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Estrutura fatorial da versão brasileira da escala razões para fumar modificada

Resumos

OBJETIVOS: Caracterizar a estrutura fatorial e as propriedades psicométricas da versão brasileira da Escala Razões Para Fumar Modificada (ERPFM). MÉTODOS: Trezentos e onze fumantes (214 homens; idade média: 37,6 ± 10,8 anos), que procuraram o Hemocentro de Ribeirão Preto para doação de sangue, responderam 21 itens da versão brasileira da ERPFM, o teste de Fagerström e o critério de classificação econômica Brasil. Os escores dos itens da ERPFM foram avaliados no tocante ao seu agrupamento, por análise fatorial exploratória. A influência de características clínicas nos escores da solução fatorial final obtida foi igualmente investigada. RESULTADOS: A análise fatorial levou à caracterização de sete fatores: dependência, estimulação, prazer de fumar, manuseio, tabagismo social, redução da tensão/relaxamento, e hábito/automatismo. Quatro questões foram excluídas devido a cargas fatoriais inferiores a 0,3. A versão final ficou constituída por 17 itens exibindo carga fatorial mínima de 0,376. As mulheres exibiram escores elevados de dependência (3,5 X 3,1), redução da tensão/relaxamento (4,1 X 3,5) e manuseio (2,4 X 2,0). Menores escores do teste de Fagerström associaram-se a escores inferiores de dependência, redução da tensão/relaxamento, hábito/automatismo e estimulação. CONCLUSÃO: A versão brasileira da ERPFM, composta por 17 questões, exibe estrutura fatorial e propriedades psicométricas satisfatórias.

Abandono do hábito de fumar; Escalas de graduação psiquiátrica; Estudos de validação


OBJECTIVE: To characterize the factorial structure, and psychometric properties of the Brazilian version of the Modified Reasons for Smoking Scale (MRFSS). METHODS: Three hundred eleven smokers (214 male; mean age: 37.6 ± 10.8 years), who had gone to the "Hemocentro de Ribeirão Preto" to donate blood , answered 21 items of the Brazilian version of the MRFSS, the Fagerström test, and the Criteria of Brazilian Economic Classification. Scores of the MRFSS items were evaluated regarding their grouping, employing exploratory factorial analysis. The influence of clinical features on scores of the final factorial solution was also investigated. RESULTS: Factorial analysis led to the characterization of 7 factors: addiction, stimulation, pleasure to smoke, handling, social smoking, tension reduction/relaxation, and habit/automatism. Four questions were excluded due to factorial loadings of less than 0.3. The final version was formed by 17 items showing a minimal factorial loading of 0.376. Women showed high scores of addiction (3.5 X 3.1), tension reduction/relaxation (4.1 X 3.5), and handling (2.4 X 2.0). Low scores of the Fagerström test were associated to low scores in addiction, tension reduction/relaxation, habit/automatism and stimulation. CONCLUSION: The Brazilian version of the MRFSS, comprised of 17 items, exhibits satisfactory factorial structure, and psychometric properties.

Smoking Cessation; Scales; Validation Studies


ARTIGO ORIGINAL

Estrutura fatorial da versão brasileira da escala razões para fumar modificada

Elisa Sebba Tosta de SouzaI; José Alexandre S. CrippaII; Sonia Regina PasianIII; José Antônio Baddini MartinezIV, * * Correspondência: Departamento de Clínica Médica. Avenida Bandeirantes, 3900, Ribeirão Preto - SP, 14048-900. Telefone: (16) 3602-2531, Fax: (16) 3633-6695. jabmarti@fmrp.usp.br

IMédica Pneumologista e Pós-graduanda do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP, Ribeirão Preto,SP

IIDoutor em Psiquiatria; Professor Doutor do Departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento - RNC e da Divisão de Psiquiatria da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo- USP, Ribeirão Preto,SP

IIIProfessora Doutora em Psicologia do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP, Ribeirão Preto,SP

IVLivre-Docente em Clínica Médica e Professor Associado do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo - USP, Ribeirão Preto, SP

RESUMO

OBJETIVOS: Caracterizar a estrutura fatorial e as propriedades psicométricas da versão brasileira da Escala Razões Para Fumar Modificada (ERPFM).

MÉTODOS: Trezentos e onze fumantes (214 homens; idade média: 37,6 ± 10,8 anos), que procuraram o Hemocentro de Ribeirão Preto para doação de sangue, responderam 21 itens da versão brasileira da ERPFM, o teste de Fagerström e o critério de classificação econômica Brasil. Os escores dos itens da ERPFM foram avaliados no tocante ao seu agrupamento, por análise fatorial exploratória. A influência de características clínicas nos escores da solução fatorial final obtida foi igualmente investigada.

RESULTADOS: A análise fatorial levou à caracterização de sete fatores: dependência, estimulação, prazer de fumar, manuseio, tabagismo social, redução da tensão/relaxamento, e hábito/automatismo. Quatro questões foram excluídas devido a cargas fatoriais inferiores a 0,3. A versão final ficou constituída por 17 itens exibindo carga fatorial mínima de 0,376. As mulheres exibiram escores elevados de dependência (3,5 X 3,1), redução da tensão/relaxamento (4,1 X 3,5) e manuseio (2,4 X 2,0). Menores escores do teste de Fagerström associaram-se a escores inferiores de dependência, redução da tensão/relaxamento, hábito/automatismo e estimulação.

CONCLUSÃO: A versão brasileira da ERPFM, composta por 17 questões, exibe estrutura fatorial e propriedades psicométricas satisfatórias.

Unitermos: Abandono do hábito de fumar. Escalas de graduação psiquiátrica. Estudos de validação.

INTRODUÇÃO

Ainda que as propriedades psicoativas da nicotina sejam o elemento principal relacionado ao estabelecimento da dependência ao fumo, as motivações para o consumo de cigarros parecem ser variadas e multidimensionais. Acumulam-se indícios que a dependência ao tabaco vai além da dependência à nicotina propriamente dita.1,2,3,4 Esta última seria apenas uma dimensão, dentro de um cenário maior. A assim chamada "dependência ao tabaco" refletiria a dependência farmacológica à nicotina, bem como outros aspectos psicossociais da condição. Desse modo, a identificação dos diferentes motivos que levam uma pessoa a fumar pode ajudar no estabelecimento de estratégias individualizadas de cessação.

O tabagismo já foi descrito como um modo pelo qual os indivíduos controlam sentimentos.1 Haveria quatro características motivacionais básicas para o comportamento dos tabagistas: (i) a busca de sentimentos positivos, (ii) o alívio de sentimentos negativos, (iii) a presença de dependência e (iv) o hábito. Baseados nesse modelo, Horn e Waingrow criaram uma escala com o propósito de identificar as razões predominantes que levam as pessoas a fumar.5 A escala foi chamada de Reasons for Smoking Scale - RFS (Escala Razões Para Fumar - ERPF), e tem sido empregada por décadas na América do Norte. Ela é a medida mais frequentemente usada, para avaliar os motivos psicológicos que levam uma pessoa a fumar.6,7,8

Em um estudo inicial, a ERPF foi aplicada a 2094 fumantes adultos e, por meio de análise fatorial, seis elementos motivacionais puderam ser definidos: (i) estimulação, (ii) prazer/relaxamento, (iii) manipulação sensório-motora, (iv) hábito, (v) dependência e (vi) redução de emoções negativas.9 Diversos autores que utilizaram a ERPF chegaram à identificação desses mesmos seis agrupamentos motivacionais.10

Há alguns anos foi proposta modificação na ERPF, com a introdução de novas questões para definir um sétimo domínio motivacional, o tabagismo social, derivado de modelo anteriormente proposto na literatura.11 A nova escala, composta por 21 perguntas, foi nomeada Modified Reasons for Smoking Scale - MRSS (Escala Razões Para Fumar Modificada - ERPFM).12 As propriedades psicométricas dessa escala foram avaliadas em 330 fumantes franceses, o que levou a caracterização de sete domínios motivacionais: (i) dependência, (ii) prazer de fumar, (iii)redução da tensão/relaxamento, (iv) tabagismo social, (v) estimulação, (vi) hábito/automatismo e (vii) manuseio. Essa análise excluiu duas questões, que exibiam carga fatorial baixa, e a versão final ficou composta por 19 itens. Nesse estudo ainda, falências na tentativa de parar de fumar foram previstas por escores altos da sub-escala hábito/automatismo.12

A ERPFM foi recentemente traduzida e adaptada trans-culturalmente para o português falado no Brasil, a partir de uma versão em inglês obtida dos seus autores originais.13 O objetivo do presente estudo foi investigar a estrutura fatorial e as propriedades psicométricas dessa versão brasileira da escala, as quais ainda não foram descritas.

MÉTODOS

Sujeitos da pesquisa

Os voluntários fumantes foram selecionados entre doadores de sangue, que procuravam espontaneamente o Hemocentro de Ribeirão Preto para doação. Durante o período do estudo, como parte da avaliação inicial de todos os doadores, foram identificados aqueles que fumaram pelo menos um cigarro na última semana, os quais foram convidados a participar do estudo. Foram excluídos da investigação indivíduos com idade inferior a 18 anos, portadores de comorbidades, com história de dependência a drogas ou alcoolismo. Deixaram de ser incluídas no estudo ainda pessoas não alfabetizadas, ou que não tivessem o português como língua primária de alfabetização. Os indivíduos que concordaram em participar da investigação assinaram um Consentimento Informado, e responderam, logo em seguida e em atmosfera tranquila, questionário padronizado autoaplicável. O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisas em Seres Humanos do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

No período de dezembro de 2006 a outubro de 2007 foram entrevistados 311 voluntários, 214 homens e 97 mulheres. A idade média do grupo foi de 37,6 ± 10,8 anos, variando entre 18,1 e 65,9 anos. A distribuição dos voluntários, em função da sua classe social foi: A1: 2 (0,6%); A2: 12 (3,9%); B1: 26 (8,4%); C: 170 (54,7%); D: 40 (12,9%) e E: 5 (1,6%). O número médio de anos estudados foi de 9,0 ± 3,8 anos, o que corresponde a uma frequência até o ensino médio incompleto. O tempo médio de tabagismo do grupo foi de 20,4 ± 11,3 anos, e o número médio de cigarros consumidos diariamente de 15 ± 9,2 unidades. O grau de dependência nicotínica do grupo, avaliado pelo teste de dependência nicotínica de Fagerström, pode ser classificado como leve, com escore médio de 3,7 ± 2,4 (variação entre 0-9).

Instrumento da pesquisa

O questionário aplicado era composto por 21 questões relativas à ERPFM, pelo teste de dependência a nicotina de Fagerström, informações demográficas, itens relativos à história tabagística dos sujeitos e o critério de classificação econômica Brasil.14,15,16,17

Empregou-se uma versão da ERPFM, traduzida e adaptada trans-culturalmente para o português falado no Brasil, segundo metodologia tradicional, como previamente descrito (Anexo Anexo ).13,18,19 A escala original em língua inglesa foi fornecida por Irvin Berlin, Centre Hospitalier-Universitaire Pitié-Salpêtrière, Paris. Esse instrumento foi traduzido para o português por três médicos brasileiros que haviam vivido em países de língua inglesa por longos períodos. Uma versão de consenso foi obtida após a análise de um grupo multidisciplinar composto por dois médicos pneumologistas, um médico psiquiatra e uma psicóloga. Essa versão em português foi retrotraduzida para o inglês por um tradutor de nacionalidade americana, com resultados satisfatórios. A avaliação da identidade cultural da escala foi inicialmente confirmada em uma amostra de 20 fumantes sem comorbidades, funcionários do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto. Essa versão de consenso foi utilizada em todos os estudos subsequentes. As respostas das questões da ERPFM são expressas na forma de escala Likert, com escores variando entre 1 e 5 (Anexo Anexo ). A versão traduzida para o português exibiu alto grau de confiabilidade teste-reteste em comparações efetuadas empregando o modelo trans-teórico obtido por Berlin et al, com coeficientes de correlação intraclasse variando entre 0,59 e 0,87, conforme publicado anteriormente.13

O teste de dependência a nicotina de Fagerström é um instrumento clássico de avaliação de tabagistas, composto por seis questões, cujo escore total varia entre 0 e 10. Ele vem sendo amplamente utilizado no Brasil há anos e, quanto maior seu escore, maior o grau de dependência química a nicotina.14,15,16

Análise estatística

Os resultados obtidos foram tabelados em planilha de dados e analisados com o pacote estatístico SPSS, versão 13.0 (SPSS-Incorporated, Cambridge, MA, 2001). Os dados relativos às características demográficas e história tabagística dos indivíduos foram expressos na forma de médias e desvios padrão. Os escores das questões relativas à ERPFM foram avaliados por Análise Fatorial Exploratória, pela técnica de análise dos componentes principais, com rotação varimax, visando a investigação da validade do construto da escala.20, A análise fatorial explanatória é um método estatístico usado para identificar a estrutura subjacente a grupos com grande número de variáveis. Ela reduz essas variáveis a um conjunto menor de fatores estruturados, sendo amplamente utilizada no desenvolvimento e interpretação de instrumentos de pesquisa no campo da psicologia. O número de 311 voluntários, para análise fatorial de uma escala de 21 questões, forneceu razão de 14,8 indivíduos por questão, o que está acima do valor recomendado de 10 respondentes por item. Os pressupostos da amostra para realização da análise fatorial, com valor do teste de Kaiser-Meyer-Olkin de 0,75 e teste de esfericidade de Bartlett significante, foram preenchidos. Foi estabelecido valor mínimo de carga fatorial de 0,3 para aceitação de uma questão dentro de um dos fatores gerados. A consistência interna dos fatores gerados foi avaliada pelo teste alfa de Cronbach, sendo considerados valores mínimos aceitáveis os superiores a 0,50.21,22

A análise do comportamento dos fatores detectados, em função das variáveis clínicas sexo, idade e teste de Fagerström, foi feita empregando-se Análise de Variância de Comparações Múltiplas (MANOVA), com o pós-teste de Bonferroni, quando indicado. Nesses testes foi estabelecido um nível de significância estatística igual ou inferior a 5%. Para a análise os voluntários foram divididos nas seguintes classes de idade: até 30 anos; de 31 a 40 anos; de 41 a 50 anos, e acima de 50 anos. No tocante ao teste de Fagerström, os escores foram divididos em três categorias: dependência leve (escores de 0-4), moderada (escores de 5-7), e grave (escores iguais ou superiores a 8).

Resultados

A análise fatorial levou à identificação de uma solução com sete fatores, que explicam 62,4% da variância total das respostas (Tabela 1). A composição desses fatores, juntamente aos respectivos valores das cargas fatoriais obtidas para cada questão, está listada na Tabela 2. A aplicação de um valor de carga fatorial superior a 0,3, para inclusão de itens nos fatores, levou à exclusão de quatro questões da versão original (as de número 12,16,17 e 21). As denominações dadas a cada um dos fatores, baseados na terminologia original já empregada na literatura, foram:

Fator 1: Dependência (questões 5 e 19).

Fator 2: Estimulação (questões 1, 8 e 15).

Fator 3: Prazer de fumar (questões 3 e 10).

Fator 4: Manuseio (questões 2 e 9).

Fator 5: Tabagismo social (questões 7 e 14).

Fator 6: Redução da tensão/relaxamento (questões 4,11 e 18).

Fator 7: Hábito/automatismo (questões 6,13 e 20).

Os níveis de consistência interna dos fatores gerados, medidos pelos coeficientes alfa de Cronbach, também estão listados na Tabela 2.

A análise do comportamento dos fatores detectados, em função das variáveis clínicas sexo, idade e teste de Fagerström, encontra-se listada na Tabela 3. As mulheres exibiram escores significantemente maiores dos fatores dependência, redução da tensão/relaxamento e manuseio. As mulheres também mostraram uma tendência para maiores escores do fator tabagismo social. O grupo de fumantes com idade entre 41 e 50 anos, exibiu escores de prazer de fumar e tabagismo social significantemente inferiores aos dos grupos com idade entre 31 e 40 anos, e inferior a 30 anos, respectivamente. No tocante ao teste de Fagerström, o grupo com dependência nicotínica leve mostrou escores significantemente inferiores de dependência, redução da tensão/relaxamento e hábito/automatismo, do que os fumantes com dependência moderada e grave. Além disso, os grupos com dependência nicotínica leve e moderada exibiram escores significantemente inferiores de estimulação, em comparação ao grupo com dependência grave.

DISCUSSÃO

O tabagismo constitui atualmente grave problema de saúde pública. Estima-se que o número de óbitos anuais, por doenças relacionadas ao fumo, atinja 5.000.000 em todo o mundo. Do mesmo modo, estima-se que metade dos fumantes vai ter a duração de sua vida abreviada por uma moléstia relacionada ao vício.23 Apesar dos males causados pelos cigarros serem bem difundidos, as dificuldades dos fumantes para abandonar essa dependência são largamente reconhecidas.24

A nicotina é droga psicoativa capaz de influenciar acentuadamente a função cerebral.4,24 Ainda que a dependência à nicotina seja o principal fator associado com a manutenção do tabagismo, dados da literatura sugerem que o vício exibe um espectro multifatorial.1,2,3,4 A caracterização de fatores diversos, que levam as pessoas a fumar, pode contribuir para o desenvolvimento de intervenções anti-tabágicas particularizadas para cada indivíduo. Os principais instrumentos até agora propostos com essa finalidade são as escalas RPF e RPFM. Na verdade, até o momento encontramos apenas uma publicação relacionada com a validação e emprego da última escala em língua estrangeira.12

No presente artigo investigamos a estrutura fatorial e as propriedades psicométricas de uma versão traduzida e adaptada trans-culturalmente para o português falado no Brasil, da escala RPFM.13 Os voluntários deste estudo foram selecionados a partir de indivíduos que se apresentaram espontaneamente para doação de sangue, em um centro de referência em hemoterapia do interior paulista. Essa estratégia permitiu-nos investigar o perfil motivacional para consumo de cigarros num contexto mais próximo da realidade epidemiológica da comunidade. É possível que um perfil motivacional diverso viesse a ser obtido se os voluntários tivessem sido selecionados de outro modo, como exemplo, a partir de um programa de cessação do tabagismo.

A literatura exibe inconsistências no tocante à definição e critérios para inclusão de fumantes em estudos.25 Um fumante regular é normalmente definido como sendo aquele que consome pelo menos um cigarro todo dia, ou quase todo dia. Entretanto, há divergências no modo de definir os fumantes ocasionais, os quais acabam sendo classificados em categorias que refletem a frequência ou intensidade do consumo como ter fumado menos que dois cigarros na última semana ou, ainda, fumar pelo menos um cigarro por semana, mas não diariamente. O critério adotado para inclusão dos voluntários neste estudo, o consumo de pelo menos um cigarro na última semana, permitiu selecionar fumantes regulares, assim como os ocasionais com consumo recente. Desse modo, as propriedades do instrumento puderam ser investigadas numa amostra de perfil abrangente no tocante ao grau de dependência tabágica. A necessidade do consumo de cigarros na última semana também contribuiu para selecionar sujeitos que mantivessem em sua memória vivências recentes do consumo de cigarros o que, muito provavelmente, facilitaria a autoidentificação dos fatores motivacionais subjacentes.

Neste estudo, as questões da versão brasileira da ERPFM exibiram uma estrutura fatorial coerente com o previsto e o previamente publicado. À semelhança do relatado no estudo de Berlin et al., as questões 12 e 21 exibiram cargas fatoriais muito baixas, o que justificou sua retirada da versão final do instrumento.12 Além disso, no presente estudo, as cargas fatoriais das questões 16 e 17 também foram baixas, o que levou, igualmente, à sua exclusão. Desse modo, os fatores dependência, tabagismo social, prazer de fumar emanuseio, puderam ser suficientemente definidos com o emprego de duas questões cada apenas.

A presente análise fatorial revelou resultados muito semelhantes ao do estudo internacional prévio, realizado na França, já que cinco dos sete fatores formados mostraram composição exatamente igual.12 Os fatores manuseio e prazer de fumar da versão brasileira deixaram de incluir, respectivamente, as questões 16 e 17, o que deve ser justificado, muito provavelmente, por diferenças culturais. Entretanto, o grau de dependência tabagística dos voluntários do estudo anterior foi substancialmente maior do que o observado neste artigo. Enquanto o número médio de cigarros consumidos diariamente pelos voluntários do estudo francês foi de 26,5 ± 8,5, o do presente artigo foi de 15 ± 9,2. Além disso, o escore médio do teste de Fagerström do primeiro grupo foi de 6,2 ± 2,0 e o do segundo 3,7 ± 2,4. Portanto, pequenas diferenças quanto a composição dos fatores, em relação ao artigo inicial, podem ter sido devidas, em alguma extensão, a graus distintos de dependência tabagística entre os estudos. Muito embora, baseando-se no Teste de Fagerström, o grau de dependência tabagística da maioria dos voluntários deste estudo possa ser classificado como leve e moderado, os indivíduos aqui incluídos foram abordados em situação não relacionada a processos de interrupção do vício, o que o distingue do estudo francês. Os dados agora encontrados servem como confirmação da validade do modelo fatorial original, em uma condição na qual os fumantes não estavam procurando ativamente o abandono do vício.

No estudo francês, o fator dependência foi positivamente associado com o número de cigarros consumidos diariamente, enquanto o fator hábito/automatismo foi significantemente maior no grupo de fumantes de mais de um maço ao dia.12 O fator dependência também mostrou associação significante com escores de teste de Fagerström superiores a 6. No estudo atual, os fumantes classificados como portadores de dependência nicotínica leve exibiram escores de dependência, redução da tensão/relaxamento e hábito/automatismo, inferiores aos subgrupos classificados como dependência moderada e grave. Do mesmo modo, o subgrupo classificado como dependência nicotínica grave, exibiu escore médio de estimulação maior do que os dos demais subgrupos. Esse conjunto de resultados indica que a versão brasileira da ERPFM exibe associações significativas com o teste de Fagerström, à semelhança da versão original.

No estudo anterior, o sexo feminino exibiu perfil de razões para fumar distinto do sexo masculino, com altos escores de redução da tensão/relaxamento, estimulação e tabagismo social.12 Na presente investigação, as mulheres mostraram escores médios significantemente maiores de dependência, redução da tensão/relaxamento e manuseio. Também pode ser observada uma tendência a maiores escores de tabagismo social. As semelhanças encontradas, no tocante às associações entre o teste de Fagerström e fatores, assim como da influência do gênero no perfil de razões para fumar, servem como confirmação da validade desta versão brasileira da ERPFM.

Como já apontado anteriormente, uma das limitações deste trabalho é o fato de o grau de dependência à nicotina do grupo estudado não ter sido elevado. Além disso, a representatividade de voluntários das classes A, B e E foi limitada. É possível que esses fatos possam ter contribuído para a exclusão das quatro questões, com cargas fatoriais baixas e transformação da escala original de 21 itens para a forma final de apenas 17.

Os resultados aqui obtidos permitem-nos concluir que a versão brasileira da ERPFM exibe estrutura fatorial e propriedades psicométricas satisfatórias. O estabelecimento da versão com 17 questões permitirá investigações adicionais, visando melhor definição da real utilidade desse instrumento no cuidado de indivíduos tabagistas do país.

Conflito de interesse: não há

Artigo recebido: 01/12/08

Aceito para publicação: 16/04/09

Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

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Anexo

  • *
    Correspondência: Departamento de Clínica Médica. Avenida Bandeirantes, 3900, Ribeirão Preto - SP, 14048-900. Telefone: (16) 3602-2531, Fax: (16) 3633-6695.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      17 Nov 2009
    • Data do Fascículo
      2009

    Histórico

    • Aceito
      16 Abr 2009
    • Recebido
      01 Dez 2008
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