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A fiscalização sanitária de medicamentos na sociedade de risco

Resumo

A fiscalização sanitária busca proteger a saúde da população impedindo que medicamentos fora do padrão, falsificados ou não registrados sejam consumidos e causem danos à saúde. Este ensaio objetiva contribuir para o debate acerca da fiscalização sanitária de medicamentos, num contexto de exposição contínua dos indivíduos a riscos que interferem no processo saúde-doença. Baseado nas reflexões sobre o risco sanitário e a sociedade de risco, associado à filosofia da vida de Canguilhem e à ergologia de Schwartz, discorre sobre a necessidade de se compreender a atividade humana e o trabalho para agir sobre o risco. Foram identificados possíveis desafios para a ação da fiscalização sanitária: (1) revisão conceitual; (2) atualização normativa; (3) desenvolvimento de mecanismos e ferramentas regulatórias; e (4) ampliação da capacidade técnica - formativa. Para enfrentá-los, considera-se um caminho promissor o envolvimento e a participação dos diversos atores nos espaços de cooperação e colaboração, bem como a construção de fórum permanente de debates ou de câmeras técnicas/setoriais. Estudos que dão visibilidade ao trabalho concreto das equipes de fiscalização sanitária e que analisam a atividade humana na relação entre o prescrito e o real podem ajudar a compreender a experiência de lidar com o risco, a adequação das normas, as necessidades de formação, entre outros.

Palavras-chave:
Fiscalização Sanitária; Risco Sanitário; Medicamentos; Trabalho

Abstract

Drug health surveillance protects the health of the population by preventing substandard, falsified, or unregistered drugs from being consumed and causing harm. This essay discusses drug health surveillance in a context of continuous exposure of individuals to risks that directly interfere with the health-disease process. Based on reflections about health risk and risk society, associated with Canguilhem’s philosophy of life and Schwartz’s ergology, it argues for the need to understand human activity and work to act on risk. Possible challenges for health inspection action include: (1) conceptual review; (2) regulatory updating; (3) development of regulatory mechanisms and tools; and (4) expansion of technical and training capacity. To face them, the involvement and participation of the various actors in cooperation and collaboration spaces, as well as the construction of a permanent forum of discussion or technical/sectorial meetings, is considered promising. Studies that highlight the concrete work of supervision teams and that analyze human activity in the relationship between the prescribed and the real can help to understand the experience of dealing with risk, the adequacy of standards, training needs, among others.

Keywords:
Postmarketing Drug Surveillance; Drug Control; Health Risk; Work

Introdução

A vigilância sanitária é uma das funções do Estado voltada, em sua essência, para promoção e proteção à saúde, por meio da intervenção nos riscos que envolvem o ciclo produção-consumo de bens e serviços de interesse da saúde, além das inovações tecnológicas que cotidianamente são disponibilizadas no mercado. Integra a área de Saúde Coletiva, conformando-se historicamente num campo de conhecimentos e práticas efetivadas por um conjunto de processos que buscam equilíbrio de forças entre as demandas do Estado, do mercado e da sociedade. Esses processos se desenvolvem nas atividades de regulação, normatização, controle, monitoramento e fiscalização de medicamentos, alimentos, produtos para saúde, saneantes, cosméticos, dentre outros objetos, num contexto carregado de interesses políticos, econômicos, tensões, conflitos e pressões sociais (Costa, 2009COSTA, E. A. (org). Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA, 2009. ; Silva; Costa; Lucchese, 2018SILVA, J. A. A. ; COSTA, E. A.; LUCCHESE, G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1953-1961, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.04972018
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).

Como função de Estado, o trabalho da vigilância sanitária está intimamente relacionado aos objetos sob controle sanitário, compreendendo a divisão do trabalho sob duas dimensões. A primeira é técnico-científica e controla os riscos da cadeia de produção-consumo de produtos, utilizando as tecnologias de intervenção disponíveis. E a segunda dimensão está na organização político-administrativa do trabalho, relativo aos modos de organização sistêmica do Estado, onde estão distribuídos e organizados os meios de trabalho, ou seja, “os instrumentos materiais ou tecnologias de intervenção, as normas técnicas e jurídicas e os saberes mobilizados para a realização do trabalho de controle sanitário” (Souza; Costa, 2009SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Trabalho em vigilância sanitária conceitos teóricos para a reflexão sobre as práticas. In: COSTA, E. (org.).Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA , 2009. p. 83-106. , p. 99).

O risco é o elemento fundante da modernidade, sendo a insegurança uma marca da sociedade contemporânea, segundo Ulrich Beck (2011BECK, U. Sociedade de Risco: rumo a uma outra Modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.). Para o autor, o desenvolvimento industrial, científico e tecnológico é indissociável da produção de riscos na sociedade, os quais são invisíveis na maioria das vezes; escapam aos cálculos matemáticos e aos padrões da ciência e podem extrapolar fronteiras territoriais e temporais (Beck, 2011BECK, U. Sociedade de Risco: rumo a uma outra Modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.). “Vive-se na chamada sociedade do risco que é, também, a sociedade de consumo (Costa, 2013COSTA, E. A. Regulação e vigilância sanitária para a proteção da saúde. In: VIEIRA, F. P.; REDIGUIERI, C. F. (org.) A Regulação de Medicamentos no Brasil. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 21-37. , p. 23), caracterizada pelas táticas permanentes de indução ao consumo de produtos, inclusive medicamentos e inovações tecnológicas, que agregam tanto benefícios, como também riscos à saúde. O controle destes riscos impõe desafios aos sistemas regulatórios e, dada à sua complexidade e à globalização, obrigam os países a reformularem seus processos, estratégias e práticas para proteção à saúde (Costa, 2013COSTA, E. A. Regulação e vigilância sanitária para a proteção da saúde. In: VIEIRA, F. P.; REDIGUIERI, C. F. (org.) A Regulação de Medicamentos no Brasil. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 21-37. ; Lucchese, 2008LUCCHESE, G. Globalização e Regulação Sanitária: os rumos da vigilância sanitária no Brasil. Brasília: editora Anvisa. 2008.).

Com o progressivo aumento da utilização dos mais variados serviços de saúde pela sociedade; da produção de fármacos em larga escala; do envelhecimento populacional; da globalização; da elevação do poder de compra e da oferta de diversas terapias (a exemplo dos emagrecedores), as pessoas passaram a ter maior liberdade de escolha, ampliando os riscos aos quais estão expostas, devendo existir, portanto, uma necessária e organizada intervenção estatal nessas relações sociais de produção-consumo em benefício da população (Elias, 1994ELIAS, N. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. ).

No campo de atuação da vigilância sanitária, o risco é polissêmico, complexo e conduz às ações de intervenção e de controle em cada um dos objetos e/ou processos sob sua responsabilidade (Costa, 2009COSTA, E. A. (org). Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA, 2009. , 2013COSTA, E. A. Regulação e vigilância sanitária para a proteção da saúde. In: VIEIRA, F. P.; REDIGUIERI, C. F. (org.) A Regulação de Medicamentos no Brasil. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 21-37. ). Os fármacos, por exemplo, são produtos terapêuticos de elevado risco à saúde, pois, embora tenham papel fundamental no tratamento ou diagnóstico de doenças e agravos, apresentam tanto riscos inerentes à ação farmacológica que podem causar reações adversas, quanto riscos decorrentes dos processos produtivos, como a qualidade inferior dos insumos, desvios dos padrões, falhas na fabricação, manipulação ou contaminação - justificativa para que os medicamentos sejam submetidos a rigorosos controles regulatórios em âmbito mundial (Costa, 2013COSTA, E. A. Regulação e vigilância sanitária para a proteção da saúde. In: VIEIRA, F. P.; REDIGUIERI, C. F. (org.) A Regulação de Medicamentos no Brasil. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 21-37. ; Caon; Feiden; Santos, 2012CAON, S.; FEIDEN, I. R.; DOS SANTOS, M. A. Desvio de qualidade de medicamentos em ambiente hospitalar: Identificação e avaliação das ocorrências. Revista Brasileira de Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 23-26, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.sbrafh.org.br/v1/public/artigos/201205030105BR.pdf >. Acesso em: 21 mar. 2022.
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).

O Brasil, assim como outros países em desenvolvimento, ainda importa um grande volume de medicamentos e insumos farmacêuticos, procedentes das diversas regiões do mundo, o que possibilita a ampliação do risco sanitário e exige o fortalecimento do sistema regulatório nacional para garantia da segurança, qualidade e eficácia do produto importado (Delphim; Kornis, 2018DELPHIM, C. T. S.; KORNIS, G. E. M. Outro olhar sobre a vigilância sanitária de produtos no Brasil: a legislação de controle sanitário das importações em foco. Physis: Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, p. 1-21, 2018. DOI: 10.1590/S0103-73312018280418
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).

O consumo de medicamentos fora do padrão, falsificados (SF) e não registrados (NR) é um problema mundial de saúde, ocasionando os seguintes efeitos: 1) grave risco a saúde, pois estes produtos prolongam as doenças e podem até levar a óbito; 2) aumento da resistência antimicrobiana e de infeções resistentes aos medicamentos; 3) desacreditam os profissionais de saúde e os sistemas de saúde; 4) maior desconfiança sobre a eficácia das vacinas e dos medicamentos; 5) desperdício de recursos das famílias e dos sistemas de saúde; 6) aumento nos rendimentos dos infratores e criminosos, caso não sejam “tomadas medidas urgentes para prevenir, detectar e responder” à proliferação destes produtos pelo mundo (WHO, 2017aWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. A study on the public health and socioeconomic impact of substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization, 2017a., 2017bWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global Surveillance and Monitoring System for substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization , 2017b., p. 7).

Nesse cenário, o trabalho de fiscalização sanitária tem como finalidade proteger a saúde da população, impedindo que produtos SF/NR cheguem ao consumo e causem danos à saúde. A equipe de fiscalização da vigilância sanitária atua no contexto de disputas e interesses, tendo que mediar, avaliar e intervir no ciclo de produção-consumo, que interagem dialeticamente em duas lógicas: a do mercado globalizado que direciona para o lucro e o consumo acentuado de produtos e tecnologias; e a da sociedade contemporânea, que exige acesso a estes produtos e serviços com qualidade, segurança e eficácia, de forma a satisfazer suas demandas por saúde e bem-estar (Souza; Costa, 2010SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Considerações teóricas e conceituais acerca do trabalho em vigilância sanitária, campo específico do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3329-3340, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900008
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; Gamarra, 2014GAMARRA, T. P. DAS N. Contribuições epistemológicas da ergologia para a regulação em saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 483-498, dez. 2014. DOI: 10.1590/1981-7746-sip00001
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).

A atuação da vigilância sanitária no Brasil e no mundo caminha em direção ao fortalecimento do sistema regulatório de medicamentos na pós-comercialização, o que faz da fiscalização uma das principais atividades a ser reconstruída, reestruturada com um novo enfoque e diferentes mecanismos, estratégias e instrumentos de ação para o gerenciamento adequado dos riscos atuais e potenciais, de modo a “impedir ou minimizar danos à saúde da coletividade e ao bom funcionamento das relações de produção-consumo” (Costa 2009COSTA, E. A. (org). Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA, 2009. ; Barbosa; Costa, 2010BARBOSA, A. O.; COSTA, E. A. Os sentidos de segurança sanitária no discurso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3361-3370, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900011, p. 3364). Sendo assim, como compreender essa atividade tão abrangente, de grande responsabilidade, na complexidade da sociedade contemporânea, denominada sociedade de risco?

Este ensaio teórico, baseado em autores que discutem o risco sanitário e a sociedade de risco, associada às contribuições da filosofia da vida de George Canguilhem e da ergologia de Yves Schwartz, objetiva contribuir para o debate acerca da fiscalização sanitária de medicamentos, num contexto de exposição contínua dos indivíduos a riscos que interferem diretamente no processo saúde-doença.

A sociedade de risco e o risco sanitário

A sociedade contemporânea vive sob constante e permanente risco. O termo “risco” é bastante abrangente e polissêmico. Utilizado por várias áreas do conhecimento, adquire diferentes significados, podendo ser analisado em duas grandes dimensões: uma que descreve a identidade entre o possível e o provável, o que implica em alguma forma (ou fórmula) de apreender com a regularidade dos fenômenos; e a outra que se relaciona com a esfera dos valores, ou seja, o risco pressupõe colocar em jogo algo que é valorizado, o risco como “aventura” (Spink et al., 2008SPINK, M. J. P. et al. Usos do glossário do risco em revistas: contrastando “tempo” e “públicos”. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 21, n. 1, p. 1-10, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/prc/a/xKLbKHR7BRrM6JGdKxSyW6v/?lang=pt&format=pdf >. Acesso em: 21 mar. 2020.
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).

Os riscos apresentam características de dependência do conhecimento científico, o qual, entretanto, é insuficiente para defini-los com precisão, pois considera-se que os perigos nunca são redutíveis à simples afirmação e descrição de fatos e as situações de risco são muitas vezes invisíveis, tomando por exemplo os efeitos da radioatividade no ser humano. Sendo assim, o risco está pautado na dimensão das incertezas, provocando uma desconfiança em relação ao saber científico, uma vez que a complexificação dos fenômenos na sociedade pós-moderna desmente a cada minuto “verdades científicas” antes acreditadas, consumadas e compradas pelos meios de comunicação e, consequentemente, pelo cidadão comum como “verdades absolutas” (Beck, 2011BECK, U. Sociedade de Risco: rumo a uma outra Modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.).

Na sociedade globalizada os riscos extrapolam as realidades individuais e até mesmo as fronteiras territoriais e temporais, de tal modo que o desenvolvimento social abre a possibilidade para a imprevisibilidade dos fenômenos e a imponderabilidade e volatilidade dos riscos. O progresso da ciência traz avanços, mas também consequências indesejáveis, ampliando vulnerabilidades, riscos imensuráveis e despersonalizados e até mesmo desejados, na dimensão positiva da vida, caracterizando-se como uma aventura. Entretanto, independentemente de sua dimensão, categoria ou concepção, na medida em que os riscos afetam a coletividade, são obrigatoriamente objetos de gestão pública, tanto nos micro contextos de cada cidade, Estado, nação, como no macro contexto da sociedade globalizada” (Spink et al., 2008SPINK, M. J. P. et al. Usos do glossário do risco em revistas: contrastando “tempo” e “públicos”. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 21, n. 1, p. 1-10, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/prc/a/xKLbKHR7BRrM6JGdKxSyW6v/?lang=pt&format=pdf >. Acesso em: 21 mar. 2020.
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, p. 2).

Quanto mais as vidas das pessoas são ameaçadas, menos elas são capazes de lidar adequadamente com os riscos, tensões e conflitos, sendo “dominadas pelos temores, esperanças e desejos daí resultantes” (Elias, 1994ELIAS, N. A Sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994. , p. 60). Quanto mais as pessoas de uma dada sociedade são vulneráveis aos sentimentos e à fantasia do milagre, a exemplo do consumo de medicamentos para emagrecer ou cura imediata, menos são capazes de lidar com os perigos, as incertezas e as ameaças a que estão expostas.

O direito à liberdade de escolha é dado ao indivíduo, entretanto, essa liberdade só é exercida plenamente se a escolha for feita de forma consciente e responsável. É negado o direito de liberdade quando se induz a pessoa a escolher determinado medicamento suspeito, ou quando não lhe são oferecidas todas as alternativas existentes no mercado, ou ainda não estão disponíveis todas as informações necessárias à sua decisão livre e consciente.

O avanço científico e tecnológico de produtos e serviços faz com que cheguem ao conhecimento da população diversos produtos que prometem verdadeiros “milagres tecnológicos” ou medicamentos salva-vidas e de bem-estar, gerando novas necessidades humanas, antes nunca imaginadas. O cidadão está constantemente impelido a consumir cada vez mais produtos questionáveis, além de ser bombardeado por propagandas que nem sempre apresentam as informações necessárias para escolha consciente. Entretanto, tais produtos possuem grande potencial de causar danos e agravos, trazendo para o debate questões relacionadas à qualidade, eficácia, segurança sanitária, biossegurança, além do uso e consumo racional destes produtos (Costa, 2009COSTA, E. A. (org). Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA, 2009. ; Lucchese, 2008LUCCHESE, G. Globalização e Regulação Sanitária: os rumos da vigilância sanitária no Brasil. Brasília: editora Anvisa. 2008.; WHO, 2017bWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global Surveillance and Monitoring System for substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization , 2017b.).

Nesse contexto, por não ter todas as informações necessárias à sua escolha de consumir ou não tal produto, a sociedade deposita sua “confiança” no Estado e lhe transfere a responsabilidade para controlar os riscos à saúde aos quais estão expostos na cadeia de produção-consumo de medicamentos. Por sua vez, o Estado age por meio de instituições de controle e regulação sanitária buscando o cumprimento de suas normas, num confronto permanente com as regras estabelecidas pelos diversos coletivos e indivíduos presentes na sociedade, que se concretizam na relação entre o macro e o micro da ação humana.

Compreender a atividade humana para agir sobre o risco

Viver em sociedade exige uma racionalidade em todas as esferas da vida que se expressa na normalização dos meios técnicos que vão definir o modo como os coletivos se relacionam com as estruturas sociais e com aquilo que passa a ser considerado um bem maior, mesmo que os indivíduos não tenham consciência disso (Canguilhem, 2014CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. , p. 188).

A vida do ser humano é uma espécie de dialética antropológica entre as determinações históricas e a história das suas ações normativas, dos seus atos de valorização e desvalorização, sempre em parte imprevisíveis (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulosse: Octares, 2000. ). A norma vem para enquadrar aquilo que não corresponde à exigência contida nela, “uma norma, na experiência antropológica, não pode ser original. A regra só começa a ser regra fazendo regra, e essa função de correção surge da própria infração” que vai dar origem à regulação (Canguilhem, 2014CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. , p. 190).

A norma não é natural, ela é carregada de valores, é instituída num mundo humano habitado pelas ambivalências do contexto histórico e cultural. As normas se cristalizam como algo “autorizado”, mas também como aquisição da experiência coletiva, patrimônio, mais como algo de todos do que por constrangimentos recebidos de forma heterogênea, essa situação cria ambiguidade fundamental: as normas são uma espécie de comensurabilidade para todos os protagonistas, entretanto os indivíduos e os coletivos fazem opções normativas de fecundidade e graus de universalização muito desiguais (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulosse: Octares, 2000. ).

Em todos os níveis do social, do mais micro ao mais macro, existem formas específicas de normas antecedentes, ou seja, normas que antecipam o agir, elas concorrem entre si, o indivíduo inserido nos coletivos hierarquiza, faz escolhas, num debate de valores. Nessa dinâmica, as normas serão apreendidas pelo ser humano como mais ou menos impostas, exteriores a si, ou ao contrário, reapropriadas ou transformadas no movimento de ressingularização oriundo do confronto da norma com o que o real exige (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulosse: Octares, 2000. ).

Os processos de ressingularização são resultantes do fato de que o meio de vida é infiel, e todo ser humano, consciente ou inconscientemente, para viver com saúde, busca ser não apenas um ator, mas autor de sua própria história (Durrive, 2011DURRIVE, L. A atividade humana, simultaneamente intelectual e vital: esclarecimentos complementares de Pierre Pastré e Yves Schwartz. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. suppl 1, p. 47-67, 2011. DOI: 10.1590/S1981-77462011000400003
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).

A decisão normativa relativa a uma determinada norma só pode ser entendida no contexto de outras normas (Canguilhem, 2014CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. ). Normas técnicas do controle e da regulação sanitária se comunicam com normas jurídicas e econômicas, o que é fabricado tem que ser consumido, a publicidade pode criar necessidades normalizando o consumo. Cria-se uma unidade virtual dentro de uma organização social repleta de órgãos, sistemas de informação, de decisão etc. (Canguilhem, 2014CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014. , p. 202) que buscam regular a vida em sociedade, onde se inclui o controle do risco sanitário.

Para agir sobre o risco é preciso compreender a atividade humana, que viver é um permanente debate de normas e valores, que cada ser e cada coletivo tem um patrimônio forjado na sua própria experiência, cultura etc., que resultará em escolhas que podem entrar em conflito com as normas heterodeterminadas. “Correr riscos” pode ser uma norma de vida para viver com saúde, reiterando a ideia de “riscos desejáveis”, do “risco como aventura” (Spink et al., 2008SPINK, M. J. P. et al. Usos do glossário do risco em revistas: contrastando “tempo” e “públicos”. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 21, n. 1, p. 1-10, 2008. Disponível em: <Disponível em: https://www.scielo.br/j/prc/a/xKLbKHR7BRrM6JGdKxSyW6v/?lang=pt&format=pdf >. Acesso em: 21 mar. 2020.
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, p. 3).

Nessa perspectiva, diante da necessária intervenção estatal nas relações sociais de produção e consumo, a ergologia (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulosse: Octares, 2000. ), abordagem pluridisciplinar de análise das situações de trabalho, ajuda a compreender as possibilidades de atuação da fiscalização sanitária como parte da atividade humana.

Compreender o trabalho para agir sobre o risco

A ergologia é uma abordagem pluridisciplinar que busca produzir conhecimento e intervir nas situações de trabalho a partir da experiência e do ponto de vista de quem o protagoniza (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulosse: Octares, 2000. ).

Na sua dimensão antropológica, a ergologia concebe o ser humano como um ser que interage no seu meio social e que trata as normas no sentido de atualizá-las e personalizá-las, dado que todo ser vivo carrega em si uma singularidade no fazer e no saber-fazer.

A atividade de trabalho é compreendida como a gestão, feita por um “corpo si”, da distância entre as normas antecedentes e aquilo que é efetivamente realizado, num permanente debate de normas e valores que resultam em escolhas. A atividade tem sentido abstrato de atividade interior, resultante do que se passa na mente e no corpo da pessoa no trabalho, no diálogo consigo, com o seu meio e com os outros (Schwartz, 2016SCHWARTZ, Y. Abordagem ergológica e necessidade de interfaces pluridisciplinares. ReVEL, São Leopoldo, edição especial n. 11, p. 93-104, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/2e5e27e69e52df1113fd2b52d2d99f39.pdf >. Acesso em: 21 mar. 2020.
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).

O “corpo si, o ser da atividade, é uma “entidade enigmática”, corpo e alma, que porta um patrimônio genético, cultural, psíquico, político, englobando todas a dimensões de um indivíduo que age nas dramáticas do uso de si. A dramática é o movimento entre a norma prescrita, as variações do meio e o que ele exige do “corpo si”, que se vê diante do desconhecido, do imprevisto, tendo que reagir e encontrar soluções na singularidade das situações, desencadeando renormalizações (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulosse: Octares, 2000. ).

Segundo Schwartz (2016SCHWARTZ, Y. Abordagem ergológica e necessidade de interfaces pluridisciplinares. ReVEL, São Leopoldo, edição especial n. 11, p. 93-104, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/2e5e27e69e52df1113fd2b52d2d99f39.pdf >. Acesso em: 21 mar. 2020.
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), as renormalizações acontecem em função da insuficiência do prescrito para guiar o agir humano diante do inusitado, mas também porque se ater estritamente à norma é renunciar ao desenvolvimento das capacidades humanas, tais como a inteligência, a criatividade, ou seja, torna-se um atentado à vida.

Os valores estão presentes em todos os momentos da atividade humana. O trabalhador no seu agir é confrontado por diversas exigências das normas prescritas, e, por vezes, essas normas podem entrar em conflito com seus valores pessoais, levando a um constante debate. Nas sociedades atuais, os indivíduos transitam entre valores mercantis, que são quantificáveis ou dimensionáveis; e os valores não dimensionáveis, referentes ao bem comum e à saúde (Gamarra, 2014GAMARRA, T. P. DAS N. Contribuições epistemológicas da ergologia para a regulação em saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 483-498, dez. 2014. DOI: 10.1590/1981-7746-sip00001
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).

Várias áreas do conhecimento, incluindo a vigilância sanitária, pensam e trabalham o risco de uma forma mensurável e normatizada. No entanto, o trabalho de fiscalização sanitária limita-se ao que pode ser controlável nos diferentes níveis da cadeia produtiva, sendo impossível controlar todos os riscos ou evitar totalmente os danos à saúde (Castiel, 2005CASTIEL, L. D. O estresse na pesquisa epidemiológica: o desgaste dos modelos de explicação coletiva do processo saúde-doença. Physis: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl., p. 103-120, 2005. DOI: 10.1590/S0103-73312005000300006
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).

Agir previamente sobre o risco sanitário pressupõe conhecer a natureza dos valores presentes na sociedade contemporânea e intervir nos fatores de risco reais e potenciais, prevenindo ou reduzindo danos, orientado por normas atuais de segurança sanitária para a proteção da saúde (Barbosa; Costa, 2010BARBOSA, A. O.; COSTA, E. A. Os sentidos de segurança sanitária no discurso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3361-3370, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900011).

O trabalho de fiscalização sanitária de medicamentos

A fiscalização sanitária avalia a conformidade nas etapas da cadeia produtiva de medicamentos; examina o cumprimento das normas estabelecidas, observando se a empresa atende os requisitos exigidos e se tem autorização para fabricar ou comercializar fármacos; ou se um produto está adequado aos padrões de identidade e qualidade e se apresenta as mesmas especificações aprovadas no registro. Também investiga suspeitas de fraudes, comércio ilegal ou falhas técnicas no processo produtivo, que podem causar danos à população e prejuízos econômicos aos países (Chagas; Villela, 2014CHAGAS, M. F.; VILLELA, W. V. Vigilância Sanitária e promoção de saúde: apontamentos para além da regulação e controle. Vigilância Sanitária em Debate, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 30-36, 2014. DOI: 10.3395/vd.v2n3.178
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; WHO, 2017bWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global Surveillance and Monitoring System for substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization , 2017b.).

A fiscalização sanitária objetiva a detecção de infrações sanitárias, aplicação de sanções e retirada do mercado de medicamentos irregulares, ineficazes ou nocivos à saúde humana. Estão incluídos no escopo de atuação, medicamentos com algum desvio de qualidade (alterações de aspecto, cor, odor, sabor, número de comprimidos na embalagem, volume ou presença de corpo estranho), com suspeita de estar sem registro, fabricados por empresas sem autorização de funcionamento, falsificados ou resultado de outras práticas irregulares (Costa, 2009COSTA, E. A. (org). Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA, 2009. ; Caon; Feiden; Santos, 2012CAON, S.; FEIDEN, I. R.; DOS SANTOS, M. A. Desvio de qualidade de medicamentos em ambiente hospitalar: Identificação e avaliação das ocorrências. Revista Brasileira de Farmácia Hospitalar e Serviços de Saúde, São Paulo, v. 3, n. 1, p. 23-26, 2012. Disponível em: <Disponível em: http://www.sbrafh.org.br/v1/public/artigos/201205030105BR.pdf >. Acesso em: 21 mar. 2022.
http://www.sbrafh.org.br/v1/public/artig...
; WHO, 2017aWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. A study on the public health and socioeconomic impact of substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization, 2017a., 2017bWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global Surveillance and Monitoring System for substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization , 2017b.).

No entanto, observa-se que tal ação é do tipo reativa, pois se inicia apenas após recebimento de denúncia dos consumidores ou notificação proveniente de hospitais, clínicas, unidades de saúde, profissionais de saúde e até fabricantes de medicamentos, como no caso dos falsificados ou recolhimento voluntário de medicamentos com problemas de fabricação.

As normas antecedentes que orientam a atividade de trabalho da fiscalização sanitária de medicamentos no Brasil compõem um conjunto de leis, decretos e normas federais com caráter positivista e pragmático, compondo o arcabouço legal da vigilância sanitária, ainda vigente. As principais normas jurídicas relacionadas são: a Lei no 5.991/73 (Brasil, 1973BRASIL. Lei no 5.991, de 17 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o controle sanitário do comércio de drogas, medicamentos, insumos farmacêuticos e correlatos, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 dez. 1973. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5991.htm >. Acesso em: 5 abr. 2019.
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) voltada à comercialização dos produtos da área farmacêutica e similares e a Lei nº 6.437/77 (Brasil, 1977BRASIL. Lei no 6.437, de 20 de agosto de 1977.Configura infrações à legislação sanitária federal, estabelece as sanções respectivas, e dá outras providências. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 20 ago. 1977. Disponível em: <Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6437.htm >. Acesso em: 12 mai. 2018.
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/lei...
), que dispõe sobre as infrações sanitárias, as penalidades e os ritos do processo administrativo-sanitário. Destaca-se que a segunda lei distingue o trabalhador de vigilância sanitária e o impede de ter vínculo com o setor regulado, devido à função de agente do Estado, conferindo-lhe fé pública aos seus atos e o sujeitando às sanções administrativas, civis e penais no caso de eventuais desvios em suas ações e tomada de decisão (Costa; Fernandes; Pimenta, 2008COSTA, E. A.; FERNANDES, T. M.; PIMENTA, T. S. A vigilância sanitária nas políticas de saúde no Brasil e a construção da identidade de seus trabalhadores (1976-1999). Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 995-1004, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000300021
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).

O trabalho na vigilância sanitária apresenta aspecto ético “que ultrapassa o âmbito individual e ganha uma dimensão coletiva, compatível com o significado de responsabilidade social do trabalho nessa área” (Souza; Costa, 2010SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Considerações teóricas e conceituais acerca do trabalho em vigilância sanitária, campo específico do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3329-3340, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900008
https://doi.org/10.1590/S1413-8123201000...
, p. 3338). A responsabilização ética dos trabalhadores da vigilância sanitária se concretiza na supremacia do interesse público que se sobrepõe às pressões políticas e econômicas do setor produtivo (Souza; Costa, 2009SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Trabalho em vigilância sanitária conceitos teóricos para a reflexão sobre as práticas. In: COSTA, E. (org.).Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA , 2009. p. 83-106. ).

Há ainda os regulamentos e acordos internacionais que fundamentam a gestão dos riscos e organizam mecanismos e estratégias de resposta à falsificação e práticas ilícitas, no entanto, não contemplam a totalidade das situações de trabalho atualmente encontradas pelo fiscal, no exercício de sua atividade (Costa; Fernandes; Pimenta, 2008COSTA, E. A.; FERNANDES, T. M.; PIMENTA, T. S. A vigilância sanitária nas políticas de saúde no Brasil e a construção da identidade de seus trabalhadores (1976-1999). Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 13, n. 3, p. 995-1004, 2008. DOI: 10.1590/S1413-81232008000300021
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; Nogueira; Vecina Neto, 2011NOGUEIRA, E.; VECINA NETO, G. Falsificação de medicamentos e a lei n. 11.903/09: aspectos legais e principais implicações. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 112-139, 2011. DOI: 10.11606/issn.2316-9044.v12i2p112-139
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).

Somado a isso, as normas antecedentes também estão nos regulamentos técnicos, nas resoluções e nos instrumentos jurídicos que orientam o trabalho de fiscalização, além dos roteiros que buscam padronizá-lo e reforçam a dimensão cartorial, procedimental e restritivo, para que o trabalhador seja capaz de intervir diretamente nas situações de descumprimento das regras pelas empresas e iminentes riscos à saúde da população (Sales Neto et al., 2018SALES NETO, M. R. et al. Vigilância Sanitária: a necessidade de reorientar o trabalho e a qualificação em um município. Vigilância Sanitária em Debate , Rio de Janeiro, v. 6, n. 4, p. 56-64, 2018. DOI: 10.22239/2317-269X.01176
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; Souza; Costa, 2010SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Considerações teóricas e conceituais acerca do trabalho em vigilância sanitária, campo específico do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3329-3340, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900008
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).

Os instrumentos ou meios de trabalho para o controle sanitário de produtos tornam-se construções sociais, moldados pelas ações de fiscalização, mas que sofrem variações de acordo com as mudanças políticas, econômicas e sociais diante de um mundo tão globalizado (Delphim; Kornis, 2018DELPHIM, C. T. S.; KORNIS, G. E. M. Outro olhar sobre a vigilância sanitária de produtos no Brasil: a legislação de controle sanitário das importações em foco. Physis: Revista de Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 28, n. 4, p. 1-21, 2018. DOI: 10.1590/S0103-73312018280418
https://doi.org/10.1590/S0103-7331201828...
; Souza; Costa, 2009SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Trabalho em vigilância sanitária conceitos teóricos para a reflexão sobre as práticas. In: COSTA, E. (org.).Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA , 2009. p. 83-106. ).

A vigilância sanitária funciona de maneira semelhante a um “sistema perito”, definido por Giddens (1991GIDDENS, A. As consequencias da modernidade. 5. ed. São Paulo: Editora UNESP, 1991. ) como sistema de excelência técnica ou de competência profissional que organiza as grandes áreas dos ambientes material e social. Nesse sentido, a noção de segurança abrange a situação em que se busca uma neutralização ou minimização dos perigos e se vinculada à ideia de proteção da vigilância sanitária. Isso porque incorporaria a lógica do risco aceitável estabelecido e monitorado por um sistema de gestão de risco e da confiança depositada em um sistema perito”, no caso, a vigilância sanitária (Barbosa; Costa, 2010BARBOSA, A. O.; COSTA, E. A. Os sentidos de segurança sanitária no discurso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3361-3370, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900011, p. 3363).

Assim, constata-se o caráter enigmático da atividade humana, sempre no embate entre as normas e a ação que o real exige, situações de trabalho relativamente previsíveis e ao mesmo tempo novas e inéditas (Scherer; Pires; Schwartz, 2009SCHERER, M. D. A.; PIRES, D.; SCHWARTZ, Y. Trabalho coletivo: um desafio para a gestão em saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43, n. 4, p. 721-725, 2009. DOI: 10.1590/S0034-89102009000400020
https://doi.org/10.1590/S0034-8910200900...
, p. 722), já que toda atividade humana possui um potencial de transformação social. Em qualquer situação que exija a atuação do fiscal de vigilância sanitária, haverá necessidade do uso de seu conhecimento para tomada de decisão, permeado por seus valores, experiências, singularidades e sua história de vida, corroborando para que haja readequações das normas, pois estas são limitadas e incapazes de prever todas situações reais de trabalho (Gamarra, 2014GAMARRA, T. P. DAS N. Contribuições epistemológicas da ergologia para a regulação em saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 483-498, dez. 2014. DOI: 10.1590/1981-7746-sip00001
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; Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulosse: Octares, 2000. ).

Pensar a fiscalização na perspectiva ergológica implica compreender que os saberes científicos, transformados em códigos e normas, e àqueles construídos por meio da prática e da experiência, na perspectiva do trabalhador, se complementam para explicar o trabalho real da atividade e seus efeitos na realidade (Gamarra, 2014GAMARRA, T. P. DAS N. Contribuições epistemológicas da ergologia para a regulação em saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 483-498, dez. 2014. DOI: 10.1590/1981-7746-sip00001
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).

Desta forma, é fundamental para o trabalho da fiscalização sanitária o conhecimento das dimensões dos riscos e da segurança sanitária que se articulam com noções e conceitos inerentes à esfera da proteção da saúde, ao compromisso ético e à responsabilidade pública. Sendo o conhecimento científico insuficiente para calcular ou estimar todos riscos reais ou potenciais, é possível aplicar o princípio da precaução, baseado na experiência de trabalho, para lidar com as incertezas na fabricação e comercialização de medicamentos, visando aumentar os benefícios e reduzir ou minimizar os riscos inerentes ao ciclo produtivo destes (Barbosa; Costa, 2010BARBOSA, A. O.; COSTA, E. A. Os sentidos de segurança sanitária no discurso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3361-3370, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900011; Chagas; Villela, 2014CHAGAS, M. F.; VILLELA, W. V. Vigilância Sanitária e promoção de saúde: apontamentos para além da regulação e controle. Vigilância Sanitária em Debate, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 30-36, 2014. DOI: 10.3395/vd.v2n3.178
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).

A atividade da fiscalização sanitária, dada sua natureza e peculiaridade, pode ser analisada como uma dialética entre o “micro” e o “macro”, o local e o global, já que perpassa o consciente e o inconsciente, o verbal e o não verbal, o biológico e o cultural, o mecânico e os valores (Gamarra, 2014GAMARRA, T. P. DAS N. Contribuições epistemológicas da ergologia para a regulação em saúde. Trabalho, Educação e Saúde , Rio de Janeiro, v. 12, n. 3, p. 483-498, dez. 2014. DOI: 10.1590/1981-7746-sip00001
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, p. 484). Trata-se de um ambiente permeado por relações de consumo e de incertezas (riscos), de confronto entre normas antecedentes e renormalizações efetivadas a todo momento pelos fiscais. Para atuar, dispõem do poder de polícia administrativa intrínseca à sua atividade, que lhe “permite limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público” (Costa, 2013COSTA, E. A. Regulação e vigilância sanitária para a proteção da saúde. In: VIEIRA, F. P.; REDIGUIERI, C. F. (org.) A Regulação de Medicamentos no Brasil. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 21-37. , p. 26). Em nome da proteção à saúde da população e espaço de intervenção do Estado, o trabalho da fiscalização sanitária pode assumir um caráter preventivo ou repressivo, como aplicação de multas, autos de infração, interdição de estabelecimentos, inutilização de produtos, suspensão da fabricação e comercialização, recolhimento dos produtos, entre outros (Costa, 2013COSTA, E. A. Regulação e vigilância sanitária para a proteção da saúde. In: VIEIRA, F. P.; REDIGUIERI, C. F. (org.) A Regulação de Medicamentos no Brasil. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 21-37. ; Chagas; Villela, 2014CHAGAS, M. F.; VILLELA, W. V. Vigilância Sanitária e promoção de saúde: apontamentos para além da regulação e controle. Vigilância Sanitária em Debate, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 30-36, 2014. DOI: 10.3395/vd.v2n3.178
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; Silva; Costa; Lucchese, 2018SILVA, J. A. A. ; COSTA, E. A.; LUCCHESE, G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1953-1961, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.04972018
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).

Trabalhar não é simplesmente aplicar, realizar aquilo que está prescrito, na atividade o trabalhador parcialmente se dá normas, se autolegisla e recria saberes, valores e novas normas (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulosse: Octares, 2000. ; Scherer; Pires; Schwartz, 2009SCHERER, M. D. A.; PIRES, D.; SCHWARTZ, Y. Trabalho coletivo: um desafio para a gestão em saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43, n. 4, p. 721-725, 2009. DOI: 10.1590/S0034-89102009000400020
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) como tem sido demonstrado por diversos estudos e que poderia ser aplicado às análises do processo de fiscalização sanitária.

Estudo recente sobre o trabalho de vigilância sanitária mostra que para os trabalhadores “o lado bom é a sensação de dever cumprido, de saber que as ações são para o bem da população, de que tudo que sofrem vale a pena” ao perceberem que a população se sente segura quanto aos serviços e produtos regulados (Oliveira, 2016OLIVEIRA, S. T. A. DE. O mundo (in)visível dos trabalhadores da vigilância sanitária da região da 8a Coordenadoria Regional de Saúde. 2016. Trabalho de Conclusão (Especialização em Saúde do Trabalhador) - Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2016. Disponível em: Disponível em: http://hdl.handle.net/11624/1286 . Acesso em: 21 mar. 2020.
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, p. 29). No entanto, as dificuldades estão nas pressões internas e externas, na sobrecarga de trabalho, na exposição aos riscos, na falta de compreensão e na desvalorização do seu trabalho. As angústias, o desânimo, o estresse os esforços e o sofrimento relatados na pesquisa adquirem sentido quando seu trabalho é reconhecido e fornece um motivo para que o profissional continue sua trajetória (Oliveira, 2016OLIVEIRA, S. T. A. DE. O mundo (in)visível dos trabalhadores da vigilância sanitária da região da 8a Coordenadoria Regional de Saúde. 2016. Trabalho de Conclusão (Especialização em Saúde do Trabalhador) - Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, 2016. Disponível em: Disponível em: http://hdl.handle.net/11624/1286 . Acesso em: 21 mar. 2020.
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, p. 29).

Segundo Schwartz (2016SCHWARTZ, Y. Abordagem ergológica e necessidade de interfaces pluridisciplinares. ReVEL, São Leopoldo, edição especial n. 11, p. 93-104, 2016. Disponível em: <Disponível em: http://www.revel.inf.br/files/2e5e27e69e52df1113fd2b52d2d99f39.pdf >. Acesso em: 21 mar. 2020.
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, p. 93), “em um mundo saturado de normas antecedentes em todo agir, como o é o mundo humano, a abordagem ergológica concebe a atividade como uma trama de renegociações permanentes dessas normas nas diversas situações de trabalho. O agir competente é permeado principalmente pelos valores que circulam e não se restringe a um modo determinado externamente, mas é também uma experiência de si mesmo, uma relação com a sua própria história.

Para compreender e transformar um processo de trabalho, não basta a racionalidade das análises técnicas de controle de qualidade ou das boas práticas de fabricação, sendo imprescindível considerar também a atividade real do trabalhador, os saberes e as experiências oriundos das suas escolhas na gestão do seu processo decisório, assim como os valores coletivos e individuais (Holz; Bianco, 2014HOLZ, E. B.; BIANCO, M. F. Ergologia: uma abordagem possível para os estudos organizacionais sobre trabalho. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, v. 12, n. spe, p. 494-512, 2014. Disponível em: < Disponível em: https://www.scielo.br/j/cebape/a/vf6KV9HSD3y4bmQyY6hVSvN/?format=pdf⟨=pt >. Acesso em: 21 mar. 2020.
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).

A natureza da atividade na fiscalização sanitária de medicamentos incorpora funções complexas e específicas ao cotidiano do profissional, sendo umas caracterizadas como intersetoriais e multidisciplinares. Para o exercício da atividade de fiscalização, é fundamental a articulação e integração dos conhecimentos e práticas sobre riscos sanitários advindos do uso ou consumo de medicamentos. Outras funções contrariam sobremaneira os interesses econômicos, corporativos e políticos por verificar o cumprimento das normas sanitárias, determinando o recolhimento do produto do mercado, exercendo o poder do Estado. Há ainda a função de atuar na diversidade e na dinâmica das inovações tecnológicas para a promoção da saúde, por compreender que a organização do trabalho abrange os princípios da (inter)complementaridade e da interdependência dos processos, dos instrumentos e dos meios de trabalho (Chagas; Villela, 2014CHAGAS, M. F.; VILLELA, W. V. Vigilância Sanitária e promoção de saúde: apontamentos para além da regulação e controle. Vigilância Sanitária em Debate, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 30-36, 2014. DOI: 10.3395/vd.v2n3.178
https://doi.org/10.3395/vd.v2n3.178...
; Souza; Costa, 2009SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Trabalho em vigilância sanitária conceitos teóricos para a reflexão sobre as práticas. In: COSTA, E. (org.).Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA , 2009. p. 83-106. ; 2010SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Considerações teóricas e conceituais acerca do trabalho em vigilância sanitária, campo específico do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3329-3340, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900008
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).

Considerações finais

Diante do exposto, identificam-se possíveis desafios para a fiscalização sanitária de medicamentos na sociedade de risco, em quatro dimensões: (1) revisão conceitual; (2) atualização normativa; (3) desenvolvimento de mecanismos e ferramentas regulatórias e (4) ampliação da capacidade técnico-formativa. No sentido ergológico, esses desafios situam-se no campo da atividade humana, entre os dois polos do viver: de um lado o da desaderência, que, segundo Durrive (2011DURRIVE, L. A atividade humana, simultaneamente intelectual e vital: esclarecimentos complementares de Pierre Pastré e Yves Schwartz. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 9, n. suppl 1, p. 47-67, 2011. DOI: 10.1590/S1981-77462011000400003
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, p. 52), “é a distância que o espírito humano é capaz de tomar em relação ao que acontece” para poder conceitualizar e, do outro, da aderência, ligado à vida social, à experiência de trabalho (Schwartz, 2000SCHWARTZ, Y. Le paradigme ergologique ou un métier de philosophe. Toulosse: Octares, 2000. ).

Na dimensão da revisão conceitual, trata-se da possibilidade de uma nova concepção estruturante do risco sanitário adequado à singularidade da atividade de fiscalização e às mudanças nas relações e nos estilos de vida na sociedade de risco. De acordo com Barbosa e Costa (2010BARBOSA, A. O.; COSTA, E. A. Os sentidos de segurança sanitária no discurso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3361-3370, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900011, p. 3368), “a reflexão sobre os riscos sanitários constitui o ponto de partida para se compreenderem as novas crises sanitárias”, bem como a variabilidade da noção de segurança sanitária e da percepção de risco para sociedade. Consistiria também na revisão dos instrumentos tradicionais de controle; na abordagem da gestão dos riscos globais, atuais e potenciais; na avaliação dos fatores de riscos e priorização dos mais críticos, com trabalho interdisciplinar e articulado com outras áreas que também lidam com riscos à saúde (Souza; Costa, 2010SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Considerações teóricas e conceituais acerca do trabalho em vigilância sanitária, campo específico do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3329-3340, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900008
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; Chagas; Villela, 2014CHAGAS, M. F.; VILLELA, W. V. Vigilância Sanitária e promoção de saúde: apontamentos para além da regulação e controle. Vigilância Sanitária em Debate, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, p. 30-36, 2014. DOI: 10.3395/vd.v2n3.178
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; Silva; Costa; Lucchese, 2018SILVA, J. A. A. ; COSTA, E. A.; LUCCHESE, G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1953-1961, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.04972018
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).

A segunda dimensão está relacionada à atualização do marco regulatório que fundamenta a intervenção sanitária no mercado e das normas e prescrições que orientam e subsidiam as decisões do fiscal. Ao longo da história, o trabalho de fiscalização tornou-se um agir legalista, burocrático e disciplinador do ciclo de produção-consumo dos medicamentos, (Souza; Costa, 2010SOUZA, G. S.; COSTA, E. A. Considerações teóricas e conceituais acerca do trabalho em vigilância sanitária, campo específico do trabalho em saúde. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3329-3340, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900008
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, p.3335) trazendo, portanto, o desafio de transformação do trabalho, por meio de normas adequadas à realidade social, com flexibilidade e redirecionamento dos instrumentos e práticas regulatórias para um novo agir diante das situações inéditas e tempestivas na sociedade de risco (Silva; Costa; Lucchese, 2018SILVA, J. A. A. ; COSTA, E. A.; LUCCHESE, G. SUS 30 anos: Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 23, n. 6, p. 1953-1961, 2018. DOI: 10.1590/1413-81232018236.04972018
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; Barbosa;Costa, 2010BARBOSA, A. O.; COSTA, E. A. Os sentidos de segurança sanitária no discurso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3361-3370, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900011).

A terceira dimensão envolve o desenvolvimento de mecanismos e ferramentas de gestão da informação, de síntese de evidências, de busca de sinais nas redes sociais, de incentivo às notificações dos profissionais de saúde, na perspectiva de conformar uma atuação regulatória proativa que busca compreender o contexto e se antecipa aos movimentos da sociedade contemporânea, dada a globalização e as mudanças frequentes nas relações sociais produção-consumo de medicamentos (WHO, 2017bWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global Surveillance and Monitoring System for substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization , 2017b.; Barbosa;Costa, 2010BARBOSA, A. O.; COSTA, E. A. Os sentidos de segurança sanitária no discurso da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 15, n. suppl 3, p. 3361-3370, 2010. DOI: 10.1590/S1413-81232010000900011).

A Organização Mundial de Saúde (OMS) apoia o fortalecimento dos sistemas regulatórios nacionais e a integração das redes internacionais para troca de informações sobre medicamentos SF/NR no mercado, cooperando com as agências reguladoras para implantar estratégias de prevenção, detecção e resposta, além de desenvolver capacidades técnicas e habilidades necessárias para controle efetivo dos produtos médicos no mercado (WHO, 2017aWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. A study on the public health and socioeconomic impact of substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization, 2017a., 2017bWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global Surveillance and Monitoring System for substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization , 2017b.).

Uma das possibilidades seria o desenvolvimento de um mecanismo de rastreabilidade de medicamentos, cuja finalidade seria garantir a autenticidade e a procedência legal do produto, evitando desvios na cadeia produtiva e permitindo uma ação mais rápida da equipe de fiscalização (por exemplo, na detecção e recolhimento de medicamentos SF/NR no mercado) (Nogueira; Vecina Neto, 2011NOGUEIRA, E.; VECINA NETO, G. Falsificação de medicamentos e a lei n. 11.903/09: aspectos legais e principais implicações. Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 112-139, 2011. DOI: 10.11606/issn.2316-9044.v12i2p112-139
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; WHO, 2017bWHO - WORLD HEALTH ORGANIZATION. Global Surveillance and Monitoring System for substandard and falsified medical products. Geneva: World Health Organization , 2017b.).

Destaca-se que para exercer o seu trabalho, é exigido do fiscal constante atualização de conhecimentos técnicos-científicos, de modo a acompanhar o desenvolvimento tecnológico do setor farmacêutico. A ampliação da capacidade técnico-formativa poderia extrapolar a esfera das disciplinas convencionais que constroem o conhecimento da vigilância sanitária (Sales Neto et al., 2018SALES NETO, M. R. et al. Vigilância Sanitária: a necessidade de reorientar o trabalho e a qualificação em um município. Vigilância Sanitária em Debate , Rio de Janeiro, v. 6, n. 4, p. 56-64, 2018. DOI: 10.22239/2317-269X.01176
https://doi.org/10.22239/2317-269X.01176...
; Costa, 2009COSTA, E. A. (org). Vigilância Sanitária: temas para debate. Salvador: EDUFBA, 2009. , 2013COSTA, E. A. Regulação e vigilância sanitária para a proteção da saúde. In: VIEIRA, F. P.; REDIGUIERI, C. F. (org.) A Regulação de Medicamentos no Brasil. Porto Alegre: Artmed, 2013. p. 21-37. ). Buscar inovação aos processos formativos implica em trazer o conhecimento e a experiência de quem faz a fiscalização, considerando que coexistem diferentes saberes que se distribuem de maneira não linear, não disciplinar e estão ancorados nas histórias, nas experiências e nas situações vivenciadas por cada profissional (Scherer; Pires; Schwartz, 2009SCHERER, M. D. A.; PIRES, D.; SCHWARTZ, Y. Trabalho coletivo: um desafio para a gestão em saúde. Revista de Saúde Pública, São Paulo, v. 43, n. 4, p. 721-725, 2009. DOI: 10.1590/S0034-89102009000400020
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).

Considera-se um caminho promissor para o enfrentamento desse conjunto de desafios, que poderia se constituir num quinto desafio, o envolvimento e a participação dos diversos atores (profissionais de saúde, setor produtivo e sociedade civil) nos espaços de cooperação e colaboração, bem como a construção de um fórum permanente de debates ou de câmeras técnicas/setoriais. Estudos que deem visibilidade ao trabalho concreto das equipes de fiscalização sanitária e que analisem a atividade humana na relação entre o trabalho prescrito e o real, entre a desaderência e aderência, podem ajudar a compreender a experiência de lidar com o risco, a adequação das normas, as necessidades de formação, entre outros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Ago 2021
  • Revisado
    02 Mar 2021
  • Revisado
    09 Ago 2021
  • Aceito
    17 Dez 2021
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