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Anticoagulação em terapias contínuas de substituição renal

Anticoagulation in continuous renal replacement therapies (CRRT)

Resumos

As terapias contínuas de substituição renal (TSRC) são comumente usadas na maioria de pacientes criticamente enfermos com indicação de diálise. O sucesso das TSRC depende de um protocolo de anticoagulação eficiente para manter permeável o circuito de diálise, minimizando complicações como sangramento por anticoagulação excessiva ou a necessidade da troca do sistema por coagulação do mesmo, por anticoagulação insuficiente. Vários fatores podem contribuir para a trombose do circuito de diálise, como a velocidade do fluxo de sangue através do circuito, o cateter de diálise, o tipo de membrana utilizada no filtro dialisador e, também, o tipo de terapia prescrita. A heparina não fracionada (HNF) é o anticoagulante mais utilizado para as diferentes técnicas de diálise e, mais recentemente, as heparinas de baixo peso molecular (HBPM) têm se mostrado seguras e efetivas para TRSC. Em pacientes criticamente enfermos que freqüentemente têm contra-indicação para anticoagulação sistêmica, existe a alternativa da anticoagulção regional com citrato trissódico, método eficiente e seguro, se aplicado com controle metabólico estrito. A anticoagulação regional com HNF/protamina tem seu uso limitado, atualmente, por apresentar muitas complicações decorrentes de efeitos adversos da protamina. Na impossibilidade do paciente ser anticoagulado, ou se a anticoagulação regional com citrato não for disponível, a lavagem freqüente do circuito de diálise com solução salina é a única alternativa aplicável. Novas drogas ainda não disponíveis no Brasil, como prostaglandinas, hirudina recombinante, argatroban e nafamostat podem ser utilizadas em pacientes com contra-indicação para heparinização.

Terapia contínua de substituição renal; Anticoagulação; Heparina de baixo peso molecular; Heparina não fracionada; Citrato trissódico


Continuous renal replacement therapies (CRRT) are commonly used in the majority of critically ill patients who need dialysis. Treatment success depends on an efficient anticoagulation protocol devised to maintain the dialysis circuit unclotted, with minimal complications such as bleeding due to excessive anticoagulation. Several features can contribute to dialysis circuit thrombosis, such as the speed of pump blood flow, dialysis catheter, type of dialyzer membrane and also, the type of technique prescribed. Unfractioned heparin (UFH) is the anticoagulant most used in CRRT. Recently, low-molecular weight heparins (LMWH) have been shown to be safe and effective drugs for this purpose. In critically ill patients, who frequently have contraindications to systemic anticoagulation, regional anticoagulation with trisodium citrate is an increasingly accepted method due to its safety and efficiency if applied under strict metabolic control. Regional anticoagulation with UFH/protamin now has limited use because of side effects related to protamin. If the patient has contraindication to systemic anticoagulation or if regional anticoagulation with citrate is not available, continuous flushing of circuit dialysis with saline is the only applicable alternative. In patients with contraindication to heparinization, new drugs not yet available in Brazil, such as prostaglandins, recombinant hirudin, argatroban and nafamostat can be used.

Continuous renal replacement therapies; Anticoagulation; Low-molecular weight heparin; Unfractioned heparin; Trisodium citrate


ARTIGO DE REVISÃO

Anticoagulação em terapias contínuas de substituição renal

Anticoagulation in continuous renal replacement therapies (CRRT)

Erwin Otero Garcés; Josué Almeida Victorino; Francisco Verisimo Veronese* * Correspondência Rua Ramiro Barcelos 2350, 90035-003, Sala 2030, Hospital de Clinicas de Porto Alegre, Porto Alegre, RS. Fone (51)2101-8295 Fax: (51)2101-8121; fveronese@hcpa.ufrgs.br

RESUMO

As terapias contínuas de substituição renal (TSRC) são comumente usadas na maioria de pacientes criticamente enfermos com indicação de diálise. O sucesso das TSRC depende de um protocolo de anticoagulação eficiente para manter permeável o circuito de diálise, minimizando complicações como sangramento por anticoagulação excessiva ou a necessidade da troca do sistema por coagulação do mesmo, por anticoagulação insuficiente. Vários fatores podem contribuir para a trombose do circuito de diálise, como a velocidade do fluxo de sangue através do circuito, o cateter de diálise, o tipo de membrana utilizada no filtro dialisador e, também, o tipo de terapia prescrita. A heparina não fracionada (HNF) é o anticoagulante mais utilizado para as diferentes técnicas de diálise e, mais recentemente, as heparinas de baixo peso molecular (HBPM) têm se mostrado seguras e efetivas para TRSC. Em pacientes criticamente enfermos que freqüentemente têm contra-indicação para anticoagulação sistêmica, existe a alternativa da anticoagulção regional com citrato trissódico, método eficiente e seguro, se aplicado com controle metabólico estrito. A anticoagulação regional com HNF/protamina tem seu uso limitado, atualmente, por apresentar muitas complicações decorrentes de efeitos adversos da protamina. Na impossibilidade do paciente ser anticoagulado, ou se a anticoagulação regional com citrato não for disponível, a lavagem freqüente do circuito de diálise com solução salina é a única alternativa aplicável. Novas drogas ainda não disponíveis no Brasil, como prostaglandinas, hirudina recombinante, argatroban e nafamostat podem ser utilizadas em pacientes com contra-indicação para heparinização.

Unitermos: Terapia contínua de substituição renal. Anticoagulação. Heparina de baixo peso molecular. Heparina não fracionada. Citrato trissódico.

SUMMARY

Continuous renal replacement therapies (CRRT) are commonly used in the majority of critically ill patients who need dialysis. Treatment success depends on an efficient anticoagulation protocol devised to maintain the dialysis circuit unclotted, with minimal complications such as bleeding due to excessive anticoagulation. Several features can contribute to dialysis circuit thrombosis, such as the speed of pump blood flow, dialysis catheter, type of dialyzer membrane and also, the type of technique prescribed. Unfractioned heparin (UFH) is the anticoagulant most used in CRRT. Recently, low-molecular weight heparins (LMWH) have been shown to be safe and effective drugs for this purpose. In critically ill patients, who frequently have contraindications to systemic anticoagulation, regional anticoagulation with trisodium citrate is an increasingly accepted method due to its safety and efficiency if applied under strict metabolic control. Regional anticoagulation with UFH/protamin now has limited use because of side effects related to protamin. If the patient has contraindication to systemic anticoagulation or if regional anticoagulation with citrate is not available, continuous flushing of circuit dialysis with saline is the only applicable alternative. In patients with contraindication to heparinization, new drugs not yet available in Brazil, such as prostaglandins, recombinant hirudin, argatroban and nafamostat can be used.

Key words: Continuous renal replacement therapies. Anticoagulation. Low-molecular weight heparin. Unfractioned heparin. Trisodium citrate.

INTRODUÇÃO

A insuficiência renal aguda (IRA) é uma condição clínica muito prevalente em pacientes internados em Unidades de Tratamento Intensivo (UTI). Conforme dados de Uchino et al.1, 72,5% dos pacientes que desenvolveram IRA durante internação na UTI necessitaram de algum tipo de tratamento dialítico, e 80% das terapias dialíticas empregadas nestes pacientes foram contínuas. A preferência por métodos contínuos é determinada, principalmente, pela sua maior tolerância hemodinâmica2, derivada de uma remoção mais gradual de solutos e líquidos, assim permitindo menores variações na osmolaridade sangüínea e contínua adaptação do volume circulante3-5.

As terapias contínuas de substituição renal (TSRC), como outras técnicas de depuração sangüínea, constituem-se em um sistema de circulação extracorpórea, composto por uma linha arterial e uma venosa, um filtro ou capilar de diálise e um cateter de duplo lúmen inserido em veia calibrosa. Este circuito deve permanecer sem coágulos de sangue e permeável para atingir um desempenho adequado, resultando em ótimo controle da homeostasia do paciente. A literatura relata que a coagulação do sistema é responsável, em 40% a 75% das vezes, pela suspensão da terapia dialítica6, sendo esta a principal desvantagem da TSRC7. A troca freqüente de capilares por trombose resulta em uma menor eficiência da terapia, podendo ocasionar anemia e necessidade de reposição de sangue, aumentando o trabalho de enfermagem e os custos do tratamento. Por outro lado, a utilização de algum protocolo de anticoagulação para maximizar a sobrevida dos filtros aumenta significativamente o risco de episódios de sangramento nestes pacientes. O risco de eventos hemorrágicos é elevado, pois estes pacientes já apresentam, comumente, algum grau de coagulopatia e, freqüentemente, coagulação intravascular disseminada (CIVD) em contexto de sepse8, agravado pelo efeito negativo da uremia sobre a coagulação 9.

Nesta revisão, serão discutidos os mecanismos responsáveis pela trombose dos circuitos utilizados nas TSRC, assim como as vantagens, desvantagens e indicações dos diferentes protocolos de anticoagulação disponíveis para pacientes de UTI.

Fatores que predispõem a trombose nos circuitos extracorpóreos

Diversos fatores contribuem para o alto índice de trombose dos sistemas de diálise atualmente empregados em pacientes com insuficiência renal aguda dialítica em UTI, estando relacionados com o estado clínico do paciente ou com a própria técnica de diálise e os materiais nela utilizados.

Ativação da cascata da coagulação

O fluxo sangüíneo do circuito de hemodiálise utilizado na TSRC se converte em uma extensão da superfície corporal. A simples passagem do sangue através desse circuito, em especial através da membrana do dialisador, produz ativação dos diferentes mecanismos responsáveis pela coagulação do sangue6,10. Esses mecanismos são iniciados pela ativação da via intrínseca e da via alternativa, que envolve proteínas do complemento, ocorrendo liberação de mediadores pró-inflamatórios e culminando na ativação da cascata da coagulação com formação de coágulos de fibrina6.

Fluxo sangüíneo do sistema de diálise contínua

O fluxo da bomba de sangue da TSRC hemodiálise, hemofiltração ou ultrafiltração isolada determina a velocidade com que o sangue passa através do circuito. Quanto menor o fluxo, maior o tempo de contato entre o sangue e a membrana do dialisador, aumentando o risco de trombose. Não existem estudos demonstrando qual é o fluxo de sangue ideal nas terapias dialíticas contínuas, mas fluxos muito elevados incrementam a turbulência, assim como fluxos muito baixos (< 100 ml/min) promovem estase do sangue, ambas as situações contribuindo para o processo de coagulação6.

Problemas relacionados ao cateter de diálise

A oclusão, completa ou parcial, do cateter de diálise por qualquer motivo (coágulos intra-luminais, dobras, má posição) ocasiona bloqueio ou redução do fluxo de sangue no circuito. Um fluxo de sangue turbulento, observado em cateteres com diâmetros pequenos, produz ativação de leucócitos e plaquetas dentro do lúmen do cateter, predispondo a trombose. Conseqüentemente, recomenda-se a utilização de cateteres de maior calibre (duplo lúmen de 12F com 4mm de diâmetro) e comprimento que varie entre 16 e 24 cm, inseridos em locais onde mudanças de posição do paciente não influenciem no fluxo do cateter10,11.

Tipo de terapia dialítica

Na hemofiltração venovenosa contínua, em que a terapia é realizada unicamente por processo físico-químico de convecção, a obtenção de grandes volumes de ultrafiltração (UF) aumenta a viscosidade do sangue dentro do hemofiltro, com maior risco de trombose do sistema. Recomenda-se sempre a infusão pré-filtro da solução de reposição, para diluir o compartimento sangüíneo do hemofiltro10,12.

Outros fatores que influenciam a permeabilidade do circuito são o comprimento das linhas do circuito quanto maior a extensão do circuito, maior é o risco de trombose e a composição química da membrana do filtro capilar, havendo menor risco de formação de trombo com as membranas sintéticas. Estas membranas (polisulfona, polimetilacrilato e poliacrilonitrila) apresentam maior grau de biocompatibilidade, sendo consideradas menos trombogênicas que aquelas derivadas de celulose, que nesse e em outros aspectos (como geração de resposta inflamatória) são mais bioincompatíveis6,11,13,14.

Estratégias de anticoagulação na TSRC

Os protocolos de anticoagulação mais utilizados nas TSRC são apresentados, a seguir, enfatizando os aspectos mais relevantes de cada método.

Heparina não fracionada (HNF)

É o anticoagulante comumente utilizado7 e com o qual se tem maior experiência clínica15. A HNF oferece vantagens como baixo custo, meia vida curta, alta eficiência, fácil reversão com protamina e facilidade de monitorização do nível de anticoagulação com o tempo parcial de tromboplastina ativado (aTTP). Entre as principais desvantagens citam-se a anticoagulação sistêmica e a trombocitopenia induzida pela HNF, complicação descrita em até 10% a 30% dos pacientes que usam altas doses de HNF por mais de quatro dias16. Isto dificulta, e muitas vezes contra-indica, o uso da HNF em pacientes com risco aumentado de complicações hemorrágicas ou na presença de sangramento ativo.

O principal mecanismo de ação da HNF é através da ligação com a anti-trombina III, modificando sua estrutura química e aumentando a afinidade pela trombina (fator IIa) e, em menor grau, pelo fator X ativado (fator Xa)10,14. A farmacocinética da HNF em pacientes criticamente enfermos é pouco previsível, principalmente naqueles com quadro de sepse grave, que apresentam níveis baixos de anti-trombina III10,15,17, o que diminui o efeito da droga e dificulta o estabelecimento de uma anticoagulação adequada.

A recomendação para o uso de heparina é a lavagem do circuito (priming) com 5.000U de heparina diluídas em 1-2 litros de solução salina normal (SSN), seguida pela administração em bolus de 1.000-5.000 UI (~50-100 UI/kg) de heparina endovenosa antes de iniciar a TSRC. Após esta etapa, mantém-se uma infusão contínua de heparina pré-capilar na dose de 5-10 U/kg/h, ajustando-se a dose para manter o nível do aTTP entre 1,5-2 vezes o valor normal13-15. Empregando esse protocolo de anticoagulação, a maioria dos centros relatam duração média do filtro de cerca de 30 horas6.

Heparinas de baixo peso molecular (HBPMs)

As HBPMs diferem da HNF em vários aspectos. Um deles é a ligação seletiva das HBPM ao fator Xa devido, principalmente, ao tamanho reduzido da molécula de HBPM, que não permite a sua ligação simultânea com a anti-trombina III. Outra vantagem é a menor afinidade que as HBPMs têm pelo fator plaquetário-4 (PAF-4) relacionado com a trombocitopenia induzida por heparina18. A meia vida mais prolongada das HBPMs permite a sua administração de uma a duas vezes por dia. Adicionalmente, a sua disponibilidade e meia vida são mais previsíveis por ligarem-se em menor proporção às proteínas plasmáticas e ao endotélio vascular, não sendo necessária a realização de testes laboratoriais para controle de sua atividade antitrombótica em pacientes estáveis 6,18,19.

Em pacientes criticamente enfermos, especialmente aqueles com insuficiência renal, a farmacocinética das HBPMs está alterada, observando-se prolongamento importante de sua meia vida20-22. Alguns estudos mostram um aumento significativo na incidência de sangramento em pacientes com insuficiência renal utilizando alguma HBPM23,24, justificando a dosagem do fator anti-Xa para monitorizar a atividade antitrombótica da droga. Entretanto, esse controle laboratorial (atividade do fator anti-Xa) não está disponível na grande maioria dos centros, principalmente pelo elevado custo da técnica, o que resulta em considerável aumento dos gastos da terapia dialítica25. Adicionalmente, vários estudos mostram que existe uma correlação pobre entre os níveis do fator anti-Xa e da atividade antitrombótica exercida pelas HBPMs na TSRC10,26. Nos centros que utilizam a medida da atividade anti-Xa, o nível considerado terapêutico é 0,25-0,45 U/mL19,27. Para pacientes com insuficiência renal em terapias contínuas, o nível de atividade anti-Xa recomendado por alguns autores é mais elevado, variando de 0,3 a 0,8 U/ml10, o que parece ser necessário para manutenção da permeabilidade do circuito de diálise com baixo índice de complicações hemorrágicas6,10,15,28.

Outro aspecto importante a ser considerado no uso das HBPMs é a ausência de um antagonista efetivo para reversão de seu efeito anticoagulante, uma vez que o sulfato de protamina só reverte parcialmente o efeito29. Isto dificulta a realização de procedimentos invasivos, diagnósticos ou terapêuticos, muitas vezes indicados no manejo clínico-cirúrgico do paciente criticamente enfermo.

Anticoagulação regional com heparina-protamina (H-P)

A anticoagulação regional com H-P consiste na infusão pré capilar de heparina (5-10 U/Kg/h) para manter o filtro de diálise anticoagulado, revertendo-se o efeito da anticoagulação sistêmica mediante uma infusão pós capilar de sulfato de protamina. A dose desta última é calculada com base na dose administrada de heparina (1 mg de protamina neutraliza 100 U de heparina) e, com este esquema, é possível a anticoagulação local do circuito de hemodiálise, sem provocar anticoagulação sistêmica6,10. Devido às suas características farmacológicas, o uso da protamina fica restrito a alguns pacientes de maior risco, principalmente aqueles internados na UTI. A heparina, por ter uma meia vida mais prolongada que a da protamina (especialmente na insuficiência renal), pode causar episódios de sangramento por fenômeno rebote de anticoagulação. Adicionalmente, a administração de protamina (principalmente em bolus) pode induzir episódios graves de hipotensão ou causar instabilidade hemodinâmica em pacientes limítrofes, além de depressão miocárdica, leucopenia, trombocitopenia e reações anafiláticas6,9,10,15.

Anticoagulação regional com citrato

A infusão pré capilar de uma solução de citrato trissódico a 2% ou 4% 30-32 quela o cálcio sangüíneo, bloqueando todas as etapas da cascata de coagulação que dependem deste íon (Figura 1). O sangue que retorna ao paciente contém complexos de citrato-cálcio iônico, que serão metabolizados principalmente no fígado, convertendo cada molécula de citrato em três moléculas de bicarbonato, motivo pelo qual o uso de citrato como anticoagulação na TSRC torna desnecessário a utilização de soluções tampão.


O cálcio perdido neste processo é reposto mediante infusão endovenosa de gluconato de cálcio (Figura 2). O sucesso da anticoagulação regional com citrato depende do controle estrito do cálcio iônico (Cai) no circuito de hemodiálise (coletado pós capilar) e do paciente (coletado pré capilar). Os níveis séricos alvo de Cai recomendados para o sistema de diálise são de 0,25-0,35 mmol/L (1,0-1,5mg/dL) e para o paciente 1,0-1,3mmol/L (4,0-4,5 mgl/dl). Com este esquema anticoagulante na TSRC, tem sido descrita sobrevida de filtros entre três e quatro dias31. A regulação do Cai do sistema é realizada mediante infusão pré capilar do citrato trissódico, e o ajuste do Cai sistêmico é feito pela infusão de gluconato de cálcio que deve ser administrado por veia central. Esta solução, quando infundida na via venosa do circuito de diálise, está relacionada com maior incidência de trombose do cateter10.


Algumas complicações têm sido descritas pelo uso do citrato, entre elas: hipernatremia (pela utilização da solução de citrato trissódico), alcalose metabólica (por rápida conversão de citrato em bicarbonato), acidose metabólica com ânion GAP aumentado (pela administração de citrato em pacientes com insuficiência hepática severa, ocorrendo acúmulo de citrato face à redução de seu metabolismo) e hipocalcemia (por ajuste inadequado da infusão de gluconato de cálcio)6,9,15,31.

A anticoagulação regional com citrato, devido principalmente ao alto custo da terapia e a complexidade da técnica, é recomendada somente em pacientes que apresentam alto risco de sangramento, conforme critérios apresentados na Tabela 1.

Lavagem do sistema com solução salina normal (SSN)

Em pacientes com alto risco de sangramento (Tabela 1), ou em centros onde não há disponibilidade para a utilização de citrato, a única alternativa disponível é a realização da TSRC sem anticoagulação. Nestas situações, recomenda-se realizar o priming ou a lavagem inicial do circuito de diálise com uma solução de heparina (5.000U de heparina por litro de SSN)10, que deve ser desprezada para evitar que o paciente seja anticoagulado. Durante a TSRC, utiliza-se uma infusão pré capilar de 100-250 mL/hora de SSN para a lavagem contínua do filtro, reduzindo o risco de trombose6. Volumes maiores não têm mostrado beneficio em termos de sobrevida do capilar e podem comprometer a eficiência da terapia dialítica por dois mecanismos: diluição excessiva do compartimento sangüíneo interno do filtro, reduzindo o gradiente osmótico para remoção da escória nitrogenada e de eletrólitos; em alguns pacientes, indução de acidose metabólica hiperclorêmica pela administração de grandes volumes de cloreto de sódio9,15. O uso de bolus intermitentes de SSN (30/30 minutos) com o objetivo de lavar o filtro, além de aumentar o trabalho da equipe, não mostra benefícios quando comparado à infusão pré capilar em pacientes submetidos à TSRC15.

Vários fatores podem influenciar a sobrevida do capilar e devem ser considerados especialmente nos pacientes críticos, nos quais a anticoagulação freqüentemente é contra-indicada. O fluxo da bomba de sangue deve ser o maior que for tolerado pelo paciente (150 mL/min), e o cateter deve estar totalmente permeável, para evitar aumento na pressão pós capilar de retorno (segmento venoso) e diminuir o número de complicações mecânicas como baixo fluxo no sistema (segmento arterial), situações que estão associadas ao aumento dos episódios de trombose10,33.

Um estudo33 mostrou que a sobrevida do filtro na TSRC sem o uso de algum esquema de anticoagulação é aceitável (cerca de 30 horas), com redução das complicações hemorrágicas e um adequado controle metabólico. A lavagem do sistema é considerada um método alternativo em pacientes com alto risco de sangramento que necessitem de diálise, embora apresente o inconveniente da perda sangüínea, quando ocorre trombose do circuito, e de uma menor eficiência da diálise, decorrente das interrupções freqüentes para a lavagem do sistema34.

Outros protocolos de anticoagulção utilizados nas TSRC

Vários esquemas de anticoagulação têm sido descritos como efetivos na prevenção da trombose do circuito de hemodiálise. A grande maioria deles é pouco utilizada, devido à falta de disponibilidade do fármaco em nosso meio e um alto custo da terapia. Entre essas opções terapêuticas temos: prostaglandinas e análogos, dextranos de baixo peso molecular (Rheomacrodex®), proteína C ativada, hirudina recombinate (Refludan®), anti-trombina III recombinante, argatroban, danaproide (Orgaran®) e mesilato de nafamostat. Recentemente, vem se popularizando o uso de circuitos de diálise recobertos com heparina (Duraflo®)6,10,15,35.

CONCLUSÃO

As TSRC são cada vez mais empregadas no manejo da IRA em UTI e o sucesso destas terapias vai depender de uma anticoagulação eficaz do circuito, evitando ao máximo as complicações relacionadas ao seu uso. É função do nefrologista e do intensivista que manejam pacientes com IRA dialítica na UTI conhecer cada um dos diferentes métodos de anticoagulação, selecionando aquele com a melhor relação custo/efetividade dentro dos recursos disponíveis.

Conflito de interesse: não há.

Artigo recebido: 13/12/06

Aceito para publicação: 25/6/07

Trabalho realizado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas: Nefrologia e Serviço de Nefrologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, Faculdade de Medicina, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS

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    Correspondência Rua Ramiro Barcelos 2350, 90035-003, Sala 2030, Hospital de Clinicas de Porto Alegre, Porto Alegre, RS. Fone (51)2101-8295 Fax: (51)2101-8121;
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Out 2007
    • Data do Fascículo
      Out 2007

    Histórico

    • Recebido
      13 Dez 2006
    • Aceito
      25 Jun 2007
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