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Inserção profissional de professores/as na carreira: a prática como política da verdade

Professional insertion of teachers in the career: practice as a policy of truth

RESUMO

Este artigo é um recorte de uma pesquisa de doutorado e objetiva analisar como a prática tem se posicionado como uma política da verdade na inserção profissional de professores/as na carreira. O aporte teórico-metodológico apoia-se nas noções de verdade e prática de Michel Foucault. Para a produção das informações acerca do objeto, a pesquisa seguiu por dois itinerários: o primeiro consistiu no mapeamento de documentos oficiais que regulamentam as políticas públicas destinadas à formação e ao desenvolvimento profissional de professores/as, e o segundo itinerário buscou reunir, por meio da realização de grupos de discussão, um composto de falas de professores/as iniciantes e coordenadores/as pedagógicos da Rede Municipal de Educação de Caetité, no Estado da Bahia, que atuam em escolas que ofertam os anos finais do Ensino Fundamental. Os achados da pesquisa permitem concluir que a prática constitui a política geral da verdade na inserção profissional de professores/as na carreira, mediante a produção de um conjunto de princípios-verdades que fazem funcionar normas, regras, valores e atitudes como manifestação do verdadeiro na condução e produção de professores/as iniciantes, visando ao exercício da docência na contemporaneidade.

Palavras-chave:
Inserção Profissional; Verdade; Prática; Princípios-Verdades; Docência

ABSTRACT

This article is an excerpt from a doctoral research and aims to analyze how practice has been positioned as a policy of truth in the professional insertion of teachers in the career. The theoretical-methodological contribution is based on Michel Foucault’s notions of truth and practice. For the production of information about the object, the research followed two itineraries: the first consisted of mapping official documents that regulate public policies aimed at the training and professional development of teachers, and the second itinerary sought to bring together, through the holding of discussion groups, a composed of speeches by beginning teachers and pedagogical coordinators of the Municipal Education Network of Caetité, in the State of Bahia, who work in schools that offer the final years of elementary school. The research findings allow us to conclude that practice constitutes the general policy of truth in the professional insertion of teachers in the career, through the production of a set of principles-truths that make norms, rules, values ​​and attitudes work as a manifestation of what is true in conduction and production of beginning teachers, aiming at the exercise of teaching in contemporary times.

Keywords:
Professional Insertion; Truth; Practice; Principles-Truths; Teaching

Introdução

Os estudos da área da Educação, nos últimos anos, têm dedicado especial atenção ao desenvolvimento profissional docente. Além da formação inicial, tais estudos vêm se ocupando com o/a professor/a no exercício de sua profissão, dando ênfase ao período de inserção profissional na carreira. Aliado a isso, tem-se presenciado, no campo das políticas públicas educacionais, um conjunto de ações coordenadas pelo Estado que visam à formação continuada em exercício e ao acompanhamento do/a docente nos primeiros anos de exercício da profissão. Do mesmo modo, nos cursos de licenciatura, programas institucionais implantados recentemente buscam induzir a iniciação à docência, como é o caso do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e do Programa de Residência Pedagógica.

No contexto dessas ações, o discurso predominante é o de que a melhoria da qualidade da educação está, inexoravelmente, associada à qualificação da prática docente. Ao que tudo indica, a prática é posicionada como a peça central, a base, o núcleo explicativo para o êxito do processo educacional, por isso é desejada, motivada e disputada nas escolas, nas secretarias de educação, nas políticas públicas educacionais etc. Todos a defendem e anunciam que ela precisa ser melhorada, aperfeiçoada, renovada, transformada. Desse modo, parece que é em torno da e para a prática que se organizam as estratégias da formação docente e da inserção profissional de professores/as na carreira.

O propósito deste artigo é analisar, a partir do recorte de uma pesquisa de doutorado, como a prática tem se constituído como uma política da verdade na inserção de professores/as na profissão docente. Com base nos estudos de Foucault (2018FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 7. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.), opera-se, neste artigo, com a ideia de que a verdade não pode ser entendida como “o conjunto das coisas verdadeiras a descobrir ou a fazer aceitar, mas o conjunto das regras segundo as quais se distingue o verdadeiro do falso e se atribui ao verdadeiro, efeitos específicos de poder” (FOUCAULT, 2018FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 7. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018., p. 53). Dito de outro modo, a verdade não está inscrita no cerne de uma realidade como um atributo original a espera de alguém, mas é sempre uma invenção, uma produção em relação a uma realidade específica, em um determinado momento da história. Para Foucault (1993), a verdade é uma espécie de polo magnético que lança o sujeito em direção a um objetivo. Partindo desse pressuposto, considera-se que a política de verdade da prática produz e expressa uma forma de poder que incide sobre os/as professores/as iniciantes na carreira, instando-os/as a constituírem um modo específico de pensar e fazer a docência.

Os estudos que têm se debruçado sobre a inserção de professores/as na carreira evidenciam que esse período é uma etapa significativa para a constituição profissional do/a docente. Vaillant e Marcelo-García (2012VAILLANT, Denise; MARCELO-GARCIA, Carlos. Ensinando a ensinar: as quatro etapas de uma aprendizagem. Curitiba: UTFPR, 2012., p. 123) ressaltam que é na inserção profissional que o/a professor/a se defronta com a realidade da docência e experimenta “os problemas com maiores doses de incertezas e estresse, devido ao fato de que eles têm menores referências e mecanismos para enfrentar essas situações”. Papi e Martins (2010PAPI, Silmara de Oliveira Gomes; MARTINS, Pura Lúcia Oliver. A pesquisa sobre professores iniciantes: algumas aproximações. Educação em Revista, v. 26, n. 3, p. 39-56, 2010. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-46982010000300003. Acesso em: 20 dez. 2022.
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, p. 47), por sua vez, destacam que “os primeiros anos de experiência profissional são basilares para a configuração das ações profissionais futuras e para a própria permanência na profissão”. Para André, Passos e Almeida (2020ANDRÉ, Marli Elisa Dalmazo Afonso de; PASSOS, Laurizete Ferragut; ALMEIDA, Patrícia Albieri de. Apresentação do Dossiê Formação e inserção profissional de professores iniciantes: conceitos e práticas. Revista Eletrônica de Educação, v. 14, p. 1-3, e4780110, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.14244/198271994780. Acesso em: 15 dez. 2022.
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), a inserção profissional docente não pode ficar invisibilizada no âmbito das políticas públicas gerais e institucionais, devido “às situações novas que adentram a realidade escolar e que têm exigido aprendizagens dos professores no contexto de trabalho e a busca de alternativas e procedimentos, muitas vezes não conhecidos e experimentados” (ANDRÉ; PASSOS; ALMEIDA, 2020ANDRÉ, Marli Elisa Dalmazo Afonso de; PASSOS, Laurizete Ferragut; ALMEIDA, Patrícia Albieri de. Apresentação do Dossiê Formação e inserção profissional de professores iniciantes: conceitos e práticas. Revista Eletrônica de Educação, v. 14, p. 1-3, e4780110, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.14244/198271994780. Acesso em: 15 dez. 2022.
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, p. 2).

A inserção na carreira se dá para cada professor/a de maneira muito diferente, tanto em duração quanto em intensidade, razão pela qual não existe um consenso entre os estudiosos do tema sobre o tempo que esse período se processa para a efetiva inserção profissional do/a docente na carreira. Huberman (2000HUBERMAN, Michael. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA, António (Org.). Vidas de professores. 2. ed. Porto: Porto, 2000. p. 31-61.), por exemplo, em suas pesquisas sobre o ciclo de vida profissional dos/as professores/as, defende que os primeiros três anos são decisivos e angustiantes para esses/as docentes. Ele ressalta que os/as professores apresentam anseios, expectativas, necessidades, satisfação ou insatisfação em variados momentos de suas carreiras. É um período caracterizado, segundo o autor, por aspectos de sobrevivência, descoberta e exploração. Assim, o desenvolvimento da carreira constitui-se em “[...] um processo e não em uma série de acontecimentos” (HUBERMAN, 2000HUBERMAN, Michael. O ciclo de vida profissional dos professores. In: NÓVOA, António (Org.). Vidas de professores. 2. ed. Porto: Porto, 2000. p. 31-61., p. 38).

André (2013ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Entrevista com Marli André. Entrevista concedida a Bruna Nicolielo. Nova Escola, 2013. Disponível em: https://novaescola.org.br/ conteudo/888/entrevista-com-marliandre. Acesso em: 20 dez. 2020.
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, p. 3) também compartilha com a ideia de que “os três primeiros anos são considerados os mais difíceis para quem está começando”. Já Tardif e Raymond (2000TARDIF, Maurice; RAYMOND, Danielle. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação & Sociedade, ano 21, n. 73, p. 209-243, 2000. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-73302000000400013.
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) ressaltam que existem duas fases na inserção do/a professor/a na carreira: a primeira, denominada de exploração, ocorre do primeiro ao terceiro ano. Nesta fase, o/a professor/a exercita sua docência por meio de tentativas e erros e sente a necessidade de ser aceito na escola, experimentando diferentes papéis; a segunda fase, caracterizada pela estabilização e consolidação, vai do terceiro ao sétimo ano e compreende a fase em que o/a docente passa a confiar mais em si mesmo/a e adquire, também, a confiança dos colegas, estudantes, família e corpo diretivo das escolas.

Diante dessas incertezas, a literatura costuma nomear os/as docentes que se encontram nessa situação de professores/as iniciantes ou professores/as principiantes. “Trata-se, portanto, daqueles professores que se encontram recém-licenciados e certificados profissionalmente” (CRUZ; FARIAS; HOBOLD, 2020CRUZ, Giseli Barreto da; FARIAS, Isabel Maria Sabino de; HOBOLD, Márcia de Souza. Indução profissional e o início do trabalho docente: debates e necessidades. Revista Eletrônica de Educação, v. 14, p. 1-15, e4149114, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.14244/198271994149. Acesso em: 15 dez. 2022.
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, p. 4). Neste artigo, são nomeados de professores/as iniciantes os sujeitos aqui investigados que, à época da realização da pesquisa de campo (2018), estavam em sua primeira experiência docente, após a conclusão do curso de licenciatura e com até cinco anos de trabalho em instituições escolares.

O fio condutor que mobiliza a escrita deste artigo parte do seguinte questionamento: de que modo a prática, como uma política da verdade, mobiliza e incita os/as professores/as iniciantes na carreira? O argumento que aqui se busca defender é o de que a prática tem sido convocada no início da carreira docente como portadora de uma verdade ou como lócus de produção do verdadeiro, na medida em que produz um conjunto de princípios que manifestam e fazem funcionar normas, regras, valores e atitudes acerca da docência contemporânea. Isso vai demandar que os/as professores/as iniciantes manifestem, no exercício da docência, certo tratamento didático-pedagógico referente aos conteúdos curriculares e às metodologias de ensino, com o fito de alcançar melhorias no processo de aprendizagem dos/as estudantes.

Para o desenvolvimento desse argumento, este texto está organizado em quatro partes, além desta introdução. Na primeira parte, serão apresentados os itinerários da pesquisa, ou seja, os caminhos metodológicos percorridos para a produção das informações acerca do objeto de estudo. Na segunda parte, serão tecidas breves considerações acerca dos termos verdade e prática, tomando como referência os estudos de Michel Foucault. A terceira parte do artigo analisará, com base na materialidade empírica da pesquisa, como a prática docente articula um conjunto de princípios do verdadeiro sobre a docência para consolidar-se como uma política da verdade na inserção profissional de professores/as na carreira. Por fim, nas considerações finais, será feita a sistematização da argumentação desenvolvida ao longo do artigo.

Itinerários da pesquisa

Uma pesquisa em movimento! Eis a maneira como foi concebida a metodologia deste estudo que se apoia em uma abordagem qualitativa de pesquisa. No ir e vir do trabalho metodológico para organizar a materialidade empírica deste estudo, dois itinerários foram percorridos: o primeiro consistiu no mapeamento e na análise de documentos oficias sobre o desenvolvimento profissional docente. Nessa etapa, foram estudados os documentos oficias que regulamentam as políticas públicas destinadas à formação e ao desenvolvimento profissional de professores/as, com o objetivo de analisar o seu ordenamento discursivo a respeito da inserção profissional de professores/as na carreira. O levantamento priorizou os seguintes documentos: a Resolução CNE/CP nº 2 de 20 de dezembro de 2019 que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica e institui a Base Nacional Comum para a Formação Inicial de Professores da Educação Básica (BNC-Formação) e o Plano Municipal de Educação de Caetité (2015-2025), cidade situada na região semiárida do Estado da Bahia, onde a pesquisa foi realizada. A opção por esse Município se deu em função das atividades profissionais que o pesquisador desenvolve na Universidade local e nas escolas de educação básica, localizadas no referido Município, com professores/as iniciantes.

Quanto ao segundo itinerário, buscou-se reunir as falas de professores/as iniciantes e de coordenadores/as pedagógicos da Rede Municipal de Educação de Caetité que atuam em escolas que oferecem os anos finais do Ensino Fundamental, mediante a realização de grupos de discussão. A opção por esse instrumento de pesquisa se deu porque, de acordo com Weller (2006WELLER, Wivian. Grupos de discussão na pesquisa com adolescentes e jovens: aportes teórico-metodológicos e análise de uma experiência com o método. Educação e Pesquisa, v. 32, n.2, p. 241-260, 2006. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-97022006000200003. Acesso em: 15 jul. 2022.
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, p. 246), os grupos de discussão “constituem uma ferramenta importante para a reconstrução dos contextos sociais e dos modelos que orientam as ações dos sujeitos”. Segundo a autora, o interesse do pesquisador, com os grupos de discussão, não é apenas em conhecer as opiniões dos sujeitos, mas suas experiências ou suas posições sobre um determinado tema.

Ao todo, foram realizados quatro grupos de discussão os quais aconteceram na Secretaria Municipal de Educação de Caetité, em dias previamente agendados com os sujeitos. Em todos os encontros, foram feitas anotações sobre o contexto das falas dos/as participantes no Caderno de Anotações da Pesquisa (CAP) e o registro por meio de gravação em áudio. Antes do início de cada grupo de discussão, era solicitado a cada participante o preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

O primeiro grupo de discussão ocorreu com os/as coordenadores/as pedagógicos/as. Participaram desse momento seis coordenadores/as, sendo três homens e três mulheres. As questões norteadoras da discussão giraram em torno do apoio dado aos/às professores/as no início da carreira, às relações entre os/as iniciantes e os/as experientes na escola, às situações de planejamento pedagógico e de formação continuada que a Secretaria de Educação de Caetité realizava. Os três outros grupos de discussão foram realizados com onze professores/as iniciantes, com idade entre 23 e 27 anos, sendo seis mulheres e cinco homens. Neles, foram abordadas questões que buscaram levantar suas experiências relacionadas aos primeiros anos da prática docente, como a recepção na escola, os desafios enfrentados, as relações estabelecidas, o planejamento pedagógico, a formação e as perspectivas sobre a profissão. Neste artigo, eles/as serão identificados/as com a expressão Professor/a Iniciante, seguida de uma letra do alfabeto. Os/As coordenadores/as serão identificados/as com a expressão Coordenador/a, seguida de uma letra do alfabeto.

Com as informações produzidas nos dois itinerários da pesquisa, foi feito um mapeamento discursivo do material para identificar os ditos e as falas sobre a inserção profissional na carreira, analisando as aceitações, as interdições, os saberes, os poderes, as verdades e as posições que os sujeitos ocupam nessa ordem discursiva. Vale dizer que a análise do discurso privilegiada neste artigo, de inspiração foucaultiana, buscou compreender as condições e os elementos que fazem com que certos ditos e falas adquiram sentidos de verdade, produzindo determinados efeitos na inserção profissional na carreira docente. Foucault (2004FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 11. ed. São Paulo: Loyola, 2004.) entende o discurso como uma prática social e parte do pressuposto de que toda sociedade engendra seus discursos e utiliza-se de diversos mecanismos para controlar e regular a sua produção. Para ele, o discurso se constitui em um “conjunto de enunciados que se apoia em um mesmo sistema de formação” (FOUCAULT, 2008aFOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008a., p. 122), o qual tem a potencialidade para fabricar uma dada realidade.

Desse modo, após o mapeamento das informações dos documentos e das falas dos/as coordenadores/as e professores/as, buscou-se localizar enunciados de verdade nesse material e verificar como eles funcionam na constituição de um discurso que produz determinados saberes para atender a certas imposições políticas, sociais e econômicas. Assim, a análise da materialidade empírica da pesquisa colocou em evidência que a prática docente funciona como uma política da verdade na inserção de professores/as na carreira, conduzindo os seus modos de pensar e agir no exercício da profissão, em aderência às exigências da sociedade contemporânea.

Verdade e prática sob um olhar foucaultiano

Foucault (2018FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 7. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.) ressalta que o poder se alastra por toda a esfera social, compondo uma rede que circula por intermédio de uma multiplicidade de relações de força que estão sempre em correlação, em luta, em constante disputa, em um jogo dinâmico e contínuo. Tais relações de força “não podem dissociar-se, nem estabelecer-se, nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma circulação, um funcionamento do discurso verdadeiro” (FOUCAULT, 2005FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso dado no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005., p. 28). Nessa perspectiva, não há exercício do poder sem os discursos de verdade que funcionam no e a partir do poder. Para o filósofo, o poder institucionaliza a busca da verdade, profissionalizando-a e recompensando-a; por isso somos submetidos à verdade, porque ela “é a norma; é o discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio propulsa efeitos de poder” (FOUCAULT, 2005, p. 29).

Dessa maneira, “cada sociedade tem seu regime de verdade, sua política geral de verdade” (FOUCAULT, 2018FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 7. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018., p. 52), que se manifesta pelos tipos de discurso que ela aceita ou rejeita e faz funcionar como verdadeiros; verdade que, pelos mecanismos e pelas instâncias de poder, distingue os enunciados verdadeiros dos falsos e pela forma como valida uns e rejeita outros; pelas técnicas e pelos procedimentos valorizados na produção da verdade e pelo estatuto daqueles que ocupam a posição de dizer o que funciona como verdadeiro. Isso significa dizer, com base nos estudos foucaultianos, que a verdade, sendo deste mundo, é uma invenção que se dá nos meandros dos processos econômicos, políticos, sociais e culturais, sendo, portanto, resultado de transformações históricas. É, em síntese, “um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados” (FOUCAULT, 2018, p. 54).

Nessa perspectiva, a verdade é a forma contingente de ordenamento daquilo que se diz a partir de um conjunto de princípios que apoiam o que é da ordem do verdadeiro. Logo, a política de verdade da prática é um conjunto estruturado de princípios estratégicos no qual a verdade que aí é produzida se configura como um instrumento tático que faz funcionar as relações de saber-poder no interior da docência em um dado momento histórico. Tal política produz um conjunto de manifestações do verdadeiro que faz funcionar normas, regras, valores e atitudes acerca da prática docente na contemporaneidade, envolvendo e implicando os indivíduos de um modo específico, de maneira que estes se constituam/sejam constituídos como sujeitos por essa política da verdade.

Quando os/as professores/as iniciantes disseram nos grupos de discussão que “a prática não tem floreio, pois exige um professor competente todos os dias” ou que “é na prática que a gente entende o que é ser um professor” parecem evidenciar que a verdade da prática produz e expressa uma forma de poder que incide sobre eles/as, conduzindo seus modos de pensar e agir no exercício da docência. É como se a prática funcionasse como condutora e direcionadora do trabalho docente na escola, ou seja, como a prática é a verdade, submete-se a ela para fazer acontecer o processo ensino-aprendizagem.

Para balizar melhor o entendimento da noção de prática, toma-se de início a reflexão de Veiga-Neto (2015), para quem a origem etimológica dessa palavra é a forma latina practĭce, que significava tanto o ato de fazer algo quanto o efeito desse ato, isto é, a própria coisa feita. De acordo com esse autor, as palavras practica, platica e prática apareceram pela primeira vez na língua portuguesa no século XV, mas foi no português moderno que a forma prática prevaleceu, designando “um conjunto de ações, em geral aprendidas, repetitivas, quase automáticas e habituais” (VEIGA-NETO, 2015VEIGA-NETO, Alfredo. Anotações sobre as relações entre teoria e prática. Educ. foco, v. 20, n. 1, p. 113-140, 2015. Disponível em: https://doi.org/10.22195/2447-524620152019627. Acesso em: 15 dez. 2022.
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, p. 120). Apoiado nos estudos foucaultianos, Veiga-Neto pontua que a noção de prática compreende “o domínio tanto daquilo a ser descrito, analisado e problematizado quanto, ao mesmo tempo, o domínio das próprias descrições, análises e problematizações que são colocadas em movimento” (VEIGA-NETO, 2015, p. 133).

Pelo que menciona o referido autor, pode-se dizer que a noção de prática está relacionada a uma experiência, a um pensamento ou a um modo racional e sistemático de fazer as coisas. A prática é uma noção central em Foucault, pelo menos é isso que se depreende em seus trabalhos dos anos 1970, nos quais ele a definiu como sendo a conexão entre o que as pessoas dizem e fazem. Em Mesa-redonda em 20 de Maio de 1978, Foucault (2006) destaca que, em seu trabalho sobre as prisões e nos demais, o ponto de ataque não foram as “instituições” nem as “teorias”, mas as “práticas”, com o objetivo de “captar as condições que, em um dado momento, as tornam aceitáveis” (FOUCAULT, 2006FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos IV: Estratégia, Poder-saber. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006., p. 338). No pensamento de Foucault, as práticas têm sua própria regularidade, sua lógica, sua estratégia, sua evidência, sua racionalidade, sendo consideradas “lugar de encadeamento do que se diz e do que se faz, das regras que se impõem e das razões que se dão, dos projetos e das evidências” (FOUCAULT, 2006, p. 338).

O filósofo salienta, ainda, que analisar “regimes de prática” implica a análise de programações de conduta, isto é, verificar, ao mesmo tempo, efeitos de prescrição relacionados ao que se deve fazer e efeitos de codificação no que diz respeito ao que se deve saber. Castro (2016CASTRO, Edgardo. Vocabulário de Foucault - um percurso pelos seus temas, conceitos e autores. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.) enumera alguns elementos que aparecem nas teorizações de Foucault que podem nos ajudar a pensar o que o filósofo entendia por prática. São eles: i) homogeneidade, princípio que está relacionado às formas racionais como se organizam as maneiras de fazer alguma coisa; ii) sistematicidade no domínio das práticas, ou seja, o que há de específico no entrelaçamento entre o eixo do saber, do poder e da ética; e iii) generalidade, que diz respeito ao caráter regular e recorrente das práticas.

Seguindo o pensamento de Foucault, pode-se dizer que a prática é um movimento racional e organizado que se impõe ou se conduz por uma determinada finalidade. Nesse sentido, entende-se que o movimento de condução dos/as professores/as iniciantes na carreira, bem como o processo de formação inicial e continuada realizado pelas instituições formadoras de professores/as, pelas secretarias de educação e pelas escolas, poderia ser chamado de práticas de formação. Do mesmo modo, o movimento que os/as professores/as organizam e executam para os/as estudantes, nas escolas, é uma prática (muitas vezes aqui especificada como prática docente).

Trata-se, portanto, de um movimento com características peculiares, que se organiza por meio de princípios e se apresenta de múltiplas formas para potencializar a aprendizagem dos sujeitos escolares, contemplando aspectos que vão desde a capacidade intelectual, física, cultural até a social e emocional (BRASIL, 2019), de modo a educá-los em sintonia com as demandas sociais, políticas e econômicas da sociedade. Ao eleger a prática docente como sua base operacional, a inserção profissional de professores/as na carreira faz dela sua política geral de verdade, a partir da qual se desencadeia a condução dos/as professores/as nos anos iniciais (e ao longo) de sua carreira. Identificou-se, neste estudo, que o movimento de condução dos/as professores/as iniciantes na docência é operacionalizado por intermédio de um conjunto de princípios-verdades da docência que visam produzir no/a professor/a iniciante um modo de ser e agir no exercício da profissão.

Princípios-verdades da prática docente

Na análise da materialidade empírica, verificou-se que a prática docente só pode funcionar no interior de um regime ou de uma política de verdade, isto é, a partir de certas regras, que são constituídas por alguns princípios, os quais naturalizam a importância da prática na inserção de professores/as na carreira docente. A análise apontou quatro importantes princípios desse processo, a saber: princípio da contextualização pedagógica, princípio da investigação reflexiva, princípio da inovação didático-pedagógica e princípio do engajamento social. Observemos, pois, como se organiza e se manifesta cada um dos princípios que compõem a política de verdade da inserção de professores/as na profissão docente.

O princípio da contextualização pedagógica

O princípio da contextualização pedagógica ocupa um lugar de particular importância na inserção profissional de professores/as na carreira. Ele evoca o sentido de entrelaçar, vincular, funcionando como uma regra geral para o ordenamento metodológico da prática docente. É metodológico na medida em que estabelece a necessidade de organizar o trabalho do/a professor/a de modo a vincular o conhecimento a ser aprendido na escola ao contexto dos sujeitos aprendizes. Isso significa dizer que a organização da prática docente deve levar em consideração a realidade em que a escola está inserida, as experiências e as perspectivas de vida dos estudantes.

A pauta de um dos grupos de discussão realizados com os/as professores/as iniciantes para esta pesquisa girava em torno da atuação docente no começo da carreira, considerando elementos como planejamento, métodos de ensino, atividades exitosas, recursos etc. Em um dado momento, foi questionado aos/às professores/as o que eles/as costumam levar em conta quando planejam suas aulas. Eis algumas das respostas registradas naquele momento:

Eu me preocupo em o aluno se identificar com o conteúdo, pois quando há uma identificação com o que você tá trabalhando vejo que ele interessa mais na aula e entende melhor o assunto (Professora Iniciante A).

Trabalhar o conteúdo de acordo com a realidade do alunado (Professora Iniciante C).

Eu costumo procurar exemplos da realidade dos alunos e também procuro fazer perguntas para eles voltadas para coisas que estão na vivência deles; no que eles costumam ver, por exemplo, na televisão, em casa, na rua... (Professor Iniciante D).

[...] quando levo atividades concretas para as aulas eles [os estudantes] participam mais. Em matemática, que já é uma disciplina que eles acham difícil, a situação concreta em uma aula ajuda muito (Professora Iniciante F).

Incorporar situações e exemplos concretos da vivência e da realidade dos/as estudantes às aulas parece ser a compreensão dos/as professores/as iniciantes sobre o princípio da contextualização pedagógica. Eles/as reconhecem a importância desse princípio na elaboração do planejamento e no desenvolvimento das aulas, atribuindo a ele um sentido verdadeiro. Para esses/as docentes em início de carreira, a contextualização contribui favoravelmente para o processo ensino-aprendizagem, na medida em que possibilita o interesse e estimula a participação na aula, assim como favorece um melhor entendimento dos conteúdos por parte dos/as estudantes.

Os/As coordenadores/as pedagógicos/as, por sua vez, atuam para reforçar, nos encontros de planejamento e de formação, a contextualização pedagógica como um princípio-verdade da prática docente. Para eles/as, “a própria orientação da Secretaria [Municipal de Educação] é para o planejamento contextualizado e a gente procura sempre, nos contatos com os professores, incentivá-los no planejamento das aulas, trazendo o contexto social para a sala de aula” (Coordenadora A); “é uma preocupação nossa, nos projetos, trabalhar temas que tenham relação com a comunidade onde a escola está localizada” (Coordenador C). Ou seja, os/as coordenadores/as, como uma voz da verdade na escola, agem para incutir, nos/nas docentes, que a contextualização é uma verdade pedagógica necessária à atuação do/a professor/a, conduzindo-os/as para organizarem suas atividades com base nessa orientação porque acreditam nela.

Nesse sentido, o princípio da contextualização pedagógica opera uma verdade que diz que a prática docente deve incorporar experiências concretas e diversificadas do contexto dos/as estudantes para tornar os conteúdos escolares mais compreensíveis a eles/as, ao mesmo tempo em que deve, também, vincular a aprendizagem a novas experiências e realidades para além das que os/as alunos/as vivem. Desse modo, os/as coordenadores/as ressaltam as contribuições do princípio da contextualização pedagógica para a aprendizagem. Um deles fez a seguinte defesa no grupo de discussão: “eu observo uma participação ativa dos alunos em atividades, aulas e projetos que têm a ver com a vida deles. Os alunos gostam das aulas e dos professores que se envolvem e se preocupam com eles” (Coordenador E).

A defesa da contextualização pedagógica é bem recorrente nos documentos oficiais que definem e regulamentam a formação docente no Brasil, especialmente após a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) 9394/96. Um documento recente nesse campo é a Resolução CNE/CP nº 2/2019 que, além das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação Inicial de Professores para a Educação Básica, institui, também, a Base Nacional Comum de Formação de Professores, a chamada BNC-Formação. Dentre os fundamentos pedagógicos da Formação Inicial de Professores para a Educação Básica, a referida Resolução destaca:

[...] o compromisso com as metodologias inovadoras e com outras dinâmicas formativas que propiciem ao futuro professor aprendizagens significativas e contextualizadas [...], visando ao desenvolvimento da autonomia, da capacidade de resolução de problemas, dos processos investigativos e criativos, do exercício do trabalho coletivo e interdisciplinar, da análise dos desafios da vida cotidiana e em sociedade e das possibilidades de suas soluções práticas (BRASIL, 2019, p. 5).

Como se observa, parece que o princípio da contextualização favorece a formação do/a futuro/a professor/a na medida em que mobiliza o interesse e a autonomia dos sujeitos, desenvolvendo a sua capacidade para resolver os problemas da vida cotidiana. Dessa forma, os sujeitos são incentivados a administrarem a sua formação e qualificação para se tornarem produtivos e competitivos, capitalizando-se para uma atuação na profissão em benefício de toda a sociedade.

A julgar pelo que dizem os/as professores/as iniciantes, os/as coordenadores/as pedagógicos e a Resolução nº 02/2019, o princípio da contextualização pedagógica é um importante elemento de condução da aprendizagem dos indivíduos, pois funciona “como uma tecnologia de governamento e de gestão dos princípios de ação, participação e autorreflexão” (RESENDE, 2018RESENDE, Haroldo de. A educação por toda a vida como estratégia de biorregulação neoliberal. In: RESENDE, Haroldo de (Org.). Michel Foucault: a arte neoliberal de governar e a educação. São Paulo: Intermeios, 2018. p. 77-94., p. 90). Com base em tal pensamento, o princípio da contextualização pedagógica atua como uma regra no ordenamento da prática docente, mobilizando e convencendo o/a professor/a à criação de diversas formas de entrelaçamento da aprendizagem ao contexto de vida dos/as estudantes, de modo a governá-los/as mais efetivamente, conforme os ditames da sociedade contemporânea.

O princípio da investigação reflexiva

O princípio da investigação reflexiva é mais um componente da política de verdade que conduz a inserção de professores/as iniciantes na carreira. Ele está associado à compreensão de que a produção de saberes docentes é um ato pedagógico na medida em que o/a professor/a, no exercício da profissão, entende que a prática pode ser um lugar e um objeto de investigação e reflexão. Se o princípio da contextualização pedagógica ordena a face metodológica da prática, o princípio da investigação reflexiva busca engendrar as atitudes e os comportamentos esperados dos/as docentes, dentre os quais os mais esperados são a investigação, a sistematização e a produção do fazer pedagógico.

Por meio dessas atitudes, pede-se que o/a professor/a, mais do que um profissional, seja uma pessoa atenta ao que se passa não apenas nos contextos sociais, mas também no interior dos saberes. Ou seja, que ele/a também seja um produtor/a de saberes a partir do trabalho que realiza, de modo a se fortalecer como agente de uma prática e de uma instituição que é o seu próprio campo de pesquisa. Dessa maneira, o princípio da investigação reflexiva faz circular como verdadeiro o discurso de que o saber pedagógico produzido pelo/a professor/a poderá auxiliar os/as estudantes a avançarem em seus processos de aprendizagem, sobretudo se os/as professores/as forem capazes de elaborar novos conhecimentos ou, até mesmo, questionar a legitimidade e a pertinência dos que já existem.

No entanto, a disposição do sujeito à verdade não se dá por uma simples transmissão direta e evidente dessa verdade, “mas pelo vínculo, pela mútua implicação” (FOUCAULT, 1988FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988., p. 62). Assim, o princípio de investigação reflexiva utiliza-se de artifícios para convencer o/a docente a aceitar e desejar fazer de sua prática lugar e objeto de uma investigação e reflexão. A BNC-Formação (2019), por exemplo, está povoada por indicativos da necessidade da investigação reflexiva com o objetivo de vincular o/a docente a essa verdade, encorajando-o/a a reconhecê-la como sendo uma verdade sua também. De acordo com esse documento, compete aos/às professores/as:

Pesquisar, investigar, refletir, realizar a análise crítica, usar a criatividade e buscar soluções tecnológicas para selecionar, organizar e planejar práticas pedagógicas desafiadoras, coerentes e significativas (BRASIL, 2019, p. 13).

[...] engajar-se em estudos e pesquisas de problemas da educação escolar, em todas as suas etapas e modalidades, e na busca de soluções que contribuam para melhorar a qualidade das aprendizagens dos estudantes, atendendo às necessidades de seu desenvolvimento integral (BRASIL, 2019, p. 19).

Pelo que se observa, a investigação reflexiva não é apenas uma atividade que o/a professor/a pode desempenhar em seu trabalho, mas uma atitude necessária para a constituição de situações potentes de aprendizagem na escola. Por atitude investigativa, considera-se a capacidade de reflexão do/a professor/a sobre o trabalho educativo que realiza, que pode ser aprendida e exercitada no lugar em que ele/a trabalha, normalizando-se como um comportamento docente para o exercício da profissão. Dessa maneira, o princípio da investigação reflexiva almeja a produção de um conhecimento novo, que permitirá ao/à docente a invenção de novas formas de promoção da aprendizagem, desde que elaboradas com base em um saber proveniente de um processo investigativo que ele/a mesmo/a realizou. Assim, a atitude investigativa fortalecerá a prática na medida em que seus resultados possibilitarem melhorias nas aprendizagens esperadas dos/as estudantes pela escola e embasarem ações educacionais específicas para a resolução de problemas enfrentados pela prática educativa.

Entre os/as professores/as iniciantes investigados, identificou-se uma força que diz respeito ao desejo de utilizarem em suas aulas estratégias ou atividades relacionadas à pesquisa direcionadas às especificidades dos/as estudantes para os quais ministram aulas. Eles/as mencionaram, por exemplo, “aulas com pesquisa”, “metodologias diversificadas e dinâmicas”, “atividades de investigação científica”, dentre outras expressões, para indicarem seu desejo por novos métodos de trabalho com os/as estudantes. Ao falarem sobre pesquisa, os/as professores/as iniciantes evidenciaram que a atitude investigativa é um caminho para a compreensão dos problemas da prática educativa. Segundo eles/as:

Na minha graduação, o meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] não foi sobre ensino, mas agora, na pós-graduação, como já estou atuando como professora, eu quero pesquisar sobre as questões da sala de aula (Professora Iniciante D).

Eu acho que ainda são poucas as pesquisas da educação que abordam as questões didáticas da escola (Professor Iniciante F).

A gente precisa entender a nossa profissão exige um olhar investigativo sobre as coisas que estão acontecendo na escola, principalmente os problemas que estão presentes na sala de aula (Professora Iniciante L).

Como se vê, o princípio da investigação reflexiva busca fortalecer a prática do/a professor/a na medida em que o/a vincula a uma contínua atitude de identificar os problemas de aprendizagem dos/as estudantes e refletir sobre eles, procurando compreendê-los e, pelo esforço e comprometimento pessoal, planejar meios para atacá-los, buscando a resolução. Em outros termos, trata-se de inculcar no/na docente a atitude de busca da resolução dos problemas relacionados à aprendizagem dos/as estudantes na sala de aula. Trata-se de incitar o/a docente iniciante a um tipo de prática em que ele/a é o/a responsável por organizar, executar e gerenciar todo o processo. Dessa maneira, a atitude investigativa articula-se ao princípio da inovação didático-pedagógica, como veremos a seguir.

O princípio da inovação didático-pedagógica

Como vimos, a verdade da prática docente requer contextualização, investigação e reflexão. E requer, também, inovação. O princípio da inovação didático-pedagógica, entrelaçado aos já apresentados, articula-se ao discurso da inovação para tornar a prática docente um canteiro de situações criativas e inovadoras que permitam aos/às estudantes novas formas de aprender. O discurso da inovação, bastante difundido hoje em dia, tem se tornado um mando em nossas vidas. Na esfera educacional, a todo instante, os sujeitos são interpelados a criar, a renovar ou inventar; são cobrados a fazer as coisas de modos diferentes, fora do comum, do trivial. Os sujeitos são demandados, enfim, a desafiarem a sua criatividade! Para Silva e Fabris (2013SILVA, Roberto Rafael Dias da; FABRIS, Elí Terezinha Henn. Docências inovadoras: a inovação como atitude pedagógica permanente no ensino médio. Educação, v. 36, n. 2, p. 250-261, 2013. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/view/10446. Acesso em: 15 dez. 2022.
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), a inovação emergiu no cenário pedagógico brasileiro contemporâneo como um imperativo, produzindo uma necessidade permanente de atualização e renovação no trabalho dos/as professores/as.

A inovação no contexto educacional pode ser compreendida como a capacidade de criar ou propor novas possibilidades educativas, tendo em vista a construção de saberes necessários para o enfrentamento da complexidade do mundo atual. Em Nascimento da biopolítica, Foucault (2008bFOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b.) discute a noção de inovação dentro de um contexto político e econômico, relacionando-a a “coisas novas”. O autor associa a inovação, por exemplo, com a descoberta de novas técnicas, de novas formas de produtividade, de novas fontes de mão de obra e pontua que “tudo isso nada mais é que a renda de um certo capital, o capital humano, isto é, o conjunto dos investimentos que foram feitos no nível do próprio homem” (FOUCAULT, 2008bFOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008b., p. 318). Nesse sentido, pode-se dizer que a inovação na educação é uma racionalidade que convoca o/a docente para a renovação de sua prática, visando à produção de estudantes ativos, criativos e inovadores.

Sendo a inovação um imperativo, dizeres sobre renovação, mudanças, novidades e criatividade foram recorrentes no material analisado neste estudo. Do ponto de vista dos/as professores/as iniciantes, a inovação é o caminho para a mudança das metodologias do processo ensino-aprendizagem e, consequentemente, de toda a escola. Para eles/as:

Nós queremos ser os inovadores; queremos chegar com várias sugestões e atividades diferentes que os alunos se envolvam, mudando a sala de aula e a escola. [...] Professor sem criatividade hoje não consegue dar uma boa aula (Professora Iniciante B);

Mas todo professor, precisa se renovar para acompanhar o mundo; as tecnologias estão aí, nosso aluno tá o tempo todo conectado por ela. E aí? Não tem jeito, é trazer essa tecnologia para nos ajudar sim e até para ensinar o aluno como utilizá-la melhor a seu favor (Professor Iniciante F).

Pelo que dizem, os/as iniciantes veem a inovação como uma saída para fazer de maneira diferente as práticas de sala de aula, tornando-as, de preferência, mais livres, agradáveis ou estimulantes para os/as estudantes. Eles evidenciam a necessidade de modernizar, atualizar, qualificar, aperfeiçoar, incorporar novos conhecimentos para se tornarem um/a professor/a competente na escola. Sobre isso, os/as coordenadores/as pedagógicos/as pontuaram que a inovação é um dos temas discutidos nos encontros de planejamento e de formação dos/as professores/as. Segundo eles/as, muitas vezes, o discurso da inovação está presente na escola de forma superficial, sem a devida compreensão, por isso há necessidade de discuti-lo com os/as professores/as.

Colocar o princípio da inovação didático-pedagógica no circuito da qualificação profissional dos/as professores/as iniciantes é uma forma de fazê-lo circular como uma verdade pedagógica, fortalecendo a prática como política de verdade na inserção profissional de professores/as na carreira. Nesse sentido, as DCN de 2019 estabelecem como um dos fundamentos da formação de professores/as para a educação básica o “emprego pedagógico das inovações e linguagens digitais como recurso para o desenvolvimento, pelos professores em formação, de competências sintonizadas [...] com o mundo contemporâneo” (BRASIL, 2019, p. 5). O Plano Municipal de Educação de Caetité, em sua meta 07, que trata da qualidade da educação básica, prevê, dentre as suas estratégias, a de “prover equipamentos e recursos tecnológicos digitais para a utilização pedagógica no ambiente escolar de todas as escolas públicas da educação básica” e a de “incentivar práticas pedagógicas inovadoras que assegurem a melhoria do fluxo escolar e a aprendizagem” (CAETITÉ, 2015, p. 175).

Pelo exposto, é possível inferir que a inovação didático-pedagógica aparece sustentada por duas necessidades: a necessidade da mudança e a necessidade de tecnologias educacionais na escola. As duas necessidades enfatizam que, na atualidade, vivemos em constantes transformações no que diz respeito aos conhecimentos, às técnicas e à forma como estabelecemos as nossas relações interpessoais. Desse modo, ensinar e aprender em um mundo em mudança exige uma renovação permanente do processo educacional.

Nesse sentido, o princípio da inovação didático-pedagógica convoca o/a docente a se responsabilizar por uma prática desafiadora, produtiva e promotora do desenvolvimento do/a estudante. Com isso, almeja-se, como diz o PME de Caetité, fomentar a “melhoria do fluxo escolar e da aprendizagem” (CAETITÉ, 2015, p. 23) e induzir o “desenvolvimento econômico, social e cultural do município” (CAETITÉ, 2015, p. 21). Dito de outro modo, a melhoria da aprendizagem dos estudantes por meio da inovação didático-pedagógica da prática educativa é condição indutora do desenvolvimento econômico, social e cultural da sociedade, pois, como nos alerta Foucault (2018FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 7. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018., p. 52), “a verdade está submetida a uma constante incitação econômica e política”.

O princípio do engajamento social

O quarto princípio que compõe a política da verdade da inserção profissional na carreira docente é o do engajamento social. Por meio de tal princípio, busca-se o comprometimento e o envolvimento da prática docente nas questões sociais da comunidade em que a escola está inserida. Para tanto, o princípio do engajamento social estimula a escola, por meio da prática de seus/suas docentes, a organizar formas ou ações de intervenção sobre a comunidade ou um segmento dela para prevenir situações de risco (violência, drogas, doenças etc.), induzir a permanência dos/as jovens na escola e fortalecer as relações escolares com a comunidade. Dessa maneira, a comunidade é reconhecida, nesse princípio, como o espaço destinado aos projetos de intervenção social e à adoção de outros modos de tratamento e fortalecimento das relações escolares e sociais, com o incentivo da presença da escola na comunidade e vice versa.

As informações da pesquisa revelam que os/as professores/as iniciantes desejam fazer a defesa da escola como um lugar de promoção da vida. Eles/elas evidenciam que, na medida em que a escola realiza ações articuladas com a comunidade, buscando, principalmente, que os/as jovens permaneçam na escola, a aposta é que esses/as jovens terão contato com outras formas e possibilidades de vida. Os/As professores/as iniciantes argumentam que, ao promoverem ações de intervenção na escola e na comunidade, envolvendo questões sociais, estão possibilitando condições para os/as jovens aprenderem o que deve ser conhecido, os comportamentos e as atitudes que precisam ter para agir e viver de modo diferente na sociedade.

Quando, nos grupos de discussão, a pauta foi pensar nas perspectivas de docência para a contemporaneidade, as palavras escola, comunidade e vida foram bem recorrentes, conforme evidenciam as falas as seguir:

A docência dos dias de hoje não pode ver a escola e a comunidade como duas coisas separadas. Elas estão ligadas pelos mesmos problemas e, talvez, pelos mesmos sonhos, por isso eu acredito que elas precisam enfrentar os problemas juntas. [...] É a vida de uma criança e de um jovem que está em jogo (Professor Iniciante E).

Eu acho que uma primeira coisa que a gente tem que se perguntar é: como que tudo isso que eu estou fazendo na sala de aula vai ajudar na vida do meu aluno? [...] Porque se não ajudar nisso, não tem sentido o que a gente faz (Professor Iniciante G).

Quando a escola aproxima da comunidade, a gente conhece a vida real dos alunos, entende determinados comportamentos deles na sala de aula e pode ajudá-los a refletir sobre as coisas que estão a sua volta (Professor Iniciante H).

Abrir os portões da escola para a comunidade e levar suas ações até ela é uma maneira de mostrar o que nós estamos fazendo e falando aqui dentro sobre os problemas da comunidade; é uma forma de mostrar e também orientar sobre outras possibilidades de enfrentar esses problemas (Professora Iniciante L).

Como se pode ver, os/as professores/as iniciantes defendem uma atuação docente junto às comunidades, o que mostra um tipo de engajamento social específico, ou seja, aquele que deseja compreender a comunidade em que a escola está inserida, identificando os seus problemas para sobre eles poder intervir. Com esse tipo de engajamento, o/a professor/a é conduzido a pensar o mundo e a si mesmo/a e, como consequência, pensar em uma prática docente engajada com os problemas da comunidade. As ações da escola, nessa perspectiva, seriam um contraponto ao modo como os/as estudantes e as próprias famílias estão habituados a lidar com as questões sociais do lugar em que vivem. É, segundo os/as iniciantes, uma maneira de “mostrar e orientar” os/as estudantes e a comunidade sobre outros hábitos e formas de vida, baseando-se na capacidade de o sujeito “refletir sobre as coisas que estão a sua volta”.

Buscar a parceria da família dos/as estudantes e de outros atores da sociedade para a garantia da aprendizagem é uma das habilidades docentes que a BNC-Formação recomenda aos/às professores/as. O referido documento defende que os/as professores/as, além da comunicação e interação com as famílias para estabelecer parcerias e colaboração com a escola, devem, também, “contribuir para o diálogo com outros atores da sociedade e articular parcerias intersetoriais que favoreçam a aprendizagem e o pleno desenvolvimento de todos” (BRASIL, 2019, p. 20).

Nessa perspectiva, o princípio do engajamento social, entrelaçado aos princípios da contextualização, da investigação reflexiva e da inovação didático-pedagógica, incita e mobiliza os/as professores/as iniciantes na carreira a constituírem um modo de exercer a prática docente de forma dinâmica e diversificada. As informações da pesquisa mostram que essa prática ora é lugar, espaço de trabalho, formação e qualificação profissional; ora é objeto, instrumento, fonte de estudo e reflexão; ora é ação, intervenção, modo e maneira de fazer algo real e subjetivo. São muitas as nuances que ela assume e as estratégias que põe em funcionamento para operar um conjunto de saberes e verdades no sentido de direcionar os/as professores/as iniciantes a um modo específico de docência: múltipla, dinâmica e flexível. Seja como for, a prática se mostrou como a linha central da verdade da docência na inserção de professores/as na carreira. Ela produz um conjunto de princípios que conduzem o/a professor/a no início (e ao longo) de sua carreira, instigando-o/a à constituição de uma prática docente capaz de potencializar as aprendizagens demandadas pela sociedade do século XXI.

Considerações finais

Procurou-se, nos limites deste artigo, estabelecer uma discussão sobre o modo como a prática tem se posicionado como uma política da verdade na inserção profissional de professores/as na carreira. A partir da argumentação desenvolvida, faz-se pertinente reforçar, nas considerações derradeiras deste artigo, quatro aspectos que sintetizam o tema em tela.

Em primeiro lugar, vale ressaltar que a prática como política geral da verdade da inserção de professores/as na carreira docente está implicada com certos tipos de discursos aceitos como verdadeiros sobre a aprendizagem de um modo de pensar e exercer a docência na escola contemporânea. Não se trata de uma coerção ou imposição ao/à docente iniciante, mas de uma condução que se dá pela adesão às verdades da prática, ou seja, convencidos por essas verdades, os/as professores/as iniciantes se submetem a elas e agem conforme suas orientações.

Em segundo lugar, para fortalecer a prática como sua política da verdade, a inserção profissional de professores/as na carreira articula e põe em operação quatro princípios do verdadeiro, a saber: i) o princípio da contextualização pedagógica, que opera com a necessidade de constituir o/a professor/a com conhecimentos didático-pedagógicos vinculados à realidade profissional em que vai atuar, permitindo-lhe que conheça sua abrangência, seu papel social, suas dificuldades e potencialidades; ii) o princípio da investigação reflexiva, que busca potencializar no/na docente as ações de investigar e refletir sobre os problemas da escola, planejando e criando alternativas com vista à solução dessas desafios; iii) o princípio da inovação pedagógica, que atua para mobilizar a inventividade do/a professor/a, conduzindo-o/a para a produção de aulas criativas e inovadoras que possibilitem aos/às estudantes formas mais diversificadas, leves e atraentes de aprender; e iv) o princípio do engajamento social, que busca conduzir os/as docentes iniciantes na carreira para um vasto programa de engajamento com a aprendizagem dos/as estudantes e intervenção na comunidade em que a escola está inserida.

Em terceiro lugar, enfatiza-se que os princípios-verdades da docência contemporânea não são lineares nem tampouco estanques; pelo contrário, eles se entrecruzam e se apoiam uns nos outros para produzir novos modos de se exercer a docência e novas possibilidades de constituição do ser professor/a no local em que se pratica a docência, qual seja, a escola. Para tanto, os princípios-verdades organizam uma série de procedimentos sobre o fazer docente para incuti-los nos/nas professores/as, assim como atribui a certas pessoas e documentos, como os coordenadores/as pedagógicos e a legislação educacional, o estatuto de portadores e disseminadores da verdade demandada pela docência contemporânea.

Por fim, em quarto lugar, é importante destacar que, à medida que a prática conduz os/as professores/as iniciantes na carreira, ela opera para atualizar o seu pensamento e a sua ação, criando as condições para que esses/as professores/as se constituam/sejam constituídos, como profissionais habilidosos, criativos, inovadores e engajados, a partir das múltiplas exigências advindas das novas relações sociais que se tecem no cotidiano destes tempos tão complexos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Out 2021
  • Aceito
    26 Set 2023
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