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Escravos de peleja: a instrumentalização da violência escrava na América Portuguesa (1580-1850)

Slaves of combat: the instrumentalization of violence in master/slave relations in Portuguese America (1580-1850)

Esclaves de lutte: l'instrumentalisation de la violence esclave dans l'Amerique Portugaise (1580-1850)

Resumos

Este artigo discute o lugar da violência nas relações escravistas na América portuguesa. Para além da prática senhorial do castigo e do recurso escravo à rebeldia, atenta-se para a relativa normalidade da mobilização de escravos para o exercício da força ao lado de seus senhores como mais um mecanismo de reiteração da dominação escravista. Discutem-se também as variações pelas quais passou o fenômeno, além de seu significado para a reavaliação das concepções relativas ao cativeiro.

escravidão; violência; Brasil Colonial


This article looks at the place that violence occupied in master/slave relations in Portuguese America. Beyond the slave owners' practices of punishment and slaves' recourse to rebellion, I consider the relative normality of the mobilization of slaves for hard labor for their masters as an additional mechanism that reiterated slave owners' power. I also discuss variations in this phenomenon, and its meaning for the re-evaluation of concepts related to bondage.

slavery; violence; colonial Brazil


Cet article étudie la place de la violence dans les relations d'esclavage dans l'Amérique portugaise. Au-delà du recours du maître à la punition et celui de l'esclave à la révolte, on observe la relative normalisation de la mobilisation d'esclaves en vue d'exercer la force aux côtés de leurs maîtres comme étant un mécanisme de plus de réitération de la domination esclavagiste. Dans le but de réévaluer les conceptions concernant l'emprisonnement, on relève également les variations que le phénomène a eues ainsi que leur signification.

esclavage; violence; Brésil Colonial


ESCRAVOS DE PELEJA:

A INSTRUMENTALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA ESCRAVA NA AMÉRICA PORTUGUESA (1580-1850)

Carlos A. M. Lima

Universidade Federal do Paraná

RESUMO

Este artigo discute o lugar da violência nas relações escravistas na América portuguesa. Para além da prática senhorial do castigo e do recurso escravo à rebeldia, atenta-se para a relativa normalidade da mobilização de escravos para o exercício da força ao lado de seus senhores como mais um mecanismo de reiteração da dominação escravista. Discutem-se também as variações pelas quais passou o fenômeno, além de seu significado para a reavaliação das concepções relativas ao cativeiro.

PALAVRAS-CHAVE: escravidão; violência; Brasil Colonial.

I. INTRODUÇÃO

Há um tipo muito freqüente de concepção a respeito da sociedade brasileira no passado que articula fortemente as temáticas da exclusão e do exercício da violência. O tema da "anomia" dos escravos, formulada pela chamada Escola Sociológica Paulista, foi muitas vezes lido como reforço desse argumento. Nas leituras realizadas da produção sobre a escravidão dessa escola, a dessocialização ¾ e portanto a exclusão ¾ aparece como o destino inescapável dos cativos. A violência inscrita na posse de escravos por motivos mercantis, ou, mais diretamente, o uso e o abuso do castigo nas relações escravistas, teriam produzido aquilo que, conforme os autores, ficou conhecido como "anomia" (FERNANDES, 1978), "socialização imperfeita" (IANNI, 1962), ou "processo de aniquilamento pela socialização incompleta e deformadora das possibilidades do escravo reagir como pessoa" (CARDOSO, 1977, p. 147).

É preciso ressaltar, no entanto, que isso retinha fortes ambigüidades. Um exemplo é a discussão de Fernandes a respeito dos mecanismos de estratificação. Ele pensa que sociedades dependentes ¾ subordinadas externamente (ou seja, sujeitas a processos de extração de excedentes), mas com capacidade de crescimento econômico, vale dizer, de instituir e sustentar seus próprios grupos dominantes internos ¾ precisam combinar mecanismos de estratificação em "classes" com processos estamentais de hierarquização. Entendendo "classes" como posições alcançadas a partir da posse da riqueza que se disputa em um mercado, Fernandes sustenta que os mecanismos de extração de excedentes só não pauperizavam dominantes internos pelo fato de que lhes era dado como que "empurrar o prejuízo para baixo", lançando mão de mecanismos não-mercantis de hierarquização social, de modo que a inserção dos grupos do topo das sociedades dependentes no mercado e em suas formas de estratificação fazia-os utilizarem-se de sua posição social para instituir em suas próprias sociedades mecanismos não-mercantis de hierarquização. Diversas formas de coerção, portanto, reteriam um aspecto de inclusão na ordem social. Até que ponto a violência implícita em tais mecanismos estamentais recebe ou não o estatuto de mecanismo de socialização é algo sobre o que julgo não poder haver consenso11 Sobre essa concepção ligando o mercado a práticas que não o supõem, vide Fernandes (1973). É indicativo dessa ambigüidade o fato de, em uma análise de Fernandes sobre o equipamento por assim dizer trazido por ex-escravos para a sociedade pós-abolição, aparecerem duas expressões antitéticas quase que lado a lado. Em Fernandes (1978), aparece na página 98 a expressão "mores afro-brasileiros", para na página seguinte o autor referir-se ao "estado de anomia social transplantado do cativeiro". .

Este artigo, de outra parte, pretende levantar algumas evidências e proceder a análises que refiram como relativamente freqüente um processo inteiramente diferente. Ao invés de se enfatizar aqui a exclusão dos subalternos mediante o direcionamento para eles da violência, observa-se a inclusão dos mesmos mediante o agenciamento de seu envolvimento no exercício da força. Em outras palavras, o que se quer aqui é chamar a atenção para a incorporação de subordinados a partir da instrumentalização de sua capacidade de fazer a guerra. Isso, diga-se de passagem, não implica afirmar que essa mobilização da capacidade de agredir vinda de baixo fosse algo mais importante, mais volumoso, ou mais freqüente, que o processo inverso, indicado quanto a escravos pela figura do castigo. Não implica nem mesmo subestimar-se a rebeldia, a qual, assim como a repressão a cativos, devia ser muito mais freqüente, assim como muito mais fundamental para a reprodução das relações sociais, que a instrumentalização da capacidade escrava de matar. Mas esta última estava lá também, e julgo que a observar é estratégico para compreender os mecanismos através dos quais escravos eram incluídos no tecido social.

É preciso mesmo atravessar, ainda que brevemente, algumas discussões valorativas. A ênfase na exclusão violenta foi importante para pôr a nu o caráter perverso das relações sociais no ambiente brasileiro. O que se observa aqui, repito, é uma espécie de imagem invertida daquilo, expressa na incorporação através da feitura da guerra. Representaria este último passo o intento de edulcorar a ordem brasileira? Parece-me evidente que não. Considero mesmo que a concepção mais freqüente (segundo a violência exclui) possui, ela sim, o referido risco de adocicar a sociedade brasileira quando considerada isoladamente. Isso porque pensar daquele modo significa encontrar na violência uma espécie de "porta de saída". Se tornar passível de castigo exclui alguém da ordem, segue-se que tal ordem passa a poder ser considerada como eminentemente "cordial"22 Refiro-me a que pode passar a ser considerada assim, embora nem sempre o tenha sido sobre essa ambigüidade, é sempre fundamental reler Franco (1974). . Mas e se, ao invés de "porta de saída", a violência for tratada como "porta de entrada"? Estar-se-á, assim, atingindo um ponto muito mais fundamental, no sentido de expor o caráter perverso da ordem brasileira, sua estruturação como autêntico "moedor de carne". Estaremos, assim, diante da consideração de que a força tem um papel absolutamente decisivo na estruturação das relações sociais na América portuguesa.

Alguns textos permitiram rever aquela versão a respeito das relações entre violência e socialização. Isso porque, se a agressividade podia incluir ¾ como espero mostrar a partir de amplo material documental colonial ¾, isso significa que ela não se contrapunha à introjeção dos valores considerados intrínsecos à vida social, tal como ela se organizava localmente.

Campos da violência, de Sílvia Lara (1988), tem o grande mérito de tratar a violência como algo que radica no centro da vida social no Brasil escravista. Ela refere-se ao fato de que boa parte daquilo que instituía a possibilidade de um "campo" de negociação e conflito entre senhores e escravos radicava na questão do exercício do castigo. O que se negociava, basicamente, eram seus limites. A motivação de grande parte dos conflitos também era essa, isto é, a necessidade sentida socialmente de moderação do uso da força por senhores e feitores. Com isso, a limitação da violência passa a ser considerada como algo que habitava o centro das relações escravistas. Se bem que limitado, o uso da força ganhava com isso fortíssima legitimidade a olhos contemporâneos.

O raciocínio aqui encaminhado tem algo nessa direção. A própria Silvia Lara chama a atenção para a possibilidade de que escravos se tornassem, eventualmente, o "braço armado do senhor" (LA-RA, 1988, p. 193ss). E quanto a isso penso poder acrescentar algo, chamando a atenção para as situações realmente muito diversas nas quais se esperava deles que empunhassem armas a favor de seus senhores.

A bibliografia pertinente vem enfatizando ainda dois outros mecanismos através dos quais a violência adquiria sentido nas relações escravistas. Maria Helena Machado, em livro no qual discute os padrões da criminalidade escrava na Província de São Paulo, com especial atenção para a rebeldia, dirige nossa atenção também para a circunstância de que a "violência inerente ao sistema" escravista "perpassava" igualmente a comunidade escrava, de modo que topamos aqui com outro mecanismo através do qual cativos relacionavam-se intensamente com o uso da força: agressões entre escravos (MACHADO, 1987, p. 42ss). Além do mais, uma historiografia muito recente vem enfatizando o uso da força por escravos em uma outra forma de articulação com a comunalização escrava. Não mais se enfatiza o uso da força como algo que vem de fora e ameaça aquelas práticas comunitárias. Por outro lado, não se acentua mais exclusivamente a "influência" da violência do sistema sobre as práticas instituintes da comunidade cativa. Agora também dá-se relevo para o fato de a implementação de vínculos comunitários por escravos poder dar sentido a interações extremamente marcadas pela violência. Há um tipo de caso cuja análise vem se mostrando estratégica para compreender essa questão, ou seja, o modo como práticas comunitárias escravas podiam, também elas, produzir e conferir significado a atos violentos ¾ tais como os atos de filicídio (MATTOS, 1995, p. 124ss; FLORENTINO & GÓES, 1996; 1997; ARAÚJO, 2000).

Voltando à bibliografia que, ainda que em contraste, ajuda a dimensionar o significado da instrumentalização da violência escrava pelos senhores, é preciso referir o texto clássico de Maria Sylvia de Carvalho Franco (1974). Nele, a difusão da violência entre homens livres pobres ¾ aquilo denominado por ela de "código do sertão" ¾ conceitua a marginalização dos mesmos. Conhece-se seu esquema de análise. Embora ela critique na introdução de sua obra qualquer espécie de raciocínio dualista, é importante em sua discussão a contraposição entre áreas articuladas ao mercado atlântico e extensas partes marcadas pela subsistência. O ponto em que rejeita o dualismo reside no fato de reconhecer que as relações sociais conferem às áreas de subsistência um papel na reiteração das relações nos locais mercantilizados. Se o trabalho do campesinato daqueles lugares é entendido sob o ponto de vista de sua "desnecessidade", conforme a concepção de Antônio Cândido (CÂNDIDO, 1964), ele retém, por outro lado, forte papel no agenciamento dos mecanismos de dominação política vigentes nas unidades agroexportadoras e mercantilizadas. Era sobretudo sua capacidade de exercer a força a serviço dos plantadores que os incluía nas margens do sistema, e para isso um inteiro "código" equipava-os ¾ o "código do sertão".

Desnecessários economicamente, eram mantidos nas margens do sistema pelos senhores ¾ e não exatamente fora dele ¾ em virtude da possibilidade de setores e áreas mercantilizados (vale dizer, agroexportadores) da sociedade instrumentalizarem sua capacidade de matar. Nessa análise, contraditoriamente, escravos acham-se incluídos na vida social organizada pelo próprio mercado, não se comportando como atores no manejo da força. Seu lugar no esquema era o de pacientes do braço armado da agroexportação. Mas o fato de a violência de livres pobres ser tratada como um "código" tem enorme interesse para o argumento aqui proposto, embora a indagação que atravessa este artigo seja relativa à relação entre violência e socialização no tocante a escravos.

As evidências aqui reunidas na direção de uma instrumentalização da capacidade escrava de matar não têm a possibilidade de indicar a abrangência do fenômeno em termos quantitativos. Nossa documentação é extremamente dispersa, tanto no tocante à sua natureza, quanto no que se relaciona aos locais de sua produção dentro da América portuguesa. Aliás, aquele fenômeno era certamente muito limitado quanto à sua incidência. No entanto, não pretendo uma estimativa da sua amplitude, pois ele certamente era restrito. O que importa não é isso. Diversamente, o que se enfatiza é o fato de que a instrumentalização senhorial da capacidade de escravos para matar era algo muito compreensível durante os séculos XVI, XVII e XVIII. Nesse sentido, o fato de o fenômeno ser referido em lugares muito diferentes e em tipos muito diversos de documentos, mais que obstáculo, consiste em possibilidade de observar um tipo de acontecimento que, restrito quantitativamente, podia aparecer como algo plenamente compreendido e justificado em situações muito diversas e independentes umas das outras. A dispersão das referências usadas aqui, nesse sentido, não deixa de ser bem-vinda.

Por outro lado, e ainda a respeito das fontes, é preciso não esquecer que a base das evidências disponíveis são relatos e crônicas produzidas por senhores. É claro que muito disso podia consistir em idealização e/ou incompreensão. Mas o que enfatizo é a legitimidade da mobilização da violência escrava. Em outros termos, o importante não é verificar se os fatos relatados transcorreram realmente. O decisivo é verificar a presença e a diversidade das manifestações de uma expectativa de instrumentalização da violência ativa de escravos.

De fato, aquela expectativa, acompanhada da respectiva legitimação, pôde ser detectada em materiais extremamente diversos produzidos entre, grosso modo, 1580 e os meados do século XIX. Assim, consultei relatos leigos sobre o estado das colônias, sobretudo o de Gabriel Soares de Sousa, do final do século XVI, e também narrativas de acontecimentos tidos então como marcantes, que podem ser exemplificadas com uma "relação" da resistência que se pôde antepor a corsários no Rio de Janeiro do início do século XVIII. Observei igualmente narrativas eclesiásticas sobre a missionação, pois os contatos com grupos indígenas foram questão fulcral para a formulação das percepções coevas sobre a violência dos escravos (africanos, afrodescendentes ou indígenas) durante os dois primeiros séculos da colonização portuguesa. A documentação administrativa compulsada ¾ englobando correspondência oficial de diversas instâncias, atas de órgãos deliberativos capazes de informar sobre práticas quotidianas e a legislação produzida em diversos contextos ¾ também fornece importantes chaves para o dimensionamento do fenômeno. Foram consultados processos de vários tipos, desde fés de ofício até autos de tipo tanto cível quanto criminal. Por fim, trabalhei com relatos de viajantes e mesmo com cartas pessoais de autoridades.

Como ficou dito, não é possível fazer qualquer estimativa do volume ou da freqüência das práticas de instrumentalização da violência aqui estudadas. Mas, como em relação a muitos procedimentos nas ciências humanas, há questões quanto às quais contribuir para a formulação de uma tipologia interessa mais que arriscar estimativas de volume e freqüência. A que abordo neste texto é uma delas. Na impossibilidade de saberem-se as dimensões ou o quanto era repetitivo um fenômeno, a plausibilidade de chegar perto das condições em que tal fenômeno dava-se constitui avanço de grande interesse.

Tudo isso importa ainda mais quando se recorda que o que se estuda aqui é uma expectativa, pois, como já mencionado, seria ingênuo imaginar que os relatos utilizados sobre instrumentalização da violência escrava dão necessariamente acesso a práticas efetivas. Assim, as perguntas feitas dirigem-se a questões como as seguintes: em que condições esperava-se eficácia da mobilização de escravos para a guerra senhorial? Em que tipo de relato expectativas como essas manifestavam-se? Era alguma especificidade das circunstâncias ou do adversário que motivava tentativas de levar escravos a matar por seus senhores? Obtém-se, ao observar-se a questão no longo prazo e em locais e documentos dispersos, alguma imagem relativa a variações no fenômeno?

A hipótese central deste estudo é a de que a mobilização de escravos para a guerra ¾ que também era do Estado ¾ vigorou nos intervalos em que este apelou mais ao patrimonialismo da casa senhorial. Houve uma transição lenta, mas contínua e mesmo radicalizada a partir de meados do século XVII, para formas que, embora não rompessem definitivamente com o patrimonialismo, faziam com que esse tipo de prática se acoplasse cada vez mais a formas de autonomização do Estado frente aos senhores. Com isso, prosseguindo na hipótese, a violência institucionalizada envolvendo cativos refugiou-se na esfera da "casa" senhorial. Ela sempre esteve lá. Mas agora ela passava a estar somente lá.

II. ESCRAVOS DE PELEJA

Gabriel Soares de Sousa (1938 [1587]) realizou, em 1587, um importante inventário das partes ocupadas da América portuguesa, pondo forte ênfase na ameaça por vezes representada pelos indígenas. À exceção do que transparece em suas descrições de Salvador e de Olinda, era só quando morriam que os cativos apareciam em seus relatos sobre investidas dos nativos. Naquelas duas cidades, as coisas eram diferentes, mas em seus textos sobre as outras partes ocupadas da América portuguesa, a relação entre escravos e guerra aparece sobretudo nos relatos de estragos causados por indígenas.

Assim, quanto à Capitania de Tamaracá e Pernambuco, afirmava que o "gentio Pitiguar", andando "mui levantado" contra os moradores portugueses, matou, com ajuda francesa, "muitos homens brancos e escravos" (SOUSA, 1938 [1587], p. 20). O Rei mandou, então, Fructuoso Barbosa "povoar e fortificar" os referidos locais. Mas os "Pitiguares" deram cabo de "trinta e seis homens e alguns escravos em uma cilada" (ibidem).

Algo semelhante pôde ser descrito por Sousa em relação às ilhas de Boipeba e Tinharé. Eram povoadas de portugueses fugidos dos aimorés do continente, que destruíram fazendas e "mataram muitos escravos" (idem, p. 53). Do mesmo modo, na Capitania dos Ilhéus, "em indo os escravos ou homens [sic] ao campo não escapa[va]m a estes alarves", ou seja, aos aimorés (idem, p. 56-57). De fato, nas Capitanias de Ilhéus e Porto Seguro, os aimorés pararam virtualmente os engenhos, pois mataram "todos os escravos e gente deles, e a das mais fazendas". Uns e outros desenvolveram forte temor, de um modo tal que "em se dizendo aimorés despejam as fazendas, e cada um trabalha por se por em salvo, o que também fazem os homens brancos". Estimava a morte, em vinte e cinco anos, de mais de trezentos portugueses e de mais de três mil escravos (idem, p. 60).

Em relação a índios sob controle jesuítico, as avaliações de Soares de Sousa eram diferentes. Na enseada de Tatuapará, além de povoação de Garcia D'Ávila, com casas, igreja e currais, os jesuítas tinham "aldeia de índios forros Tupinambás". Este último dado significava, antes de tudo, a disponibilidade de "trezentos homens de peleja" (idem, p. 46-47).

Entre Jacuípe e Arembepe, uma área de seis léguas quadradas estava povoada de currais. A Companhia de Jesus também tinha aldeias de "índios forros" tupinambás e de outros grupos, constituindo mais de 700 homens de peleja (idem, p. 48).

Como ficou mencionado, Sousa mudava de tom quando se referia a áreas de povoamento melhor estabelecidas pelos portugueses. Referindo-se especificamente a Salvador, escreve que, em caso de ataque, os inimigos, "se não levarem a cidade do primeiro encontro, não a entram depois, porque pode ser socorrida por mar e por terra de muita gente portuguesa até a quantia de dois mil homens, de entre os quais podem sair dez mil escravos de peleja, a saber: quatro mil pretos de Guiné, e seis mil índios da terra mui bons flecheiros, que juntos com a gente da cidade, se fará mui arrazoado exército com o qual corpo de gente, sendo bem caudilhada, se pode fazer muito dano a muitos homens de armas, que saírem em terra, aonde se hão de achar mui embaraçados, e pelejados por entre o mato, que é mui cego e ser-lhe-á forçado recolher-se com muita pressa, o que Deus não permita que aconteça, pelo despercebimento que esta cidade tem" (idem, p. 143-144; sem grifos no original).

Acrescida a aristocrática presença portuguesa, os combatentes em cativeiro passavam a contar-se pelos milhares, desde que "caudilhados" pelos da cidade. O Estado luso tirava partido da capacidade dos senhores de mobilizar a guerra escrava. Antes já pudera escrever algo semelhante quanto a Olinda. A cidade teria 700 vizinhos, mas havia muito mais no termo da mesma, espalhados por engenhos e roças, de modo que "quando for necessário ajuntar-se esta gente com armas, por-se-ão em campo mais de três mil homens de peleja com os moradores da vila de Cosmos, entre os quais haverá quatrocentos homens de cavalo. Esta gente pode trazer de suas fazendas quatro ou cinco mil escravos de Guiné e muitos do gentio da terra" (idem, p. 29; sem grifos no original).

Em outros lugares, os escravos limitavam-se a morrer, em caso de guerra. Essa era a expectativa de Gabriel Soares. A aristocrática Bahia, diversamente, já permitia coisa mais intensa. Áreas sob controle estrito da concentração aristocrática de Salvador também poderiam contar com a mobilização militar de escravos. Soares afirma que Mem de Sá, para expulsar franceses do Rio de Janeiro, embarcou, na Bahia, "a mor parte da gente nobre [...], e os homens de armas, que se puderam juntar, com muitos escravos e índios forros" (idem, p. 94; sem grifos no original).

O caso da utilização de escravos na defesa da Bahia é muito claro na direção de informar que Soares de Sousa pensava em escravos na peleja no caso de áreas de forte concentração aristocrática. A situação do Rio de Janeiro indicava algo muito parecido. A referência não se aplicava ao próprio momento da feitura do relato ¾ a década de 1580, quando o Rio de Janeiro já existia enquanto assentamento português ¾; ela referia-se ao momento da tomada da área de mãos francesas, o que fôra feito sob estrito controle das autoridades e dos pretendentes a aristocratas radicados na Bahia.

Assim, contra índios, só mesmo outros indígenas, que, além do mais, deveriam estar "forros" e tendencialmente sob controle jesuítico. Contra outros europeus, tanto índios (aparentemente não-aldeados, e às vezes explicitamente referidos como escravos) quanto escravos ¾ neste caso tendo em vista sobretudo a Bahia e Olinda, lugares de intensa concentração aristocrática.

Se, no século XVI, o problema da mobilização de escravos aparecia restrito a áreas centrais da América portuguesa, a questão começou a sofrer alterações durante a centúria seguinte, e os enfrentamentos com índios foram um dos pontos fortes das referências à instrumentalização da violência escrava. Já foi visto com Gabriel Soares de Sousa que, no século XVI, o que se esperava era que escravos ao menos não fossem mortos por ataques indígenas. Já quanto ao século XVII, os relatos do Padre Martinho de Nantes, nas suas missões entre os cariris do rio São Francisco, permite entrever algumas transições interessantes.

Na década de 1670, durante a qual missionou na América portuguesa, Nantes, capuchinho francês, esteve envolvido em disputas com índios renitentes. Escreveu uma "Relação de uma guerra em que tive que ir, por ordem do governador da Bahia, com os índios de nossas aldeias, para reprimir o furor dos selvagens que, numa noite, mataram, no rio de S. Francisco, oitenta e cinco pessoas, tanto portugueses como negros, nas suas próprias casas" (NANTES, 1979, p. 49; sem grifos no original)33 A expressão "negro", que aparece nesse relato, assim como em outros utilizados na seqüência do texto, não necessariamente se referia a africanos e a seus descendentes, tendo podido também ser aplicada a indígenas. Mas, quer no tocante a africanos e seus descendentes, quer no tocante a índios, a palavra "negros" estava eminentemente associada à condição escrava, e é ela que está sendo pensada neste trabalho. .

É um pouco o que se viu com Soares de Sousa: em rincões afastados, em estado de dispersão seguindo seus senhores, o lugar de escravos nos enfrentamentos armados era aquele dos que morriam. Isso persistia na segunda metade do século XVII. Aquela relação de uma guerra travada contra índios na área do São Francisco falava de ataques contra fazendas que matavam, além dos "donos", "um escravo" (idem, p. 53)44 A mesma obra explicava dificuldades portuguesas contra indígenas como função da movimentação destes últimos, retirando eficácia das armas de fogo (cf. NANTES, 1979, p. 52). .

Esse tipo de caso, no entanto, já aparecia juntamente com outras avaliações e relatos, nos quais senhores logravam, mesmo em relativa dispersão, mobilizar a capacidade de matar de seus cativos. O mesmo Padre Martinho de Nantes defrontou-se com portugueses que se preparavam para enfrentar cariris, na direção da captura de escravos. Tratava-se de dois ou três lusos, "acompanhados de seus negros, dos quais um deles era muito violento e perigoso e, por isso, muito temido: havia já assassinado um ou dois homens. Ele perguntou ao capitão Emanuel de Sousa aonde ia e se não viria juntar-se aos outros para se defender dos cariris, que os queriam massacrar" (idem, p. 57).

O século XVII deixou outros indícios de que a relação de alguns escravos com a guerra contra índios estava mudando. Lê-se em uma ata da Câmara de São Paulo, de 25 de agosto de 1657, que "pelo [...] procurador foi dito que para bem desta vila e República e quietação dela mandassem os juízes que se passasse quartel que nenhum negro traga na vila paus nem arcos nem flechas pelas muitas mortes que sucedem cada dia [...]" (Actas da Câmara da Villa de S. Paulo, 1915, p. 57).

Do São Francisco para São Paulo, e daí para Salvador, prosseguem as referências seiscentistas à violência escrava instrumentalizada, sobretudo contra índios não-aldeados nem escravizados. Em 1674, a Câmara de Salvador, escrevendo ao governador Afonso Furtado sobre a guerra contra os grens que, dizia-se, ameaçavam o recôncavo, narravalhe que a Coroa havia autorizado a proposta daquele governador "de que se deviam fardar [sic] aos Índios e negros que concorriam nas entradas da dita Guerra"55 A referência dirige-se à intensa movimentação dos grens no Recôncavo Baiano e em áreas próximas, movimentação esta ocorrida na esteira daquelas que constituíram, mais ao Norte, a Guerra dos Bárbaros. . Esperava-se continuidade da presença de nativos e escravos na guerra, pois deliberava-se que "se lhe[s] dê de uma cada ano das sobras do Contrato", reduzindo-se as despesas (cf. PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR, s/d, p. 7).

Assim, no final do século XVII começaram a tornar-se menos raras as referências a escravos armados em favor de seus senhores66 Quanto a Pernambuco, a historiografia fez algumas referências à mobilização militar de escravos e não-brancos em geral. Cf. sobretudo Mello (1975, p. 175ss), Mello (1988) e Silva (1999). Mas, em certos momentos, algumas de tais discussões superestimaram a dinâmica local como quadro de análise exclusivo da questão. . No XVI, como foi visto, Gabriel Soares achava isso possível, mas imaginava-o tendo como condição uma forte concentração aristocrática. Em dispersão, a única atitude de senhores diante da relação entre seus cativos e a violência ¾ indígena, por exemplo ¾ era vê-los morrer. No século XVII, no entanto, as coisas já se mostravam bastante diferentes.

É estratégico, quanto a isso, observar que se podem encontrar referências tranqüilas a este tipo de coisa em área de povoamento disperso. Ernesto Ennes transcreveu uma fé de ofício escrita por volta de 1705. Seu autor, João Martins Claro, "serviu por espaço de 20 anos nas Capitanias de Santos, S. Paulo e N. Senhora da Conceição de Tinhaem, nos postos de Sargento-Mor da Capitania de Tinhaem e Sargento-Mor da Capitania de S. Vicente e das mais vilas do Sul, desde 1677 a 1705"77 A fé de ofício está transcrita em Ennes (1944, p. 200-202). . Tratava-se, portanto, de aristocrata que se movimentara sobretudo nas partes litorâneas e meridionais do que hoje constitui o estado de São Paulo.

Em 1677, como soldado, Claro começou a acompanhar o administrador D. Rodrigo de Castelbranco pelo litoral até Paranaguá e todo o sertão onde houvesse minas. A lista do serviços que alegava ter prestado à Coroa era extensa: de então até 1705, abrigou pessoas em sua casa, "à sua custa"; conduziu "escravos exploradores" (de minas); andou "na administração das datas e fábrica real"; conduziu escravos, "armazém e fábrica da administração" de São Paulo a Santos; deu "negros e oficiais de ferreiro, e carpinteiro para a fábrica de ferro de Birasoiava"; deu embarcações para a condução de mantimentos; comprou e manteve "roça" para o sustento de empreendimentos patrocinados pelo Estado; protegeu autoridades de motins. É importante continuar essa lista de serviços para que se tenha exata medida de que a mobilização de escravos para a guerra ¾ que aparecerá rapidamente na mesma listagem ¾imiscuía-se em um conjunto muito diversificado e característico de serviços patrimoniais prestados ao Estado.

Como Sargento-Mor da Capitania de N. Senhora de Itanhaém, gastava "muito de sua fazenda com os soldados". Além disso, forneceu centenas de "pessoas de seu serviço de vários ofícios e trabalhadores" quando se resolveu "levantar uma fábrica parra a fundição de ferro na vila de Sorocaba". Em 1700, ordenada a fortificação da praça de Santos, Claro não tardou a "oferecer 20 pessoas de seu serviço para o trabalho dela de vários ofícios à sua custa". Tardando o início das obras "por falta de engenheiro e Índios", ocupou as "pessoas de seu serviço" na preparação "dos materiais da obra dos quartéis da infantaria em que gastou seis meses", abrindo mão, alegava, de ir para as "minas de ouro", conforme "muitas pessoas" faziam. Em 1704, socorreu o litoral contra uma lancha que fugira do Rio de Janeiro "com muitos castelhanos armados que tinham ido nas naus de registro de Índias". Por estar tempestuoso o tempo, fê-lo por terra "à sua custa". Em 1705, tempo de fome, adquiriu, em Cananéia e Iguape, mantimentos para a infantaria em lancha que comprou para isso, tendo sido mal pago. Assistiu "também [...] com o seu dinheiro emprestado para as fardas dos soldados". Atendeu, sem soldo, a chamado do "governador de Santos" contra "Piratas" que infestavam a costa. Dirigiu-se a diversas vilas a "reconduzir alguns soldados ausentes", além de ter, segundo afirmava, dado caça a "facinorosos", feito "grandes dispêndios em Confrarias e Irmandades" e servido de juiz ordinário, juiz de órfãos e provedor do Senado. Acrescentava também "saber bastantemente a raiz quadrada".

Tratava-se, enfim, de uma alentada folha de serviços prestados em termos patrimoniais à administração portuguesa na América. Em área de povoamento relativamente disperso, não cabendo portanto nas preocupações de Gabriel Soares em restringir a mobilização de escravos apenas a locais de forte concentração aristocrática, a fé de ofício de Martins Claro referia-se à movimentação de seus próprios escravos nos diversos combates nos quais se envolveu a serviço do Rei.

Nosso tema começa a aparecer quando ele afirma, sobre Santos, que, "estando aquele povo com grande cuidado pelo temor de um Pirata que andava naquela costa [...] [ofereceu-se] ao Capitão-Mor com sua pessoa e escravos bem armados de que resultou aquietar-se o povo". Posteriormente, "havendo notícia que na Ilha Grande haviam os Piratas tomado uma nau nossa", aparelhou-se "com 50 homens, e 80 escravos para a ir restaurar, o que não houve efeito por ser falsa a dita notícia".

Em 1699, agiu para tolher os movimentos de um "castelhano que havia [de] servir de guia para a [sic] descobrimento" de minas de prata. Para isso, deu "seis negros espingardeiros de seu serviço e bons sertanistas, por lhes haver pedido em nome de Vossa Majestade o Governador Artur de Sá e Menezes, aprestando-os de todo o necessário à sua custa". Assim, não só possuía escravos espingardeiros e sertanistas como os armava fortemente e os "dava" ao governador, isto é, atribuía-lhes tarefas a serem realizadas fora de sua estrita vigilância. Para completar, o de sempre: "se nesta diligência se adquirisse algum gentio aplicava para as aldeias de Vossa Majestade a parte que lhe tocasse, o que o dito governador lhe agradeceu por carta sua". Na ocasião, perdeu "um dos ditos negros" (ENNES, 1944, p. 200-202). Assim, em meio aos serviços militares prestados ao Estado, ganhavam destaque aqueles que ele fazia seus escravos prestarem.

As formas de envolvimento de escravos na guerra senhorial podiam tomar formas quase decorativas, suntuárias, apontando para a ritualística da formação de séquitos em meio a um ambiente militar profundamente marcado pela distinção aristocrática88 Sobre essa questão da articulação entre atividade militar e mobilização aristocrática, cf. Schwartz (1991). . Em seu "inventário", lavrado quando se achava sob as garras da Inquisição, Nuno Alves de Miranda deixava declarado que, antes de 1710, era Alferes de Infantaria e morador no Rio de Janeiro. Embora filho-família, possuía dois cativos, um "moleque" e uma "moleca". O primeiro, chamado Joseph, era "seu tambor na companhia, de onze anos de idade e valerá cento e sessenta mil réis"99 Vide um inventário dos bens de Nuno Alves de Miranda, onde se acha a declaração sobre o moleque José, em Novinsky (s/d, p. 225). . A figura do escravo que se insere na organização militar dos senhores parece impor-se nesse caso. Essa idéia será perseguida em outras referências. Suntuário (como séquito) ou propriamente guerreiro, o envolvimento de escravos na guerra de seus senhores dava-se sob controle dos proprietários, mesmo quando ocorria relacionada com a movimentação de instituições mais formalizadas. No caso de Miranda, há referência a formalização: atuava na infantaria, remetendo à formação como "companhia" (deviam ser ordenanças, pois a organização da segunda linha recebia normalmente a denominação de terço). Mas, no interior desta organização ¾ instituída legalmente (cf. LEONZO, 1977) ¾, o escravo aparecia referido como "seu" tambor, embora fosse-o no interior da "companhia".

O mesmo dava-se em um outro relato, quase contemporâneo (1710) e relativo a Salvador. A Câmara local queixava-se de, em conjuntura na qual "as guerras na Europa pediam nas conquistas multiplicados Presídios", serem diminutos os Terços da guarnição da cidade. Havia neles poucos praças, além do mais sem "nobreza", já que os "naturais da terra pessoas honradas" aborreciam da condição de soldados. Isso se agravava pelo fato de que as tais "pessoas honradas" não alcançariam o posto de alferes sem antes passar pelo de sargento, e esta última patente, alegava a Câmara, vinha sendo submetida a "exercícios indecorosos". Tais exercícios consistiriam em acompanhar "as Serpentinas dos Oficiais maiores (que são as carruagens desta terra) emparelhados com os Negros que as carregam [a]os ombros" (cf. PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR, 1973a, p. 11).

Esse arrazoado lembra que a instituição militar esteve envolvida em obsessivas considerações de prestígio social. Nesse ponto entravam os escravos dos oficiais. Ao que tudo indica, não matavam, nem empunhavam armas. Mas tratava-se de um ambiente patrimonialista no qual recursos pessoais eram trazidos para a feitura efetiva da guerra, mas também para o encaminhamento das práticas geradoras de prestígio no interior da instituição. Nesse quadro, fazê-los participarem das cerimônias da organização militar era, ao menos como criados, ligá-los a um mundo todo específico de encenação de prestígio social.

Há, no entanto, mais elementos a serem extraídos do caso narrado acima. A organização militar participava, sim, da obsessão com o prestígio que atravessava essa sociedade profundamente aristocrática. Mas o que ressalto nesse passo é a circunstância de que a vida militar fazia-o de um modo específico. Ela, aparentemente, instituía, através de seu gestual e de suas cerimônias, uma hierarquização que podia às vezes confrontar o escalonamento vigente na sociedade mais ampla, não no sentido de esbulhar os princípios deste último, pois se tratava sempre de prestígio, mas no de configurar-se como uma escala concorrente1010 Essa concepção que se abre para a perceber no antigo Regime a vigência de um mesmo critério de atribuição de prestígio criando múltiplas hierarquias, e não uma única, aparece em Stone (1969). Alguns trabalhos usaram este modelo na busca de aclarar diversos aspectos da vida social na América portuguesa. Vide, por exemplo, Schwartz (1988) e Lima (2000). .

De passagem, note-se que essa possibilidade abre espaço para que se pense em todo um mundo de prestígio e honra sendo instituído em meio à atividade militar, mundo este que devia muito à vida social mais alargada no tocante a seus princípios, mas que punha em destaque as suas próprias hierarquias. Embora o caso narrado não se refira a escravos exercendo a força, é nesse sentido que este artigo vem argumentando que a mobilização de cativos para a guerra podia aparecer na sociedade colonial como via para a socialização. Se o aparato da feitura da guerra envolvia-se com momentos de hierarquização e de atribuição de prestígio, então ele podia estar a oferecer um caminho de inserção efetiva no tecido social. No caso analisado, repito, o envolvimento escravo com tudo isso se limitava a pô-los em sua condição de criados. Mas casos como este, ao permitirem-nos olhar de muito perto a organização militar, podem auxiliar a compreender as outras situações narradas neste trabalho, nas quais a instrumentalização senhorial da violência escrava era efetiva.

Se a mera ostentação envolvia na guerra, a luta mesma e até a expectativa de os senhores obterem "buchas de canhão" podiam levar a eventos tão surpreendentes quanto o cometimento de armar oitocentos escravos. Ernesto Ennes transcreveu um manuscrito por ele encontrado na Biblioteca da Ajuda intitulado Relação da chegada da Armada Francesa a este Rio de Janeiro em 16 de agosto de 1710 (ENNES, 1944), recheado de indicações importantíssimas. Como se sabe, o Rio de Janeiro foi alvo de dois grandes ataques de corsários franceses em 1710 e 1711. Por ocasião do primeiro deles, foi possível à população da cidade repelir a agressão, ao passo que o segundo levou a uma tomada da cidade e ao recurso a um resgate para aplacar os invasores. O documento supracitado refere-se, portanto, à primeira das invasões francesas do início do século XVIII.

Foi vista, a partir de Gabriel Soares de Sousa, a possibilidade de mobilizações maciças de escravos tendo em vista as disputas entre potências coloniais. Algo nesse sentido, conjugando a possibilidade daquela mobilização com a concentração aristocrática, ou seja, senhores organizados em grandes números liderando cativos em organizações regulares (mas regulares no sentido de conjunções de processos personalizados de arregimentação), reaparece desde os primeiros sinais da chegada dos franceses.

Treze dias após os primeiros avistamentos, chegou aviso de que seis navios estariam na Ilha Grande, doze léguas ao sul da cidade do Rio de Janeiro. Imediatamente, o Governador despachou uma companhia para a Ilha, a fim de incorporar-se a outra que já estava lá. A gente da vila sediada na ilha fez o mesmo, "que por todos dizem seriam 500 homens fora negros" (ENNES, 1944, p. 237; sem grifos no original).

Estando os franceses já a chegar à cidade do Rio, "acudia todo o povo da terra dentro com toda pressa e cuidado, aos ecos da artilharia. Brancos e pretos a cavalo e a pé muito bem armados largando suas casas e famílias na extrema necessidade em que a terra se achava nessa ocasião sem mantimentos pois havia seis meses não chovia" (idem, p. 237; sem grifos no original).

Os corsários haviam desembarcado em Guaratiba, localidade bastante próxima da cidade. O porto local "não tinha muita resistência por ser pouco capaz de desembarque". Ainda assim, os franceses ali arribaram, em vista do que "os moradores que ali se acharam com os seus negros lhes deram algumas cargas de mosquetaria e se retiraram por ser o poder do inimigo grande" (idem, p. 238; sem grifos no original).

A seguir os franceses foram guiados por "quatro negros de Bento do Amaral que haviam fugido de seu senhor na Ilha Grande para os navios do inimigo" (idem, p. 239). Neste caso, a inserção de cativos na guerra senhorial parece ter-se pautado pelos esquemas que a historiografia vem chamando de "negociação" (REIS & SILVA, 1988). O servir a outro senhor (os franceses, de quem não havia porque esperar algo como a liberdade) deve ter sido algo centrado na possibilidade de barganhar as condições do cativeiro.

Em meio a esses entreveros com os franceses, ou mesmo em função deles, ocorriam também disputas entre atores locais. Os religiosos beneditinos entraram em conflito com um administrador em virtude de questões de vizinhança ("acerca de uma janela que lhe abriu sobre a sua ladeira e querer-lhe impedir que os ditos religiosos levantassem o seu muro por defronte da janela"). Houve então "tiros de parte a parte [e] morreu um negro de uma bala perdida; mataram um mulato dos padres e o administrador ferido" (ibidem).

Conforme vem sendo defendido, a raiz da possibilidade de manipular a capacidade escrava de matar residia na casa senhorial. Eram as potencialidades desta última quanto a essa manipulação que o Estado luso tinha que mobilizar para lograr combatentes cativos. Assim, mesmo em circunstância na qual era grande a necessidade de escravos de peleja, a violência escrava agenciada pela casa continuava atendendo a necessidades originadas na própria casa, e não apenas às do Estado.

Estando os franceses já na rua Direita (no centro mesmo da cidade do Rio), investiram contra o palácio (a residência dos governadores da Capitania), mas também contra o trapiche. Por ocasião do ataque a este, foram baleados e morreram treze "negros do dono do trapiche [...] em defesa do trapiche" (idem, p. 242). Tomado este último pelos invasores, passaram a atirar para a rua, "onde nos mataram alguns e feriram muitos principalmente negros que em toda parte pelejaram com grande valor ainda que levados da inuição [sic] de os despirem" (idem, p. 243). É possível que tenha havido algum engano de transcrição e que se tenha escrito "levados da intenção de os despirem", indicando que os "negros" teriam sido motivados também pela perspectiva de algum butim a ser arrancado aos franceses. Ainda assim, ressalta-se o quanto envolveram-se na guerra de seus senhores. Ressalta-se, sobretudo, a necessidade em que se sentiu o autor do relato de admitir o grau em que a defesa da cidade demandara esforços de pessoas que, convenhamos, não tinham lá muitas razões para envolver-se nisso.

Menos de um mês depois da expulsão dos franceses, os oficiais da Câmara do Rio de Janeiro escreviam ao Rei sobre o entrevero e avaliavam que "bastaram os que destacaram, e alguns homens mais com os pretos, que se acharam pelas ruas para desbaratarem o inimigo"1111 "Carta dos oficiais da Câmara do Rio de Janeiro, João Arias de Aguirre, Francisco de Macedo e Inacio Corrêa da Silva, na qual se dá conta da entrada dos franceses no rio de Janeiro, sua derrota e precauções que se devem tomar para conjurar futuros perigos de nova invasão" (ENNES, 1944, p. 251). .

Historiadores da escravidão nas Américas já acentuaram um pouco de tudo quanto à posição dos escravos frente à fronteira entre potências coloniais em guerra. Alguns sustentam que percorria as Américas a possibilidade de que a guerra colonial criasse espécies de santuários ¾ de fato, coutos ¾ para os escravos dos outros. A Flórida espanhola, por exemplo, era continuamente ponto de chegada de fugas de cativos possuídos por colonos da América inglesa ¾ sobretudo das Carolinas ¾ durante o século XVIII (LANDERS, 1999). A Venezuela também recebia escravos fugidos de Curaçao, sobretudo na chamada Costa de Barlavento, área que, no início do século XVIII, ainda não sofrera muito o povoamento espanhol. Isso, inclusive, ocorria com certa freqüência ¾ embora os números evidentemente não devam ter sido grandes ¾, pois criara-se ali o costume de alforriar os escravos do inimigo ¾ no caso, holandês ¾, desde que se convertessem ao catolicismo (CASTILLO LARA, 1981). Assim ¾ e os anteriores seriam apenas exemplos isolados de uma prática que, embora não muito maciça, era extremamente difusa ¾, o caso dos quatro "negros" fugitivos do tal Bento do Amaral poderia parecer a regra. Mas, nas expectativas do autor do relato do corso de 1710, o comum foi o contrário, envolvendo-se os cativos do Rio nas disputas, mas a favor de seus senhores. Assim, os escravos referidos aproximaram-se mais do modelo formulado por outros historiadores do cativeiro. As discussões de Robin Blackburn fornecem exemplos contrários àqueles, supracitados, relativos à Flórida e à Venezuela. Argumenta ele que os escravos caribenhos não deviam acreditar muito nos coutos propiciados por potências inimigas das de seus senhores. Afinal, todas elas, na área, eram escravistas, e as garantias de santuário não devem ter parecido seguras o suficiente. Blackburn sugere mesmo que, em caso de guerra, escravos eram mais confiáveis politicamente, do ponto de vista de seus proprietários, que servos europeus por contrato (indentured servants). Isso porque as disputas coloniais foram freqüentemente superpostas a conflitos religiosos. Como muitos dos indentured eram condenados, era igualmente usual que professassem credos diversos daqueles esposados oficialmente pelas metrópoles em cujas colônias eram sujeitos a trabalho forçado. Assim, tendiam com mais força que os cativos a alianças com o inimigo. Por fim, em virtude de sua cor, era mais fácil aos indentured que aos escravos imiscuírem-se na população livre das áreas para as quais fugiam, logrando esconder com maior facilidade sua procedência servil (BLACKBURN, 1997, p. 316). Diante de tudo isso, a análise de Blackburn torna mais compreensível o destino dos oitocentos escravos da cidade do Rio de Janeiro.

De fato, a mesma narração estima as forças portuguesas, na cidade propriamente, em 8 200 pessoas, das quais 500 "negros armados". Nos arredores da cidade teria sido possível armar mais quase 7 000 pessoas, das quais 300 "negros armados" (idem, p. 244). Estima-se no texto o saldo de mortos e feridos em 40 "negros" mortos e 60 feridos, ao passo que os brancos feridos teriam sido cento e vinte. Essa guerra definitivamente não era dos escravos. Dos quatro escravos que pelejaram a favor dos franceses, três foram agarrados e apenas um conseguiu escapar para o navio dos invasores.

O autor anônimo do relato chega a mencionar que a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos também participou da defesa da cidade. Expulsos os franceses, iniciaram-se festividades. As igrejas da cidade, uma a uma, revezaram-se na realização de festas que duraram vários dias. Uma delas foi a Igreja do Rosário. Justificou-se a inclusão da capela da irmandade considerando ficar ela "no meio do exército fazendo as costas da capela-mor frente com ele, e os pretinhos haverem-se e pelejarem com grande valor" ("Carta dos oficiais..." apud ENNES, 1944, p. 248; sem grifos no original).

No ano seguinte, corsários franceses finalmente lograram tomar momentaneamente a cidade do Rio de Janeiro. Boxer narra que, no rastro da tomada da cidade por Duguay-Trouin, em 1711, o Governador das Minas Gerais enviou um grande contingente de reforços (os quais se mostrariam no fim das contas inúteis). Eram "seis mil homens da melhor e mais luzida gente, que tem as ditas Minas, assim Forasteiros como Paulistas", como afirmou o governador, Antônio de Albuquerque Coelho, cujas tropas incluíam linha, auxiliares e ordenanças, bem como cavalaria. A maior parte dos homens, segundo Boxer "armou-se e armou seus escravos" (BOXER, 1969, p. 123). Torna-se possível, a partir dessa breve menção de Boxer, observar o enquadramento institucional da inclusão subordinada da violência escrava. O autor refere-se a todas as formas regulares de mobilização de livres e faz seguir-se a isso uma espécie de apêndice constituído pelos escravos armados por seus senhores. Assim, não valeria muito a pena procurar por algum mecanismo mais formalizado de recrutamento de escravos. Seus senhores iam à luta e eles agregavam-se à movimentação organizados cada um por seu proprietário, em um esquema fortemente personalizado.

Isso ressalta igualmente de um documento transcrito por Taunay para descrever a mobilização para a guerra dos bárbaros do século XVII, quando senhores baianos, mas sobretudo de outras partes do Nordeste, contando mesmo com a movimentação de paulistas, dirigiram-se agressivamente para os então chamados "tapuias" de vastíssima área do sertão nordestino.

O Governador-Geral mandou expedir patente conferindo ao paulista Domingos Jorge Velho a condição de "Governador da Gente da Conquista dos Bárbaros do Rio Grande". O conjunto do texto não é de grande interesse para o argumento vertente, a não ser por uma breve passagem na qual o governador chamava a atenção para a necessidade de "se animar a infantaria paga, miliciana e mais soldados pretos e índios" (TAUNAY, 1936, p. 41). Também aqui se obtém a imagem de escravos e índios mobilizados por fora dos esquemas formais, embora também à sua maneira personalizados, de tropas de linha, auxiliares (depois milícias) e ordenanças. É possível que esse movimento de escravos escudeiros, ou apenas combatentes, fosse derivado da prevalência, ainda na época moderna em Portugal, do esquema de combate com cavaleiros e infantes1212 Sobre sua permanência ainda no final do século XVI ¾ e em período próximo àquele de Gabriel Soares ¾ vide Marques (1980, p. 422), onde se descreve rapidamente o exército de D. Sebastião na ocasião do desastre de Alcácer-Quibir: "15 500 infantes e 1 500 cavaleiros, além de algumas centenas mais de encarregados dos abastecimentos, criados, mulheres, escravos etc.". . Esse esquema ¾ a guerra de aristocratas com escudeiros "criados" ¾ foi estendido ao Brasil. Capistrano de Abreu sustentou há muito tempo que, dentre os "privilégios" inerentes aos cidadãos do Porto, estendidos "a várias cidades do Brasil, Maranhão, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo pelo menos", estava o de "que os serviçais agrícolas só fossem à guerra com os patrões" (ABREU, 1976, p. 218). Assim, a aparente informalidade do recrutamento da violência escrava estaria informada pelo modelo da casa senhorial em armas, assimilando-se os cativos a "criados" e a "serviçais agrícolas".

Em estando correta a análise aqui encaminhada, ou seja, de que a violência útil dos escravos serviu ao Estado com mais intensidade e freqüência a partir da segunda metade do século XVII, vemo-nos diante da circunstância surpreendente de que o expediente ter-se-ia vulgarizado exatamente no instante do auge da mobilização colonial contra o quilombo dos Palmares. Isso surpreende tanto mais quanto se lembra que a repressão a esse mocambo desencadeou algumas reviravoltas importantes na atuação estatal no tocante a escravos na América portuguesa, pelo menos a julgar pela discussão de Sílvia Lara (LARA, 1996). De todo modo, foi ao longo do século XVIII que o processo começou a refluir. Em outros termos, a documentação dispersa consultada deixa a viva impressão (e por ser dispersa ela não permite mais que isso) de que, durante o século XVIII, começaram a mostrar-se sinais de um refluxo da instrumentalização estatal da violência escrava, na direção de um refúgio da mesma na casa senhorial. Ela continuou a ser praticada, mas a mudança que se percebe, quanto mais se olha para períodos próximos de meados do século XVIII, foi no sentido de que o Estado português deixou de fazer uso dela, isto é, abandonou a prática de utilizar, para seus fins enquanto Estado, a capacidade dos senhores de escravos de mobilizar a potencialidade destes últimos para matar.

III. A NOVA FORMA DA ALIANÇA ESTADO-CASA SENHORIAL NO SÉCULO XVIII

Foi visto que, no mínimo desde 1657, a Câmara de São Paulo buscava reprimir o uso de armas por cativos. Mas tal uso parece ter sido recorrente, o que condiz com o esquema de análise aqui encaminhado. Em 1738, registrou-se em São Paulo um edital "sobre a proibição de porretes de não poderem trazer os negros ou mulatos ou carijó nem de dia nem de noite na forma que manda o dr. Corregedor, em um dos capítulos de correição que proveu no Senado da Câmara". Ali se fazia referência a certa tolerância prévia em relação a escravos armados.

A correição avaliava os "danos à República pelas mortes e pancadas executadas". Tais atos "se deviam evitar para maior sossego e quietação do povo" e provinham "de se consentirem andarem os negros por esta cidade de dia e de noite com porretes de quatro quinas e roliços debaixo dos capotes e baetas e outras coberturas disfarçadas". A correição condenava esse tipo de coisa, da mesma forma que o fizera a Câmara em 1657. Mas mesmo o ordenamento que reprimia o uso de armas por escravos deixava escapar que por muito tempo aquele uso foi consentido.

Traía até a percepção de quem o permitia. O ordenamento estabelecia punição com prisão e açoites a "qualquer negro ou mulato, ou índio ou outra qualquer nação [encontrados] com os ditos porretes ou pau curto de dia ou noite" (Revista do Arquivo Municipal, 1941, p. 149-150). A "baeta ou capote ou outra qualquer cobertura" reverteria para o oficial que efetuasse a prisão. Além disso, "serão os senhores dos ditos escravos por lhes consentirem os ditos porretes pela primeira vez condenados em 3$000, e pela segunda em 6$000 e metade para os oficiais de justiça e milícia que os prenderem e a outra metade para as obras do Conselho". Senhores, portanto, permitiam o porte de armas. Mas há mais: determina-se na proibição até mesmo que as punições seriam mais severas caso os escravos armados fossem encontrados à noite, o que permite entrever que tudo isso era permitido por senhores a seus escravos sem muita vigilância (ibidem).

Sílvia Correia de Freitas estudou um relato precioso sobre a posse de armas por escravos na vila de Antonina, na Província do Paraná. Em 1869, um escravo proveniente de Minas, que tinha ido para Antonina com seu senhor, foi encontrado com uma "faca de ponta", originando-se disso um processo-crime. A análise de Freitas faz com que observemos alguns elementos fundamentais sobre aquilo que podia cercar o uso de armas por cativos. O proprietário do escravo, apesar de ter ido com ele para o Paraná, achava-se ausente. O próprio cativo, enfatizavam as autoridades, vinha de fora, e o relato da autora sugere que se o concebia como forasteiro. Ainda assim, a faca de ponta a que o caso refere-se foi entregue ao cativo pelo feitor da estrada da Graciosa para que ele, sem supervisão ¾ tanto que foi pego sozinho ¾, cortasse mato. Ausência do senhor e trabalho realizado em isolamento estão a indicar que a entrega de armas a escravos parecia ainda algo corriqueiro, embora não se tratasse de escravo doméstico, por exemplo, a quem todos conhecessem e que mantivesse intensos laços pessoais com seu proprietário e com outros homens livres. O mais surpreendente, no entanto, é a circunstância de que o cativo foi encontrado com a faca no exato momento em que fora procurar o delegado de polícia local (FREITAS, 2000a, p. 92-93; 2000b). Ressalte-se: o escravo foi procurar a autoridade armado da faca. Embora lacônico quanto a isso, o caso deixa entrever a concepção, do escravo, no sentido de ter sido coisa eminentemente normal o fato de ele andar sozinho e armado.

Esse problema do porte de armas por escravos é de fato árduo de ser compreendido em suas implicações. Veja-se, por exemplo, o seguinte caso, discutido pelo Conselho da Presidência da Província de São Paulo, motivado pelo "requerimento do escravo Luiz pertencente à capela de S. Antônio; e a resposta do Administrador dela": Estão "todos os escravos em circunstâncias de insurgir, e que vivem armados de faca de ponta, ameaçando a vida do mesmo [do administrador]; e tomando-se em consideração esta importante matéria, se deliberou, que se determinasse ao respectivo Capitão-Mor, que manda[sse] tirar todas as facas aos ditos escravos, e que asperamente os repreendesse, advertindo-os, de que serão severamente castigados, quando se não amoldem à devida obediência a seu Senhor, ao qual prestará para este fim todo o auxílio" (Ata da reunião de 7 de novembro de 1825, apud Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, 1961, p. 88).

O fato de possuírem armas brancas aparentemente só se tornou um problema no momento do conflito com o administrador. As facas seriam tomadas, é certo, mas a repreensão do Capitão-Mor ligar-se-ia tão somente às ameaças àquele.

Com ou sem armas, no entanto, escravos eram usualmente envolvidos nos conflitos pessoais de seus senhores. Em 1805, o Governador da Capitania de São Paulo relatava em um de seus ofícios "que vão para o Ministério", em Lisboa, as agruras do "Doutor Físico-Mor da Capitania", Mariano José do Amaral, envolvido em embates com o "pretérito Juiz Ordinário desta Cidade o Capitão João Gomes Guimarães". Em virtude dessas disputas, que o Governador considerava perseguições do Físico-Mor pelo Juiz, determinou-se a prisão de Mariano, contra o que bradava o Governador Antônio José da Franca e Horta. Um caso normal de conflito entre autoridades cujo viés de atuação era plenamente patrimonial. Mas Horta não condenava apenas a prisão de Mariano; afirmava também que "de mais a mais [...] para seu maior ultraje estavam assalariados alguns Negros com o destino de na saída de Casa lhe darem apupadas" (Ofício de 30 de março de 1805, ao Visconde de Anadia, apud Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, 1990, p. 146). Não sabemos se os tais "Negros" eram ou não escravos, embora isso seja provável. Por outro lado, não se tratou de pancadas ou de tiros. "Negros" foram recrutados para produzir humilhação e não dor ou morte. Ainda assim, o patrimonialismo e o sentido aristocrático da vida social podiam mobilizá-los para agressões. Mais significativo ainda, no entanto, era o fato de tudo estar recebendo forte condenação por parte do Governador da Capitania, corroborando o esquema de análise aqui encaminhado, no sentido de que o Estado estava, durante o século XVIII, livrando-se de uma ligação, já então antiga, com a violência útil dos escravos. Modernização burocratizante? Creio que não. Observe-se que Franca e Horta prosseguia com um linguajar e com atitudes patrimoniais, anulando as decisões do Juiz mediante simples afirmação de que elas constituíam o "Culpável excesso de proceder contra um homem constituído em Autoridade pública, já pelo Emprego de Físico-Mor, já pelo de Juiz Delegado da Real Junta do Protomedicato, e o único Médico desta Cidade, encarregado da Botica Real, e Hospital Militar, sem atenção alguma ao prejuízo da Real Fazenda, e Curativo dos Enfermos" (ibidem).

Sobre o mérito da questão, nada. Mais que com alguma nítida disputa entre práticas patrimoniais e burocráticas, o que se lê confunde-se com a distinção entre estamento burocrático e patrimonialismo da casa senhorial, separação esta que se estava a construir a partir do final do século XVII, segundo Faoro (1979).

O que se está argumentando vai no sentido de que a movimentação verificada na instrumentalização da violência escrava acompanhou um percurso fundamental da vida política do Império Português, tal como ela foi descrita por Faoro. Executou-se uma "viagem" (aliás "redonda", por permanecer centrada em concepções e práticas patrimoniais da política e da administração) do patrimonialismo da Casa Real para o estamento burocrático. Paralela a tal "viagem", teria ocorrido uma progressiva alteração da relação entre Estado e casa senhorial (por sua vez igualmente regida por uma concepção patrimonial da política e da administração). Uma primeira forma de aliança promoveu o recurso, pelo estado, à mobilização de escravos para a feitura da guerra, ancorada na capacidade senhorial de instrumentalizar os seus "criados", na terminologia da organização militar do início da época moderna. As formas de aliança Estado-casa posteriormente estabelecidas, no entanto, não levaram à desmobilização dos cativos. Se a guerra do Estado não mais os envolvia, as necessidades pessoais dos senhores de usar e abusar da força faziam-no. Leio Faoro entendendo que o fim da aliança entre estamento burocrático e casa não significou nem a plena burocratização do Estado nem a "privatização" da casa. De fato, o aproveitamento aqui realizado das suas idéias busca levar em conta sugestões na direção de que, na esteira da indiferenciação entre público e privado na ordem política brasileira, Estado e casa nunca se contrapuseram enquanto atores em conflito pela monopolização do aparato patrimonial da política, a não ser episodicamente (SCHWARTZMAN, 1979; FRAGOSO, BICALHO & GOUVEIA, 2001)1313 A historiografia do Império Brasileiro ajuda a compreender o ponto. Em uma percepção, a formação do Estado brasileiro no século XIX implicou o estabelecimento da "direção política" de um setor dos plantadores ¾ a cafeicultura fluminense com visão de longo prazo sobre a própria conformação de um Estado brasileiro ¾, configurando o que se denominou de "tempo saquarema" (cf. MATTOS, 1987). Em outra percepção, a "construção da ordem" oscilou entre a criação de uma nova elite política com relativa independência frente aos plantadores e centrada na construção do aparato estatal, de um lado, e, de outro lado, a perspectiva de que isso implicava a criação de condições para a "mediação" dos embates da casa (cf. CARVALHO, 1988). . A perspectiva de sua aliança, portanto, pôde mostrar-se durável. Mas as condições de tal aliança sofreram alterações decisivas durante o intervalo. A prática da guerra, sobretudo, foi muito afetada por isso. Basta lembrar o quanto é longo o caminho que leva das práticas de mobilização de escravos como criados de seus senhores, estudadas aqui, para as muito conhecidas circunstâncias da Guerra do Paraguai, para a qual se mobilizavam cativos mediante alforrias agenciadas pelo Estado, isto é, por intermédio de mecanismos que tornavam independentes os escravos frente a seus até então proprietários (SOUSA, 1996)1414 Aquele trânsito da situação em que a guerra do Estado mobilizava escravos por meio dos seus senhores para a circunstância na qual o Estado mobilizava soldados escravos autonomizando-os de seus proprietários pode ter sido influenciado por uma espécie de efeito-demonstração, definido a partir das independências da América Espanhola (cf. várias passagens de MORNER, 1969, p. 82ss). .

Um caso relatado por Saint-Hilaire ajuda a compreender um pouco de tudo isso, assim como o quanto isso afetava a relação dos cativos com a violência. Transitando pelos Campos Gerais em 1820, o viajante deparou-se com a fazenda Fortaleza, do Tenente-Coronel de Milícias José Félix da Silva. Tratava-se de homem muito rico, casado com uma mulher que Saint-Hilaire definiu como pobre. Como maltratava bastante esta última, ela providenciou emboscada, da qual Silva escapou com ferimentos, o que levou à prisão da mulher. Senhor, o Tenente-Coronel tirou-a da cadeia e confinou-a na fazenda. O ambiente e os agentes da agressão pertenciam-lhe, de modo que também devia pertencer-lhe a punição (SAINT-HILAIRE, 1978, p. 42-44).

Um parágrafo de Saint-Hilaire põe-nos em contato com uma configuração patriarcal muito nítida: "Fora José Félix da Silva que fundara a sua propriedade. Estabelecera-se em Fortaleza no começo do século. O lugar era então freqüentado unicamente por selvagens, e o seu nome era sempre pronunciado com temor. Mas, a partir dessa época, muitos agricultores se estabeleceram nas redondezas, animados pelo corajoso exemplo do primeiro desbravador e certos de estarem protegidos dos índios por um homem poderoso, que contava com numerosos escravos" (ibidem).

Protegidos, assim, por homem com muitos escravos. Isso quase equivale a dizer que os lavradores dos arredores da fazenda Fortaleza sentiam-se protegidos pelos escravos de José Félix. Mas a coisa era ainda mais complicada. Silva também maltratava seus escravos, tendo sido qualificado por Saint-Hilaire como "impiedoso" em relação a eles, que o "detestavam". O viajante chega a referir que os cativos de Silva também já haviam tentado matá-lo.

Ainda assim, "Os escravos de José Félix da Silva jamais iam trabalhar nas plantações sem estarem armados" (ibidem). Em uma única formulação, aparecem a legitimidade da violência útil dos escravos e o grau em que estamos proibidos de ver em tal tipo de fenômeno alguma espécie de idealização da escravidão. Questões políticas encaminhadas e legitimadas senhorialmente envolviam escravos e sua capacidade de matar, aglutinando-os ao redor do lugar material e simbólico da casa de seus senhores. Tudo isso, no entanto, desenrolava-se em ambiente de fortíssima disseminação tanto da violência contra cativos quanto da rebeldia dos mesmos.

Vem sendo defendido aqui que, da utilização pelo Estado da violência escrava garantida na casa senhorial, passou-se, ao longo do século XVIII, para a situação em que a força útil dos cativos permanecia instrumento senhorial apenas no interior da casa. Mas isso não deve ser entendido como periodização férrea e livre de contra-marchas. Há, quanto a isso, uma forte ilustração em uma carta daquele que teria sido o governante ilustrado paradigmático na época pombalina. Escrevendo em 20 de junho de 1775 ao Governador de Minas Gerais, o Marquês do Lavradio descrevia uma resolução que havia tomado quanto à defesa do Rio de Janeiro, como resposta a pavores locais e metropolitanos quanto a possíveis agressões castelhanas à América portuguesa: "Ordeno os terços da Cidade, que são repartidos com separação de freguesia, e nelas as companhias com separação de umas, que o capitão, e oficiais de cada companhia alistem, os negros escravos dos seus distritos, que para estes tenha cada um dos senhores aquelas armas que eles escolherem, já seja lança, chuço, espingarda, flechas ou qualquer outra qualidade de armas ofensivas, segundo o cômodo, e possibilidade de cada um" (MARQUÊS DO LAVRADIO, 1978, p. 161ss).

Embora tardiamente, reaparecem no texto de Lavradio alguns temas já tratados. O Estado parecia pretender reeditar a aliança com as potencialidades bélicas dos escravos mobilizados pela casa senhorial (mas, passado o grande momento daquela aliança, a coisa toda não sairia do papel, como veremos). Em meio a este assomo barroco, o Marquês elabora uma grande cadeia de fidelidades que tem na ponta final a instrumentalização da violência escrava, novamente utilizada pelo Estado. Ele manda; capitães dos terços auxiliares organizam; senhores comandam e financiam e escravos preparam-se para morrer pelejando pelos outros (além do que já se viu sobre os incidentes no Rio em 1710, a perspectiva de que qualquer arma poderia ser utilizada, a critério dos senhores, não era muito animadora para quem desejasse sobreviver a recontros armados). O perigo externo, como se via desde Gabriel Soares de Sousa, comandava a oportunidade do recurso. O âmbito da casa era levado a aliar-se ao do Estado na emergência, mobilizando a força bruta dos escravos. Tudo isso, que parecia enterrado pela independência do estamento burocrático frente à casa senhorial, e que de fato já perdera muito de sua oportunidade, reapareceu na cabeça de Lavradio. Aliás, é muito significativo da normalidade com que se encarava a imagem de escravos guerreando por seus senhores o fato de tal assomo barroco ter-se dado exatamente como paradigma da governação ilustrada na América portuguesa1515 Isso pode ser visto como mais um dos "paradoxos" da Ilustração no ambiente luso, tal como eles foram analisados por Maxwell (1996). Sobre a governação do Marquês, vide Alden (1968). .

Lavradio pensava em uma organização em cadeia, como mencionado. Com isso, um tom fortemente hierárquico atravessava o projeto. Planejava que "a gente de cada uma destas companhias [fosse] dividida em duas outras companhias conforme o número que houve[sse] de gente, nomeando daqueles mesmos pretos para capitães, alferes, e oficiais inferiores os que se acha[ssem] de mais propósito" (MARQUÊS DO LAVRADIO, 1978 [1769-1776], p. 161). Dessa forma, a cadeia de fidelidades completava-se introduzindo uma hierarquia no grupo escravo mobilizado.

A concepção de que a dominação escravista na América portuguesa produzia hierarquias internas ao grupo escravo vem sendo enfatizada nos últimos anos. De certo modo, Gilberto Freyre já sugeria algo nesse sentido ao longo das décadas de polêmica que se seguiram à publicação de Casa-grande & senzala, reconhecendo que a imagem adocicada e amorável da escravidão construída naquela obra ter-se-ia aplicado acima de tudo a um segmento "privilegiado" de escravos domésticos dos engenhos1616 Vide as notas acrescentadas ao livro por ocasião de suas diversas reedições (FREYRE, s/d [1933], p. 89ss). . Posteriormente, as discussões sobre categorias raciais nas Américas sugeriram que os ambientes propícios à diferenciação por cor dos não-brancos eram aqueles que instituíam mecanismos de hierarquizacão dos mesmos não-brancos, como recurso para enfrentar os dilemas do controle social em meio a uma alegada carência de imigrantes europeus, não se descartando a inclusão de escravos nisso (HARRIS, 1967). Mais recentemente, estudos a respeito de diversas instituições com as quais escravos envolviam-se depararam-se com indícios de hierarquização e de fortes disputas ao redor da mesma1717 Um exemplo é a análise de Mary Karasch a respeito das irmandades negras (KARASCH, 2000, p. 341-396). . O trecho supracitado do Marquês do Lavradio indica que as expectativas senhoriais quanto à utilização das potencialidades bélicas dos cativos envolviam o estabelecimento de segmentos escravos diferenciados e escalonados. Viu-se antes que a organização militar na América podia eventualmente criar "torres" próprias, segundo a expressão de Stone, no sentido de que um mesmo critério de estratificação podia instituir diversas escalas, por vezes concorrentes. O plano de Lavradio indica que as perspectivas senhoriais contemplavam a possibilidade, e talvez a necessidade, de que alguma pequena "torre" pudesse respingar para os cativos que se envolvessem no exercício da força em nome de seus donos. Assim se compreende que a instrumentalização da capacidade escrava de matar podia constituir, ao menos segundo as expectativas dos senhores, uma "porta de entrada" para a inserção no tecido social. A partir dela podiam estabelecer-se estratégias de distinção. A violência, nesses casos, relacionava-se com os mecanismos através dos quais escravos podiam efetivar percursos valorizados na vida social.

Mas prossigamos. O término da cadeia, no plano do Marquês, como foi visto, confundia-se com uma massa de escravos dispostos a morrer. De fato, escrevia o Marquês que "a esta gente lhe não mando fazer nenhum exercício, só lhe ordeno, que no caso de um rebate geral devem todos com as armas que lhe forem destinadas, irem-se juntar detrás das suas companhias". Além da precariedade do armamento, também não seria fornecido aos escravos de peleja nenhum treinamento. Por outro lado, fica reafirmado aqui que o lugar dos escravos no embate seria externo à organização formalizada dos corpos militares, o que transparece na expressão "detrás de suas companhias". Isso imporia, pensava Lavradio, algum estímulo: "e ali [isto é, detrás das companhias] determino fazer-lhe[s] declarar que aqueles, que fizerem ação distinta, como o defenderem o desembarque de algum porto, o desalojarem de algum porto o inimigo, o tomarem dentro do porto alguma embarcação, ou porem fogo a alguma dos inimigos, ou embaraçar-lhe[s] algum passo que eles queiram franquear depois de desembarcados; que terão a sua alforria no caso dos senhores lha quererem dar a terão de seu senhor, e não querendo eles fazer-lhe esta justa recompensa, se aliviará o seu valor, que serão [sic] satisfeito o senhor pela fazenda real, de quem ele receberá depois a liberdade; deste modo julgo aumentarei muito o número de defensores, e com a esperança de um prêmio, para eles tão importante, julgo lhe[s] darei valor para eles se exporem às ações mais arriscadas" (MARQUÊS DO LAVRADIO, 1978 [1769-1776], p. 161).

O difícil seria que alguém mal armado sobrevivesse a cometimentos como os esperados por Lavradio. Além do mais, "Isto que agora te comunico ainda não o tenho principiado a praticar, a declaração do prêmio, não determino fazer-lha, senão no caso de ser preciso juntá-los para a ação; faço primeiro alistá-los, isto feito determino fazer-lhes alguns rebates falsos para os fazer acudir aos seus postos, e todo o mais o tempo, ficam eles servindo a seus senhores nos diferentes serviços, em que cada um deles os costuma empregar" (ibidem).

De fato, o tempo de escravos pelejando pelo Estado já havia passado, embora eles prosseguissem tendo que lutar por seus senhores. O Marquês não parece ter encaminhado o projeto, segundo se julga por sua correspondência oficial, também consultada (MARQUÊS DO LAVRADIO, 1962a [1770-1777]; 1962b [1777-1778]), e pela bibliografia a respeito do período. Além do mais, fora arribadas forçadas, os entreveros com castelhanos limitaram-se às partes meridionais da América portuguesa, e Lavradio indica projeto relativo ao Rio de Janeiro.

Há um outro caso muito eloqüente quanto a demonstrar que a mobilização de escravos para a guerra do Estado já perdera muito do seu caráter de coisa quotidiana no final do século XVIII e no início do seguinte, senão durante todo ele. Em 1834 publicou-se um tomo das Viagens e observações de um Brasileiro, que desejando ser útil à sua pátria, se dedicou a estudar os usos e costumes de seus patrícios e os três reinos da natureza em vários lugares e sertões do Brasil, oferecidas à Nação Brasileira, do natural da vila do Lagarto (no atual estado de Sergipe) Antônio Moniz de Sousa. O livro inicia-se com trecho não assinado, provavelmente de autoria do editor de 1834, ou do próprio Moniz de Sousa, com alguns elogios e uma breve biografia. Há ali uma passagem na qual, a fim de dar conta do caráter generoso de Antônio, explica-se que, após pelejar em conflitos locais da vila do Lagarto, ele "resolveu-se a lançar-se em um mundo mais vasto, e arrostrar [sic] a fortuna das armas, indo defender o Reino então invadido pelos Franceses em 1807. Com esta resolução, filha dum gênio empreendedor, e invejoso de lances e novidades, e cheio de entusiasmo e esperanças, ele embarcou com dois fiéis escravos e algum dinheiro, únicos restos do seu patrimônio" (SOUZA, 1945 [1834], p. 19).

O Quixote sergipano, no entanto, não chegou a Portugal. A embarcação naufragou em Pernambuco e ele foi para o Rio de Janeiro. O fundamental é o tom do relato, que, repito, não se sabe se foi escrito pelo editor ou se pelo próprio Antônio. Fica-se com a impressão de que o ato de dirigir-se a Portugal para "defender o Reino", e sobretudo o ir-se com escravos, afigurava-se algo anacrônico, ou então inesperado1818 De passagem, note-se que, caso Antonio chegasse a Portugal, perderia seus cativos, pois a escravidão já se extinguira ali. . Se auto-elogio, o acento recairia no caráter inusitado da façanha pretendida. Se texto do editor, poder-se-ia procurar mesmo algum sarcasmo. O fato é que normal o ato definitivamente não era.

Embora já estivesse muito desligada da atuação do Estado, a violência útil dos escravos, no início do século XIX, ainda se vinculava a instituições sociais decisivas. Um caso passado na cidade do Rio de Janeiro ajuda a compreendê-lo.

José Botelho era mestre carpinteiro da ribeira. Em 1827, muitos dos oficiais que trabalhavam em suas obras projetaram um conflito com ele. Não embarcariam para a realização de suas tarefas, a menos que Botelho reajustasse seus ganhos. Botelho entrou em discussão acirrada com aquele que parecia liderá-los, Francisco de Araújo. Havia então, por volta das 14 horas de dia não especificado, "grande multidão de gente do ofício de Carpinteiro, e outras artes [...] para embarcarem ao seu serviço" (ARQUIVO NACIONAL, 1828).

Araújo chegou a "acometer o autor [Botelho] com gestos e palavras arrogantes acerca de lhe aumentar, e aos mais oficiais os jornais, chegou ao excesso de chamar-lhe em altas vozes o ultrajante nome de ¾ corno ¾; ouvindo os mais oficiais, e toda aquela gente que estava presente: o que mais aumentou a vergonha do Autor" (idem).

Botelho, contudo, tinha um escravo mulato que, no instante da ofensa, atirou-se contra Araújo, buscando agredi-lo com um enxó, segundo o relato de uma testemunha. A altercação sobre jornais e a forma incipiente de greve encaminhada pelos oficiais carpinteiros "de machado" e "da ribeira" (isto é, construtores navais) não parecem ter comovido muito o escravo, que, no entanto, imediatamente levantou-se em função do ataque à honra senhorial, atrelada à organização familiar. Quanto a Botelho ter sido mau patrão, tudo bem: mas chamar seu senhor de "corno" era inadmissível (idem, f. 6-6v).

De cerca de um século antes disso vem um relato soteropolitano mostrando um escravo reagindo com vigor ao que lhe pareceu uma afronta ao domicílio senhorial. O caso de Botelho mostrou a possibilidade de emergir disputa quando a questão era familiar. O que se narra brevemente agora se refere circunstâncias nas quais uma instituição próxima à da família ¾ o domicílio ¾ parecia estar sob ataque.

Em 1724, o Juiz de Fora (ou seja, o Ouvidor), o Vereador mais velho, o Procurador e o Escrivão da Câmara da cidade de Salvador, juntamente com mestres pedreiros, foram vistoriar uma fonte avariada. Mostrou-se necessário, para tal, ver também um poço localizado no quintal de um certo Sargento-Mor José Batista de Carvalho. O poço, no entanto, tinha um tampo de madeira fechado a cadeado, de modo que o Juiz de Fora ordenou a João Batista, escravo mulato do Sargento-Mor, que fosse buscar a chave. João Batista negou-se por duas vezes a fazê-lo, reagindo o Ouvidor com ordem para que um pedreiro quebrasse o cadeado.

Diante disso o mulato começou "com gritos e alaridos", clamando pelo nome do Rei e dirigindo-se com palavras "descompostas e injuriosas" contra os edis. A esses gritos "acudiram outro mulato do mesmo nome e todos os mais escravos e escravas da casa do dito Sargento-Mor e juntos com maiores gritos e alaridos clamaram proferindo palavras mais injuriosas dizendo que ladrões e marotos iam roubar e escalar a casa de Seu Senhor" (PREFEITURA MUNICIPAL DE SALVADOR, 1973b, p. 104-106).

Os oficiais prenderam então os dois mulatos e algumas escravas, procedendo-se, por ordem do Ouvidor, a autos de injúria. Condenaram-se os cativos a pena de açoite e degredo, mas houve recurso à Relação, que anulou o processo, pois o Ouvidor era parte interessada. Ouvidor e Câmara providenciaram então embargos da sentença da relação, cuja decisão anterior foi no entanto mantida (ibidem). O caso foi objeto de uma longa carta para os Conselhos do Rei, argumentando a Câmara que, ao se terem deixado sem punição os escravos que a afrontaram, a ela e a ninguém menos que o Ouvidor, criava-se grande vexame para todas estas autoridades, prejudicando o curso normal de seus trabalhos. Tudo isso por um cadeado, na perspectiva dos administradores. Mas tudo isso em nome da guarda do domicílio senhorial, na ótica dos cativos.

A violência escrava instrumentalizada pelos senhores já testemunhara a vigência e a derrocada da aliança para a guerra entre estamento burocrático e casa senhorial. Agora, esses dois casos levam-nos a percebê-la acompanhando, sob novas formas, a persistência da centralidade das relações familiares e da organização dos domicílios para o encaminhamento de atividades centrais na trama social. Realmente, a violência escrava instrumentalizada relacionava-se com muita coisa de fundamental na história da América portuguesa. Tendo testemunhado tudo isso, dificilmente se pode crer que a mencionada manipulação se resumisse a eventos isolados ou ilegítimos. Mas há mais.

Se, como vem sendo visto, a violência dos escravos podia ser instrumentalizada pelos senhores, é preciso chamar a atenção para um tipo de caso um tanto diferente, mas muito próximo. Refiro-me a situações nas quais senhores manifestavam expectativas de que o exercício da força pudesse criar fidelidade entre seus escravos. Não por instilarem nos cativos o medo do castigo, mas por esperarem que estes considerassem a violência como um atributo específico de senhores de escravos. É possível, enfim, topar com casos nos quais proprietários de escravos esperavam estar ostentando uma inteira personalidade senhorial quando exerciam a força contra terceiros.

Pouco antes de 1812, Antônio Manoel de Sá citou Antônio da Silveira Machado, requisitando a escrava Maria, de nação Benguela, com os jornais e filhos que tivesse tido. Antônio Manoel afirmava ter sido, antes disso, amigo e vizinho de Caetano Ferreira Campos, que possuía somente uma cativa crioula. Quando esta morreu, Antônio Manoel emprestou-lhe Maria Benguela, mas Caetano a vendeu, cortando relações com Antônio, o qual, como reação, estimulou Maria a fugir. Em vista disso, Caetano fez com que Maria fosse apreendida. Mas ela tornou a fugir, tendo sido encontrada na casa de Antônio Manoel, "fechada em um quarto e coberta com algumas esteiras". Daí foi levada para o Depósito Geral, de onde Caetano a "levantou".

Este afirmava ter cuidado da africana, tendo inclusive providenciado para "tirar-se-lhe o feto do ventre com ferros", atitude referida como indubitável demonstração de zelo paternal. Antônio Manoel deu uma versão diferente. Afirmou que, paralelamente a esse seu conflito com Caetano, tivera outro entrevero com o mesmo, proveniente do fato de que lhe dera "certa quantia de pesos" para que este lhe fizesse um faqueiro de prata. Mas sua casa queimou, juntamente com o assento do acordo, de modo que Caetano aproveitou para apropriar-se do metal.

Antônio Manoel teve então conselho de advogado para que, quando encontrasse Maria Benguela, mandasse-a para casa. Achou-a certa vez em uma venda e o fez, no que foi obedecido, segundo declara. Em sendo plausível a versão ¾ aqui importa mais se ela era plausível do que se era ou não verdadeira ¾, ela dá mais uma indicação de que muito das relações entre senhores e escravos era feito de uma ética fortemente baseada em laços pessoais e não em uma avaliação abstrata da escravidão. Além do mais, conhecidos rituais e exclusivismos do aparato cartorial brasileiro, inclusive da época, entende-se que, do ponto de vista do escravo, senhor era aquele que lhe informava sê-lo. A outra alternativa seria a consulta, pelo cativo, da documentação cartorial. Em outros termos, o que contava em cada relacionamento senhor-escravo era o "senhor" e não a condição senhorial. Continuar com este caso mostrar-nos-á o que era um senhor "verdadeiro".

Caetano viu de uma janela o que se passava (ou seja, viu Antônio mandando Maria para casa). "Saiu a correr após dela com grandes gritos, por ser um homem sem estímulos" (ARQUIVO NACIONAL, 1812; sem grifos no original). Antônio recuou, pois um comportamento escandaloso de Caetano pareceu-lhe uma vitória parcial. A concepção que Antônio tinha do que significava ser um senhor de escravos passava pelo uso da força, e publicamente.

A escrava ficou "algum tempo" com Caetano, após o que sumiu. Transcorrido intervalo não especificado no documento, às 6 horas da manhã, "bateu a escrava na porta do Autor [Antônio] pelo conhecimento que tinha de ser o seu verdadeiro Senhor" (ibidem; sem grifos no original). Um "homem sem estímulos" não poderia ser seu proprietário. Um "verdadeiro senhor", por outro lado, mostrava-se em situações como aquela, na qual, desejando que Maria voltasse, muito simplesmente invadiu a casa alheia e mandou que ela o fizesse. É a plausibilidade do relato, aos olhos da época, que fornece informação, sobretudo a respeito de uma expectativa senhorial. É significativo que o "reconhecimento" pela escrava de seu "verdadeiro senhor" tenha ocorrido em seguida ao comportamento escandaloso de Caetano, indicando, inversamente, a plena capacidade de Antônio quanto a usar a força. Adivinha-se aí uma ética julgada indicativa da "verdadeira" condição senhorial. O escândalo surgia do fato de se recusar a enfrentar, com a força, a ameaça de agressão (ibidem)1919 Esse caso foi tratado, com outros objetivos, em Lima (1998, p. 27ss). . Nesse sentido, a violência reiterava a relação senhor-escravo em um âmbito que ficava muito além daquele demarcado pelo castigo.

IV. CONSIDERAÇÕES FINAIS: O MOEDOR DE CARNE

A argumentação desenvolvida a respeito da instrumentalização da violência escrava teve como norte defender que o uso da força esteve no centro da vida social na América portuguesa. Não se pretende superestimar aquela instrumentalização, nem passar perto de supor que ela fosse mais importante que a força usada contra escravos, ou que a violência inscrita na rebeldia. É evidente que o castigo e o uso da força como resistência escrava predominaram quantitativamente. É claro também que tais práticas deixam-nos muito próximos de sentidos decisivos presentes na vida social. Mas é preciso enfatizar que a movimentação histórica da prática de incluir cativos na guerra senhorial é estratégica para compreender e dimensionar processos e transições de fôlego na vida política e social da América portuguesa, assim como nas relações entre senhores e escravos. O fato de ela ter testemunhado as vicissitudes das relações entre Estado luso (ou Imperial) e potentados locais reforça muito esse argumento.

A violência, então, podia incluir, quando os escravos eram ativos e não passivos em relação a ela, que assim não deve ser associada exclusivamente à instauração de uma "socialização imperfeita". Acima de tudo, ela instituía percursos valorizados positivamente no interior de uma comunidade escrava que nos vem sendo apresentada, com razão, como hierarquizada internamente. A força usada em favor dos senhores facultava um envolvimento com o sentido aristocrático da movimentação senhorial na América portuguesa. Ela propiciava um "código", segundo a expressão que Maria Sylvia de Carvalho Franco formulou para os livres pobres. Por fim, e o mais importante, ela abria caminho a estratégias: motivava a introjeção dos mecanismos próprios à dominação escravista, mas só podia fazê-lo porque a inclusão subordinada que ocorria ao seu redor possibilitava a instauração de trajetórias direcionadas à distinção.

O que se defende aqui é a concepção de que a capacidade escrava de matar, quando instrumentalizada por senhores, também encaminha-nos para a compreensão das práticas que moldavam a dominação escravista na América portuguesa. Embora menos difundida que o castigo e a rebeldia, a violência instrumentalizada dos escravos permitiu observar o quanto a força achava-se rotinizada e legitimada no centro da vida social. Afinal, se a violência a serviço dos senhores podia manifestar-se até mesmo tendo como agentes as principais vítimas desses mesmos senhores, fica plenamente caracterizado que o lugar da força na vida social era aquele das práticas normais, legítimas e em torno das quais se criavam e sustentavam diversas e fundamentais expectativas e valores.

Para concluir, indago a respeito de hipóteses amplas sobre a sociedade colonial brasileira, capazes de fazer compreender a centralidade da violência na vida social. As explicações da emergência da escravidão nas Américas sofreram fortes variações ao longo dos anos. Do ponto de vista de quem observa fenômenos como os tratados neste artigo, uma delas chama particularmente a atenção. Trata-se da explosiva combinação entre, de um lado, gente com capital e desejo de alçar-se a posições aristocráticas e, de outro lado, terra livre impedindo a emergência de formas de algum modo contratuais, mercantis, para a obtenção de trabalho alheio. Um quadro como esse criou fortíssimas tendências a que se legitimasse e se tornasse comum a busca desenfreada pelo estabelecimento de posições monopolistas nos mecanismos de oferta de trabalho, com a decorrente e desbragada proliferação da violência.

Junte-se a isso o caráter aristocrático assumido pela colonização na época moderna, seu compromisso com o ambiente da honra lograda por meio das armas2020 Lembrem-se dos fidalgos "práticos em prosa, verso e decapitação", de Luiz Felipe de Alencastro (2000, p. 96). . Junte-se-lhe também a virtualidade barroca de difundir comportamentos mediante o estabelecimento de mecanismos contínuos (e não discretos, segundo o antigo uso dessas expressões pela Estatística) de estratificação, assim como sua propensão a conceber o mundo, mover-se nele e apropriar-se de seus habitantes mediante cadeias hierarquizantes, em um ambiente eminentemente corporativo. Tudo direcionava a vida social e os mecanismos de dominação para a inclusão subordinada, por oposição à mera exclusão. Nesse quadro, a lógica de incorporação também fazia-se valer em relação ao uso da força.

Recebido em 11 de outubro de 2001.

Aprovado em 2 abril de 2002.

Carlos A. M. Lima (carlima@matrix.com.br) é Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e Doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

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OUTRAS FONTES

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ABSTRACTS

Versão do resumo para o inglês: Miriam Adelman

SLAVES OF COMBAT: THE INSTRUMENTALIZATION OF VIOLENCE IN MASTER/SLAVE RELATIONS IN PORTUGUESE AMERICA (1580-1850)

This article looks at the place that violence occupied in master/slave relations in Portuguese America. Beyond the slave owners' practices of punishment and slaves' recourse to rebellion, I consider the relative normality of the mobilization of slaves for hard labor for their masters as an additional mechanism that reiterated slave owners' power. I also discuss variations in this phenomenon, and its meaning for the re-evaluation of concepts related to bondage.

KEYWORDS: slavery; violence; colonial Brazil.

RÉSUMÉS

Versão do resumo para o francês: Maria Fernanda Araújo Lisbôa

ESCLAVES DE LUTTE : L'INSTRUMENTALISATION DE LA VIOLENCE ESCLAVE DANS L'AMERIQUE PORTUGAISE (1580-1850)

Cet article étudie la place de la violence dans les relations d'esclavage dans l'Amérique portugaise. Au-delà du recours du maître à la punition et celui de l'esclave à la révolte, on observe la relative normalisation de la mobilisation d'esclaves en vue d'exercer la force aux côtés de leurs maîtres comme étant un mécanisme de plus de réitération de la domination esclavagiste. Dans le but de réévaluer les conceptions concernant l'emprisonnement, on relève également les variations que le phénomène a eues ainsi que leur signification.

MOTS-CLÉS : esclavage; violence; Brésil Colonial.

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  • 1
    Sobre essa concepção ligando o mercado a práticas que não o supõem, vide Fernandes (1973). É indicativo dessa ambigüidade o fato de, em uma análise de Fernandes sobre o equipamento por assim dizer trazido por ex-escravos para a sociedade pós-abolição, aparecerem duas expressões antitéticas quase que lado a lado. Em Fernandes (1978), aparece na página 98 a expressão "
    mores afro-brasileiros", para na página seguinte o autor referir-se ao "estado de anomia social transplantado do cativeiro".
  • 2
    Refiro-me a que
    pode passar a ser considerada assim, embora nem sempre o tenha sido sobre essa ambigüidade, é sempre fundamental reler Franco (1974).
  • 3
    A expressão "negro", que aparece nesse relato, assim como em outros utilizados na seqüência do texto, não necessariamente se referia a africanos e a seus descendentes, tendo podido também ser aplicada a indígenas. Mas, quer no tocante a africanos e seus descendentes, quer no tocante a índios, a palavra "negros" estava eminentemente associada à condição escrava, e é ela que está sendo pensada neste trabalho.
  • 4
    A mesma obra explicava dificuldades portuguesas contra indígenas como função da movimentação destes últimos, retirando eficácia das armas de fogo (cf. NANTES, 1979, p. 52).
  • 5
    A referência dirige-se à intensa movimentação dos grens no Recôncavo Baiano e em áreas próximas, movimentação esta ocorrida na esteira daquelas que constituíram, mais ao Norte, a Guerra dos Bárbaros.
  • 6
    Quanto a Pernambuco, a historiografia fez algumas referências à mobilização militar de escravos e não-brancos em geral. Cf. sobretudo Mello (1975, p. 175ss), Mello (1988) e Silva (1999). Mas, em certos momentos, algumas de tais discussões superestimaram a dinâmica local como quadro de análise exclusivo da questão.
  • 7
    A fé de ofício está transcrita em Ennes (1944, p. 200-202).
  • 8
    Sobre essa questão da articulação entre atividade militar e mobilização aristocrática, cf. Schwartz (1991).
  • 9
    Vide um inventário dos bens de Nuno Alves de Miranda, onde se acha a declaração sobre o moleque José, em Novinsky (s/d, p. 225).
  • 10
    Essa concepção que se abre para a perceber no antigo Regime a vigência de um mesmo critério de atribuição de prestígio criando múltiplas hierarquias, e não uma única, aparece em Stone (1969). Alguns trabalhos usaram este modelo na busca de aclarar diversos aspectos da vida social na América portuguesa. Vide, por exemplo, Schwartz (1988) e Lima (2000).
  • 11
    "Carta dos oficiais da Câmara do Rio de Janeiro, João Arias de Aguirre, Francisco de Macedo e Inacio Corrêa da Silva, na qual se dá conta da entrada dos franceses no rio de Janeiro, sua derrota e precauções que se devem tomar para conjurar futuros perigos de nova invasão" (ENNES, 1944, p. 251).
  • 12
    Sobre sua permanência ainda no final do século XVI ¾ e em período próximo àquele de Gabriel Soares ¾ vide Marques (1980, p. 422), onde se descreve rapidamente o exército de D. Sebastião na ocasião do desastre de Alcácer-Quibir: "15 500 infantes e 1 500 cavaleiros, além de algumas centenas mais de encarregados dos abastecimentos, criados, mulheres, escravos etc.".
  • 13
    A historiografia do Império Brasileiro ajuda a compreender o ponto. Em uma percepção, a formação do Estado brasileiro no século XIX implicou o estabelecimento da "direção política" de um setor dos plantadores ¾ a cafeicultura fluminense com visão de longo prazo sobre a própria conformação de um Estado brasileiro ¾, configurando o que se denominou de "tempo saquarema" (cf. MATTOS, 1987). Em outra percepção, a "construção da ordem" oscilou entre a criação de uma nova elite política com relativa independência frente aos plantadores e centrada na construção do aparato estatal, de um lado, e, de outro lado, a perspectiva de que isso implicava a criação de condições para a "mediação" dos embates da casa (cf. CARVALHO, 1988).
  • 14
    Aquele trânsito da situação em que a guerra do Estado mobilizava escravos
    por meio dos seus senhores para a circunstância na qual o Estado mobilizava soldados escravos autonomizando-os de seus proprietários pode ter sido influenciado por uma espécie de efeito-demonstração, definido a partir das independências da América Espanhola (cf. várias passagens de MORNER, 1969, p. 82ss).
  • 15
    Isso pode ser visto como mais um dos "paradoxos" da Ilustração no ambiente luso, tal como eles foram analisados por Maxwell (1996). Sobre a governação do Marquês, vide Alden (1968).
  • 16
    Vide as notas acrescentadas ao livro por ocasião de suas diversas reedições (FREYRE, s/d [1933], p. 89ss).
  • 17
    Um exemplo é a análise de Mary Karasch a respeito das irmandades negras (KARASCH, 2000, p. 341-396).
  • 18
    De passagem, note-se que, caso Antonio chegasse a Portugal, perderia seus cativos, pois a escravidão já se extinguira ali.
  • 19
    Esse caso foi tratado, com outros objetivos, em Lima (1998, p. 27ss).
  • 20
    Lembrem-se dos fidalgos "práticos em prosa, verso e decapitação", de Luiz Felipe de Alencastro (2000, p. 96).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Set 2002
    • Data do Fascículo
      Jun 2002

    Histórico

    • Aceito
      02 Abr 2002
    • Recebido
      11 Out 2001
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