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Para livrar o campo do amarelão, da maleita, do alcoolismo e do ofidismo. A educação rural em Pernambuco nos anos 1930 a 1950

To free the countryside from the hookworm, malaria alcoholism and snakebite. Rural education in Pernambuco from the 1930's to the 1950's

Resumos

Este artigo explora as relações entre educação e saúde, focalizando como esses dois campos foram articulados em torno de projetos de desenvolvimento nacional, defendidos por grupos sociais em disputa no novo arranjo político inaugurado com a tomada de poder por Getúlio Vargas, em 1930. Educar a população rural era uma bandeira tanto para os defensores da "nação-potência agrária" como para os que defendiam a industrialização como base para o desenvolvimento nacional. As imagens socialmente construídas sobre o camponês o associavam à precariedade, à ignorância, à doença e à indolência, tal como o personagem Jeca Tatu. Educar, nesse contexto, adquiria o sentido de civilizar e de sanar os rurais das mazelas que assolavam o campo. Corria a notícia de que em Pernambuco havia uma escola rural modelo, cuja experiência era divulgada pelo seu jornal, O Semeador. A essência das práticas educativas desenvolvidas na Escola Rural Alberto Torres estava na transformação das práticas e costumes dos rurais, utilizando a educação moral e higiênica para formar o "novo homem do campo", mais saudável e mais produtivo.

educação; rural; higiene; desenvolvimento; socialização


This article explores the connections between education and health, focussing on how these two fields were articulated around national development projects, which were defended by disputing social groups, in the new political arrangement inaugurated by Getúlio Vargas' rise to power, in 1930. Educating the rural population was an aim pursued by the defenders of the "agrarian potency-nation" as well as by those who defended the industrialization as a base for the national development. The socially constructed images about the farmer would associate him with precariousness, ignorance, diseases and indolence, likewise the character Jeca Tatu. Educating, in this context, would acquire the sense of civilizing and remedying the illnesses which devastated the countryside. It was widely spread that in Pernambuco existed a rural school model, whose experience would be known through the school newspaper O Semeador. The essence of the educational practices developed in the Alberto Torres Rural School was in the transformation of the rural people's practices and habits, using moral and hygienic education to form the "new countryman", healthier and more productive.

education; rural; hygiene; development; socialization


DOSSIÊ - MANTER A SAÚDE, COMBATER AS DOENÇAS: HISTÓRIAS E EDUCAÇÃO

Para livrar o campo do amarelão, da maleita, do alcoolismo e do ofidismo. A educação rural em Pernambuco nos anos 1930 a 1950

To free the countryside from the hookworm, malaria alcoholism and snakebite. Rural education in Pernambuco from the 1930's to the 1950's

Mauricio Antunes Tavares

Fundação Joaquim Nabuco, Diretoria de Pesquisas Sociais. Recife, Pernambuco, Brasil. Av. Dezessete de Agosto, n.º 2.187. Casa do Forte. CEP: 52061-540

RESUMO

Este artigo explora as relações entre educação e saúde, focalizando como esses dois campos foram articulados em torno de projetos de desenvolvimento nacional, defendidos por grupos sociais em disputa no novo arranjo político inaugurado com a tomada de poder por Getúlio Vargas, em 1930. Educar a população rural era uma bandeira tanto para os defensores da "nação-potência agrária" como para os que defendiam a industrialização como base para o desenvolvimento nacional. As imagens socialmente construídas sobre o camponês o associavam à precariedade, à ignorância, à doença e à indolência, tal como o personagem Jeca Tatu. Educar, nesse contexto, adquiria o sentido de civilizar e de sanar os rurais das mazelas que assolavam o campo. Corria a notícia de que em Pernambuco havia uma escola rural modelo, cuja experiência era divulgada pelo seu jornal, O Semeador. A essência das práticas educativas desenvolvidas na Escola Rural Alberto Torres estava na transformação das práticas e costumes dos rurais, utilizando a educação moral e higiênica para formar o "novo homem do campo", mais saudável e mais produtivo.

Palavras-chave: educação; rural; higiene; desenvolvimento; socialização

ABSTRACT

This article explores the connections between education and health, focussing on how these two fields were articulated around national development projects, which were defended by disputing social groups, in the new political arrangement inaugurated by Getúlio Vargas' rise to power, in 1930. Educating the rural population was an aim pursued by the defenders of the "agrarian potency-nation" as well as by those who defended the industrialization as a base for the national development. The socially constructed images about the farmer would associate him with precariousness, ignorance, diseases and indolence, likewise the character Jeca Tatu. Educating, in this context, would acquire the sense of civilizing and remedying the illnesses which devastated the countryside. It was widely spread that in Pernambuco existed a rural school model, whose experience would be known through the school newspaper O Semeador. The essence of the educational practices developed in the Alberto Torres Rural School was in the transformation of the rural people's practices and habits, using moral and hygienic education to form the "new countryman", healthier and more productive.

Keywords: education; rural; hygiene; development; socialization

O lugar da escola no mundo rural

Todos os que sabem podem ensinar em múltiplas situações, mas apenas a escola e a cultura escolar ensinam um tipo de saber específico, que existe como possibilidade social de reprodução apenas nela e através dela (BRANDÃO, 1999, p. 57).

Parte de um estudo antropológico sobre o lugar da escola em comunidades camponesas do Brasil, realizado na década de 1980, na região do Vale do Paraíba, localizado nas divisas dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, a epígrafe que abre este texto remete ao significado da educação escolar entre as famílias camponesas dessas comunidades. Mesmo reconhecida como necessária, ainda se mantinha subordinada à "educação para a vida", transmitida dos pais para filhos e filhas, e constituída de um conjunto de saberes práticos e preceitos morais que versam sobre o valor do trabalho, da família, da terra e da solidariedade entre os que vivem da terra. Compreende também os ensinamentos das mães para as filhas a respeito dos cuidados domésticos, e dos pais para os filhos a respeito do trabalho na terra. No ethos camponês, entendido enquanto um modo de ser e de viver baseado numa ética de reciprocidade entre os "homens da terra" e desses com a natureza, é o valor conferido à terra, ao trabalho e à família que constitui a base da sua cultura (WANDERLEY, 2009; WOORTMANN, 1990).

Essa cultura camponesa, que expressa "[...] um modo de vida diferente, dissonante daquele que se instala e se expande com a revolução burguesa" (IANNI, 2009, p. 137), ainda hoje subsiste como cultura de resistência entre grupos sociais identificados como agricultores familiares1 1 A agricultura familiar das sociedades contemporâneas, herdeira da tradição camponesa, é fruto de um processo de adaptações desta às condições socioeconômicas que modificaram os modos de produzir e a vida social dos grupos sociais que a compõem. Além de pequenos proprietários e produtores sem terra (posseiros, meeiros, rendeiros, etc.), pode incluir também grupos extrativistas que vivem em condições similares tais como seringueiros, castanheiros, pescadores artesanais, catadores de mariscos e outros coletores. Todos esses produtores vivem basicamente da força de trabalho familiar, só recorrendo a terceiros eventualmente e em caráter temporário. Ver, a esse respeito, entre outros estudos, o texto esclarecedor de Wanderley (2004). . Forjada ainda no século XVII, existindo como subcultura paralela ao latifúndio escravista, foi formada por quilombolas, escravos autorizados a plantar e agricultores pobres livres que ocupavam terras que não serviam à plantation, a agricultura familiar produzia alimentos necessários para complementar as demandas do próprio sistema escravocrata, das vilas e das tripulações dos navios que aqui aportavam. A Lei de Terras, promulgada em 1850, foi o principal marco do início do processo de descampesinização brutal da sociedade rural brasileira, pelo qual o Estado e os latifundiários desestruturaram a economia e as formas sociais de "cultivadores pobres livres", a exemplo dos que moravam na parte oriental do Nordeste (PALACIOS, 1987). Nessas condições, não é por acaso que a imagem que se construiu, no Brasil, sobre os moradores do campo foi assentada "sob o signo da precariedade estrutural" (WANDERLEY, 2009, p. 168).

Como pode ser visto na obra de Williams (1989), as imagens socialmente construídas sobre o campo fazem referências positivas aos lugares e aos moradores do campo, com elogios à simplicidade, à solidariedade e à calma da vida no campo, em contraste com a vida citadina agitada. Mas também associam ao campo e, consequentemente, aos moradores do campo, características negativas relacionadas ao que é rústico, precário, miserável e, portanto, carente de intervenções civilizatórias que, em hipótese, elevariam a qualidade de vida dessa população. E, no caso do Brasil, as imagens sobre os camponeses também ressaltavam as doenças e o analfabetismo como endêmicos, características do personagem Jeca Tatu, de Monteiro Lobato, interpretado em filmes por Mazzaropi. A educação rural dificilmente poderia escapar das influências desse discurso negativo sobre a vida camponesa, sendo então construída sobre

[...] uma visão de realidade a ser transformada em que o "homem do campo" é o objeto principal das considerações, abrangendo também uma visão sobre a importância da escola na consecução de objetivos e fins cujos determinantes já estão implícitos na proposta do projeto político-econômico (DEMARTINI, 2002, p. 856).

Revisitar a trajetória de uma instituição escolar – Escola Rural Alberto Torres – alçada à condição de modelo, para Pernambuco e para o Brasil, entre as décadas de 1930 a 19502 2 O estudo faz parte da pesquisa "No campo das ideias: memória da educação em Pernambuco", desenvolvida na Fundação Joaquim Nabuco, no Centro de Estudos da História Brasileira (CEHIBRA), envolvendo outros pesquisadores e bolsistas. Agradeço a Semada Ribeiro, Janirza da Rocha Lima, Maxmiliano Roger e Tatiane Oliveira pelas contribuições que deram a este trabalho. , nos possibilita compreender como a cultura escolar contribuiu nesse processo de consolidação de uma imagem negativa dos camponeses e da vida no campo. Formada sob a égide das ideias escolanovistas baseadas na formação humanista e cientificista orientada para a vocação produtiva, em sua trajetória institucional é possível observar influências originárias do pensamento conservador e dos embates políticos e ideológicos que marcaram a história brasileira e a história da educação nesse período. Influências como do higienismo (MOTA, 2010) e do cientificismo que, apropriados pelo ruralismo, propugnavam livrar as populações do campo das mazelas físicas e morais, justificando assim a necessidade premente de transformá-los, para que aquelas populações pudessem contribuir melhor com o desenvolvimento nacional, como observa Demartini (2002).

A análise da documentação pesquisada – periódicos educacionais, documentos do governo do Estado de Pernambuco e O Semeador (1934-1942), jornal escolar da Escola Rural Alberto Torres3 3 Do jornal, editado mensalmente, estão conservadas no Arquivo Estadual de Pernambuco edições do período entre 1933 e 1942. – sobre as práticas escolares dessa instituição de ensino revela aspectos do processo de socialização escolar desenvolvido para produzir as transformações do "homem do campo". Esse processo pode ser entendido à luz do que Elias (2012, 1994) denominou como "processo civilizador", cujo objetivo central era promover a entronização das normas sociais, de modo a gerar capacidade de autocontrole, instaurando uma economia dos desejos em que a maior capacidade de autocontrole gera maiores possibilidades de inserção social. A produção do ser social adaptado à sociedade moderna era o horizonte maior a ser alcançado, a formação do indivíduo cujo modo de ser e de viver representasse perfeitamente as expectativas de uma sociedade urbana e industrial. Esse novo "homem do campo" assim formado carregaria o mundo social dentro de si, colado à subjetividade forjada à semelhança da sociedade em que vive, só que dobrada, na forma de individualidade (LAHIRE, 2004).

Essa transformação que a escola tinha e tem o dever e o poder de produzir é revelada por Bourdieu (1997) e por Bourdieu e Passeron (2008) a partir do estudo sobre a (trans)formação do habitus dentro do sistema de ensino. O habitus, entendido como um sistema de disposições e de percepções que se traduz em formas de pensar e de agir incorporadas nos processos de socialização – sendo mais fortemente marcado o habitus primário apreendido nos processos de socialização vividos na infância e adolescência –, configura-se como um tipo de "segunda natureza", derivada da escrita da trajetória social no corpo/mente de indivíduos e coletivos.

Mesmo sendo um sistema seletivo, baseado na avaliação e classificação dos alunos, cujo ápice é a certificação dos "mais aptos", o sistema escolar produz, sobretudo, disciplinamentos, modos de pensar e de ver o mundo que resultam numa certa homogeneização dos que passam pela vida escolar. Nessa condição em que a escola foi se constituindo – instituição universal, indispensável e politicamente neutra, legitimada socialmente para ensinar a todos –, ela se tornou estratégica para promover o desenvolvimento rural e sanar as populações do campo.

Encruzilhadas entre educação rural e desenvolvimento nacional

A cultura escolar atravessa a cultura camponesa em vários aspectos, sendo mais visível quando entra em questão a herança da terra. É comum que, num grupo de irmãos, a posse da terra seja transferida para aquele que não adquiriu outra qualificação profissional pela via escolar. É a essa posição da escola no mundo camponês, desse reconhecimento de que somente na escola o filho do camponês adquire credenciais que o qualificam a migrar para a cidade, que Brandão (1999) se refere. Ainda que a migração já fizesse parte da estratégia de sobrevivência da família camponesa (WOORTMANN, 1990), esta se intensificou com o cerco às formas de economia pré-capitalista e com a escolarização (BOURDIEU, 1979), pelo fato de que a escola confere um "credenciamento" aos estudantes, tanto por emitir um certificado, quanto por assegurar algum grau de assimilação da cultura escolar, baseada em disciplinamentos e hierarquias que encontram paralelos no mundo do trabalho.

Apesar da maior parte da população brasileira viver na zona rural até meados do século XX, já na terceira década do século a migração do campo para as cidades provocava um sentimento de caos urbano nas três maiores cidades do país, Rio de Janeiro, São Paulo e Recife. O processo de industrialização, maior responsável pela atração de mão de obra para as cidades, era a face econômica de um processo maior de modernização da sociedade brasileira. No Recife, que em 1937 somava mais de 430 mil habitantes e que havia passado por uma reforma urbana no estilo hausmaniano nas décadas anteriores, as pessoas viviam esse processo de modernização com um sentimento de "agitação" da vida social, causada por mudanças nos costumes e comportamentos que vinham também de influências, ideias, mercadorias e costumes que os viajantes traziam da Europa e dos Estados Unidos, numa cidade que era parada obrigatória de navios e aviões que faziam a ligação entre o exterior e o "sul" do país, centro principal da industrialização nacional. A "[...] 'cidade febril e tumultuária', onde havia um 'frisson de progresso, um desejo de correr'. [...] que festejava as novidades,admirava os progressos da técnica, tentava seguir o modelo da França, os modismos do cinema americano." (COUCEIRO, 2005, p. 81, grifos da autora).

Assim, o processo de modernização da sociedade se estendia pelas áreas da educação, artes, política e ciências, abrangendo todos os aspectos da vida social. A escola do início do século XX fazia parte desse processo de mudanças, que se traduzia tanto na expansão da rede escolar, quanto na própria questão da organização escolar: a normatização das disciplinas e das práticas educativas, a formação dos professores, a definição das etapas de ensino (do fundamental ao superior), a definição do currículo, etc. Esse processo era atravessado pelos conhecimentos que se construíam nas ciências humanas e biológicas, como nas áreas de medicina, psicologia, sociologia e no nascente campo das ciências da educação. Era a continuidade do processo de mudanças nas relações entre adultos e crianças iniciado no século XIX e que atravessou todo o século XX, em grande parte devido ao "descobrimento da infância" a que se refere Ariès (1981). Um processo de longa duração e contínuo, que, submetido à análise de Elias, em A civilização dos pais (2012), caminhou no sentido do reconhecimento de uma autonomia relativa da criança, mas dentro do contexto de crescimento da interdependência humana resultante do aumento das exigências na preparação das novas gerações para exercerem as funções de pessoa adulta.

Pela necessidade de se instaurar uma racionalidade moderna intrínseca ao projeto de desenvolvimento e a serviço deste projetou-se a ampliação da escola primária para as populações pobres do Brasil, no início do século XX. Definindo-se a racionalidade como "[...] um conceito referente, de um lado, à eficiência e rendimento, e, de outro, a normas e regras disciplinares" (MONARCHA, 2007, p. 130), é possível compreender o papel estratégico atribuído à escola rural no contexto do projeto de modernização nacional, colocando-a como uma agência civilizatória necessária para que os filhos de camponeses incorporassem novos hábitos e disposições para o trabalho e para a vida na sociedade capitalista moderna. Atuando dessa forma, a escola rural promovia a redefinição das relações entre as gerações de camponeses e a transformação das práticas sociais das novas gerações.

Entre as diferentes correntes de pensamento que disputavam a condução do projeto pedagógico da escola rural nesse início de século, a Escola Nova era o que mais se aproximava da nova racionalidade que se instaurava na sociedade nacional. Apesar das diferenças existentes, resultantes de filiações partidárias e ideológicas distintas, havia muita coisa em comum entre os educadores filiados a essa corrente, resultado de leituras comuns e dos sucessivos encontros ocorridos nas várias edições da Conferência Nacional de Educação, promovidas pela Associação Brasileira de Educação (ABE), cuja atuação tinha marcado toda a década de 1920 e influenciado as reformas educacionais realizadas por alguns governos estaduais. Isto tornou possível construir uma aliança em defesa de mudanças significativas no sistema escolar brasileiro, que resultou na publicação d'O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova. Publicado em 1932, o Manifesto valorizava o espírito científico, que proporcionaria ao estudante a experiência de "[...] estudar a realidade em geral (aquisição ativa da cultura), e a melhor maneira de estudar o trabalho em si mesmo, como fundamento da sociedade humana." (MANIFESTO, 2006, p. 191).

Enfatizando o aprender fazendo e tomando como foco o desenvolvimento biopsicossocial da criança, os educadores do Manifesto viam na escola o instrumento fundamental para promover o desenvolvimento da nação. Tratava-se, portanto, de um projeto que visava afirmar o papel da educação como instrumento de mobilidade social, estando voltada à inserção dos jovens no mundo do trabalho (CURY, 1984). Os escolanovistas mais influenciados por Dewey, entre eles Fernando de Azevedo e Anísio Teixeira, entendiam, como o próprio autor, que os processos de desenvolvimento industrial, de expansão da rede de ensino e de democratização da sociedade eram interdependentes.

Porém, essa é uma época de transformações traduzida em inovações, mas também em permanências, características evidentes nos processos de mudança social de longa duração, observados sob a ótica da sociologia dos processos civilizadores de Elias. Como afirma Carone (1982, p. 82): "Esta passagem, marcada pela revolução, leva à falsa idéia de que 1930 representa, automaticamente, a ascensão absoluta da indústria e da burguesia." As elites agrárias tradicionais permaneciam representadas na nova aliança governamental. A influência católica ainda era bastante forte no Estado brasileiro e havia muitos educadores católicos que se moviam contra as novas pedagogias, fortalecidos pela encíclica do Papa Pio XI sobre a educação cristã da juventude, Divini Illius Magistri, publicada em 1929. Esses educadores católicos, que na década passada estavam junto com os escolanovistas na ABE, foram contrários ao Manifesto dos Pioneiros e se organizaram na Confederação Católica Brasileira de Educação, de onde coordenavam tanto ações de resistência ao escolanovismo, marcando-o como se fosse uma "má pedagogia", sob o argumento de que destruiria valores sociais importantes para fundar uma nova sociedade, como ações visando influenciar a Assembleia que promulgaria a Constituição de 1934, o que conseguiram com um documento propositivo assinado por 700 pessoas (CARVALHO, 1999).

Também para alguns expoentes do ruralismo pedagógico, o projeto de modernização nacional exigia que a escola rural se afastasse das proposições do movimento escolanovista, pois viam nele as marcas da modernidade urbano-industrial. Havia os defensores da ideia de que o Brasil deveria caminhar no sentido de alcançar uma posição de destaque no mundo como potência agrária. Dentre estes, destaca-se o sociólogo Alberto Torres, um pioneiro do ruralismo, cujo pensamento difundia a ideia de um nacionalismo e de uma organização da vida social, política e econômica brasileira a partir de bases agrárias, daí derivando noções como as de "nacionalismo agrário" e de "república agrária" (WERLE; METZLER, 2010, p. 23). Alberto Torres influenciou o pensamento de muitos expoentes da educação rural na geração seguinte, entre os quais se destacaram Sud Mennucci, em São Paulo, e o pernambucano Antonio Carneiro Leão, este estando à frente das reformas educacionais promovidas no Distrito Federal (1922-26) e em Pernambuco (1927-29). Para esses dois educadores, ambos com participação importante na gestão da educação, a educação rural era necessária para melhorar a produtividade da nossa agricultura e melhorar a qualidade de vida no campo, para evitar que as novas gerações abandonassem a agricultura por causa da precariedade socioeconômica (MENNUCCI, 1935; CARNEIRO LEÃO, 1939).

Mas, a resistência de educadores católicos e alguns ruralistas não era ao conjunto das ideias escolanovistas, e sim às ideias que contrariavam interesses específicos de cada um desses grupos: a laicidade do ensino e o abandono da centralidade do rural na vida sociopolítica nacional. Porém, nos aspectos que se referiam à modificação do ensino a partir dos métodos ativos, católicos e ruralistas eram concordantes, pois viam nesse caminho a modernização não ameaçadora dos valores tradicionais, tendo como mote a ideia de compatibilizar as necessidades sociais e as práticas da vida cotidiana com as exigências da ciên­cia, cuja expressão máxima se materializava em inúmeros testes de avaliação psicopedagógica que se difundiram no Brasil desde os anos 1910 (MONARCHA, 2007). Esse também era o espírito das reformas do governo instaurado em 1930, que colocou a Educação ao lado da Saúde sob um mesmo ministério.

Como escolanovistas e católicos já haviam atuado conjuntamente na campanha cívico-educacional que a ABE protagonizara nos anos vinte, gerou-se uma zona de consenso em torno de um "programa de organização da nacionalidade". Essa era a ideia comum que movia esses grupos na persecução de um projeto de modernização nacional. E sob esta mesma bandeira figuravam propostas muito distintas e até contraditórias, envolvendo questões complexas sobre a formação das "elites diretoras" e do "povo dirigido", e sobre a posição do campo e da cidade no processo de desenvolvimento nacional.

Educação rural e higienismo em Pernambuco: o caso da Escola Rural Alberto Torres

Inicialmente denominada Escola Modelo Rural Anibal Falcão, quando de sua criação em 1933, nos arredores da cidade do Recife, em 1935 a escola adotou o nome do patrono do ruralismo nacional, passando a se chamar Escola Rural Alberto Torres. O apodo de "modelo" perdurou por pelo menos três décadas. Naquele mesmo ano, ganhou um novo edifício, de arquitetura moderna, com rampa externa, conforme projeto de Luiz Nunes (que iria integrar a equipe de Lucio Costa na construção de Brasília). Esse início de sua trajetória institucional é revelador das influências presentes na conformação do projeto pedagógico dessa escola: das ideias democráticas do escolanovismo (que mobilizava socialistas e liberais), comprometidas com a modernidade, às ideias conservadoras do catolicismo, refratárias aos ideais da modernidade, e entre esses polos opositores, as ideias nacionalistas do ruralismo, buscando uma modernização liderada pela ordem agrária. Essa mistura de influências viria desde a reforma educacional proposta por Antonio Carneiro Leão, em 1927, até a gestão do modernista Annibal Bruno à frente da Diretoria Técnica de Educação, responsável pela criação da escola em questão no "governo revolucionário" de Carlos de Lima Cavalcanti, instalado em 1930 e interrompido depois da Intentona Comunista, em 1935.

Carneiro Leão se preocupava com a formação do professor que chegava às escolas rurais, pois observava que este, geralmente, sendo morador da cidade e estando insuflado pela presumida superioridade dessa sobre o campo, chegava à escola "alheio ao ambiente natural, cultural e social que julga inferior". Questionava, então, que esse professor era "[...] incapaz de se fazer útil na solução do menor problema da vida de seus alunos, de suas necessidades econômicas ou sociais." (CARNEIRO LEÃO, 1939, p. 283). Já Annibal Bruno, formado em medicina, tinha influência das experiências realizadas na área de saúde mental, no Hospital da Tamarineira, pelo médico Ulysses Pernambucano (SELLARO, 2009) e era ligado ao Movimento Regionalista, expressão regional do movimento modernista, que reunia intelectuais como Luís da Câmara Cascudo e Gilberto Freyre.

Em estudo sobre a relação entre educação e modernidade em Pernambuco, Sellaro (2009, p. 128) considera que Freyre foi quem "[...] sintetizaria o modernismo pernambucano como paradoxalmente tradicionalista, regionalista e modernista", em reação à massificação cultural que ele identificava no modernismo do "sul" e julgava ameaçador aos valores tradicionais. Para Freyre (1954), o bom modernismo seria aquele que resultaria da articulação entre os bons hábitos do mundo rural e as transformações tecnológicas que acompanhavam a vida urbana, criando um modo de vida que ele chamou de rurbano.

Certamente a Escola Rural Alberto Torres não escapou dessa forte zona de conflitos, sendo, ela mesma, produto e produtora de conflitos entre os atores que defendiam uma escola laica, calcada nos conhecimentos científicos e voltada à formação de trabalhadores, e os atores que defendiam uma educação rural baseada numa idealização do campo como espaço social de excelência, necessitando, para melhorá-lo, levar para a população uma educação higienista, nacionalista, moral e religiosa.

Nessa escola, as práticas educativas integravam técnicas agrícolas e de criação de animais, conteúdos sobre higiene no cuidado pessoal e de alimentos, ensinamentos morais e cívicos, ações organizativas de mutirões, feiras e clubes agrícolas escolares, sendo este um elo entre a escola e as famílias dos alunos. Cabia também ao Clube Agrícola da Escola Rural Alberto Torres editar O Semeador, cuja publicação ultrapassava a marca de 1.000 ou 1.500 exemplares, distribuídos para todas as escolas rurais de Pernambuco e, numa quantidade significativa, para a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres, entidade fundada no Rio de Janeiro por Oliveira Viana e outros intelectuais nacionalistas, que o redistribuíam para divulgar o exemplo vindo do Nordeste4 4 Na edição de maio de 1934 (ano 3, n. 4), por exemplo, era informado que foram enviados 1.208 exemplares da edição anterior para a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres. As evidências dessa distribuição nacional eram registradas na seção Intercâmbio Escolar, onde se registravam as correspondências recebidas e emitidas pelo Clube Agrícola, constando os nomes de pessoas e instituições de várias partes do país, a exemplo de Roquete Pinto, Teixeira de Freitas, Barbosa Lima, entre outras personalidades da época. . Exemplo também mencionado por Mathilde Brasiliense, diretora do Grupo Escolar de Piracicaba – e posteriormente importante colaboradora na gestão de Sud Mennuci em São Paulo –, que por ocasião do Congresso de Educação realizado na Bahia, em 1934, afirmou que o país precisava criar escolas rurais como a de Pernambuco. Argumentando que só permanecem na zona rural "[...] os fracos e tímidos ou os apáticos, e os estrangeiros já camponezes nas suas terras de origem", Brasiliense (1935, p. 215) reivindica que caberia às escolas rurais uma tarefa maior, para além da alfabetização: higienizar e civilizar a zona rural.

Segundo a professora Maria do Carmo Ramos Pinto Ribeiro, diretora da escola durante seus anos iniciais, a instituição se tornou "[...] um centro de cooperativismo, onde os hábitos da população rural se identifiquem, modifiquem, aperfeiçoem e completem", [acrescentando-lhes conhecimentos sobre] "[...] higiene rural, economia, civilismo, moral e religião" (RIBEIRO, 1941, p. 50, grifos da autora). Quando, em 1941, atuava como Diretora do Departamento de Educação da Secretaria do Interior, Ribeiro foi a responsável pela organização das chamadas missões ruralistas, assim descritas em reportagem publicada no Jornal do Brasil de 11 de abril de 1945, reproduzida em seção da Revista de Educação (1945, p. 123): "A parte mais cuidada, que condensa, afinal, o objetivo da Missão, é a Higiene e a Educação Rural. [...] Dona Maria do Carmo conseguiu levar a cidade para o campo. Quando a caravana regressa, deixa um sertão sacudido de seu torpor."

A Escola Rural Alberto Torres cumpria o papel reservado às escolas de aplicação, recebendo normalistas que iriam ensinar nas escolas rurais, bem como professoras dessas, que ali faziam cursos e estágios para aprender o saber-fazer da agricultura e a relação desse com o saber-fazer escolar. Era a escola responsável por desenvolver um modelo de ensino rural e por difundir essa proposta educacional para todas as escolas rurais de Pernambuco. No documento de autoria de Annibal Bruno publicado em 1935 sob o título Um programa de política educacional, consta um organograma do que seriam as atividades dessa escola. Além da Educação Primária e da Educação Física, comum a todas as escolas, encontramos referências exclusivas do projeto educacional da Escola Rural Alberto Torres, como "Orientação Vocacional" relacionada à agricultura, criação, pequenas indústrias manuais e beneficiamento de alimentos, cada uma destas subdividida em várias atividades.

No programa de Educação Primária publicado em 1945 pela Imprensa Oficial, com o subtítulo de "Programa do Estudo da Natureza, de Educação Alimentar e Educação Higiênica em Geral", a missão higienizadora do ensino escolar ganha materialidade, embora com sofisticação, como parte do estudo de ciências. Quando se refere às escolas rurais, o documento acrescenta orientações específicas, como as relacionadas à organização da propriedade rural, recomendando o distanciamento entre a casa do agricultor e os espaços de criação de animais – galinheiro, aviário, chiqueiro, curral (PERNAMBUCO, 1945).

Alguns anos antes da publicação desse programa, as edições d'O Semeador fazem várias referências ao combate às doenças e em especial ao amarelão. Nos textos, os alunos sempre fazem recomendações do tipo "a melhor forma de combater esse mal é o uso de sapatos fechados". Há um "quadro", repetido amiúde nas edições, que traz o desenho de um homem descalço sentado numa pedra com o seguinte texto: "Combater o amarelão / Isso é fácil de fazer / Não ande de pés no chão / Ferva a água para beber". A ironia da rima em mostrar como é fácil combater um problema incidente reforça a imagem social do camponês pobre e ignorante com os pés descalços.

Na edição de número 8 de 1942 d'O Semeador, há uma matéria de Hercília Santos, aluna do 2.º ano, "Flagelos da zona rural", sendo eles: maleita, amarelão, alcoolismo e ofidismo. A aluna explica que a maleita é uma febre transmitida por um mosquito chamado anófeles, que se prolifera em latas e sacos de lixo que acumulam água, sendo recomendado colocar querosene para evitar esse flagelo. Como o amarelão é transmitido pelo ancilóstomo, alojado em fezes jogadas nas ruas, então, se o agricultor usar botas e lavar bem as frutas e verduras com água limpa irá evitar a contaminação. O terceiro é o alcoolismo, apresentado como o uso abusivo do álcool, e deve ser combatido "para que nossos irmãos não se tornem loucos e assassinos". O ofidismo, a popular picada de cobra, também é tratado como um problema decorrente do mau hábito do trabalhador do campo de não usar botas.

A Educação Física também era um instrumento de educação higienista da população rural. Em relatório produzido pelo Diretor do Serviço Médico Escolar, em 1942, leem-se os resultados do primeiro inquérito médico conduzido na rede de ensino do Recife. Na parte do relatório dedicada aos comentários dos resultados, vemos um quadro social grave, e uma missão muito clara definida para essa equipe profissional:

O nosso escolar é quase sempre o que não se pode chamar criança sadia, bem nutrida. Os nossos quadros e tabelas, se bem que não imunes de críticas, não escondem essa verdade. [...] O cotejo agrupado de todos os escolares (abstraindo-se mesmo a desvalia dos resultados médicos de alguns distritos) nos revela proporções tão elevadas de determinados sinais doentios, que se não fôra a concordância e o conhecimento direto dos problemas, teríamos razão para duvidar. [...] Seletar grupos de sadios ou de menos doentes para a Educação Física é hoje, entre os escolares do Recife, apenas uma fração do desempenho médico requerido. Retardar a correção dos defeitos fisio-morfológicos é descumprir o sentido higiênico da Educação Física (LIMA, 1942, p. 93-94).

Verificamos que uma primeira finalidade do trabalho dessa equipe médica consistia em identificar e selecionar crianças sadias para a Educação Física e, paralelamente, recomendar alguns exercícios e proibir outros, a depender do caso. No entanto, ao se deparar com a realidade da população pobre do Recife, a do homem-caranguejo revelado por Josué de Castro, o médico anuncia a função essencial da Educação Física: "o sentido higiênico".

Nos conteúdos abordados, a higiene é apresentada como uma disciplina científica, de base biológica e com atributos morais, fazendo das intervenções sociais seu maior campo de aplicação. Em consonância com a compreensão vigente da higiene como elemento indicador do grau de civilização de cada grupo social. Com êxitos logrados nas intervenções urbanas, alardeados em reportagens, livros, teses e propagandas políticas, o higienismo, entretanto, ainda era um grande desafio a ser enfrentado no mundo rural (MOTA, 2010). N'O Semeador, são muitos os relatos das aulas de higiene, tais como receitas para produzir sabão, ou para produzir o pó de juá para escovar os dentes. Também são muitas as frases que, publicadas em destaque, como quadros emoldurados, levavam mensagens de aconselhamento, muitas delas relacionadas à higiene e saúde. No "Decálogo do Professor Rural" (1934, p. 2), texto publicado no número 2 d'O Semeador, é expressa a vocação saneadora da educação rural logo em seu terceiro artigo:

A saúde é o interesse primário dos meus educandos e a ele subordino todos os meus planos de trabalho. Quero contribuir para formar uma coletividade vigorosa e sã, mediante os exercícios físicos e os hábitos de higiene na alimentação, na habitação, no vestuário e no asseio pessoal.

O que o "mandamento" do Decálogo afirma é o que temos identificado no exame da documentação desta pesquisa: a educação rural estava intrinsecamente comprometida com os objetivos das políticas de saúde e de desenvolvimento nacional. Ambas as políticas, educação e saúde, reunidas sob um mesmo ministério, compreendiam o lado social das políticas desenvolvimentistas desse período.

Considerações finais

A Escola Rural Alberto Torres é um caso paradigmático dos projetos educacionais que tinham por intenção fazer da escola a agência de modernização do mundo rural brasileiro. Segundo o diagnóstico de Carneiro Leão (1939, p. 290) sobre a situação da educação rural no país, o Brasil tinha apenas três escolas dignas de serem mencionadas como modelo de educação rural: a Escola Regional de Meriti, no Rio de Janeiro; o Grupo Escolar do Butantã, em São Paulo; e a Escola Rural Alberto Torres, em Pernambuco. Isto explica a importância conferida à época para a divulgação do projeto educativo desenvolvido em Pernambuco como modelo de educação rural para todo o país, ação para a qual convergiriam os interesses da Sociedade dos Amigos de Alberto Torres.

Tentamos trazer alguns dos elementos indicadores de que o projeto pedagógico da Escola Rural Alberto Torres tinha um claro sentido de civilizar a população rural com vistas a formar o homem moderno, nos moldes das sociedades urbano-industriais ocidentais. Nas práticas educacionais aqui tratadas é evidente que o sentido atribuído à modernização do campo passa pela transformação do camponês, incidindo sobre práticas sociais, modos de vida, organização da produção e do espaço social rural como um todo. Essas práticas estavam fundadas na racionalidade moderna, na Ciência, no Higienismo, e esse modelo se espalhava no país que aspirava ocupar um lugar junto às nações desenvolvidas, urbanas e industriais.

Mas, inserido nesse campo de lutas em torno do processo de modernização nacional, o projeto educativo da Escola Alberto Torres sofreu revezes. Numa época de tensões sociais, marcada pela guerra, pela ditadura do Estado Novo varguista, pelas lutas anticomunistas, as elites estremeciam com a expressão "nova sociedade". Antonio Carneiro Leão captou bem o medo das elites de um suposto desfecho em que os trabalhadores se revoltariam, provocando

[...] anarquia social. Toda essa gente que, inculta e ignorante, se sujeita a vegetar, se contenta em ocupações inferiores, sabendo ler e escrever aspirará outras coisas, quererá outra situação e como não há outras profissões práticas, nem temos capacidade para criá-las, desejará também ela conseguir emprego público (CARNEIRO LEÃO, 1939, p. 165).

O medo das elites justificava a vigilância sobre o paradigma de "escola modelo" que pretendesse a transformação da massa rural brasileira. Na dianteira da reação estavam os educadores católicos, que haviam aumentado sua influência sobre o Ministério da Educação e Saúde criado por Vargas e garantido constitucionalmente a obrigatoriedade do ensino religioso nas escolas públicas. Também atacaram a proposta de formação das professoras rurais, pois abandonava a tradicional divisão dos trabalhos de acordo com o sexo, colocando as professoras das escolas rurais no aprendizado prático relacionado à agricultura, considerada atividade masculina. O impacto na sociedade local foi forte, visto que o tema virou marcha de carnaval, associando a formação que as normalistas recebiam na Escola Alberto Torres ao relaxamento da moral sexual (SELLARO, 2009, p. 176).

O caminho então adotado pelos conservadores, como já foi dito, foi o de despir as propostas pedagógicas progressistas de seus fundamentos sociofilosóficos e as reduzir à técnica, metodologia ou didática. Essa redução insere-se no bojo das mudanças do início do século XX, em que a modernidade se deslocava com as expectativas e frustrações desencadeadas desde a Primeira Guerra Mundial, cujo processo foi evoluindo no sentido de conter as promessas de emancipação nos limites da regulação, até provocar a "[...] redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado" (SANTOS, 2002, p. 9, apud DALE, 2010, p. 1103), processo este que tem seu ápice na atualidade, sob a onda neoliberal e pós-moderna.

Buscamos evidenciar os sentidos da construção da imagem do camponês como alguém atrasado, com muitos erros de comportamento social – no andar, no vestir, nas formas de produzir. Mesmo que reconhecidos como trabalhadores importantes para o desenvolvimento nacional precisavam de uma intervenção corretiva e transformadora, para fazer surgir o novo homem do campo, limpo, saudável, livre de moléstias e de maus hábitos, o sujeito moderno e civilizado. Nesse contexto a missão da escola, como agência socializadora, era sanear e civilizar as populações do campo, alcançando os adultos por intermédio da educação das crianças. Esse sentido do processo de socialização é o que Elias (1994) afirma ser a parte menos visível desse conceito, e, no entanto, é a mais reveladora de como se operam os processos de mudança cultural entre gerações.

Texto recebido em 15 de outubro de 2014

Texto aprovado em 21 de outubro de 2014

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  • 1
    A agricultura familiar das sociedades contemporâneas, herdeira da tradição camponesa, é fruto de um processo de adaptações desta às condições socioeconômicas que modificaram os modos de produzir e a vida social dos grupos sociais que a compõem. Além de pequenos proprietários e produtores sem terra (posseiros, meeiros, rendeiros, etc.), pode incluir também grupos extrativistas que vivem em condições similares tais como seringueiros, castanheiros, pescadores artesanais, catadores de mariscos e outros coletores. Todos esses produtores vivem basicamente da força de trabalho familiar, só recorrendo a terceiros eventualmente e em caráter temporário. Ver, a esse respeito, entre outros estudos, o texto esclarecedor de Wanderley (2004).
  • 2
    O estudo faz parte da pesquisa "No campo das ideias: memória da educação em Pernambuco", desenvolvida na Fundação Joaquim Nabuco, no Centro de Estudos da História Brasileira (CEHIBRA), envolvendo outros pesquisadores e bolsistas. Agradeço a Semada Ribeiro, Janirza da Rocha Lima, Maxmiliano Roger e Tatiane Oliveira pelas contribuições que deram a este trabalho.
  • 3
    Do jornal, editado mensalmente, estão conservadas no Arquivo Estadual de Pernambuco edições do período entre 1933 e 1942.
  • 4
    Na edição de maio de 1934 (ano 3, n. 4), por exemplo, era informado que foram enviados 1.208 exemplares da edição anterior para a Sociedade dos Amigos de Alberto Torres. As evidências dessa distribuição nacional eram registradas na seção Intercâmbio Escolar, onde se registravam as correspondências recebidas e emitidas pelo Clube Agrícola, constando os nomes de pessoas e instituições de várias partes do país, a exemplo de Roquete Pinto, Teixeira de Freitas, Barbosa Lima, entre outras personalidades da época.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      14 Jan 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 2014

    Histórico

    • Aceito
      21 Out 2014
    • Recebido
      15 Out 2014
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