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Reinserção social do indivíduo dependente de crack: ações desenvolvidas pela família

Resumos

O presente estudo teve como objetivo conhecer a percepção do familiar acerca das ações desenvolvidas pela família em busca da reinserção social do seu familiar dependente de crack. Pesquisa qualitativa realizada com 10 familiares de indivíduos dependentes de crack internados em uma unidade de tratamento de desintoxicação de substâncias psicoativas. Os dados foram coletados nos meses de abril e maio de 2011, por meio da técnica de grupo focal e a categorização ocorreu com base na Análise de Conteúdo. Os membros da família contribuem significativamente para a reinserção social do seu familiar dependente de crack e sentem-se corresponsáveis pelo seu tratamento e, por isso, orientam que ele busque um novo caminho. A família possui um papel preponderante na vida do familiar dependente de crack e percebe que precisa estar presente na vida dele, buscando constantemente estratégias para ajudá-lo e apoiá-lo no enfrentamento do seu sofrimento e no seu tratamento.

Família; Cocaína crack; Drogas ilícitas; Adolescente


The aim of this study was to understand the perception of families about the actions developed by them in the search for social reintegration of their crack addict relative. This is a qualitative study conducted with 10 family members of crack-addicted individuals who were hospitalized in a detoxification treatment unit of psychoactive substances. Data were collected in April and May 2011, through the focus group technique and categorization was based on content analysis. Family members contribute significantly to the social reintegration of their relative, they feel co-responsible for their treatment, and therefore they guide them in the search for a new path. Families play an essential role in the life of drug-addicted relatives and are aware that they must be present in the relative's life, constantly seeking strategies to help them and support them in coping with their suffering and treatment.

Family; Crack cocaine; Street drugs; Adolescent


El objetivo de este estudio es estudiar la percepción de la familia acerca de sus medidas tomadas en busca de la reinserción social de su familiar dependiente de crack. Investigación cualitativa realizada con 10 miembros de la familia de los individuos dependientes de crack ingresados en un planta de tratamiento de desintoxicación de sustancias psicoactivas. Los datos fueron recolectados en abril y mayo de 2011, través de la técnica de grupo focal y la categorización se basó en el análisis de contenido. Los familiares contribuyen significativamente a la reinserción social de su familiar, se sienten co-responsables por su tratamiento y orientan para que el busqué un nuevo camino. La familia tiene un papel importante en la vida del dependiente de crack y se da cuenta de que debe estar presente en su vida, en constante búsqueda de estrategias para ayudarle y apoyarle en hacer frente a su sufrimiento y de su tratamiento.

Familia; Cocaina crack; Drogas ilícitas; Adolescente


INTRODUÇÃO

O uso de drogas é uma prática antiga na história da humanidade, que permaneceu presente em distintas sociedades, principalmente associado às tradições socioculturais, rituais místicos e religiosos, e até mesmo como elemento facilitador de interação social.1Gabatz RIB, Johann M, Terra MG, Padoin SMM, Silva AA, Brum JL. Percepção do usuário sobre a droga em sua vida. Esc Anna Nery. 2013 Jul-Set; 17(3):520-5. Porém, com o passar do tempo, a relação do ser humano com as drogas foi se modificando e, atualmente, o consumo de drogas no Brasil já pode ser considerado como um problema, que vem trazendo diversos desafios às políticas públicas, ao cotidiano dos serviços e as relações sociais e familiares.2Pinho LB, Oliveira IR, Gonzales RIC, Harter J. Consumo de crack: repercusiones en la estrutura y en la dinámica de las relaciones familiares. Enferm Glob. 2012 Ene; (25):139-49.

Entre estes desafios encontra-se a necessidade de promover a reinserção social dos indivíduos dependentes de drogas. A reinserção social está relacionada com a possibilidade de reatar vínculos e o convívio do indivíduo com seus familiares e demais membros da sociedade, por meio da circulação e ocupação dos espaços sociais.3Passos FP, Aires S. Reinserção social de portadores de sofrimento psíquico: o olhar de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial. Physis. 2013; 23(1):13-31. Reinserir o dependente de drogas socialmente é uma estratégia que necessita ser impulsionada pelos profissionais dos serviços de saúde mental, por meio de ações que permitam a este indivíduo tornar-se mais autônomo e empoderado para a continuidade de seu tratamento. No entanto, este é um processo que carece ser construído em parceria com a família.3Passos FP, Aires S. Reinserção social de portadores de sofrimento psíquico: o olhar de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial. Physis. 2013; 23(1):13-31.

A família é considerada a principal instituição socializadora do indivíduo. Ela possui relação importante tanto na criação de condições que implicam o ingresso na drogadição quanto na formação de uma rede de proteção de seus membros.2 Pinho LB, Oliveira IR, Gonzales RIC, Harter J. Consumo de crack: repercusiones en la estrutura y en la dinámica de las relaciones familiares. Enferm Glob. 2012 Ene; (25):139-49.A influência que a família sofre e exerce em relação aos seus membros que desenvolvem a dependência de drogas foi apontada, em alguns estudos, como gerador de grande impacto no cotidiano familiar, principalmente no que se refere às famílias de indivíduos dependentes de crack, por ser esta uma droga estimuladora do sistema nervoso central, que vem se disseminando e amedrontando grande parte da sociedade.4Branco FMFC, Sousa MNP, Brito NCC, Rocha VLPO, Medeiros JM, Junior FJGS, et al. Compulsão, criminalidade, destruição e perdas: o significado do crack para os usuários. Enferm Foco. 2012; 3(4):174-77.

Siqueira DF, Moreschi C, Pozzobon L, Vedoin PC, Walter RR, Sá RGC. Adolescente usuário de crack: relato de experiência. Rev Enferm UFSM. 2012 Mai-Ago; 2(2):456-63.

Siqueira DF, Moreschi C, Backes DS, Lunardi VL, Filho WDL, Dalcin CB. Repercussões do uso de crack no cotidiano familiar. Cogitare Enferm. 2012 Abr-Jun; 17(2):248-54.
- 7Júnior AB, Schneider JF. Dependência do crack: repercussões para o usuário e sua família. Rev Saúde Desenvolv. 2012 Jul-Dez; 1(2):60-79.

Considerando a necessidade de uma reflexão ampliada sobre a influência da família sobre seus membros, e destacando a importância de refletir e problematizar as estratégias utilizadas pela família para promover a reinserção social do indivíduo dependente de crack, faz-se necessário partir do olhar dos próprios familiares. Ouvir a percepção dos familiares se torna relevante, ainda, pelo fato de que a maioria das produções científicas existentes sobre essa temática possui como objeto de estudo os profissionais de saúde ou as instituições que prestam atendimento aos usuários de crack.1Gabatz RIB, Johann M, Terra MG, Padoin SMM, Silva AA, Brum JL. Percepção do usuário sobre a droga em sua vida. Esc Anna Nery. 2013 Jul-Set; 17(3):520-5. , 4Branco FMFC, Sousa MNP, Brito NCC, Rocha VLPO, Medeiros JM, Junior FJGS, et al. Compulsão, criminalidade, destruição e perdas: o significado do crack para os usuários. Enferm Foco. 2012; 3(4):174-77. - 5Siqueira DF, Moreschi C, Pozzobon L, Vedoin PC, Walter RR, Sá RGC. Adolescente usuário de crack: relato de experiência. Rev Enferm UFSM. 2012 Mai-Ago; 2(2):456-63.

Frente ao exposto, questiona-se: quais as ações desenvolvidas pela família em busca da reinserção social do seu familiar dependente de crack? O objetivo foi conhecer a percepção do familiar acerca das ações desenvolvidas pela família em busca da reinserção social do seu familiar dependente de crack.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo exploratório-descritivo de abordagem qualitativa. O cenário do estudo foi uma unidade de tratamento de desintoxicação de substâncias psicoativas de um hospital de médio porte, situado na região central do Estado do Rio Grande do Sul, destinada para o tratamento de usuários de crack (adolescentes de 14 a 18 anos), que permanecem internados por períodos que variam entre nove a 12 semanas. Foram adotados os seguintes critérios de inclusão para o familiar ser participantes da pesquisa: ser familiar maior de idade de usuários de crack em processo de desintoxicação, residente no município do cenário do estudo. Após o convite formal, dez familiares (pais, mães e avós, com idades entre 30 e 60 anos) se disponibilizaram a participar da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Os dados foram coletados nos meses de abril e maio de 2011, em uma sala reservada, por meio da técnica de grupo focal, com base nas discussões dos participantes, em função de possibilitar estudar as distintas opiniões, atitudes e percepções acerca de um tema específico, fato ou prática através de uma interação em grupo.8Spagnuolo RS, Juliani CMCM, Spiri WC, Bocchi SCM, Martins STF. O enfermeiro e a estratégia saúde da família: desafios em coordenar a equipe multiprofissional. Cienc Cuid Saúde. 2012 Abr-Jun; 11(2):226-34. Para tanto, os quatro encontros com os familiares no grupo focal foram gravados em mídia digital e, posteriormente, transcritos. A pesquisadora principal atuou como coordenadora (moderadora) e uma enfermeira atuou como observadora. Os apontamentos realizados por escrito, pelo observador, durante a realização dos grupos, também foram analisados.

A análise dos dados e informações se deu por meio de categorização, com base na análise de conteúdo,9Bardin L. Análise de conteúdo. 4ª ed. Lisboa (PT): Edições; 2009. que ocorre em três etapas: a primeira, em uma frequência com identificação das principais percepções dos participantes do grupo focal; a segunda, na análise do conteúdo que identifica as categorias que emergiram a partir dos dados coletados e a terceira refere-se à interpretação das categorias.

O estudo foi submetido aos procedimentos éticos preconizados pela Resolução n. 196/96 do Conselho Nacional de Saúde,1010 Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde. Resolução 196, de 10 de outubro de 1996: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF): MS; 1996. sendo aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa sob o n. 279.2009.02. Para garantir o anonimato, os participantes foram identificados no decorrer do texto pela letra F (familiar), seguida de um número.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os conteúdos que emergiram dos depoimentos foram analisados e compuseram duas categorias temáticas: Assumindo a corresponsabilidade e Orientando um novo caminho.

Assumindo a corresponsabilidade

Ser familiar de um usuário de crack é estar envolvido em um contexto de desafios que, constantemente, exige responsabilidades e ações que busquem manter esse usuário próximo da sua família e afastado dos problemas que a dependência dessa droga traz. As ações que os familiares vêm realizando, nesse sentido, são expressas na forma de apoio e atenção ao seu familiar dependente de crack. Essas acontecem quando os familiares sentem-se corresponsáveis pelo tratamento, realizando visitas durante o período de sua internação, dando conselhos, buscando serviços ou instituições que possam auxiliar na sua reinserção na sociedade após a alta hospitalar.

Eu estou dando apoio, venho visitar ela [filha dependente de crack], dou conselho e, inclusive, já estou procurando a igreja, mesmo ela aqui dentro. Isso já é um começo! (F7).

O apoio familiar, identificado no depoimento acima, concretiza-se na ação de ser presença junto ao usuário durante a internação e buscar ajuda, inclusive, por meio da prática religiosa. Esse é um fator que converge à percepção de que o enfrentamento de problemáticas que envolvem o crack pressupõe a incorporação e integração de outros recursos para além do setor da saúde, como os sociais, psicológicos, econômicos, de segurança e, também, de religião.2Pinho LB, Oliveira IR, Gonzales RIC, Harter J. Consumo de crack: repercusiones en la estrutura y en la dinámica de las relaciones familiares. Enferm Glob. 2012 Ene; (25):139-49. O suporte religioso se constitui em uma estratégia importante na busca de conforto e esperança aos seres humanos, especialmente no enfrentamento de doenças ou situações traumáticas. Ainda, as práticas religiosas possibilitam prevenir comportamentos autodestrutivos, como os que se manifestam no abuso de substâncias químicas.1111 Backes DS, Backes MS, Medeiros HMF, Siqueira DF, Pereira SB, Dalcin CB, et al. Oficinas de espiritualidade: alternativa de cuidado para o tratamento integral de dependentes químicos. Rev Esc Enferm USP. 2012; 46(5):1254-9.

Nesse sentido, o reconhecimento pelos familiares de que a busca de apoio religioso contribui para a reinserção social dos usuários de crack reitera a necessidade de que a enfermagem necessita conhecer as práticas religiosas e a singularidade de cada paciente, para que possa "fortalecer seus mecanismos de enfrentamento e ajudá-lo a potencializar as práticas que promovam a saúde".11:1258Também, auxilia para reafirmar aos familiares a potencialidade desses mecanismos como estratégia para sua reinserção social.

Outra estratégia utilizada pelos familiares, como contribuições para a reinserção social do usuário de crack, foi encontrar uma forma de mantê-lo ocupado, seja por meio de seu retorno aos estudos ou pela sua reinserção no mercado de trabalho.

A solução para minha filha é se ocupar, voltar a estudar. Vou procurar um serviço para ela, sei que não vai ser fácil, porque muita gente não aceita pessoas que foram usuárias (F3).

No depoimento acima, o familiar também aponta uma barreira a ser transposta na busca da reinserção social dos usuários: a discriminação. Trata-se de um "tratamento diferencial e frequentemente desigual a pessoas, formal ou informalmente agrupadas em uma categoria particular".12:1182 No que se refere aos usuários de drogas, uma vez rotulados como dependentes químicos, podem sofrer discriminação no mundo do trabalho, sendo motivo para exclusão até mesmo de seus direitos de cidadania.

O cenário de discriminação e preconceito, que envolve os usuários de crack, afeta indiretamente seus familiares, que podem se sentir sobrecarregados. Com o passar do tempo, parece inevitável uma postura desamparada e de desmotivação por parte dos familiares, haja vista a dificuldade que a família encontra para se reorganizar perante as crises, pois se acumulam esforços e se obtêm poucos resultados.5Siqueira DF, Moreschi C, Pozzobon L, Vedoin PC, Walter RR, Sá RGC. Adolescente usuário de crack: relato de experiência. Rev Enferm UFSM. 2012 Mai-Ago; 2(2):456-63.

A família, embora apresente sinais de cansaço e desmotivação, continua apoiando seu familiar usuário de droga, na esperança de sua reabilitação e reinserção social. Alguns familiares acreditam que o apoio, direto ou indireto, que oferecem ao usuário é o que pode ser feito pela família no momento da internação, mas a reabilitação dele, bem como sua reinserção na sociedade, após a alta hospitalar, está condicionada aos esforços que ele mesmo desprenderá para realizar seu tratamento.

[...] todas as criaturas que estão aqui tem o apoio dos pais e é o que podemos fazer. Agora, está com elas (F7).

[...] vou ajudar ela, cuidando dos filhos dela [...] (F1).

Entende-se que o apoio familiar é muito importante, sendo mais ainda durante o tratamento. Estudo aponta que usuários que mantêm vínculo familiar no período de internação têm maior aproveitamento no tratamento do que aqueles que não possuem vínculo com familiares.1313 Carvalho FRM, Brusamarello T, Guimarães AN, Paes MR, Maftum MA. Causes of relapse and search for treatment reported by drug users in a rehabilitation unit. Colomb Med. 2011; 42(Supl 1): 57-62. Entretanto, assumir esse papel não é fácil, pois vários são os sentimentos que a família pode apresentar diante dessa situação, tais como culpa, revolta, preconceito e impotência, diante da descoberta do uso das drogas e das recaídas do usuário.1414 Oliveira MC, Leite SMS. Percepções da família do dependente químico sobre a drogadição. Boletim de Enfermagem da Universidade Tuiuti do Paraná. 2010; 4(1):70-83.

A mudança nas relações familiares decorrente do convívio com o usuário de drogas pode ser encarada como situação prejudicial, inclusive como possibilidade concreta de afetar a saúde dos demais membros da família. Essa família acaba recebendo grande carga de problemas que fazem parte do contexto diário, sendo intimidados pelo medo, pela violência, por sentimentos de resignação e pelo anseio de que novos membros se tornem usuários.2Pinho LB, Oliveira IR, Gonzales RIC, Harter J. Consumo de crack: repercusiones en la estrutura y en la dinámica de las relaciones familiares. Enferm Glob. 2012 Ene; (25):139-49. Nesse sentido, faz se necessária a inclusão da família nos serviços e práticas de saúde, para atender as diferentes demandas do mundo familiar.2Pinho LB, Oliveira IR, Gonzales RIC, Harter J. Consumo de crack: repercusiones en la estrutura y en la dinámica de las relaciones familiares. Enferm Glob. 2012 Ene; (25):139-49.

Para que a família assuma a corresponsabilidade na atenção ao usuário de crack é fundamental que possa encontrar apoio na enfermagem. Em sua prática profissional, o enfermeiro pode oferecer o suporte adequado para superar situações de desgaste físico, emocional, mental e psicológico, por meio do acolhimento, da escuta e de orientação às famílias. Quando a família sente que também está sendo cuidada, torna-se mais participativa e corresponsável pela produção do cuidado.1515 Mielke FB, Kohlrausch E, Olschowsky A, Schneider JF. A inclusão da família na atenção psicossocial: uma reflexão. Rev Eletr Enf [online]. 2010 [acesso 2014 Fev 24]; 12(4):761-5 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/fen/article/view/6812 .
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Ainda, no decorrer das discussões, foram vislumbradas diversas ações desenvolvidas pelos familiares em busca de orientar um novo caminho para o seu familiar dependente de crack, as quais serão abordadas na próxima categoria.

Orientando um novo caminho

As ações desenvolvidas pelos familiares no sentido de contribuir para a reinserção do usuário são movidas pela esperança de que eles reconstruam sua vida longe das drogas. Os familiares acreditam que, após a alta hospitalar, são necessárias mudanças de atitudes na relação com o crack, em busca de um novo caminho, de felicidade e paz espiritual.

[...] eu estou dando apoio para ela, conselho, para quando ela sair daqui ir rumo à felicidade (F2).

[...] depois que ela sair daqui eu quero que ela continue no caminho certo, no caminho de Deus (F7).

A sensação de vazio, a solidão, a ausência de pessoas que compreendam a ação devastadora do crack na vida desse usuário, levam-no a um sofrimento incomparável e garantem sua trajetória de vida, trilhada até então pelos caminhos ilícitos, impedindo, assim, a possibilidade de restruturação pessoal, familiar e ocupacional.4Branco FMFC, Sousa MNP, Brito NCC, Rocha VLPO, Medeiros JM, Junior FJGS, et al. Compulsão, criminalidade, destruição e perdas: o significado do crack para os usuários. Enferm Foco. 2012; 3(4):174-77. Na percepção dos familiares, o caminho certo a ser trilhado na vida, que proporcione encontrar a felicidade, não pode estar atrelado ao uso de crack. Nesse sentido, os familiares esperam que após a alta hospitalar o usuário consiga a manutenção de seu tratamento e supere obstáculos que desvirtuariam sua trajetória, como os representados pelas recaídas.

A recaída pode ser evitada não apenas pelo uso de medicações, mas também por meio da força de vontade do usuário e do apoio contínuo da família na busca de estratégias que auxiliem nesse processo de reabilitação.5Siqueira DF, Moreschi C, Pozzobon L, Vedoin PC, Walter RR, Sá RGC. Adolescente usuário de crack: relato de experiência. Rev Enferm UFSM. 2012 Mai-Ago; 2(2):456-63. Dentre essas estratégias, a busca de apoio na religião parece oferecer um ambiente para o estabelecimento de novos laços afetivos com outros indivíduos da comunidade, possibilitando encontrar novo sentido e prioridades para a vida, pois sabe-se que a espiritualidade se relaciona com a essência da vida, gerando comportamentos e sentimentos de amor e de esperança.1616 Reis HFT, Moreira TO. O crack no contexto familiar: uma abordagem fenomenológica. Texto Contexto Enferm [online]. 2013. [acesso 2014 Jun 01]; 22(4):1115-23. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010407072013000400030&script=sci_arttext
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- 1717 Ross L. Spiritual care in nursing: an overview of research to date. J Clin Nurs. 2006; 15(7):852-62.

Soma-se a isto o desenvolvimento de estratégias como grupos de ajuda mútua, oficinas de sensibilização para o enfrentamento das drogas e participação ativa de centros comunitários, que podem ajudar na reconstrução da relação do usuário com as drogas.2Pinho LB, Oliveira IR, Gonzales RIC, Harter J. Consumo de crack: repercusiones en la estrutura y en la dinámica de las relaciones familiares. Enferm Glob. 2012 Ene; (25):139-49.

Eu espero que, daqui pra frente, eu e a minha filha comecemos tudo de novo, porque o crack leva tudo, tudo mesmo. Tem que ser uma reconstrução geral. Uma pessoa que tem um dependente químico em casa passa quase que pela mesma coisa que um tsunami. Não de se destruir as casas, mas é praticamente igual (F5).

A percepção do crack como uma droga devastadora, evidenciada no depoimento acima, e disseminada como concepção predominante na sociedade, faz emergir nos familiares o sentimento de ruína, de tal forma que o restabelecimento da relação familiar com o usuário de crack necessita um recomeço. O poder protagonizador do crack interfere nas relações afetivas, fraternais e familiares, deixando repercussões negativas na vida daqueles que convivem e acompanham o usuário. Família, amigos e os demais envolvidos não suportam a rotina vivida a partir da inserção do crack em suas vidas. A ausência de um verdadeiro e significativo sentido existencial contribui para a deturpação do respeito, da confiança e da credibilidade que lhes eram atribuídos antes da dependência da droga.4Branco FMFC, Sousa MNP, Brito NCC, Rocha VLPO, Medeiros JM, Junior FJGS, et al. Compulsão, criminalidade, destruição e perdas: o significado do crack para os usuários. Enferm Foco. 2012; 3(4):174-77.

No entanto, o convívio com o usuário de drogas não anula as potencialidades de cada um dos membros familiares, o que possibilita à enfermagem identificá-las e mobilizá-las para trabalhar no sentido de promover a saúde do núcleo familiar.1818 Silva PA, Silva MRS, Luz GS. Interações protetoras em famílias de alcoolistas: bases para o trabalho de enfermagem. Rev Enferm UERJ. 2012 Abr-Jun; 20(2):191-6. Para isso, poderá buscar uma rede de apoio interdisciplinar que, juntamente com a família, assuma a corresponsabilidade de reinserir o usuário na sociedade. Além do apoio durante o período da internação, os familiares apontaram a necessidade de afastar o usuário de possíveis influências negativas, que venham a comprometer a reorientação de seu caminho longe das drogas.

Em primeiro lugar, depois que ela sair daqui tenho que manter ela longe das amigas (F4).

Manter ela distante do namorado, procurar sempre saber onde ela está [...] (F9).

[...] posso até estar enganada, mas se não afastar dele [namorado] e das amigas, ela vai voltar (F10).

A iniciação no consumo de drogas está associada à busca de respeito, aceitação, acesso e pressão social, bem como o desejo de inserir-se a um grupo.1919 Mombelli MA, Marcon SS, Costa JB. Caracterização das internações psiquiátricas para desintoxicação de adolescentes dependentes químicos. Rev Bras Enferm. 2010 Set-Out; 63(5):735-40. Isso vai ao encontro de um estudo, realizado em 14 capitais brasileiras, em relação aos motivos de uso de drogas ilícitas por adolescentes, que apontam os problemas familiares, a influência de amigos, a pres são do grupo, a busca por prazer, os conflitos pessoais e a ingenuidade do jovem.2020 Brazil. Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas. Relatório brasileiro sobre drogas / IME USP. Brasília (DF): SENAD; 2009.

O afastamento de pessoas que possam influenciar o uso do crack e a manutenção de vigilância constante sobre o usuário foram estratégias previstas pelos familiares. A literatura reconhece que para sustentar respostas positivas em situações adversas, como a dependência dessa substância, é necessária a existência de uma rede de suporte social efetiva, constituída por pessoas significativas, que assumam um papel de referência segura para aquelas expostas a adversidades.1818 Silva PA, Silva MRS, Luz GS. Interações protetoras em famílias de alcoolistas: bases para o trabalho de enfermagem. Rev Enferm UERJ. 2012 Abr-Jun; 20(2):191-6.

Nessa perspectiva, o familiar assume seu papel apoiado no cuidado que também poderá receber dos profissionais de saúde. O acolhimento e a escuta são estratégias fundamentais que precisam ser realizadas pelo enfermeiro e que fortalecem a produção de saúde, proporcionam a criação de vínculos que possibilitam ao núcleo familiar o alcance de uma nova organização, facilitando o processo de reabilitação psicossocial e a reinserção social do usuário.1515 Mielke FB, Kohlrausch E, Olschowsky A, Schneider JF. A inclusão da família na atenção psicossocial: uma reflexão. Rev Eletr Enf [online]. 2010 [acesso 2014 Fev 24]; 12(4):761-5 Disponível em: http://www.revistas.ufg.br/index.php/fen/article/view/6812 .
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Nesse sentido, destaca-se a necessidade de ações que contribuam para a melhoria da qualidade dos vínculos entre profissionais-familiares-usuários, e de serviços de saúde que sejam espaços de acolhimento, capazes de potencializar a rede de apoio social dos indivíduos dependentes de drogas.

CONCLUSÃO

Ao conhecer a percepção dos familiares do indivíduo dependente de crack acerca das ações desenvolvidas pela família em busca da reinserção social do usuário, foi possível evidenciar que eles se sentem corresponsáveis pelo sucesso no tratamento com vistas à reinserção na sociedade. Os familiares buscam orientar esse usuário pela procura de um novo caminho a ser seguido, como opção para libertação da dependência da droga.

Evidenciou-se que a família possui um papel preponderante na vida do familiar dependente de crack, sobretudo, durante a adolescência, visto que, nessa fase da vida, o sujeito está vivenciando um período repleto de transformações, necessitando sentir-se amparado para qualquer advertência que pode vir a surgir, nesse caso, a inserção no contexto das drogas. Além disso, salienta-se que a família necessita estar preparada para lidar com situações provenientes da dependência química. É essencial que ela esteja presente na vida do usuário, buscando constantemente estratégias para ajudá-lo, oferecendo-lhe além do suporte emocional, através do carinho, apoio e conselhos, o suporte religioso, o qual, neste estudo, mostrou-se bastante eficaz no tratamento da dependência de crack.

Ao revelar as ações desenvolvidas pelos familiares para contribuir com a reinserção social do seu familiar dependente de droga, este estudo abre possibilidades para que novas inquietações sejam exploradas. As ações realizadas pelos familiares vão ao encontro das expectativas do dependente de crack? Qual o limite entre o apoio baseado nas necessidades do dependente de crack e a ações exercidas pela família?

Sugere-se, portanto, que novos estudos sejam realizados, com a finalidade de compreender melhor as diferentes perspectivas dos usuários crack e demais membros familiares, de maneira que suas ações e experiências sejam valorizadas. O aprofundamento destas discussões propiciará, aos profissionais da saúde a construção de estratégias mais adequadas à realidade vivenciada pela família neste contexto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2015

Histórico

  • Recebido
    23 Jun 2014
  • Aceito
    11 Set 2014
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