais públicos, nua, e posar para fotografias e vídeos. Como ousa este corpo se fazer aparecer assim?9 9 Texto extraído da entrevista acima citada
Rejeitando a rejeição, a artista tem explorado seu corpo-gordo-abjeto10 10 O conceito abjeto é trazido para o campo das discussões teóricas feministas, mais propriamente queer, por Judith Butler. Esta autora empresta este conceito da psicanalista Julia Kristeva para aplica-lo à consideração do resto, do que sobra, do que fica fora da normativa e é ou estigmatizado por ela ou desintegrado pela norma. Seriam, pois, em diversos níveis, abjetas, toda e qualquer dissidência ao padrão heteronormativo de sexualidade e gênero. como forma de dar passagem a outras possibilidades existenciais que se transformam em figurações, em experiências que atravessaram a artista e agora, enquanto objeto de arte, dão origem a novas experiências para outras pessoas. Trata-se de possibilidades que apontam para as margens, para corpos sem sinônimos, para desejos e práticas dissonantes. Interessa-nos, sobretudo nesta reflexão, seus trabalhos ligados às performances e ocupações de rua, com destaque para o trabalho: “A natureza da vida”. Neste trabalho, é possível notar um deslocamento dos corpos, tanto para fora do espaço privado quanto para além do padrão sexista e higienista de beleza.
Nua na paisagem, no projeto "A natureza da vida"11 11 https://plus.google.com/photos/117710173999242650792/albums/5958401210420497521?authkey=COWC87DCiarcQQ (2011-) - fotos-performance nas quais a artista é fotografada nua em diferentes espaços públicos -a artista subverte os atributos estéticos do corpo magro da mulher e aponta para um modo de existência ético/político alinhado ao que Foucault denomina artes da insubordinação voluntária (RAGO, 2013). É interessante nessa obra, certa leveza que a artista consegue mobilizar. Mesmo em se tratando de um corpo nu, gordo e abjeto, num espaço público, elementos que já despertam certa aversão e espanto, a sensação que fica é a de um corpo que, mesmo habitando as margens e as fronteiras, harmoniza-se com o mundo. Nessa obra, a artista inscreve-se nas paisagens com uma naturalidade que elimina os limites que separam os corpos.
Independente de forma, cor, volume ou espécie, há uma força que une e horizontaliza o corpo da artista com a paisagem, sinalizando a vida em seu sentido mais amplo. Essa força chega até nós e nos despe de qualquer rótulo, ressalva e estereótipos que possam nos impedir de ser e estar plenamente integrado naquela imagem. Nesse sentido, Fernanda Magalhães ressignifica suas e nossas relações com o mundo, ao fazer eclodir linhas sensíveis de subjetivação, além e aquém de rótulos e estigmas. Mesmo que um olhar mais sensível consiga perceber esse campo de sensações, a performance tende a gerar polêmicas e um certo frisson no público em geral, justamente por se referir a um corpo gordo, abjeto que, ao invés de permanecer nos porões da vergonha e do rechaço, não teme se experimentar livremente por onde se insere. No entanto, independente da reação de horror e espanto de alguns, a artista convida aqueles que assim quiserem, a também tirar a roupa e participar da performance.
“A natureza da vida” é um trabalho já reconhecido no cenário da arte transgressora no Brasil e fez parte da “II Ocupação Artística da UEM em 2014 (OkupArt).12 12 “A Natureza da vida” é uma foto-performance apresentada na rua, que caminhou por diversos lugares mundo à fora. Esteve na Bienal de São Paulo em 2013, no MASP e no Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC) em 2014, onde seu trabalho foi convidado a permanecer como parte do acervo do museu. Para conhecer ver em: http://fermaga.blogspot.com.br/. Sobre sua participação na OkupArt, Fernanda Magalhães escreveu em seu Blog: “A convite de Patrícia Lessa estive em Maringá. O evento foi emocionante. Ainda é difícil explicar as emoções que estavam ali, naqueles momentos de encontros múltiplos. Escrevo para deixar algumas emoções, rastilhos do que se viveu, manchas sobrepostas, pequenas impressões dos meus sentidos, experienciados ali”.
A proposta transgressora da foto-performance de Fernanda está em provocar no público uma mirada para novas experiências estéticas de corpos nus em lugares públicos. Seu corpo nu é expandido quando convida as pessoas que observam para deslocarem-se do lugar de plateia e participarem da cena, tirarem o máximo de roupas possível para serem observados, filmados e fotografados. A ação performática subverte a ordem social afrontado a lei do Estado moralista que nomeia de “atentado ao pudor” a exibição pública do corpo nu e que, ao não se dobrar à norma ou lei, torna-se um corpo visibilizado e insubmisso. Num só tempo, por ser um corpo feminino nu e gordo, afirma sua existência e provoca o questionamento do local do corpo das mulheres gordas. Ao pensar seu próprio corpo em seu processo de subjetivação e performatizar a experiência do corpo nu feminino, ela desenvolve suas “artes da insubordinação voluntária” afirmando uma existência que resiste às normas, ao padrão e ao disciplinamento.
Considerações finais
Buscamos, nesse trabalho, aprofundarmo-nos nas atuações de duas artistas paranaenses, dentro do contexto das articulações feministas na pós-modernidade. Verificou-se que a obra destas artistas possui como foco a desconstrução identitária, tendo o próprio corpo/experiência como ponto de partida. No caso de Fernanda Magalhães, desconstruir a identidade da “mulher gorda” usando o próprio corpo “gordo” até que o mesmo vire um detalhe no acoplamento corpo+natureza. Ali, o inventivo reside no fato de o corpo tornar-se a técnica da obra, despersonalizando a artista de seu corpo para falar de um corpo social, dos corpos de muitas mulheres, enfim, de muitos e muitas sujeitos/as subalternos às hegemonias que vestem os corpos no contemporâneo.
Por sua vez, a feminilização da arquitetura em Elisa Riemer, obriga o observador a ver a genital feminina onde antes havia o falo masculino. Isto demonstra que o que vemos é uma questão, não de relativismo, mas de perspectiva, de ponto de vista, de localização. Sua obra produz fissuras epistemológicas no olhar, que levam os “videntes” a pensarem, posicionados em ângulos até então não masculinamente humanizados. Elisa instaura o olhar do/a abjeto/a na experiência epistemológica de reconhecimento de si, de (des) territorialização corporal do manto ideológico que nos recobre a todos/as.
No horizonte da contemporaneidade, marcado pela crescente utilização das mídias sociais, os artivismos e os feminismos ajudam a pensar os múltiplos lugares de fala no olhar artístico e ativista, em luta contra os mecanismos de sujeição às normas sociais. Feito isso, essas práticas feministas dissolvem as fronteiras dos paradigmas dominantes por intermédio da força contestatória em sua expressão de criatividade performática. Diferentes propostas atravessam o texto para pensarmos em estratégias de transformação das relações que estabelecemos com o corpo, com as normas sociais que nos subjetivam por todos os lados, com os espaços públicos, etc. O artivismo, alinhado a uma estética feminista de contestação, subversão e construção de outras medidas para o corpo, práticas e desejos, se torna um potente instrumento de visibilidade, de deslocamentos e de ruptura às normas vigentes. Trata-se mais de uma aposta no inventivo, de um mergulho no abismo, que propriamente de uma corrente identitária. O artivismo, arriscamos dizer, é devires que produzem fissuras, rachaduras que cartografam os mapas dos saberes universais para dar vazão a saberes sensorializados e não cognoscíveis
Referências
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Atualmente, muitas artistas e pesquisadoras feministas tem se autodenominado artivistas e assumido sem ressalvas a arte como ferramenta de luta e resistência. Cito aqui Marian Pessah e Elisa Riemer como artivistas, e Patricia Lessa como pesquisadora que tem levado para dentro da academia o artivismo como forma de produção de conhecimento e meio de reivindicação. Marie Hélène Bourcier (2015) também utilizou o termo para dialogar com as propostas pós-pornô.
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Utilizar o termo “arte de mulheres”, ou “mulheres artistas”, ou “arte feminina” pode incorrer em algumas dúvidas, incertezas e naturalizações identitárias que não queremos reforçar nesse texto. Uma arte feminina, por exemplo, traz consigo uma série de naturalização no que tange aos atributos da mulher e de uma suposta feminilidade que não queremos reproduzir: frágil, delicada, sensível, etc. Ao mesmo tempo, nem toda mulher artista se propõe a ter sua obra com um campo de problematizações sociais, políticas, estéticas e culturais. Muitas artistas se alinham mais à arte-reprodução do que à arte- problematização/criação. No nosso entendimento, todos os termos acima citados estão carregados e contaminados por atributos identitários que mais limitam e estereotipam nosso campo de visão do que o ampliam.
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3
Considerando que o foco central deste artigo não é a discussão sobre as teorias de gênero no feminismo, podemos dizer, sumariamente, que a teoria butleriana de construção do gênero ( BUTLER, 2003), destaca a importância da linguagem em sua relação com a cultura e articulações sociais na produção dos gêneros, a partir das relações simbólicas e imaginárias de interpelação dos sujeitos/as para as suas correspondências com as normas naturalizadas de corpos, gêneros, tornando, portanto, o gênero um desdobramento performático de atos de linguagem. Já em De Lauretis, o gênero é incitado, imposto, tornado desejável a partir de tecnologias espalhadas em diversos territórios socioculturais como artes visuais, cinema, literatura, mídia, que não cessam de condicionar nosso olhar a (re)produzir representações de gênero que reificam as normativas das políticas sexuais, de sexuação, de reforçamento das relações de poder estabelecidas entre os gêneros já produzidos, para a manutenção de privilégios específicos, geralmente, do masculino.
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Coletivo Feminista criado em Maringá em 2011, que se caracteriza por seu ativismo interseccional: jovem, negro, anarquista e performático.
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Texto extraído da entrevista cedida a uma das autoras desse artigo.
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Grupo feminista fundado em 2008 na Ucrania por Anna Hutsol, hoje com sede em Paris, ver em FEMEN. Manifeste Femen. Paris: les Éditions Utopia, 2015
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Texto enviado para apresentação no Fazendo Gênero 2013. Anais, ver:http://www.fazendogenero.ufsc.br/10/
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Fernanda Magalhães concedeu uma entrevista para umas das autoras desse artigo em 2013, por conta da pesquisa de doutorado da entrevistadora, realizada com o apoio da FAPESP, processo número 16383-3/2012
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Texto extraído da entrevista acima citada
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O conceito abjeto é trazido para o campo das discussões teóricas feministas, mais propriamente queer, por Judith Butler. Esta autora empresta este conceito da psicanalista Julia Kristeva para aplica-lo à consideração do resto, do que sobra, do que fica fora da normativa e é ou estigmatizado por ela ou desintegrado pela norma. Seriam, pois, em diversos níveis, abjetas, toda e qualquer dissidência ao padrão heteronormativo de sexualidade e gênero.
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https://plus.google.com/photos/117710173999242650792/albums/5958401210420497521?authkey=COWC87DCiarcQQ
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“A Natureza da vida” é uma foto-performance apresentada na rua, que caminhou por diversos lugares mundo à fora. Esteve na Bienal de São Paulo em 2013, no MASP e no Museu de Arte Contemporânea do Paraná (MAC) em 2014, onde seu trabalho foi convidado a permanecer como parte do acervo do museu. Para conhecer ver em: http://fermaga.blogspot.com.br/.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
2018
Histórico
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Recebido
26 Maio 2015 -
Revisado
13 Jul 2016 -
Recebido
11 Fev 2017 -
Revisado
23 Set 2017 -
Aceito
25 Out 2017