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Síndrome de anticorpo antimembrana basal

DISCUSSÃO DE CASO

Síndrome de anticorpo antimembrana basal

Carlos Alberto Balda; Marcello Fabiano de Franco; Andrei Alkmim Teixeira; Erika Ferraz Helena Mendonça

Disciplina de Nefrologia da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP-EPM, São Paulo, SP

Identificação: RKAF, 16 anos

História da moléstia atual: Paciente relatava quatro meses de evolução da doença quando foi internada em nossa enfermaria. No período havia iniciado quadro de tosse produtiva com secreção esverdeada contendo laivos de sangue, sudorese vespertina, adinamia e perda de peso (aproximadamente 10% peso corporal). Após um mês passou a apresentar hematúria macroscópica e palidez.

Hábitos pessoais: Tabagismo dois anos/maço/dia, etilismo ocasional. Medicamento em uso: Prednisona 60mg/dia.

Ao exame clínico: Paciente apresentava-se em bom estado geral, afebril, anictérica, acianótica, hipocorada ++/4+, hidratada, sem linfoadenomegalias.

Aparelho cardiovascular: Ritmo cardíaco regular a dois tempos, bulhas normofonéticas, Pressão arterial: 140 x 95 mmHg.

Aparelho respiratório: Murmúrio vesicular presente bilateralmente, diminuído em base de hemitórax direito, com estertores crepitantes em base do hemitórax esquerdo.

Abdômen: Plano, flácido, indolor à palpação superficial e profunda.

Extremidades: Boa perfusão periférica, sem edema ou cianose.

Exames complementares: Creatinina (mg/dl) (25/06/2003) 0,8 (01/08) 2,7 (12/08) 2,1 * submetida a pulsoterapia com solumedrolâ em 29/07 por três dias consecutivos FAN: não reagente p-ANCA: negativo c-ANCA: negativo

Urina I: Leucócitos: 120.000/ml, eritrócitos: 9.000.000/ml com dismorfismo: ++/+++

Urina 24 h: Diurese: 1580 ml. Depuração de Creatinina: 30ml/min. Proteinúria 24h: 3.08g

Dosagem sérica de anticorpo antimembrana basal: Resultado de 7,0 EU/mL (valores < 5,0 negativo; 5,1 – 14,9 limítrofe; >15,0 positivo) *Observando-se que tal dosagem foi realizada após o início da imunossupressão.

Hipótese diagnóstica: Doença por anticorpo antimembrana basal (Síndrome de Goodpasture).

Exame de imagem

FIGURA 1


Exame anatomopatológico

Figuras 2A e 2B



Discussão

A síndrome de Goodpasture é uma patologia mediada pelo sistema imunológico, na qual auto-anticorpos contra a cadeia a 3 (IV) do colágeno tipo IV se ligam à membrana basal, alveolar e glomerular, causando glomerulonefrite progressiva e hemorragia pulmonar. Descrita inicialmente como uma síndrome pulmão-rim, em 1919 por Goodpasture1,2, o epônimo foi primeiramente utilizado por Stanton e Tange em 1958. A presença de auto-anticorpos apresentando depósito linear foi demonstrada nos anos 603.

O mecanismo de injúria renal e pulmonar é complexo. No rim, os anticorpos se ligam à membrana basal, ativam a cascata do complemento e de proteases, tal ativação provoca ruptura da barreira glomerular e da cápsula de Bowman, causando proteinúria, hematúria e facilitando a formação de crescentes. O setor celular com os linfócitos T CD4 e CD8+, macrófagos e neutrófilos participam da agressão produzindo, entre outros, interleucina 12 e interferon g que medeiam a formação de crescentes4.

A doença apresenta maior prevalência na população branca, com distribuição etária bimodal, com maior freqüência aos 30 e aos 60 anos. Grande parte dos pacientes apresenta combinação de glomerulonefrite rapidamente progressiva e hemorragia alveolar, podendo em 30% a 40% dos casos exibir acometimento renal isolado caracterizado por hematúria, proteinúria leve a moderada, ou mesmo insuficiência renal aguda. O acometimento pulmonar é mais comum em homens jovens, manifesta-se clinicamente por dispnéia e tosse, com ou sem hemoptise. A presença de infiltrado alveolar ao raio-X simples de tórax pode acompanhar o caso, porém é pouco específico. Anticorpos anticitoplasma de neutrófilo (Anca) estão presentes em 30% dos pacientes com doença antimembrana basal5.

Ao contrário de outras vasculites Anca positiva, histologicamente o padrão da doença é tipicamente monofásico, com lesões glomerulares de estadio de evolução semelhante6. No exame de imunofluorescência quase todos os pacientes apresentam depósitos lineares de IgG na membrana basal, C3 e, ocasionalmente, IgA e IgM.

A doença não tratada geralmente apresenta um prognóstico ruim. A introdução do tratamento combinado de plasmaferese (remoção de anticorpos patogênicos), agentes alquilantes tais como a ciclofosfamida (prevenção de síntese de novos anticorpos) e corticoterapia (ação antinflamatória) revolucionaram a evolução da doença.

O prognóstico na apresentação do quadro clinico é pior se há oligúria, fibrose renal avançada ou mais que 50% de crescentes na biópsia renal. Nível elevado de creatinina (creatinina pré-tratamento > 6,6 mg/dl) ou necessidade de diálise também se associam com pior evolução. A sobrevida em um ano é cerca de 75% a 90%.

Pacientes com doença renal terminal que apresentam hemoptise devem ser tratados. O quadro pulmonar é, freqüentemente, responsivo a plasmaferese. A presença de hemorragia alveolar é indicação formal de tratamento intensivo, a despeito da severidade do acometimento renal.

Referências

1. Salama AD, Levy JB, Lightstone L, Pusey CD: Goodpasture's disease. Lancet 2001; 358:917-20.

2. Bolton WK, Nephrology Forum: Goodpasture's syndrome. Kidney Int 1996; 50:1753-66.

3. Stanton MC, Tange JD: Goodpasture's syndrome. Aust N Z J Med 1958; 7:132-44.

4. Jayne DR, Marshall PD, Jones SJ, Lockwood CM: Autoantibodies to GBM and neutrophil cytoplasm in rapidly progressive glomerulonephritis. Kidney Int 1990; 37:965-70.

5. Pusey CD: Anti-glomerular basement membrane disease. Kidney Int 2003; 64:1535-50.

6. Hudson BG, Tryggvason K, Sundaramoorthy M, Neilson EG: Alport's syndrome, goodpasture's syndrome, and type IV collagen. New Engl J Med 2003; 348:2543-56.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Maio 2004
  • Data do Fascículo
    2004
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