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Tecnobiomedicina: implicações naquilo e daquilo que a enfermagem faz em terapia intensiva

Tecnobiomedicina: implicaciones en aquello y de aquello que la enfermería hace en terapia intensiva

Techno biomedicine: implications in and from what nursing does in intensive care

Resumos

Balizado na perspectiva da análise pós-estruturalista e com ênfase nos pressupostos foucaultianos, este ensaio reflexivo busca: discutir de que modo a Unidade de Terapia Intensiva se constitui em um campo de conhecimentos e práticas; explorar as condições de possibilidade da terapia intensiva e considerar o termo tecnobiomedicina como aquele que abrange a complexificação das tecnologias atuais na prática biomédica e seus potenciais desdobramentos na enfermagem. O resultado da reflexão não apenas mostra que a enfermagem tem-se constituído como um elemento fundamental na assistência prestada no espaço tecnomediado da terapia intensiva, como propõe que esta mesma enfermagem busque re-significar de maneira produtiva sua relação com a tecnobiomedicina.

Unidade de terapia intensiva; Tecnologia; Enfermagem


Basado en la perspectiva de análisis pos-estructuralista y con énfasis en los presupuestos foucaultianos, el presente ensayo reflexivo busca: discutir de qué modo la Unidad de Terapia Intensiva se constituye en un campo de conocimientos y prácticas; explorar las condiciones de posibilidad de la terapia intensiva, y, considerar el término tecnobiomedicina como siendo aquel que abarca la complejidad de las tecnologías actuales en la práctica biomédica y sus potenciales desdoblamientos en la enfermería. El resultado de la reflexión no solamente muestra que la enfermería se ha constituido en un elemento fundamental para la asistencia prestada en el espacio tecnomediado de la terapia intensiva, sino también se propone que esta misma enfermería busque re-significar de manera productiva su relación con la tecnobiomedicina.

Unidades de terapia intensiva; Tecnología; Enfermería


Based on the post-structuralism analysis perspective and Foucault presuppositions, this reflexive study seeks to discuss how the Intensive Care Unit constitutes itself in a field of knowledge and practices; to explore the conditions of possibilities of intensive care; and to consider the term "techno biomedicine" as that which embraces ever-increasing complexity of current technologies in biomedical practice and their potential consequences in nursing activity. The result of the reflection not only shows that nursing has been a fundamental element in the care given inside the techno mediated space of intensive care, but also proposes that the same nursing should search for a productive re-signification of its relationship with techno biomedicine.

Intensive care unity; Technology; Nursing


REFLEXÃO TEÓRICA

Tecnobiomedicina: implicações naquilo e daquilo que a enfermagem faz em terapia intensiva

Techno biomedicine: implications in and from what nursing does in intensive care

Tecnobiomedicina: implicaciones en aquello y de aquello que la enfermería hace en terapia intensiva

Mara Ambrosina de Oliveira VargasI; Flávia Regina Souza RamosII

IDoutoranda do Programa de Pós Graduação em Enfermagem (PEN) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Adjunto da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Atua no Centro de Terapia Intensiva do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)

IIPós-Doutora em Educação. Professora Adjunto do Departamento de Enfermagem e do PEN/UFSC. Pesquisadora do CNPq. Santa Catarina, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Mara Ambrosina de Oliveira Vargas Endereço: R. dos Pessegueiros, 155 92.320-360 - Cinco Colônias, Canoas, RS, Brasil E-mail: maraav@terra.com.br

RESUMO

Balizado na perspectiva da análise pós-estruturalista e com ênfase nos pressupostos foucaultianos, este ensaio reflexivo busca: discutir de que modo a Unidade de Terapia Intensiva se constitui em um campo de conhecimentos e práticas; explorar as condições de possibilidade da terapia intensiva e considerar o termo tecnobiomedicina como aquele que abrange a complexificação das tecnologias atuais na prática biomédica e seus potenciais desdobramentos na enfermagem. O resultado da reflexão não apenas mostra que a enfermagem tem-se constituído como um elemento fundamental na assistência prestada no espaço tecnomediado da terapia intensiva, como propõe que esta mesma enfermagem busque re-significar de maneira produtiva sua relação com a tecnobiomedicina.

Palavras-Chave: Unidade de terapia intensiva. Tecnologia. Enfermagem.

ABSTRACT

Based on the post-structuralism analysis perspective and Foucault presuppositions, this reflexive study seeks to discuss how the Intensive Care Unit constitutes itself in a field of knowledge and practices; to explore the conditions of possibilities of intensive care; and to consider the term "techno biomedicine" as that which embraces ever-increasing complexity of current technologies in biomedical practice and their potential consequences in nursing activity. The result of the reflection not only shows that nursing has been a fundamental element in the care given inside the techno mediated space of intensive care, but also proposes that the same nursing should search for a productive re-signification of its relationship with techno biomedicine.

keywords: Intensive care unity. Technology. Nursing.

RESUMEN

Basado en la perspectiva de análisis pos-estructuralista y con énfasis en los presupuestos foucaultianos, el presente ensayo reflexivo busca: discutir de qué modo la Unidad de Terapia Intensiva se constituye en un campo de conocimientos y prácticas; explorar las condiciones de posibilidad de la terapia intensiva, y, considerar el término tecnobiomedicina como siendo aquel que abarca la complejidad de las tecnologías actuales en la práctica biomédica y sus potenciales desdoblamientos en la enfermería. El resultado de la reflexión no solamente muestra que la enfermería se ha constituido en un elemento fundamental para la asistencia prestada en el espacio tecnomediado de la terapia intensiva, sino también se propone que esta misma enfermería busque re-significar de manera productiva su relación con la tecnobiomedicina.

Palabras Clave: Unidades de terapia intensiva. Tecnología. Enfermería.

PASSAGEM DE PLANTÃO* * Ao descrever parte de uma passagem de plantão na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), procurou-se manter fiel à terminologia utilizada, nesse momento, pela equipe de enfermagem da terapia intensiva. Pretende-se, com isso, colocar em ação uma das dimensões do processo de exclusão/inclusão que esse tipo de linguagem da medicina (agregada à da tecnobiomedicina e à da própria enfermagem)

Uma consulta ao "oráculo" ou estudo de caso?

– Vocês conhecem o seu José?

Indaga a enfermeira para o técnico de enfermagem e para a outra enfermeira que a substituirá em seu turno de trabalho.

– Eu já conheço; fui eu, inclusive, que o admiti na UTI ontem, mas o César ainda não cuidou dele.

Responde a outra enfermeira, fazendo referência ao fato de o técnico de enfermagem ainda não conhecer o paciente.

– Pois bem, seu José tem 65 anos e foi internado na UTI ontem no final da tarde em pós-operatório imediato de laparotomia exploratória, na qual foi constatado tumor de reto e implosão do ceco por obstrução intestinal. Portanto, ele foi submetido a uma colectomia e ileostomia. Procurou a emergência deste hospital ontem pela manhã por dor abdominal intensa e distensão abdominal. Na emergência, foram coletados exames laboratoriais e foi realizada uma ecografia abdominal, sendo visualizada a obstrução intestinal e a massa tumoral. O paciente foi encaminhado de urgência para o bloco cirúrgico para a realização da cirurgia. Durante a cirurgia, foi solicitado leito na UTI, por evoluir com instabilidade hemodinâmica e hipótese diagnóstica de sepse abdominal (havia fezes em toda a cavidade abdominal). Além disso, ele tem insuficiência cardíaca, é diabético e tem cardiopatia isquêmica com uso de marcapasso definitivo. No momento, ele está sob sedação contínua com infusão de Fentanil a 20 ml/hora. Suas pupilas estão mióticas e fotorreagentes. Não está competindo com o ventilador mecânico e não demonstra fácies de dor. Seu padrão ventilatório é em regime de pressão controlada com pressão positiva de 20 cm H2O e Pressão Expiratória Positiva Final (PEEP) de 6 cm H2O, com oferta de 60% de oxigênio, saturação de hemoglobina em torno de 96%, volume de ar corrente em torno de 700 ml e frequência respiratória de 20mrpm. Há mínima secreção brônquica pelo tubo endotraqueal. A ausculta pulmonar evidencia ausência de ruídos adventícios. O paciente mantém pressão arterial média em valores aproximados a 70 mmHg, sob o uso da droga vasoativa Noradrenalina a 0,08 mcg/Kg/min. Está com 39,4° de temperatura. É uma febre persistente. Já iniciou com esquema de antibioticoterapia com Metronidazol, Ampicilina e Cefepime. Foi administrado o antitérmico Dipirona. Extremidades pouco frias, acianóticas e desinfiltradas. O débito urinário por sonda vesical é mínimo (250 ml em 12 horas). O paciente apresenta urina com aspecto concentrado e está com a uréia e a creatinina em valores normais. Administrado 2.000 ml de soro fisiológico 0,9% durante a manhã para melhorar a pressão arterial e aumentar o volume urinário, sem sucesso. Estava com cateter central intracath e há uma hora foi instalado swanganz para avaliação do perfil hemodinâmico e manejo no tratamento. A pressão venosa central está em 15 mmHg e a pressão capilar pulmonar também em 18 mmHg. Esse paciente é cardiopata e não tem muito espaço para receber volume. O índice cardíaco está em 4,4 l/min e o índice de resistência vascular sistêmico é de 1.700. Logo, está com um perfil hemodinâmico de choque séptico. A sua frequência cardíaca é em torno de 100 batimentos por minuto, e a condução aberrante do complexo QRS no monitor cardíaco deve-se ao marcapasso definitivo. Não aparece, no monitor, a espica do marcapasso, mas ele está funcionante. A ferida operatória está limpa, sem evidência de secreção, e a ileostomia apresenta drenagem hemática em pouco volume pela bolsa coletora. O abdômen está normotenso. Ruídos hidroaéreos ausentes. Há uma sonda nasogástrica aberta em frasco com drenagem biliosa clara em mínima quantidade. Está em (Nada Por via Oral) NPO e seu Hemo Gluco Teste (HGT) é 100-120 mg/dl. A equipe da cirurgia esteve avaliando-o no início da manhã, e esse paciente não está livre de nova reintervenção até o final do dia, conforme a sua evolução. A família está presente (esposa e os dois filhos). Já lhes informamos sobre as últimas intercorrências e a evolução do paciente. É um caso bem complicado. A evolução e a prescrição de enfermagem já foram realizadas por mim.

A outra enfermeira e o técnico de enfermagem conferem o prontuário enquanto acompanham o que a enfermeira passa em plantão. Concomitante a isso, fazem uma revisão no paciente. Não há dúvidas sobre o que foi passado em plantão. A equipe desloca-se para a beira do leito da próxima paciente.

– A dona Maria, vocês já conhecem, ela está conosco há duas semanas.

Segue dizendo a enfermeira que passa o plantão.

– Sim, conhecemos.

Respondem os participantes dessa passagem de plantão.

– A dona Maria recupera-se bem. Hoje, ela...

Após descrevermos a passagem de plantão, constatamos que havíamos construído um texto no qual, ao fim, previa a evolução desse paciente. E esse fato não é um mero acaso, já que trato de uma prática comum efetuada por nós, enfermeiras que atuamos no contexto da UTI. Costumamos prever a má ou a boa evolução, as possíveis intercorrências que ainda deverão acontecer, a possibilidade de sobrevivência ou de morte, enfim, fazemos predições sobre o "destino" de nossos(as) pacientes. E aí ocorreu-nos denominar, neste ensaio reflexivo, a descrição desse ato da passagem de plantão de "Uma consulta ao Oráculo". Fizemos isso a partir da seguinte analogia: a UTI funciona como um Oráculo – Oráculo de Delfos – em que os equipamentos e os conhecimentos da tecnobiomedicina que permitem construí-los, constituem-se a Trípode na qual nos apoiamos para então lermos as profecias, óbvias para nós, enfermeiras e, na maioria das vezes, "incompreensíveis" para os/as pacientes e seus respectivos familiares.

Também resolvemos chamar a descrição da passagem de plantão de Estudo de caso, inspirando-nos em estudioso que afirma que o caso é o próprio indivíduo, assim transformado a partir de técnicas documentárias apropriadas.1 Estudar um caso não é reunir um conjunto de circunstâncias para definir um ato capaz de modificar a aplicação de uma regra – é estudar o indivíduo, como ele pode ser descrito, julgado, medido, comparado com outros em sua própria individualidade. O indivíduo é, pois, um caso que tem que ser treinado e corrigido, classificado, normalizado e excluído.

Mesmo que na passagem de plantão esteja-se tratando de um determinado caso – indivíduo paciente, potencialmente doente e com risco iminente de morte, fazendo uso de recursos avançados da tecnobiomedicina ", essa passagem envolve profissionais da enfermagem – também um caso – que falam de um determinado modo e de um certo lugar. Trata-se, pois, de uma rede de relações que se estabelecem de cima para baixo, de baixo para cima e lateralmente. Essa rede mantém o todo coeso e o atravessa por completo, com efeitos de poder que não só derivam dos(as) supervisores(as) dos(as) pacientes, mas também derivam da supervisão dos(as) supervisores(as), estes(as) eternamente supervisionados(as). A disciplina é a anatomia política do detalhe, um complexo de novos procedimentos que estabelece para cada indivíduo seu lugar, seu corpo, sua doença, sua morte, sua sobrevivência e seu bem-estar e estende-se à determinação final do indivíduo, ao que o caracteriza, ao que lhe pertence, ao que lhe acontece.1

Fruto do estudo de caso, o que torna o homem do humanismo moderno tão fantástico é o fato de ele acreditar que é natural e, ao mesmo tempo, que é produto de sua criatividade. Paradoxalmente, o(a) paciente e as enfermeiras, meticulosamente estudados(as) como um caso pelo discurso científico-médico, só se tornam presenças quando são definidos em "relação aos perfis do conhecimento e prática médica".2:48 Procuramos tornar isso visível ao colocar em ação, na descrição da passagem de plantão, tanto o movimento de exclusão/inclusão operado pelo discurso médico-científico em relação a quem pode dizer o quê e de que modo pode dizê-lo quanto o estabelecimento de uma determinada verdade acerca da condição desse paciente e a influência desse arcabouço discursivo nas diferentes especialidades que atuam no contexto da UTI.

Em suma, intitulamos a cena que descreve uma passagem de plantão na UTI como "Uma consulta ao Oráculo e Estudo de Caso" por considerarmos que, ao perscrutarmos as condições de possibilidade desse conhecimento teórico técnico-científico, encontramos os pressupostos filosóficos e científicos da racionalidade moderna: a medicina intensiva, na medida em que é permeada por saberes científicos, pode ser entendida como uma metanarrativa que produz significados com pretensões universais. Ao operar com extremo rigor metódico na busca do conhecimento e, portanto, da "realidade", a medicina intensiva evoca para si a competência de ditar o que é válido e o que é verdadeiro nesse contexto.

Também, com baliza nesta descrição de uma passagem de plantão, argumentamos, a seguir, – desde uma perspectiva de análise pós-estruturalista e com ênfase nos pressupostos de uma analítica foucaultiana – de que modo a UTI se constitui em um campo de conhecimentos e práticas. Após, evoluímos para uma discussão que busca resgatar o que entendemos como condições de possibilidade deste campo de conhecimentos e práticas. Tudo isto, na verdade, objetiva desdobrar, esmiuçar, neste ensaio reflexivo, o conceito de tecnobiomedicina e pensá-lo em sua produtiva articulação com as questões atuais da enfermagem em terapia intensiva.

UTI: um campo de conhecimentos e práticas

Historicamente, a assistência aos enfermos graves é uma preocupação inicial atribuída à Florence ao atuar na guerra da Criméia, deflagrada em 1854. É desse período a sua recomendação para agrupar os pacientes mais graves e com maior grau de dependência em um setor onde a enfermagem possa manter uma vigilância e atendimento constantes. A preocupação central de Florence são os fatores ambientais (ar e água limpos, controle de ruídos, rede de esgotos adequada, diminuição da sensação de frio, entre outros) e as formas pelas quais estes afetam a recuperação do paciente. Logo, na metade do século XIX, época em que Florence institui a enfermagem profissional moderna, a meta é colocar o indivíduo na melhor condição sob ação da natureza, o que se dá, basicamente, através do impacto sobre o ambiente.3

E o que pode ser apreendido através da descrição da passagem de plantão na UTI é o fato de que, atualmente, o espaço reservado para as UTIs, em qualquer hospital, deve contemplar a demanda de uma unidade equipada com tecnologia de alta complexidade, ou seja, acesso aos elevadores do hospital, agilizando um possível deslocamento para atendimento de urgências, realização de exames diagnósticos e encaminhamento ao bloco cirúrgico, entre outras situações. Cada box de internação de paciente deve estar conectado ao complexo sistema de rede de gases e de aparelhos eletrônicos. E o que também caracteriza o espaço físico de uma UTI é o fato de que cada compartimento, sala e/ou divisória dessa unidade deve possibilitar uma ampla visualização. Nesse espaço físico, as divisórias são feitas de vidro, e o objetivo é ampliar o alcance do nosso olhar. Devemos poder olhar "por tudo" e "para tudo", de maneira concomitante, para os(as) pacientes, os(as) transeuntes, os(as) demais componentes da equipe, as imagens nas diferentes telas dos equipamentos e para os próprios equipamentos.

A maioria dos cursos de graduação da medicina, enfermagem, fisioterapia, nutrição e engenharia biomédica têm o acréscimo dos conteúdos pertinentes à terapia intensiva. Existem cursos de especialização em terapia intensiva para todas as profissões que atuam nesse contexto, mas o quesito de compatibilidade acentuada com o arsenal tecnológico é mais direcionado para a área médica e de enfermagem. Nessa perspectiva, a exigência de uma maior compreensão do que significa atualmente trabalhar em uma UTI recai, prioritariamente, sobre esses(as) profissionais. É necessário para a área médica, após o término da residência em terapia intensiva, fazer um exame específico para o exercício da profissão de intensivista. Todo tipo de UTI (pequeno, médio e grande porte) tem priorizado, para admissão, a enfermeira especialista em terapia intensiva ou, no mínimo, a enfermeira que tenha efetuado seu estágio curricular (em geral corresponde a 20% do curso) no(s) último(s) semestre(s) da graduação em UTI.

Podemos, então, dizer que nela – a UTI – há experts que concretizam a interação do humano com a máquina em um domínio cada vez mais autorizado. Em geral, o termo expert "refere-se ao indivíduo que possuiria reconhecidas habilidades e/ou conhecimentos específicos sobre determinado campo de atividade/saber. Essas prerrogativas atribuiriam-lhe autoridade para tomar decisões, agir, enfim, abordar aspectos pertencentes a sua correspondente área de indiscutível competência".4:60 Neste sentido, existem os manuais elaborados pelas indústrias da tecnobiomedicina e bioeletrônica. Esses manuais objetivam explicar aos "usuários" – os(as) profissionais da Terapia Intensiva – como manejar e otimizar as diferentes aplicações dos mais diversos equipamentos que são utilizados no contexto do intensivismo. Ou seja, eles são produzidos com a proposta de ensinar como os(as) profissionais devem manusear esses equipamentos para que funcionem adequadamente quando conectados ao(à) paciente. Para além, os(as) profissionais são treinados(as) para observar e realizar avaliações diagnósticas dos(as) pacientes através desses equipamentos. Desta maneira, os sintomas referidos pelo(a) paciente são avaliados na sua interface com a máquina e, na maioria das vezes, são "detectados" pelo(a) profissional justamente por esse(a) mesmo(a) profissional estar, também, conectado(a) à máquina. Esses manuais orientam como preparar, ligar e fazer funcionar o equipamento e como detectar o porquê de determinado problema na conexão do(a) paciente com a máquina.

No contexto desta discussão, ressaltamos que um grande número dos manuais elaborados para orientar o manuseio dos equipamentos bioeletrônicos tem sido organizado por profissionais que atuam na indústria avançada da tecnobiomedicina. Tais profissionais não necessariamente pertencem à enfermagem, ou ainda, a qualquer outra das profissões que têm participado ativamente na terapia intensiva. Isto é, são manuais muito utilizados e destinados a profissionais que estão envolvidos(as) com a aplicabilidade dos recursos tecnológicos disponibilizados pela indústria tecnobiomédica, uma vez que pouquíssimos(as) ou quase nenhum(a) dos(as) profissionais dessa área atuam diretamente na produção dos equipamentos.

Nessa perspectiva, poderíamos afirmar que a UTI tem-se reservado o direito de atuar como uma clínica distinta, uma disciplina científica com metodologia própria, programas de treinamento, fóruns educacionais e desenvolvimento de pesquisas, agregando, ali, profissionais "habilitados" para conduzir "o tratamento" e "o cuidado" do(a) paciente grave, mesmo que esse(a) paciente esteja com vários órgãos comprometidos.

Há uma padronização de condutas exercidas e exigidas para todas as enfermeiras que, de alguma forma, se engajam no contexto da terapia intensiva. Para que essa padronização/uniformização ocorra, toda a equipe de enfermagem na UTI é contínua e progressivamente submetida a "aperfeiçoamentos", visto que deve lidar não somente com treinamentos, mas também com a interpretação teórica daquilo que é objeto de seu trabalho. Nessa ótica, vislumbramos a UTI como um ambiente em que as atividades de enfermagem desenvolvidas são sucessivamente aprendidas e, em função disso, praticadas, alteradas e suplantadas. O que hoje é tido como conhecimento válido é imediatamente relegado a segundo plano, ou até mesmo abandonado, à medida que um novo conhecimento passa a ser validado. O conhecimento aceito e valorizado pelas enfermeiras é resultado de uma "seleção" fundamentalmente política, na medida em que é compreendida em uma conexão de saber-poder que está no centro de todas essas relações e práticas.

"Aprimora-se", pois, a capacidade dessa equipe de observar o(a) paciente. E, em conexão com o privilegiado aparato da tecnologia, a enfermagem tem sido capaz de traduzir o "profundo", aquilo que é considerado o "interior mais recôndito" do corpo do(a) paciente, em informações contínuas para alimentar a equipe que trata e cuida desse(a) paciente na UTI. Para que essa tradução seja possível, o corpo da enfermeira está em constante interação com a máquina e, para que isso se efetive de "maneira adequada", são necessárias múltiplas aprendizagens.

"Uma 'época' não preexiste aos enunciados que a exprimem, nem às visibilidades que a preenchem".5:58 Portanto, nos referimos a um período histórico recente, em que a convergência do prestígio da ciência médica com o advento da indústria tecnobiomédica, balizada em pressupostos teóricos do positivismo, produz e implanta um efeito "real" e efetivo: a terapia intensiva passa a se constituir como disciplina enquanto campo de conhecimentos e práticas.

CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE...

Na perspectiva Moderna, os pressupostos conceituais de Bacon e Descartes enfatizam "uma forma 'científica' de conhecimento – um conhecimento produzido por um eu racional e objetivo, um conhecimento capaz de fornecer verdades universais sobre o mundo".6:35 No entanto, "a ciência moderna não é um ideal de uma verdade mais verdadeira e pura, mas de uma verdade capaz de fornecer uma fundamentação exigida por uma nova ordem política".7:11 Portanto, esse conhecimento científico poderia, supostamente, ser aplicado a todas as práticas e instituições humanas, sendo considerado a base última daquilo que é verdadeiro em sua relação com aquilo que é certo e aquilo que é bom. É o que chamaríamos de uma verdade confiável.

Uma das aplicações produtivas e possíveis desse conhecimento científico deu-se na ciência médica com ampla repercussão na ordem social. A ciência médica aprimorou-se através do modelo mecanicista e setecentista do homem máquina, objetificado, subdividido e explicado por meio do acoplamento de diferentes áreas do saber: a física, a química, a biologia e a matemática. Essas diferentes áreas do saber já existiam previamente, assim como a própria medicina. O que mudou foram justamente as condições de possibilidade, sob uma nova ordem, do conhecimento teórico-técnico-científico. Neste panorama, "a ciência tornou-se o centro do poder de dominação do universo e do homem. A técnica é seu grande instrumento do exercício eficaz desse poder do saber. E, no caso, o conhecimento científico é aquele que dispõe do potencial técnico para se transformar em máquina de intervenção".7:37

No contexto desta discussão, traduzimos essa mudança como um início do prestígio da ciência médica, o qual, a partir daí, torna-se permanente. Tal prestígio é sustentado pelas bases teóricas de uma densidade filosófica capaz de abordar a experiência do sujeito como individualidade, finitude e espacialidade corporal: "daí o lugar determinante da medicina na arquitetura do conjunto das ciências humanas; mais do que qualquer outra, ela está próxima da disposição antropológica que as fundamenta. Daí também seu prestígio nas formas concretas da existência: a saúde substitui a salvação".8:228

Essa ciência médica chama para si o direito de debater e descrever a nova situação humana decorrente tanto das revoluções científicas quanto das revoluções industriais e tecnológicas. Sua atuação configura-se na imposição de uma verdade tida como evidente. Nesse sentido, a medicina enquanto ciência substituiu a boa imagem de Deus e advoga-se o direito de construir a boa imagem do homem. Assim, apreende-se que não somente a igreja, mas também a ciência, se protege com uma aura de sagrado, criando verdades e fundamentando-as no próprio ato de criação. Igreja e ciência moderna iluminam a ida/retorno para a prática cotidiana.

Articular o período setecentista com o século XXI, não nos parece contraditório, exatamente porque pretendemos, com essa articulação, demonstrar o quanto o discurso da ciência médica sustenta até nossos dias a matriz identitária da Modernidade: Deus, a Ciência e o Humano. Entre o céu e a terra, a medicina está conectada a um saber que, no contexto de nossa cultura, é colocado lado a lado com o divino, transcendental e onisciente. Isso porque, entre a igreja e a ciência moderna, sempre existiu uma interação recíproca. O conhecimento "puro" e, portanto, exato, verificável, objetivo e, acima de tudo, generalizável, de uma certa maneira, era também encarnado como pauta de condutas pela igreja.9 Uma lei imutável e essencialista era tão "pronunciada na doutrina da predestinação quanto na investigação científica".9:34

Latour é um importante teórico que tem tratado das relações sociais entre a ciência e as inovações tecnológicas, a medicina e os técnicos-usuários, enfatizando a artificialidade de muitos dos fenômenos científicos.9 Mas, não significa que ele esteja negando a existência dos fatos ou dizendo que não exista algo denominado realidade; o que demonstra é que a ciência e a tecnologia não são ambientes "puros", deslocados de outros recursos e forças sociais, mas estão imersos numa teia de relações, reunindo atores, práticas, linguagens e atitudes as mais diversas. A ciência é, desse modo, plasmada num ambiente de permanentes negociações, disputas e busca crescente de mais recursos e aliados, em crescentes e sempre renovados ciclos de credibilidade.10

"A tecnologia [e a ciência] como um sistema social só coloca problemas que podem ser resolvidos no âmbito desse sistema sem pôr em perigo seu equilíbrio ou sua lógica".11: 57 Ou seja, em raros momentos, o que tem sido produzido e considerado como ciência em seus atuais desdobramentos nas pesquisas clínicas e básicas no campo da medicina intensiva, por exemplo, tem sido problematizado e colocado sob suspeita. No Brasil, o máximo que tem sido apontado por essa área do conhecimento como problemático é o aspecto de sermos na maioria das vezes somente meros importadores de ciência: "o atendimento em Terapia Intensiva é uma atividade assistencial intimamente ligada à pesquisa clínica, em virtude do impacto que novas tecnologias e medicamentos podem ter na sobrevida dos pacientes. [...] Contrastando com a realidade de países mais desenvolvidos, científica e tecnologicamente, pesquisas clínicas e básicas no campo da Medicina Intensiva são bastante incipientes e limitadas a uns poucos centros em nosso país. São várias as razões que nos colocam na condição básica de consumidores de know-how estrangeiro [...]. De qualquer forma, e apesar das dificuldades, não há por que nos resignarmos e passivamente assimilarmos o rótulo de meros importadores de Ciência".12: 261

Não se pode refutar a relevância que o conhecimento técnico-científico de ponta tem no contexto contemporâneo, já que a universalização das práticas biomédicas tem acompanhado o processo de globalização e a economia de mercado. Logo, não devemos ignorar o fato de que o conhecimento médico tem se consolidado, sim, na arena das práticas de marketing das indústrias que circulam ao seu redor – farmacêutica, de equipamentos médicos e publicações. "Há um sólido corpo de literatura produzido na América Latina, em especial no Brasil, da década de 70 do século passado em diante centrada no chamado complexo médico-industrial".13:180

Atualmente lidamos, no âmbito do intensivismo, com as mais diversas áreas do conhecimento, e as ciências médicas têm, cada vez mais, produzido e legitimado novas especialidades e novos procedimentos, tecnologias médicas e intervenções técnicas. Áreas de saber como a biologia, a física, a química e a matemática foram, pouco a pouco, desmembradas e/ou agregadas às biotecnologias, à robótica, à bioeletrônica, à tecnobiomedicina, à genética molecular, à física médica, enfim, uma infinidade de acoplamentos torna possível a capacidade de gerar algumas outras formas de conhecimento.

É nessas sociedades que a medicina tem operado como uma disciplina científica, como um conhecimento positivo do indivíduo e como uma forma particular de falar a verdade sobre os humanos e de agir sobre eles. E é sob a égide da ciência médica que se constituiu a enfermagem moderna. Na verdade, o encontro das práticas médica e de enfermagem deu-se em um determinado espaço geográfico – o hospital – e em um determinado espaço social – o do(a) doente. Indivíduo e a população são dados simultaneamente como objetos de saber e alvos de intervenção da medicina, graças à tecnologia hospitalar. Nessa arquitetura hospitalar, era e é nossa função, enquanto enfermagem, a presença constante para assistir, cuidar e acompanhar o tratamento clínico de nossos(as) pacientes.14

ENFIM, TECNOBIOMEDICINA NAQUILO QUE FAZEMOS EM TERAPIA INTENSIVA

Enfim, o que tem sido identificado na enfermagem que atua na terapia intensiva como o saber-fazer enfermagem? A enfermagem, assim como a medicina, não tem problematizado a homogeneidade e a suposta universalidade do discurso da ciência e da tecnologia. Mesmo que, muitas vezes, tenha adotado um viés epistemológico que pretende competir com a lógica positivista, isto é, uma lógica dialética, a busca centra-se em almejar uma verdade menos distorcida e mais crítica da "realidade real", também dada de antemão. São abordagens teórico-metodológicas que se referem à história da pessoa, tomada como uma entidade singular e centrada nela própria. Preocupam-se com o aspecto personalizado da assistência da equipe multiprofissional oferecida aos(às) pacientes nas UTIs, desenvolvendo questões afetivas e relacionais na sua interface com a máquina. Apesar de aceitarmos o pressuposto desses estudos de que a ciência e a tecnologia " tecnobiociências – passaram a ocupar o lugar do divino e de que muitas vezes estas induzem uma assistência estandardizada e protocolar, não concordamos com a sinalização desses mesmos estudos de que a "solução" implicaria o resgate de uma essência humana, autêntica, espontânea e autônoma e a denúncia da destruição do sujeito consciente de si.

Logo, faz-se necessário, aqui, explicar como estamos operando com a noção de tecnologia porque estudiosas da enfermagem brasileira têm expressado sua preocupação com o fato de generalizarmos essa concepção como uso de artefatos, equipamentos e de procedimentos técnicos.15-16 Argumentam a favor da potencialidade da expressão tecnologia para discutir as subjetividades e as inter-subjetividades dos indivíduos. Discorrem sobre o saber de enfermagem como tecnologia, identificando algumas tecnologias específicas (do cuidado, interpretativas de situações de clientes, de administração, de educação, de processos de comunicação, de modos de conduta).16 Assim, mesmo que concordemos com essas preocupações, queremos, justamente, utilizar a concepção de tecnologia de ponta relacionando-a ao uso de artefatos, equipamentos e de procedimentos técnicos. Mais ainda, desdobramos esta tecnologia de ponta em informática, tecnobiomedicina, robótica, cibernética e bioeletrônica. Como conseqüência, entendemos que a enfermagem em UTI é impensável e impraticável sem a incorporação dessa tecnologia.

Um estudo realizado por enfermeiras australianas para investigar concepções de tecnologia vigentes entre enfermeiras médico-cirúrgicas, destaca dois tipos de resultados: um grupo que celebra a tecnologia e outro com uma perspectiva pessimista da mesma. O grupo que celebra fala que a tecnologia fornece meios e condições para avaliar procedimentos, técnicas ou instrumentos já existentes, subsidiando o desenvolvimento de novos; a tecnologia seria uma instância através da qual se incrementa o conhecimento de Enfermagem e se potencializa o grau de controle sobre a prática assistencial, no sentido de torná-la mais exata, mais eficaz e mais eficiente.17 Para nós, é essa perspectiva que está na base do incremento constante do fazer/saber enfermagem na terapia intensiva.

Mesmo assim, é importante argumentar que, até os anos sessenta do século XX conhecer e dominar a tecnologia era um aspecto prioritário do saber/fazer enfermagem e que não se questionava, nesse contexto, o que era entendido como sendo ciência e o conhecimento científico.17 Entendemos que pela intensificação da tecnobiomedicina nas UTIs, a luta pelo acesso ao estatuto dominante de ciência persiste. De outro modo, ou a enfermagem tem adotado um viés de essencializar o cuidado a partir dos pressupostos teóricos da dialética, definindo seu saber-fazer numa relação antagônica ao curar da medicina, ou ela situa-se ao lado desta, perseguindo um maior domínio sobre as situações clínicas que envolvem a sua prática diária no contexto das UTIs.

Mas, para a escrita deste texto, não queremos discutir se a Enfermagem necessita ou não ultrapassar algum "fosso tecnológico" para, assim, igualar-se a outras áreas do conhecimento. Também não pretendemos analisar uma possível perda da relação afetiva das profissionais de enfermagem com seus(suas) pacientes ao se conectarem com as máquinas. Desde esse lugar, ao invés da fácil afirmação totalitária da dominação da tecnobiomedicina sobre as enfermeiras intensivistas, adotamos a proposição de promover uma instância crítica do discurso da tecnobiomedicina, repensando-o como fazendo parte daquilo e naquilo que, atualmente, fazemos em terapia intensiva. Logo, a opção pela denominação tecnobiomedicina deve-se, além de sua maior concisão, por refletir mais adequadamente a vinculação da racionalidade médica com o conhecimento produzido por disciplinas científicas do campo da Biologia agregadas à racionalidade tecnológica contemporânea. E, esta articulação é uma possibilidade atual, mesmo que as racionalidades Modernas Biologia e Medicina tenham uma condição de existência bem mais antiga. Tecnobiomedicina é, pois, uma articulação que, na sua vigência, resulta e gera outra coisa que não as suas partes em separado. Em suma, é proposto, aqui, o termo tecnobiomedicina como aquele que abrange a complexificação das tecnologias atuais na prática biomédica e seus potenciais desdobramentos na enfermagem. Ainda assim, repetimos: a instância de análise que ora operamos é crítica. Não defendemos e nem encurralamos a tecnobiomedicina. Apontamos, sim, a criteriosa avaliação das questões que nos rodeiam e, mais, nos constituem enquanto sujeitos enfermeiras e intensivistas, quer queiramos ou não.

Nesta exata direção, o conhecimento teórico-técnico-científico – e seus conseqüentes desdobramentos na medicina, enfermagem e intensivismo – deixaria de ter um sentido puro, desinteressado, "verdadeiro" e livre do processo de significação. Nessa abordagem, esse saber não mais seria tratado como isolado e distante das relações de poder, já que, nessa perspectiva, significar, "é fazer valer significados particulares, próprios de um grupo social, sobre os significados de outros grupos, o que pressupõe um gradiente, um diferencial de poder entre eles. Na verdade, esse diferencial de poder não é inteiramente externo ao processo de significação: as relações de poder são, elas próprias, ao menos em parte, o resultado de práticas de significação. Em suma, as relações de poder são, ao mesmo tempo, resultado e origem do processo de significação".18:23

Assumindo esses pressupostos, pudemos argumentar que o que tem sido dito para as enfermeiras intensivistas através de uma miríade de manuais, protocolos assistenciais, artigos, entre vários outros, e o que as mesmas produzem como conhecimento e como prática assistencial a partir dessas informações não constitui um campo neutro. É, portanto, nesse campo não-neutro da produção, transmissão e aplicação das inovações advindas da indústria da tecnobiomedicina que têm sido produzidas verdades sobre o que é ser saudável e patológico, o que é morrer e viver e quais os limites desse viver e desse morrer, o que é grave e o que não o é, o que é humano e o que é técnica, qual o perfil da profissional que trabalha na terapia intensiva, o que é conexão humano-máquina e o que não o é.

Consideramos, ainda, que nunca os(as) intelectuais que se propõem a pensar "o que se passa" estiveram tão "defasados(as)" diante da velocidade das modificações produzidas pela tecnobiomedicina. Isso talvez ocorra justamente em virtude das alterações vertiginosas nas nossas formas de ordenação do mundo, que subvertem as nossas relações e noções de subjetividade, corpo, tempo, espaço, doença, morte, vida e pensamento. Mas, neste referente, não importa saber se existe concretamente um apagamento ou não da materialidade do corpo humano, em detrimento do espaço virtual, como alguns apregoam; interessa sim, visibilizar para onde vamos e o que estamos fazendo a partir desta rede de redefinições de corpo humano, logo, de outras formas de ordenação do mundo.

De outro modo, refutamos as argumentações que, com a pretensão de estabelecer uma oposição entre o humano e a técnica, "carregam nas tintas" ao descrever a intensificação da tecnologização nas UTIs. Essa idéia é reforçada a tal ponto que nós, na ótica assumida por tais argumentações, perderíamos qualquer contato com nossos pacientes. Deixemos, aqui, a questão da humanização de lado, já que neste momento, desejamos enfatizar outros dois aspectos. Primeiro, fazemos uma analogia desse tipo de argumentação com a nossa minuciosa descrição da cena da passagem de plantão em uma UTI. Ou seja, não vemos diferença entre elas se considerarmos a questão da intensificação da tecnologia. Na descrição da passagem de plantão, toda a fala da enfermeira é permeada por dados observados e analisados no paciente a partir da conexão dessa profissional – e dos(as) demais profissionais – com a máquina. Segundo, nos reportamos à possibilidade do silenciamento com relação à profissional enfermeira como fazendo parte desse contexto tecnomediado. O fato da própria Enfermagem referenciar a si mesma como muito mais empenhada em estabelecer uma oposição entre o humano e a técnica, talvez obscureça e desvalorize o espaço e a importância que a Enfermagem, em relação com a tecnologia, assume na terapia intensiva. Enfermeiras intensivistas, conectadas a várias máquinas, fazem muito mais do que reunir informações. Entendemos que devemos, sim, tornar interessante uma enfermagem, também, constituída como um elemento fundamental na assistência prestada nesse espaço tecnomediado. Nesta direção, há um estudo brasileiro,19 que explora o desenvolvimento de novas tecnologias na enfermagem. Ou seja, ao abordar a produção de um ambiente simulado de aprendizagem assistida por computador em ressuscitação cárdio-pulmonar, enfatizam que, como mediador entre o sujeito e o mundo denominado real, o ambiente simulado de aprendizagem assistida por computador constitui-se em uma espécie de lente através da qual o aluno é capaz de ver uma dada realidade e operar sobre ela.

Em suma, nem ingênuas diante de tecnologias por que já sempre comprometidas com um determinado modo de dizer do real; porém, nem obsoletas diante da técnica e também, por isso, comprometidas com outro modo de dizer do real; atentas, e cotidianamente políticas, é "jeito de ser" a nós reservado a partir de uma perspectiva crítica de ver e entender as coisas do mundo. E, mediante tal quadro, é "quase impossível" não concordarmos com a assertiva de que "estamos dentro daquilo que fazemos e aquilo que fazemos está dentro de nós. Vivemos em um mundo de conexões – e é importante saber quem é que é feito e desfeito".20: 36

Recebido em: 12 de julho de 2007

Aprovação final: 14 de janeiro de 2008

  • 1 Foucault M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 9a ed. Petrópolis (RJ): Vozes; 1991.
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  • 6 Peters M. Pós-estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte (MG): Autêntica; 2000.
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  • Endereço para correspondência:

    Mara Ambrosina de Oliveira Vargas
    Endereço: R. dos Pessegueiros, 155
    92.320-360 - Cinco Colônias, Canoas, RS, Brasil
    E-mail:
  • *
    Ao descrever parte de uma passagem de plantão na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), procurou-se manter fiel à terminologia utilizada, nesse momento, pela equipe de enfermagem da terapia intensiva. Pretende-se, com isso, colocar em ação uma das dimensões do processo de exclusão/inclusão que esse tipo de linguagem da medicina (agregada à da tecnobiomedicina e à da própria enfermagem)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Abr 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008

    Histórico

    • Aceito
      14 Jan 2008
    • Recebido
      12 Jul 2007
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