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Antropoceno, ciências humanas e historiografia

Resumo

O artigo mostra, inicialmente, como as discussões sobre o Antropoceno têm se deslocado de maneira cada vez mais significativa para o campo das ciências humanas. Em seguida, tomando como ponto de partida a proposta de que as ciências humanas deveriam contribuir para a compreensão do “metanível consequencial” dos estudos sobre o Antropoceno, discute como alguns trabalhos produzidos nesse campo têm lidado com as relações entre causas, efeitos e consequências diante das condições do novo regime planetário, considerando de maneira especial as discussões sobre a “tecnosfera”. Conclui indicando o potencial das novas perspectivas ontológicas das ciências humanas para a ampliação dos horizontes explicativos e comunicativos da historiografia.

Antropoceno; Ciências humanas; Historiografia

Abstract

The article initially presents an increasingly significant move of discussions about the Anthropocene towards humanities and social sciences. Then, taking as a starting point the proposal that these fields could contribute to the understanding of the “consequential meta-level” of studies on the Anthropocene, it discusses how some works produced in humanities and social sciences have dealt with the relationship between causes, effects and consequences regarding the new planetary regime, with a special focus on the debate about the “technosphere.” It concludes by indicating the potential of the “ontological turn” to expand the explanatory and communicative horizons of historiography.

Anthropocene; Humanities; Historiography

Os estudos sobre o Antropoceno

Do início dos anos 2000 até 2020, a quantidade de publicações relacionadas ao Antropoceno tem aumentado exponencialmente. Essas publicações não se restringem aos campos da ciência do sistema Terra (CST) ou da geologia, sendo que uma parcela muito significativa delas já advém do campo das ciências humanas (Alcântara et al., 2021ALCÂNTARA, Valderí Castro et al. Antropoceno: o campo de pesquisas e as controvérsias sobre a Era da Humanidade. Revista Gestão & Conexões, v.9, n.3, p.11-31, 2021.). Essa enxurrada de pesquisas corresponde a uma expressiva diversidade de perspectivas epistêmicas e políticas, e a crescente atenção da comunidade acadêmica para o tema corresponde a uma dificuldade cada vez maior de os(as) recém-chegados(as) se situarem em relação a esses debates.

Por isso temos visto, nos últimos anos, o aparecimento de diversos trabalhos que tentam sintetizar, tipificar e qualificar as várias correntes a partir das quais os problemas atrelados ao pós-Holoceno 1 1 Optei por usar o substantivo “pós-Holoceno” e seus derivados, pois, independentemente da forma como o presente planetário seja denominado, é inegável que vivemos em condições não análogas às do Holoceno. Com isso, espero adotar uma posição mais aberta à diversidade de formas de nomear esse período, que não são necessariamente excludentes entre si, sem correr o risco de me comprometer precipitadamente com nenhuma delas em específico. As outras formas específicas de nomeação do presente planetário (Antropoceno, Capitaloceno etc.) serão utilizadas para demarcar os posicionamentos explicativos aos quais dizem respeito. têm sido abordados. No campo das ciências naturais, essa necessidade parece ter surgido, sobretudo, em função da iniciativa de formalização do Antropoceno como época geológica. Como esses trabalhos deixam claro, as divergências sobre onde e quando situar a unidade geocronológica ou cronoestratigráfica mais recente da escala de tempo geológica não estão restritas a controvérsias técnicas. Uma vez que o diferencial do Antropoceno seria a evidenciação da força geológica da humanidade, as explicações desse fenômeno necessariamente se ligam a causações históricas e políticas. Como mostrei em outro trabalho, as CST precisaram articular, desde as primeiras publicações sobre o Antropoceno, um sentido histórico aos dados e modelagens de suas pesquisas (Lowande, 2023a). Essas narrativas se chocaram diretamente com as discussões mais refinadas já produzidas no campo das ciências humanas sobre as relações entre a “humanidade” e a “natureza”, em especial no que diz respeito aos problemas filosóficos e políticos embutidos nesses dois conceitos. Por outro lado, as pesquisas da CST trouxeram evidências muito mais consistentes e impactantes para variadas vertentes investigativas das ciências humanas, servindo a diferentes diagnósticos e prognósticos sobre os rumos tomados pela sociedade moderna.

Isso tem provocado outra avalancha de trabalhos no campo das humanidades e, com ela, novas tentativas de síntese e sistematização especificamente voltadas para a recepção das discussões sobre o Antropoceno em seus domínios. Como seria de esperar, aqui também já podemos encontrar várias propostas de classificação, cada uma delas com as suas próprias implicações normativas.

O termo Antropoceno tem sido adotado pela comunidade de cientistas do sistema Terra desde o início dos anos 2000, principalmente após a publicação do artigo que leva esse nome por Paul Crutzen e Eugene Stoermer (2000). A ideia de que o planeta Terra possui um sistema global composto por ciclos biofísicos interconectados e responsáveis pela manutenção da vida como a conhecemos tem diversos antecedentes (ver Crutzen, Stoermer, 2000; Crutzen, 2002CRUTZEN, Paul J. Geology of mankind. Nature, v.415, n.6867, p.23, 2002.; Steffen, Crutzen, McNeill, 2007; Steffen et al., 2011STEFFEN, Will et al. The Anthropocene: conceptual and historical perspectives. Philosophical Transactions of the Royal Society A: Mathematical, Physical and Engineering Sciences, v.369, n.1938, p.842-867, 2011., 2020STEFFEN, Will et al. The emergence and evolution of Earth System Science. Nature Reviews Earth and Environment, v.1, n.1, p.54-63, 2020.; Hamilton, Grinevald, 2015; Zalasiewicz et al., 2019ZALASIEWICZ, Jan et al. (org.). The Anthropocene as a geological time unit: a guide to the scientific evidence and current debate. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2019.; Horn, Bergthaller, 2020; Clark, Szerszynski, 2021). A tentativa de mensurar ou controlar esses sistemas por meio de modelos matemáticos, porém, remete mais diretamente ao período posterior à Segunda Guerra Mundial, enquanto a consolidação da CST está atrelada à criação do Nasa Earth System Science Committee, em 1983, e do International Geosphere-Biosphere Programme (IGBP), em 1987 (Hamilton, Grinevald, 2015; Steffen et al., 2020STEFFEN, Will et al. The emergence and evolution of Earth System Science. Nature Reviews Earth and Environment, v.1, n.1, p.54-63, 2020.). A ideia, atribuída a Crutzen, de que a humanidade (ou parte dela) teria se tornado uma força geológica, apresentou-se como uma provocação à comunidade estratigráfica, pois a constatação dessa hipótese implicaria a inclusão de uma nova unidade na escala de tempo geológica. Essa comunidade (ou parte dela) decidiu levar a sério essa provocação em 2009, com o estabelecimento do Grupo de Trabalho do Antropoceno (Anthropocene Work Group) (Zalasiewicz et al., 2021ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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, p.2), cujo objetivo era demonstrar, a partir da prática e da linguagem aceitas pela comunidade estratigráfica, a viabilidade da inclusão de uma nova “era”, “época” ou “período” na escala de tempo geológico correspondente à agência planetária humana. 2 2 Para informações mais detalhadas sobre a constituição do Grupo de Trabalho do Antropoceno, ver Lowande (2023a). Essa comunidade tem pendido para o consenso em torno de uma nova “época”, o “Antropoceno”, que teria começado não em 1784, como Crutzen propôs inicialmente, mas em um ponto entre 1945 e 1962, período que corresponde ao início da “Grande Aceleração” das transformações antrópicas do planeta e que seria identificado pela presença de elementos radioativos dispersos em toda a superfície terrestre em função de testes com bombas atômicas (Zalasiewicz et al., set. 2017, 2019).

O historiador Dipesh Chakrabarty (2009)CHAKRABARTY, Dipesh. The climate of history: four theses. Critical Inquiry, v.35, n.2, p.197-222, 2009. foi um dos primeiros a chamar a atenção para como esse problema tornava inviável a velha separação epistemológica entre ciências naturais e humanas. A crítica à cisão epistemológica entre os domínios da humanidade e natureza não era, obviamente, nenhuma novidade no campo das humanidades (ver, por exemplo, Plessner, 2018PLESSNER, Helmuth. Poder y naturaleza humana: ensayo para una antropología de la comprensión histórica del mundo. Madrid: Guillermo Escolar, 2018., publicado originalmente em 1931; Adorno, Horkeimer, 2006, publicado originalmente em 1947; Löwith, 1952LÖWITH, Karl. Nature, history, and existentialism. Social Research, v.19, n.1, p.79-94, 1952.; Deleuze; Guattari, 2011DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2011., publicado originalmente em 1980; Agamben, 2004AGAMBEN, Giorgio. The open: man and animal. Stanford: Stanford University Press, 2004.; Derrida, 2008DERRIDA, Jacques. The animal that therefore I am. Trad. David Wills. New York: Fordham University Press, 2008.; Latour, 2019a, 2019b), 3 3 Agradeço a Sérgio Ricardo da Mata pelas indicações dos trabalhos de Plessner e Löwith. A respeito do primeiro, ver também Mata (2020). mas o acúmulo de evidências sobre as imbricações entre história humana e planetária no campo da CST e da geologia foi uma oportunidade para reacender esse debate. O Antropoceno logo se tornou o centro das atenções de estudiosas e estudiosos da ciência e tecnologia (Latour, 2015LATOUR, Bruno. Telling friends from foes in the time of the Anthropocene. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.145-155., 2020aLATOUR, Bruno. Diante de Gaia: oito conferências sobre a natureza no Antropoceno. São Paulo: Ubu; Rio de Janeiro: Ateliê Editorial, 2020a., 2020bLATOUR, Bruno. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Trad. Marcela Vieira e Alyne Costa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020b.; Stengers, 2015STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015.; Haraway, 2016HARAWAY, Donna Jeanne. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.), de antropólogas e antropólogos simpáticos à “virada ontológica” (Descola, 2017DESCOLA, Philippe. ¿Humano, demasiado humano? Desacatos, n.54, p.16-27, 2017.; Povinelli, 2016POVINELLI, Elizabeth A. Geontologies: a requiem to late liberalism. Durham: Duke University Press, 2016.; Danowski, Castro, 2017; Cadena, Blaser, 2018; Tsing, 2022TSING, Anna Lowenhaupt. O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. Trad. Jorge Menna Barreto e Yudi Rafael. São Paulo: n-1 Edições, 2022.), de intelectuais de diversas origens interessadas e interessados em estudos animais, 4 4 Para uma síntese da discussão, ver Süssekind (2018). ou em “ontologias orientadas a objetos” (Morton, 2013MORTON, Timothy. Hyperobjects: philosophy and ecology after the end of the world. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2013.), sem esquecer os estudos das environmental humanities (ver, a esse respeito, Horn e Bergthaller, 2020HORN, Eva; BERGTHALLER, Hannes. The Anthropocene: key issues for the humanities. New York: Routledge, 2020.) e de outros campos. 5 5 É interessante notar que os estudos críticos de patrimônio também reagiram relativamente cedo às implicações das discussões sobre o Antropoceno para um campo tradicionalmente dividido entre “patrimônio natural” e “cultural” (ver, por exemplo, Harrison, 2013, 2015; Holtorf, 2015; Olsen, Pétursdóttir, 2016; DeSilvey, 2017).

As discussões sobre o Antropoceno se tornaram enfim um tópico recorrente e representado de maneira significativa pelas ciências humanas a partir de meados da década de 2010 (Alcântara et al., 2021ALCÂNTARA, Valderí Castro et al. Antropoceno: o campo de pesquisas e as controvérsias sobre a Era da Humanidade. Revista Gestão & Conexões, v.9, n.3, p.11-31, 2021.). Isso trouxe consigo diferentes posicionamentos críticos em relação à forma como a CST e a geologia vinham apresentando a ideia de Antropoceno. Poderíamos, provisoriamente, dividir essas críticas em função dos apagamentos que as narrativas produzidas pela CST e pela geologia produziram em termos de causações capitalistas (Roelvink, 2013ROELVINK, Gerda. Rethinking species-being in the Anthropocene. Rethinking Marxism, v.25, n.1, p.52-69, 2013.; Malm, Hornborg, 2014; Moore, 2020MOORE, Jason W. ¿Antropoceno o Capitaloceno? Sobre la naturaleza y los orígenes de nuestra crisis ecológica. In: Moore, Jason W. El capitalismo en la trama de la vida: ecología y acumulación capital. Madrid: Traficantes de Sueños, 2020. p.201-227.), causações patriarcais (Grusin, 2017GRUSIN, Richard A. (org.). Anthropocene feminism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017.; Stevens, Tait, Varney, 2018; Hache, 2018HACHE, Émilie. “Tremblez, tremblez, les sorcières sont de retour!”: Écrivaines, philosophes, activistes et sorcières écoféministes. In: Beau, Rémi; Larrère, Catherine (org.). Penser l’Anthropocène. Paris: Les Presses Sciences Po; Fondation de l’écologie politique, 2018. p.113-123.) e causações raciais ou coloniais (Povinelli, 2016POVINELLI, Elizabeth A. Geontologies: a requiem to late liberalism. Durham: Duke University Press, 2016.; Davis, Todd, 2017; Yusoff, 2018YUSOFF, Kathryn. A billion black Anthropocenes or none. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2018.; Gosh, 2021GOSH, Amitav. The nutmeg’s curse: parables for a planet in crisis. [S.l.]: Penguin, 2021.; Ferdinand, 2022FERDINAND, Malcom. Uma ecologia decolonial: pensar a partir do mundo caribenho. São Paulo: Ubu, 2022.). Algumas dessas críticas têm sido consideradas em obras recentes dos grupos mais diretamente relacionados às discussões sobre o Antropoceno nas CST (Steffen et al., 2020STEFFEN, Will et al. The emergence and evolution of Earth System Science. Nature Reviews Earth and Environment, v.1, n.1, p.54-63, 2020.) e na estratigrafia (Zalasiewicz et al., 2019ZALASIEWICZ, Jan et al. (org.). The Anthropocene as a geological time unit: a guide to the scientific evidence and current debate. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2019.), com o posicionamento comum de que o trabalho empírico e descritivo dessas ciências naturais não é invalidado pela explicação das causas humanas das transformações planetárias do presente, cuja competência seria das ciências sociais e humanidades.

A compreensão do metanível consequencial do Antropoceno pelas humanidades

Esse tema ganhou caráter mais programático em um artigo publicado recentemente pelo grupo ligado ao Grupo de Trabalho do Antropoceno (Zalasiewicz et al., 2021ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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). As autoras e os autores traçam uma distinção entre o conceito de Antropoceno como uma nova divisão potencial da escala de tempo geológico; como um conceito a partir da perspectiva da CST, isto é, como um “novo estado do sistema Terra”; e como um conjunto de abordagens emergentes em outras disciplinas.

No primeiro caso, tratar-se-ia apenas de descrever o fenômeno, o qual seria “importante por si próprio, independentemente de suas causas” (Zalasiewicz et al., 2021ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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, p.6), 6 6 Nessa e nas demais citações em inglês a tradução é livre. para fins de comparação com outros intervalos da escala de tempo geológico. Todavia, é importante lembrar que a proximidade temporal e o caráter inédito de uma unidade de tempo geológico associada à agência humana têm demandado novos métodos, formas de imaginação (Latour, 2020a) e mesmo gerado desconfiança no seio da própria comunidade geológica (Finney, Edwards, 2016).

A segunda abordagem, identificada com a emergência da CST na segunda metade do século XX, diria respeito à tradição de pensar a Terra como um sistema autopoiético (ver também Haraway, 2016HARAWAY, Donna Jeanne. Staying with the trouble: making kin in the Chthulucene. Durham: Duke University Press, 2016.). Essa definição estaria marcada pela preocupação com as transformações planetárias do presente, lançando mão de métodos inovadores de modelagem e produzindo uma virada paradigmática na ciência (Schellnhuber, 1999SCHELLNHUBER, Hans Joachim. “Earth system” analysis and the second Copernican revolution. Nature, v.402, n.S6761, p.C19-C23, 1999.; Hamilton, Grinevald, 2015; Latour, 2020a) ao mostrar que o sistema Terra pode sofrer transformações abruptas e inesperadas assim que um de seus “limites planetários” ( planetary boundaries ) (Rockström et al., 2009ROCKSTRÖM, Johan et al. Planetary boundaries: exploring the safe operating space for humanity. Ecology and Society, v.14, n.2, art.32, 2009.) seja forçado a um “ponto de não retorno” ( tipping point ) (Lenton, 2016LENTON, Tim. Earth system science: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2016.). Foram as descobertas de cientistas do sistema Terra ligadas e ligados à Nasa, ao IGBP e a outras instituições internacionais de pesquisa global posteriores (Hamilton, Grinevald, 2015; Steffen et al., 2020STEFFEN, Will et al. The emergence and evolution of Earth System Science. Nature Reviews Earth and Environment, v.1, n.1, p.54-63, 2020.) que mostraram que, com um grau de probabilidade muito alto, nós não estaríamos mais vivendo em condições análogas às do Holoceno, época geológica iniciada há aproximadamente 12 mil anos e cujas condições de habitabilidade são consideradas as responsáveis pela proliferação acelerada da espécie humana pelo planeta. Por outro lado, a estratigrafia também teria grande importância para a CST, pois ofereceria os elementos comparativos necessários para que ela pudesse chegar às suas atuais conclusões sobre a saúde do sistema planetário do qual fazemos parte.

O segmento mais importante do artigo de Zalasiewicz et al. (2021)ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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é dedicado a um uso mais alargado do conceito de Antropoceno, especialmente no campo das humanidades, das ciências sociais e das ciências ambientais. Em primeiro lugar, são destacadas as hipóteses segundo as quais o Antropoceno teria começado antes mesmo da Revolução Industrial. 7 7 As demais hipóteses de datação para o Antropoceno mencionadas no artigo referem-se aos seguintes marcos: desde o Pleistoceno tardio e início do Holoceno; em torno de 7.000 AP; entre 3.000 e 2.000 AP; e 1610, hipótese denominada Orbis spike por Lewis e Maslin (2015). Todas elas careceriam, no entanto, segundo as autoras e os autores, dos elementos de sincronicidade global demandados pela estratigrafia, o que não significa que não possam ter relevância antropológica, arqueológica ou pedológica.

Depois dessas ponderações, o artigo do grupo de Zalasiewicz trata da importância ampliada do conceito de Antropoceno, que também acabou tornando-se relevante para disciplinas como a ciência política, o direito internacional, a economia, o pensamento social, a filosofia e a história. Nesse ponto, oferece-se um instrutivo quadro sobre como as ciências humanas têm se posicionado a respeito do tema a partir de sua diversidade de perspectivas. Para os fins deste artigo, no entanto, basta ilustrar o modo como a recepção no campo da história é apresentada, pois é de um aspecto particular seu que as autoras e os autores derivam a sua proposição programática. Em primeiro lugar, a historiografia, 8 8 É necessário levar em conta, no entanto, que, “enquanto a maioria das historiadoras e dos historiadores continua pouco preocupada com o conceito de Antropoceno, alguns subgrupos – como as historiadoras e os historiadores ambientais, intelectuais, da economia e da ciência – têm tratado disso de maneira vigorosa se não consistente” (Zalasiewicz et al., 2021, p.14). diferentemente da estratigrafia e da CST, apresentaria uma “usual desconfiança” com relação a datações sincrônicas globais, adotando preferencialmente periodizações que variam de lugar para lugar. Em segundo lugar, o interesse pelo particular em detrimento do geral (a historiografia é tomada aqui, portanto, por sua feição mais historicista) levaria a disciplina a recusar qualquer tipo de generalização em relação ao conceito de “humanidade”. Finalmente, a atitude característica da historiografia, que as autoras e os autores estendem para as humanidades em geral, seria o fato de que essa disciplina resistiria ao impulso de definir “quando o Antropoceno começou”, preferindo, em vez disso, perguntar-se sobre “quando surgiram as atividades e ideias capazes de produzir o Antropoceno de meados do século XX” (Zalasiewicz et al., 2021ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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, p.14).

São justamente essas características que encontramos nas críticas mais contundentes e conhecidas direcionadas à apresentação narrativa das pesquisas da CST e da estratigrafia sobre o Antropoceno (por exemplo: Malm, Hornborg, 2014; Moore, 2020MOORE, Jason W. ¿Antropoceno o Capitaloceno? Sobre la naturaleza y los orígenes de nuestra crisis ecológica. In: Moore, Jason W. El capitalismo en la trama de la vida: ecología y acumulación capital. Madrid: Traficantes de Sueños, 2020. p.201-227., Bonneuil, Fressoz, 2017). Em vez de as rebater, Zalasiewcz et al. (2021) preferiram reconhecer sua legitimidade, propondo um arranjo que mais parece um acordo de paz e que consistiria em uma ciência abrangente do Antropoceno capaz de abrigar todas essas perspectivas disciplinares:

Em algumas dessas disciplinas, e em parte da literatura, a compreensão do conceito de Antropoceno divergiu amplamente dos conceitos da CST e geológicos (cronoestratigráficos). De acordo com alguns pontos de vista, eles refletem em graus variados a noção de que a abordagem científica pode ser excessivamente estreita e restritiva, e que as perspectivas e insights das ciências humanas e sociais devem estar na vanguarda da análise; tem sido argumentado a esse respeito que a caracterização científica do Antropoceno usando dados puramente quantitativos precisa ser complementada pela compreensão de como captura ‘interação humana, cultura, instituições e sociedades – de fato, o significado de ser humano’ ..., aqui denominado ‘metanível consequencial’ ... Embora isso possa parecer contrastar com a abordagem temporal, baseada em evidências, e planetária, seguida pelas comunidades geológicas e da CST, há clara sobreposição dessas duas esferas de atuação, e as análises do comportamento do Sistema Terrestre no Antropoceno podem se envolver intimamente com os aspectos sociotecnológicos do mundo (Zalasiewicz et al., 2021ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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, p.9; destaques meus).

Em artigo recente, Cristiano Arrais (2021)ARRAIS, Cristiano Alencar. Causalidade e intencionalidade: uma contribuição ao debate sobre dimensão explicativa da historiografia. História da Historiografia, v.14, n.36, p.73-102, 2021. propõe, justamente, retomar a discussão sobre causas, resultados e consequências na historiografia. Para o historiador, esse debate é fundamental para que, em tempos de negacionismos históricos, a historiografia possa contribuir para a responsabilização de atores sociais por injustiças históricas concretas. Sua perspectiva foge de uma postura hermenêutica, defendendo a autoridade propriamente explicativa da historiografia, de maneira que parece se encaixar muito bem no papel de “captura do metanível consequencial” que Zalasiewicz et al. (2021)ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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atribuem às ciências humanas. Para Arrais (2021ARRAIS, Cristiano Alencar. Causalidade e intencionalidade: uma contribuição ao debate sobre dimensão explicativa da historiografia. História da Historiografia, v.14, n.36, p.73-102, 2021., p.77), a historiografia possui caráter multidescritivo, o que lhe permite comportar “distintos modelamentos explicativos” em coexistência. É a perspectiva de quem narra uma dada experiência que permite a produção de enunciados lógicos capazes de atribuir uma dada intencionalidade a agentes históricos, algo que se tornaria explicável a partir das consequências acessíveis no momento em que o relato explicativo (historiográfico) é produzido. Trazendo essa discussão para o debate sobre o Antropoceno, isso significaria afirmar que a atribuição de causas capitalistas, coloniais ou patriarcais a essas transformações planetárias, ao mesmo tempo e por diferentes narradoras e narradores, não implicaria, necessariamente, uma contradição. Pelo contrário, é justamente essa particularidade do conhecimento histórico que permitiria a atribuição de causas distintas e não contraditórias a um mesmo evento, algo extremamente necessário quando se trata de explicar a emergência do mundo pós-holocênico, causado e sofrido de diferentes formas por distintos agentes, humanos e não humanos.

Acredito, no entanto, que esse modelo metodológico se mostra limitado quando se trata de ações, resultados e consequências dispersos nas escalas temporais e espaciais que se apresentam à reflexão historiográfica no pós-Holoceno. A “relação assimétrica entre representação e experiência” (Arrais, 2021ARRAIS, Cristiano Alencar. Causalidade e intencionalidade: uma contribuição ao debate sobre dimensão explicativa da historiografia. História da Historiografia, v.14, n.36, p.73-102, 2021., p.77-78) assume proporções até agora inimagináveis quando a história humana passa a ser percebida em seus entrecruzamentos com a história geológica do planeta. Os exemplos historiográficos de enunciados apresentados e criticados por Arrais, por meio dos quais uma intenção humana é deduzida da consequência de uma ação, não apontam para agência difusa que agora se apresenta como geo-histórica, ou seja, aquela que diz respeito a uma humanidade que tanto provoca a agência planetária quanto é por ela perpassada. A análise de alguns exemplos de trabalhos que se dedicaram a avaliar o papel das humanidades diante das novas condições do pós-Holoceno pode nos ajudar a perceber o papel ainda mais relevante que a historiografia tem a cumprir nesses novos tempos.

Algumas avaliações sobre os impactos do pós-Holoceno nas ciências humanas

Conforme os trabalhos sobre o(s) mundo(s) pós-holocênico(s) foram avolumando-se no campo das ciências humanas, também surgiu a necessidade de produzir revisões de caráter crítico ou programático que pudessem nos ajudar a nos orientar em meio a esse tumulto de vozes. Um caminho para isso tem sido a apresentação de sínteses sobre os impactos das discussões da CST e da estratigrafia nas diferentes disciplinas das ciências humanas, como fazem Zalasiewicz et al. (2021)ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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, mas também Clive Hamilton, Christophe Bonneuil e François Gemenne (2015) e Carolyne Merchant (2020)MERCHANT, Carolyn. The Anthropocene and the humanities: from climate change to a new age of sustainability. New Haven: Yale University Press, 2020.. Outra abordagem possível é a produção de uma divisão temática, com menos preocupação em relação a fronteiras disciplinares, a exemplo de Bonneuil (2015)BONNEUIL, Christophe. The geological turn: narratives of the Anthropocene. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. London; New York: Routledge, 2015. p.17-31., Fressoz (2015)FRESSOZ, Jean-Baptiste. Losing the Earth knowingly: six environmental grammars around 1800. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.70-84., Lorimer (2017)LORIMER, Jamie. The Anthropo-scene: A guide for the perplexed. Social Studies of Science, v.47, n.1, p.117-142, 2017. e Eva Horn e Hannes Berghtaller (2020). Por fim, existem trabalhos que buscam ir além da apresentação de um modelo de classificação ou outro, propondo novos métodos e conceitualizações diante dos problemas epistemológicos e ontológicos trazidos pelas evidências do Antropoceno. Esse é o caso de alguns trabalhos aqui já indicados, mas também de Hamilton (2015)HAMILTON, Clive. Human destiny in the Anthropocene. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.32-43., Alf Hornborg (2015)HORNBORG, Alf. The political ecology of the Technocene: uncovering ecologically unequal exchange in the world-system. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.57-69., Pierre Charbonnier (2017)CHARBONNIER, Pierre. A genealogy of the Anthropocene: The end of risk and limits. Annales. Histoire, Sciences Sociales, v.72, n.2, p.199-224, 2017. e Nigel Clark e Bronislaw Szerszynski (2021), entre outros. Meu foco, no entanto, será o estabelecimento de um diálogo com algumas dessas obras, uma vez que elas nos ajudam a refletir sobre até que ponto as ciências humanas poderiam se ocupar da análise do “metanível consequencial” do Antropoceno, conforme sugerido por Zalasiewicz et al. (2021)ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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Um trabalho de síntese e reflexão para o qual gostaria de chamar a atenção é a obra coletiva organizada por Hamilton, Bonneuil e Gemenne (2015). Esse livro reúne diferentes perspectivas com o propósito declarado de “iniciar o repensar das ciências sociais e humanas impulsionado pela chegada da ‘Era dos Humanos’, um apelido irônico, já que a modernidade supostamente foi a era do humanismo” (p.11). De certa forma antecipando a divisão proposta por Zalasiewicz et al. (2021)ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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, baseada em “três dimensões definicionais”, ou seja, a da estratigrafia, a da CST e a que pensa na dimensão humana do problema, os autores notam desde o princípio que as duas últimas dimensões exigem “mais investigações causais e sistêmicas” (Hamilton, Bonneuil, Gemenne, 2015, p.3).

Dentre as implicações trazidas pela necessidade de revisão do papel das ciências humanas, os autores destacam dois aspectos que se relacionam mais diretamente com o problema da causalidade. Em primeiro lugar, eles notam que, “em uma época em que ‘Gaia’ foi despertada, as concepções apenas sociais de autonomia, agência, liberdade e reflexividade que têm sido os pilares da modernidade desde o século XIX estão balançando” (Hamilton, Bonneuil, Gemenne, 2015, p.5). Em seguida, após tratarem dos impactos do Antropoceno para a filosofia e para a política, sobretudo em função da renovada crise dos limites epistêmicos e ontológicos das concepções modernas de natureza e sociedade, os autores ponderam que “não é apenas nossa capacidade de concordar e agir coletivamente que está em jogo. Agora há uma questão sobre nossa capacidade de tomar decisões sobre eventos que estão além da experiência humana” (p.11). Essas reflexões desde já nos indicam que a questão da imputação de intencionalidade às ações humanas não mais esbarra apenas na contingência e na irracionalidade. Trata-se, agora, de um tipo de agência que não é controlável pelo cálculo racional, embora seja em alguma medida antecipável pelos modelos produzidos pela CST, ou então pelos produzidos pelos diversos alertas ecológicos disparados desde a aurora do capitalismo industrial (Fressoz, 2015FRESSOZ, Jean-Baptiste. Losing the Earth knowingly: six environmental grammars around 1800. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.70-84.). Isso porque as ciências humanas precisam agora lidar com uma história cujos “sujeitos” não são apenas humanos, de modo que precisamos olhar para uma agência histórica que deriva de um caldeirão de perspectivas cuja reconstrução é muito mais complexa e para a qual o método compreensivo dificilmente nos habilitaria.

A primeira parte desse mesmo livro continua com outras perspectivas sobre o papel das humanidades diante das evidências do Antropoceno. Alguns desses capítulos também apresentam problemas que podemos relacionar ao tema da causalidade na historiografia. Para Christophe Bonneuil (2015BONNEUIL, Christophe. The geological turn: narratives of the Anthropocene. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. London; New York: Routledge, 2015. p.17-31., p.17), a forma como contamos histórias importa para o destino da Terra, pois a história de uma humanidade cujo télos é o desprendimento de determinações naturais foi o que atuou como “origem cultural” do Antropoceno. Independentemente da “dimensão definicional”, conforme escreveu no artigo anterior junto com Hamilton e Gemenne, falar sobre o Antropoceno é contar uma história, isto é, narrar. E isso incluiria: (1) atribuir valores para o estado de coisas no começo e no fim da história; (2) iluminar determinados atores e fenômenos enquanto outros são obscurecidos e silenciados; (3) domesticar a temporalidade por meio de sequências, marcos, transformações, linhas de força, enquanto outras são escondidas; e (4) “tudo isso constituindo uma dramaturgia de fatores causais, com lições morais implícitas ou explícitas” (p.17-18).

São justamente esses eixos de causalidade que confeririam o sentido para as quatro principais formas narrativas predominantes sobre o Antropoceno identificadas por Bonneuil: a naturalista, a da pós-natureza, a ecocatastrofista e a ecomarxista. O historiador admite a possibilidade de outras narrativas (como a ecofeminista e outras perspectivas subalternas e não ocidentais), pois, como vimos na seção anterior, a explicação histórica deveria admitir uma pluralidade de pontos de vista e de explicações igualmente consistentes. O que Bonneuil acrescenta ao debate é que essa necessidade de pluralização advém, sobretudo, do fato de que as narrativas sobre o Antropoceno possuem também um caráter performativo: “Elas barram ou promovem certos tipos de ação coletiva ao invés de outros, e assim fazem a diferença para o devir da Terra” (Bonneuil, 2015, p.30).

As características principais dessas quatro formas narrativas indicam como as diferentes relações entre causas, efeitos e consequências implicam diferentes sentidos para ação humana diante do Antropoceno. As narrativas da CST e da estratigrafia, chamadas de “naturalistas”, as quais são apontadas como a forma narrativa dominante ou mesmo como uma “metanarrativa do Antropoceno” (ver também Bonneuil, Fressoz, 2017), apresentariam um relato em que a humanidade como um todo seria a responsável pela alteração das condições planetárias devido a uma condição inata, isto é, o seu progressivo desenvolvimento tecnológico. As atividades humanas teriam resultado na transformação dos ciclos biofísicos planetários, e o novo estágio operatório do planeta seria uma “consequência involuntária” dessas ações. Para essa vertente narrativa, à qual poderíamos atribuir um caráter epopeico, a humanidade teria alcançado um novo estado de consciência e, portanto, de intencionalidade, graças ao desenvolvimento tecnológico e científico. A redenção da humanidade viria então por meio da tutela de cientistas do sistema Terra, os(as) quais deveriam enfrentar bravamente os anseios irracionais das disputas políticas – para uma discussão mais pormenorizada sobre essa “metanarrativa”, ver Lowande (2023b).

Um segundo tipo de metanarrativa, a “pós-natural”, abraçaria a ideia de “fim da natureza”. Essa perspectiva toma a consciência do Antropoceno como um estágio superior da intencionalidade humana, quando a humanidade teria superado sua incapacidade de compreensão das agências não humanas. O Antropoceno é então saudado, seja por representar o momento em que a separação humanidade/natureza é finalmente superada (Latour e Haraway, por exemplo) ou por indicar o ponto em que a humanidade teria se libertado totalmente dos grilhões naturais, tornando-se capaz de transformar e domar o próprio planeta graças ao seu poder geotecnológico (ecomodernismo). Como em uma comédia, portanto, a luta da humanidade contra a natureza não teria passado de um mal-entendido.

Um terceiro tipo de metanarrativa teria um caráter mais trágico: para os “ecocatastrofistas”, o projeto moderno de sociedade já teria nos conduzido a um “ponto de não retorno”, abandonando assim as concepções de linearidade histórica que teriam guiado as ações humanas até o momento e apontando para uma postura de adaptação local às consequências catastróficas do desenvolvimento tecnológico.

Finalmente, as narrativas “ecomarxistas” apontariam para um posicionamento irônico em relação às demais formas de constituição de sentido. Isso se deve ao fato de que todas elas esconderiam verdadeiras relações causais responsáveis pelas transformações planetárias cujo resultado é o Antropoceno: as relações de produção capitalistas.

Vemos, portanto, que o Antropoceno como “consequência” comporta, como Arrais (2021)ARRAIS, Cristiano Alencar. Causalidade e intencionalidade: uma contribuição ao debate sobre dimensão explicativa da historiografia. História da Historiografia, v.14, n.36, p.73-102, 2021. nos ajuda a prever, diferentes explicações históricas. No entanto, a amplitude dos resultados e de suas consequências traz problemas para o potencial de responsabilização dessas narrativas. Sua capacidade de identificar claramente a imputação de intencionalidade ou de agência tende a se perder na complexidade das relações causais relacionadas às transformações planetárias, ou então retoma temporalidades modernas (progresso ou revolução socialista, por exemplo) para as quais parece não haver mais tempo hábil. É certo que Bonneuil não propõe a análise tropológica que acrescentei. No entanto, foi interessante incluir esse elemento a fim de indicar como essas formas narrativas ensaiadas até o momento ainda estão presas a uma imaginação histórica de matriz europeia. 9 9 Para uma apresentação instrutiva dessas possibilidades narrativas, ver Mello (2010). Sobre os limites dessas formas de imaginação historiográfica para a representação do Antropoceno, ver Simon (2020).

Em outro capítulo desse livro, Clive Hamilton (2015)HAMILTON, Clive. Human destiny in the Anthropocene. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.32-43. apresenta aquilo que ele chama de “oito proposições retóricas sobre o Antropoceno”, em meio às quais também podemos encontrar indicações interessantes para o assunto que aqui nos interessa mais diretamente. A primeira de suas proposições já toca diretamente nos problemas de atribuição de agência de que trata este artigo: se a humanidade é uma “força geológica”, é a primeira vez que uma força desse tipo apresenta “elementos de volição”, expressando, portanto, vontade (p.32). Tratar-se-ia, desse modo, de nos dar conta de que uma das mais importantes forças geológicas do planeta é movida pelas vontades que se sobressaem em meio às disputas por poder entre os humanos, ao mesmo tempo que, poderíamos acrescentar, essa própria hegemonia foi conquistada a partir da apropriação do poder geológico planetário, a saber, as reservas energéticas estocadas por milhões de anos nas entranhas da Terra.

Esse elemento volitivo não se confunde, assim, com aquele que sustentou a crença modernista de que “os humanos fazem sua própria história”. Isso porque entre as intenções humanas e as consequências de alcance geológico que experimentamos no presente não há uma explicação possível que não passe pela historicidade imprevisível de agências não humanas. A verdadeira “dissonância experiencial” se dá, como prefere Chakrabarty (2015)CHAKRABARTY, Dipesh. The Anthropocene and the convergence of histories. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. London; New York: Routledge, 2015. p.44-56., na forma de uma fenda ou abismo ( rift ) entre a escala temporal humana, hoje ditada pelo neoliberalismo (Turin, 2019TURIN, Rodrigo. Tempos precários: aceleração, historicidade e semântica neoliberal. Rio de Janeiro: Zazie, 2019.), e a temporalidade incontrolável do sistema Terra. Segundo Hamilton (2015HAMILTON, Clive. Human destiny in the Anthropocene. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.32-43., p.35), “o ritmo do metabolismo do mercado é muito mais rápido que o do sistema Terra, mas no Antropoceno eles não operam mais independentemente”.

Com efeito, a “lei de ferro do progresso” (Hamilton, 2015HAMILTON, Clive. Human destiny in the Anthropocene. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.32-43., p.37) é geralmente responsabilizada por nos conduzir ao Antropoceno. As utopias progressistas, no entanto, remeteriam a uma temporalidade já rescindida entre as ações neoliberais e suas consequências planetárias. Não haveria mais tempo para os anseios humanistas de progresso ou de desenvolvimento. A retomada de um tempo hoje ocupado por neoliberais em sua miopia geo-histórica (graças ao poder que obtiveram por meio da extração violenta da herança energética planetária) é algo que, conforme já demonstraram os povos indígenas brasileiros, só poderia ser feito a partir de uma teoria insurrecional que contemple a mobilização de agentes humanos e não humanos. Embora Hamilton também sugira esse caminho insurrecional, é difícil para ele perceber, como demonstra em suas quatro últimas proposições, algum futuro possível a partir da tradição de pensamento que herdou do mundo europeu. Nesse ponto, nós, aqui, estamos muito mais bem servidos com tradições de reflexão rebelde ameríndias e afrodiaspóricas (Kopenawa, Albert, 2015; Santos, 2015SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI; UnB, 2015.; Krenak, 2019KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.; Ferreira, Felício, 2021; Ribeiro, 2021).

O capítulo desse livro escrito por Alf Hornborg (2015)HORNBORG, Alf. The political ecology of the Technocene: uncovering ecologically unequal exchange in the world-system. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.57-69. ainda nos permite tecer uma articulação importante com uma discussão que reapareceu com muita força nos últimos anos em outros trabalhos. Esse debate está ligado ao conceito de “tecnosfera”, conforme apresentado por Peter Haff em um artigo publicado em 2014 no periódico The Anthropocene Review , no qual convém nos deter por um momento.

A tecnosfera e a agência humana para além da intencionalidade dos indivíduos

Segundo Haff (2014HAFF, Peter. Humans and technology in the Anthropocene: six rules. The Anthropocene Review, v.1, n.2, p.1-11, 2014., p.2), a tecnosfera representaria um “novo estágio na evolução geológica da Terra”, estando diretamente relacionada ao Antropoceno. A tecnosfera incluiria

sistemas de extração de energia e recursos em grande escala do mundo, sistemas de geração e transmissão de energia, comunicação, transporte, redes financeiras e outras, governos e burocracias, cidades, fábricas, fazendas e uma infinidade de outros sistemas “construídos”, bem como todas as partes desses sistemas, incluindo computadores, janelas, tratores, memorandos de escritório e humanos. Também inclui sistemas que tradicionalmente consideramos sociais ou dominados por humanos, como instituições religiosas ou ONGs (Haff, 2014HAFF, Peter. Humans and technology in the Anthropocene: six rules. The Anthropocene Review, v.1, n.2, p.1-11, 2014., p.2).

A tecnologia de larga escala constituiria um fenômeno autônomo e independente da intencionalidade humana, o que, segundo Haff (2014HAFF, Peter. Humans and technology in the Anthropocene: six rules. The Anthropocene Review, v.1, n.2, p.1-11, 2014., p.2), “não significa que os humanos não possam influenciar seu comportamento, mas que a tecnosfera tenderá a resistir às tentativas de comprometer sua função”. Isso é algo especialmente interessante para a discussão proposta neste artigo.

Haff então apresenta quais seriam as demandas autônomas da tecnosfera, as quais são sintetizadas em seis regras aferidas da observação de seu funcionamento e amparadas numa perspectiva que considera diferentes escalas de análise. Um sistema só poderia se relacionar diretamente com outro sistema do mesmo Stratum , o que não ocorreria com sistemas relativamente muito pequenos ( Stratum I ), ou relativamente muito grandes ( Stratum III ), a não ser de maneira indireta (“regra da inacessibilidade”). Assim, por exemplo, um ser humano que tentasse movimentar uma célula de uma planta com sua mão sem o auxílio de um microscópio e de outros instrumentos acabaria movendo, inevitavelmente, todo o sistema de magnitude equivalente, isto é, suas folhas, caule ou raízes. Isso significa que um sistema Stratum II (o ser humano) só pode interagir diretamente com outro sistema Stratum II (folhas, caule ou raízes), não podendo acessar diretamente níveis muito menores ( Stratum I , a exemplo das células da planta) ou muito maiores ( Stratum III , a exemplo da biosfera), o que Haff chama de “regra da reciprocidade”. Isso provocaria uma distorção em nossa percepção do Antropoceno, que, em relação a nós ( Stratum II ), se apresentaria como um sistema Stratum III .

As outras regras que mediariam as relações dos humanos com a tecnosfera também implicariam uma agência incontrolável pela intencionalidade humana. Um sistema Stratum II seria composto de uma série de forças direcionadas a reforçar a organização de seus componentes Stratum I , o que caracterizaria a “regra da impotência” dessas partes em provocar transformações em seus estratos organizatórios superiores. Existiriam exceções a essa regra, pois é possível que partes sensíveis da rede de componentes de um sistema possam provocar problemas de funcionamento no todo (o caso dos “líderes” nos sistemas sociais humanos), conformando assim a “regra do controle”. Essas peças líderes, no entanto, também são fundamentais para a manutenção da ordem do sistema e serão recompensadas por isso. Além do mais, a liderança humana só é possível em sistemas dotados de regras relativamente simples, que podem ser manipuladas por essas lideranças, algo que não corresponderia à complexidade da tecnosfera ou do sistema Terra, por mais que ecomodernistas acreditem no contrário.

As regras da performance e da “provisão” reforçariam ainda mais a autonomia da tecnosfera em relação à agência humana. Se por um lado a tecnosfera depende das ações individuais que performamos cotidianamente para sua própria sobrevivência (gostemos disso ou não), por outro lado seria impossível pensarmos, hoje, na manutenção da vida humana, com sua população de oito bilhões de indivíduos em crescimento exponencial, sem o seu “ambiente”, isto é, a rede de produção e distribuição de recursos tecnológicos de que atualmente dispomos. Para Haff (2014)HAFF, Peter. Humans and technology in the Anthropocene: six rules. The Anthropocene Review, v.1, n.2, p.1-11, 2014., seria até possível tentar se isolar dessa tecnosfera (como o fazem os eremitas), mas o custo advindo dessa decisão tornaria essa opção pouco atraente para a maioria dos indivíduos do sistema. Por outro lado, a criação de novas necessidades humanas é rapidamente provida pela tecnosfera, ao mesmo tempo que essa provisão corresponde a nossa contribuição para seu desenvolvimento e sua ampliação. Ao contrário do que creem os ecomodernistas, no entanto, não há evidências de que seja ilimitada a capacidade de expansão acelerada da tecnosfera com o suporte na atividade dos subsistemas humanos e não humanos dos quais depende.

A hipótese de Haff chamou a atenção de pesquisadores do campo das ciências humanas. Alf Hornborg (2015)HORNBORG, Alf. The political ecology of the Technocene: uncovering ecologically unequal exchange in the world-system. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.57-69., por exemplo, propôs que em vez de “Antropoceno” falemos em “Tecnoceno”. Mas, para ele, são o capitalismo e a distribuição desigual de recursos energéticos e de poder que ele proporciona aquilo que configura a própria condição de existência da tecnosfera. Os efeitos nocivos dessa distribuição tecnológica baseada na expropriação poderiam ser combatidos por meio da adoção de um sistema de valores orientado para trocas mais igualitárias e associadas à vitalidade do sistema Terra. Se a existência de uma tecnosfera global desautoriza falarmos em uma agência histórica como prerrogativa humana, Hornborg, por outro lado, não abandona a distinção analítica entre sociedade e natureza, pois é ela que permite compreender em que medida a expansão desenfreada da tecnosfera é um produto das relações de produção desiguais que caracterizam o capitalismo. Pensar o desenvolvimento tecnológico como fruto apenas da inventividade humana seria, assim, desconsiderar sua principal condição de existência, ou seja, a expropriação material proporcionada, inicialmente, pela espoliação de territórios e pelo trabalho escravo. Nesse ponto, a historiografia adquiriria uma competência explicativa não acessível às ciências naturais, pois “fenômenos como visões de mundo, relações de propriedade e estruturas de poder são fenômenos sociais [que] estão além dos horizontes da ciência natural, porque requerem ferramentas analíticas que os cientistas naturais não possuem” (p.62). A perspectiva naturalista não seria suficiente, portanto, para desmitificar a agência global da tecnologia, a qual, localmente, parece agir por meio de um caráter “mágico” reforçado pelas narrativas naturalistas. Essa mágica não resistiria a uma análise macrossocial atenta às relações de poder que ocultam o funcionamento tecnológico da percepção local: “Em vez de sonhar com soluções tecnológicas avançadas para problemas de sustentabilidade ecológica, reconheceríamos as tecnologias mais modernas como estratégias sociais para ‘deslocar’ problemas (trabalho e cargas ambientais) para áreas onde o trabalho e a degradação ambiental são mais baratos” (p.65).

Desde então, o tema da tecnosfera tem sido revisitado nas ciências humanas de uma maneira que parece oscilar entre a posição de Haff e a de Hornborg no que diz respeito à intencionalidade humana. Bronislaw Szerszynski (2016)SZERSZYNSKI, Bronislaw. Viewing the technosphere in an interplanetary light. The Anthropocene Review, v.4, n.2, p.1-11, 2016., por exemplo, acredita que as narrativas naturalistas sobre a tecnosfera partem de uma perspectiva enviesada e pouco criativa, pois entendem a história terrestre como um processo evolutivo linear com projeções universais cujo ápice seria o atual estágio de complexidade da tecnosfera. Szerszynski propõe que uma “planetologia especulativa” aliada a uma leitura contraintuitiva da história da Terra pode ajudar a pensar em relações menos lineares entre os animais humanos e os artefatos tecnológicos. Embora o autor não admita a existência de algum tipo de lei universal a guiar de forma determinística a evolução de planetas para formas tecnosféricas, seu argumento aponta para uma tendência de desacoplamento de seus determinantes metazoicos (ou seja, um funcionamento dependente das formas animais preexistentes, especialmente as humanas) para formas mais fúngicas ou rizomáticas. Desse modo, a humanidade poderia até mesmo se tornar um componente supérfluo para esse sistema planetário dotado de agência própria, caso ele venha a evoluir a ponto de superar seus limites planetários. No entanto, conforme lembra o próprio Szerszynski, não existem evidências na ciência dos exoplanetas que apontem para essa possibilidade, sobretudo considerando que nenhuma outra tecnosfera fora da Terra até hoje se desenvolveu a ponto de nos dar a conhecer sua própria existência.

Em outro livro, Zalasiewicz (2018)ZALASIEWICZ, Jan. The unbearable burden of the technosphere. The Unesco Courier, v.70, n.2, p.15-17, 2018. também apresenta o conceito de tecnosfera proposto por Haff. Para Zalasiewicz, a tecnosfera tem coevoluido com a humanidade desde os tempos pré-modernos, adquirindo a atual feição parasítica e aparentemente incontrolável em função da proliferação de novidades tecnológicas que teriam se tornado indispensáveis para a sobrevivência coletiva da espécie no presente. O autor também não acredita que a tecnosfera possa evoluir para formas mais “sustentáveis” justamente em função dessa codependência historicamente produzida. No entanto, Zalasiewicz aparentemente não considera as diferentes objeções colocadas por Hornborg ou por Szerszynski à teoria de Haff. Do ponto de vista da estratigrafia, o mais interessante parece ser imaginar o fato de que os “objetos tecnológicos, incluindo telefones celulares, podem ser considerados tecnofósseis geologicamente, porque são constructos biologicamente produzidos robustos e resistentes à decomposição”, sendo que, para o geólogo, esses objetos “formarão os futuros fósseis que caracterizarão os estratos do Antropoceno” (Zalasiewicz, 2018, p.16).

Eva Horn e Hannes Bergthaller (2020) também analisaram esse problema numa obra em que propõem mapear os principais desafios epistemológicos do conceito de Antropoceno para as ciências humanas. É importante notar que Horn é coautora do trabalho em que Zalasiewicz et al. (2021)ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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propõem uma divisão de atribuições entre a CST, a estratigrafia e as ciências humanas. Nesse trabalho mais abrangente, Horn e Bergthaller (2020HORN, Eva; BERGTHALLER, Hannes. The Anthropocene: key issues for the humanities. New York: Routledge, 2020., p.11) partem de uma abordagem ontológica do Antropoceno cuja “concepção de agência apaga a distinção entre ação intencional, dotada de propósito e eficácia causal”.

Isso aparece de forma direta na diferenciação entre a agência humana como Homo sapiens e como Anthropos , inspirada em Chakrabarty. Essa distinção se refere a uma humanidade que é uma espécie social e cultural ( Homo ), mas também, ao mesmo tempo, uma espécie biológica e dotada de força geológica ( Anthropos ). Focalizar uma dimensão e negligenciar a outra, como estaria sendo feito no grosso da literatura sobre o Antropoceno, seria não perceber a centralidade da “colisão” entre essas duas facetas da humanidade para a compreensão do fenômeno geológico que estamos vivenciando no presente. Pensar a humanidade como Homo permitiria, com efeito, a responsabilização dos culpados pela emergência do Antropoceno, sejam eles “o capitalismo, a modernidade ou o pensamento ocidental” (Horn, Bergthaller, 2020, p.12). Isso poderia ser feito por meio, justamente, da historicização da “consciência epocal” representada pelo conceito de Antropoceno (ver também Charbonnier, 2017CHARBONNIER, Pierre. A genealogy of the Anthropocene: The end of risk and limits. Annales. Histoire, Sciences Sociales, v.72, n.2, p.199-224, 2017.), embora isso não seja apontado como o objetivo do livro. Por outro lado, tomar a humanidade como Anthropos traria a possibilidade de compreender a “dissociação entre intenção e efeito” que ocorreria não “porque as pessoas falham em refletir adequadamente sobre o que estão fazendo, mas pelo imenso acúmulo de ações individuais” (p.74). Isso significaria que a força geológica da humanidade seria uma “consequência não prevista” da história das relações de poder e de seus resultados, inviabilizando, portanto, uma narrativa historiográfica em que o acesso às consequências nos ajudaria a explicar as causas ou motivações e seus resultados. Essa é, portanto, uma postura que resguarda certo “excepcionalismo humano” (ver também Hamilton, 2017HAMILTON, Clive. Defiant Earth: the fate of humans in the Anthropocene. Cambridge, UK; Polity, 2017.), o qual procura evitar tanto os excessos da vertente ecomodernista, que aposta tudo na intencionalidade humana, quanto os da vertente pós-humanista, que dissolveria a agência humana em uma ontologia plana (como aquela proposta pela teoria do ator-rede), inviabilizando, portanto, qualquer forma de responsabilização.

Também para Horn e Bergthaller (2020HORN, Eva; BERGTHALLER, Hannes. The Anthropocene: key issues for the humanities. New York: Routledge, 2020., p.80), a emergência da tecnosfera como um dos componentes mais ativos do sistema Terra atuando na transformação do planeta demonstra “a disjunção entre ações individuais e os efeitos não intencionais e cumulativos” que elas provocam. Novamente, não há aqui uma cadeia causal que conduza diretamente das ações individuais a suas consequências globais, mas processos de tradução entre o que os humanos fazem em suas histórias de diferenciações e conflitos ( Stratum II ) e a constituição de um sistema mais abrangente ( Stratum III ), a tecnosfera, a respeito do qual sua ação é, retomando as ideias de Haff, bastante limitada. Narrar as relações entre as ações humanas e suas consequências demanda agora a consideração de escalas espaciais e temporais em que a ideia de “intencionalidade”, conforme delineada pela epistemologia das ciências humanas herdada do século XIX, se não se perde, ao menos se transforma demandando a revisão dos marcos epistemológicos, éticos e estéticos da atividade historiográfica. A ideia de tecnosfera nos coloca diante, portanto, de um “sujeito do Antropoceno” que é uma “composição’ [ assemblage ] concreta de pessoas, infraestruturas, formas de consumo, economias e regimes energéticos” (Horn, Bergthaller, 2020, p.80), e cuja “escalabilidade” planetária (ver também Tsing, 2022TSING, Anna Lowenhaupt. O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. Trad. Jorge Menna Barreto e Yudi Rafael. São Paulo: n-1 Edições, 2022.) só pode ser considerada se levarmos em conta uma agência derivada de um composto de humanos, técnicas e atores não humanos (Horn, Bergthaller, 2020, p.150).

O pluralismo ontológico e as novas formas de acesso à complexidade planetária em suas imbricações com as ações humanas

Ainda é possível, no entanto, acrescentar um pouco mais de complexidade a essa discussão, como o demonstram Nigel Clark e Bronislaw Szerszynski (2021) a partir da perspectiva de um “pensamento social planetário”. Segundo eles, as ciências humanas precisam considerar com seriedade aquilo que denominam “multiplicidade planetária”, isto é, uma qualidade do planeta Terra (e de outros planetas) de adquirir diferentes feições ao longo de sua existência. O momento atual, em que a Terra está passando por mais uma de suas mudanças de “estado operacional”, coincide com a contestação da autoridade de seus antigos porta-vozes por outros/as/es representantes das “multidões terranas” ( earthly multitudes ), as quais são capazes de responder de diferentes maneiras à multiplicidade planetária da Terra. O problema da agência histórica se desdobra, portanto, na relação entre uma “mutabilidade inerente da Terra”, por um lado, e “uma maneira compartilhada de responder aos desafios levantados pela mutabilidade da Terra e as oportunidades abertas pela auto-ordenação e variação planetária” (p.9). Assim, os problemas da agência histórica, da intencionalidade e da causalidade se deslocam para um campo ainda por se conhecer. Ou, como preferem Clark e Szerszynski (2021CLARK, Nigel; SZERSZYNSKI, Bronislaw. Planetary social thought: the Anthropocene challenge to the social sciences. Cambridge, UK: Polity Press, 2021., p.10): “Perguntar-nos como, quando, em que grau diferentes tipos de seres sociais uniram forças com diferentes formações geológicas ou fluxos geofísicos, estamos sugerindo, é lançar um vislumbre de luz sobre a questão sobre para quais outros poderes da Terra ainda podemos nos voltar ou retornar”.

Uma forma de ampliar a pertinência da historiografia no pós-Holoceno é, portanto, pensar em que medida podemos não apenas historicizar o Antropoceno, mas, igualmente, como “geologizar” a história. E isso significa, como sugerem Clark e Szerszynski (2021)CLARK, Nigel; SZERSZYNSKI, Bronislaw. Planetary social thought: the Anthropocene challenge to the social sciences. Cambridge, UK: Polity Press, 2021., não apenas ampliar as escalas temporais e espaciais de nossos relatos, mas dar visibilidade à infinidade de agenciamentos de diferentes poderes planetários por povos, comunidades ou coletivos que viveram ou vivem, e bem, fora, ou em resistência, aos excessos do Capitaloceno (Moore, 2020MOORE, Jason W. ¿Antropoceno o Capitaloceno? Sobre la naturaleza y los orígenes de nuestra crisis ecológica. In: Moore, Jason W. El capitalismo en la trama de la vida: ecología y acumulación capital. Madrid: Traficantes de Sueños, 2020. p.201-227.) ou do Tecnoceno (Hornborg, 2015HORNBORG, Alf. The political ecology of the Technocene: uncovering ecologically unequal exchange in the world-system. In: Hamilton, Clive; Bonneuil, Christophe; Gemenne, François (org.). The Anthropocene and the global environmental crisis. New York: Routledge, 2015. p.57-69.). Tratar-se-ia, portanto, de pensar a historiografia, a partir de agora, como a ciência e a arte da comunicação de heranças cosmológicas que nos permitam ampliar nossos horizontes em relação ao que significa agenciar e ser agenciado pela historicidade planetária, isto é, por sua incessante capacidade de diferenciação. Isso também implica a ampliação ou transformação das infraestruturas e técnicas de produção de conhecimento historiográfico, de modo que este seja um campo de diálogo do qual tomam parte experiências e corpos sincronizados à temporalidade planetária, ela própria tendo sido historicamente alienada da disciplina histórica.

Não é possível, todavia, reorientar a matriz disciplinar da ciência da história partindo somente das considerações apresentadas ao longo deste artigo. Quando Jörn Rüsen (2001)RÜSEN, Jörn. Razão histórica, teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UnB, 2001. propôs uma “meta-história” voltada para essa finalidade, isso foi precedido por um “estudo comparativo de culturas históricas e histórias da historiografia” (Caldas, 2008CALDAS, Pedro Spinola Pereira. A arquitetura da teoria: o complemento da trilogia de Jörn Rüsen. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais, v.5, n.1, p.1-9, 2008., p.2). Seu empreendimento foi limitado, no entanto, por uma ideia de “objetividade construtiva” da história que tinha como horizonte a “humanidade como comunidade universal de comunicação” (Rüsen, 2001RÜSEN, Jörn. Razão histórica, teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: Editora UnB, 2001., p.143). A ideia de pluralismo cultural que embasou suas formulações não chegou a ultrapassar, portanto, a perspectiva ontológica da modernidade europeia fundada na distinção entre humanidade e natureza. Assim, a proposição teórica de uma nova pragmática historiográfica, mais bem adaptada ao atual regime planetário, demandaria, em primeiro lugar, um estudo aprofundado das formas extramodernas ou contracoloniais de dar sentido à experiência do passado. A isso seria necessário somar elaborações teóricas e conceituais produzidas colaborativamente a partir de perspectivas ontológicas ou cosmológicas diversas a fim de evitar um retorno a formas colonizadoras de narrativas históricas. 10 10 A ideia de uma prática de teorização colaborativa, inspirada nas discussões teóricas da história pública, me foi generosamente apresentada pela primeira vez, em comunicação pessoal, por Rodrigo Turin. Os eventuais equívocos na sua formulação escrita são, no entanto, de minha inteira responsabilidade.

No campo da antropologia, essa discussão foi muito bem encaminhada por Mauro Almeida (2021)ALMEIDA, Mauro W.B. Anarquismo ontológico e verdade no Antropoceno. In: Almeida, Mauro W.B. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo: Ubu, 2021., que considera perfeitamente possível admitir as posições do consenso científico e, ao mesmo tempo, a autonomia ontológica de povos que vivem uma multiplicidade de mundos irredutíveis entre si. Segundo ele, “trata-se de justificar o acordo entre ciências ‘globais’ e ciências ‘locais’ sem englobar metafísicas locais como variações de metafísicas globais” (p.312; destaques no original). Essa proposta se justificaria pelo fato de que a experiência pragmática não invalida a multiplicidade ontológica, metafísica ou cosmológica, algo que podemos verificar, por exemplo, na coincidência de diagnósticos relativos às transformações planetárias globais do presente a partir de perspectivas ontoepistemológicas radicalmente distintas (Capiberibe, 2019CAPIBERIBE, Artionka. Um interminável Brasil colônia: os povos indígenas e um outro desenvolvimento. Maloca: Revista de Estudos Indígenas, v.1, n.1, p.53-77, 2019., referindo-se a Davi Kopenawa). Desse modo, também é possível produzir respostas mais eficazes às ontologias negacionistas, visto que essas se encontram fora do campo desses acordos ontológicos pragmáticos em torno do real (sobre a negação do aquecimento global e do Antropoceno, ver Edwards, 2010EDWARDS, Paul N. A vast machine: computer models, climate data, and the politics of global warming. Cambridge: MIT Press, 2010.; Danowski, 2018DANOWSKI, Déborah. Negacionismos. São Paulo: n-1 Edições, 2018.; Oreskes, Conway, 2019; Latour, 2020a, 2020b; Mirowski, 2020MIROWSKI, Philip. Democracy, expertise and the post-truth era: an inquiry into the contemporary politics of STS. Bloomington: Indiana University, 2020. Disponível em: https://www.academia.edu/42682483/Democracy_Expertise_and_the_Post_Truth_Era_An_Inquiry_into_the_Contemporary_Politics_of_STS. Acesso em: 14 fev. 2022.
https://www.academia.edu/42682483/Democr...
; Shapin, 2020SHAPIN, Steven. É verdade que estamos vivendo uma crise da verdade? Revista Brasileira de História da Ciência, v.13, n.2, p.308-319, 2020.; Costa, 2021COSTA, Alyne de Castro. Da verdade inconveniente à suficiente: cosmopolíticas do Antropoceno. Cognitio-Estudos: Revista Eletrônica de Filosofia, v.18, n.1, p.37-49, 2021.). Tratar-se-ia, nesse caso, menos de um conflito relativista entre diferentes pontos de vista e mais de uma “guerra ontológica” entre metafísicas autojustificáveis (ou “más metafísicas”) e ontologias amparadas na experiência. 11 11 Por isso a própria “convocação de Gaia” (Stengers, 2015; Latour, 2020a), por exemplo, não poderia ser considerada idônea, porque, de um ponto de vista etnológico, “Gaia não é consenso científico aceitável por todos os juízes de boa fé” (Almeida, 2021, p.315). Esse esforço de guerra se faz urgente porque a verdade pragmática da negação ontológica é o próprio genocídio, o qual deveria tocar a todos nós, seja por simples empatia ou pela percepção de que isso também implica o extermínio de heranças cosmológicas indispensáveis para a composição de futuros planetários justos e habitáveis. Isso porque as ontologias das “multidões terranas” são as ontologias das “ressurgências”, isto é, da “proliferação de novos entes sociais e biológicos a partir dos escombros das guerras coloniais e da destruição capitalista de paisagens” (Almeida, 2021ALMEIDA, Mauro W.B. Anarquismo ontológico e verdade no Antropoceno. In: Almeida, Mauro W.B. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo: Ubu, 2021., p.324; ver também Tsing, 2022TSING, Anna Lowenhaupt. O cogumelo no fim do mundo: sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. Trad. Jorge Menna Barreto e Yudi Rafael. São Paulo: n-1 Edições, 2022.).

No entanto, essa “virada pragmática” como complemento necessário à “virada ontológica” na antropologia parece, na visão de Almeida (2021ALMEIDA, Mauro W.B. Anarquismo ontológico e verdade no Antropoceno. In: Almeida, Mauro W.B. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo: Ubu, 2021., p.316), lançar a historiografia a uma posição de ciência auxiliar: “A antropologia, como disciplina digna do nome de ciência, deve reconhecer autoconstituição de povos e, ao mesmo tempo, incorporar a evidência científica – histórica, arqueológica e paleontológica – que confirme pragmaticamente essa existência no tempo e no território”. A meu ver, no entanto, o que está em jogo é uma ontopolítica para a qual a temporalidade é um elemento-chave, importando menos se manteremos ou não os nomes europeus de “antropologia” ou “historiografia” para a mobilização criativa das heranças ontoepistemológicas e das experiências que nos municiem para as guerras ontológicas do presente. Como nos lembra Rodrigo Turin (2022TURIN, Rodrigo. A “catástrofe cósmica” do presente: alguns desafios do Antropoceno para a consciência histórica contemporânea. In: Müller, Angélica; Legelski, Francine (org.). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2022. Disponível em: https://www.academia.edu/70916662/A_cat%C3%A1strofe_c%C3%B3smica_do_presente_alguns_desafios_do_Antropoceno_para_a_consci%C3%AAncia_hist%C3%B3rica_contempor%C3%A2nea. Acesso em: 15 fev. 2022.
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, p.8), “o Antropoceno também é um problema histórico, pois aponta – de modo inédito – para as condições de possibilidade de qualquer história possível. E suas repercussões se estendem tanto ao futuro, como ao passado”. Ainda segundo o historiador, a experiência do Antropoceno também tem forçado um progressivo abandono das categorias explicativas herdadas da história disciplinar, pois,

sob uma certa fascinação diante do inaudito, do absolutamente novo, do sem precedentes, acabam sendo invisibilizadas experiências históricas que ainda nos dizem respeito – ou, melhor, que dizem respeito mais a certos grupos do que a outros – e que tendem a ter implicações políticas fundamentais em um futuro próximo, com o agravamento da crise climática (Turin, 2022TURIN, Rodrigo. A “catástrofe cósmica” do presente: alguns desafios do Antropoceno para a consciência histórica contemporânea. In: Müller, Angélica; Legelski, Francine (org.). História do tempo presente: mutações e reflexões. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2022. Disponível em: https://www.academia.edu/70916662/A_cat%C3%A1strofe_c%C3%B3smica_do_presente_alguns_desafios_do_Antropoceno_para_a_consci%C3%AAncia_hist%C3%B3rica_contempor%C3%A2nea. Acesso em: 15 fev. 2022.
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, p.11).

Desse modo, historiografia e antropologia podem convergir em novas maneiras de habitar o problema das formas pós-holocênicas de existir no planeta. Como demonstrou Guilherme Bianchi (2019)BIANCHI, Guilherme. Arquivo histórico e diferença indígena: repensando os outros da imaginação histórica ocidental. Revista de Teoria da História, v.22, n.2, p.264-296, 2019., a historiografia e a antropologia também podem compor verdades pragmáticas a partir de provocações cosmológicas que são estranhas a ambas, como, por exemplo, a constatação de que as próprias categorias de passado, presente e futuro podem ser insuficientes para “explicar” a experiência de comunidades ameríndias que, se são estranhas ao tempo acelerado da historicidade da modernidade, do Capitaloceno ou do Tecnoceno, não o são, no entanto, para a mobilização bem-sucedida dos poderes planetários no que diz respeito a habitar mundos que se transformam radicalmente (ver também Danowski, Castro, 2017). É esse tipo de olhar que pode nos ajudar a entender como lidar com as heranças destrutivas da colonização e do capitalismo, pois certas formas de isolamento (Castro, 2019CASTRO, Eduardo Viveiros de. Brasil, país do futuro do pretérito. São Paulo: n-1 Edições, 2019.) ou de “hackeamento” da tecnosfera (Comitê Invisível, 2015COMITÊ INVISÍVEL. Aos nossos amigos. [S.l.]: Guide Artes Gráficas, 2015.) demandam percepções da experiência não disponíveis nos modelos explicativos ou compreensivos herdados da historiografia moderna.

Considerações finais

Este artigo procurou demonstrar que as ciências humanas são hoje impelidas a se posicionar sobre os problemas de intencionalidade, causalidade e responsabilidade que inevitavelmente emergem das investigações da ciência do sistema Terra sobre o Antropoceno.

Uma tendência identificada a partir da interpretação de alguns desses trabalhos aponta para uma descontinuidade entre as ações intencionais humanas e suas consequências planetárias. A ideia da existência de uma “tecnosfera” como um nível sistêmico produzido pelas atividades humanas, mas dificilmente acessível a nossa compreensão, tende a reforçar ainda mais essa posição.

Outra tendência nos mostra, no entanto, que essa incapacidade de comunicação com as escalas planetárias de existência se deve muito mais às próprias limitações da imaginação ontológica moderna. Entre os povos que poderíamos então chamar de “extramodernos”, isto é, aqueles que não são condicionados pelos limites das formas naturalistas (ou “ocidentais”) de imaginação ontológica, podemos encontrar tradições antigas e não alienadas de compreensão e agenciamento das potencialidades planetárias.

Avançando de maneira inconclusiva o que foi apresentado até aqui, poder-se-ia afirmar que as discussões produzidas a partir dos campos da etnologia e do próprio pensamento ameríndio e afrodiaspórico nos indicam que essas diferentes formas de compreensão e agenciamento se devem à relação diferenciada que esses povos guardam com seus “territórios”. Esses territórios, que não são tomados como simples fontes de “recursos” por coletividades não transformadas em “povo da mercadoria” (Kopenawa, Albert, 2015), podem ser pensados como uma espécie de stratum intermediário entre nossa vida imediata e o sistema Terra. É o território como forma de pertencimento que se apresenta como chave para reverter a alienação representada na “inacessibilidade”, só existente para a ontologia naturalista, entre o nosso corpo e o sistema Terra. Essa é uma temática recorrente nas interpretações histórico-(cosmo)políticas de intelectuais como Antônio Bispo dos Santos (2015)SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI; UnB, 2015., Davi Kopenawa (2015), Ailton Krenak (2019)KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019., Joelson Ferreira e Erahsto Felício (2021), por exemplo. Esses trabalhos nos apresentam o que eu chamaria de um “privilégio epistêmico” dos povos que resistem à imposição da ontologia não só naturalista, mas principalmente colonialista. Esse privilégio é fruto, como o notaram antes Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro (2017), de séculos de existência em meio à resistência desses povos ao violentíssimo processo de expansão colonial.

A história da historiografia poderia contribuir, portanto, com o inventariamento dessas formas “contracoloniais”, como diria Antônio Bispo dos Santos (2015)SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos: modos e significações. Brasília: INCTI; UnB, 2015., de dar sentido a nossas relações com as potencialidades planetárias. Uma teoria produzida a partir desse levantamento, e em diálogo com as produtoras e os produtores dessas formas de conceitualização, poderia nos orientar para uma vida responsável diante das agências planetárias ignoradas pela ontologia colonial. Desse modo, a história da historiografia poderia contribuir para a superação dos problemas de causa e consequência no pós-Holoceno atrelados às ações humanas que Zalasiewicz et al. (2021)ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
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reconhecem, acertadamente, como não sendo de competência da estratigrafia ou da ciência do sistema Terra.

AGRADECIMENTOS

Este trabalho deriva de pesquisa de pós-doutorado realizada junto ao Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, sob a atenciosa supervisão do professor doutor Rodrigo Turin, a quem agradeço as sugestões sem as quais o presente artigo não teria se concretizado. Também agradeço à Universidade Federal de Alfenas-MG, pela concessão de afastamento para a produção dessa pesquisa, bem como aos(às) colegas do curso de licenciatura em história e do Programa de Pós-graduação em História Ibérica da mesma instituição pela compreensão e colaboração. Por fim, agradeço aos(às) pareceristas anônimos(as) responsáveis pela avaliação do artigo, pois suas indicações foram fundamentais para torná-lo mais claro e preciso.

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NOTAS

  • 1
    Optei por usar o substantivo “pós-Holoceno” e seus derivados, pois, independentemente da forma como o presente planetário seja denominado, é inegável que vivemos em condições não análogas às do Holoceno. Com isso, espero adotar uma posição mais aberta à diversidade de formas de nomear esse período, que não são necessariamente excludentes entre si, sem correr o risco de me comprometer precipitadamente com nenhuma delas em específico. As outras formas específicas de nomeação do presente planetário (Antropoceno, Capitaloceno etc.) serão utilizadas para demarcar os posicionamentos explicativos aos quais dizem respeito.
  • 2
    Para informações mais detalhadas sobre a constituição do Grupo de Trabalho do Antropoceno, ver Lowande (2023a).
  • 3
    Agradeço a Sérgio Ricardo da Mata pelas indicações dos trabalhos de Plessner e Löwith. A respeito do primeiro, ver também Mata (2020).
  • 4
    Para uma síntese da discussão, ver Süssekind (2018)SÜSSEKIND, Felipe. Sobre a vida multiespécie. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, n.69, p.159-178, 2018..
  • 5
    É interessante notar que os estudos críticos de patrimônio também reagiram relativamente cedo às implicações das discussões sobre o Antropoceno para um campo tradicionalmente dividido entre “patrimônio natural” e “cultural” (ver, por exemplo, Harrison, 2013HARRISON, Rodney. Heritage: critical approaches. New York: Routledge, 2013., 2015HARRISON, Rodney. Beyond “natural” and “cultural” heritage: toward an ontological politics of heritage in the age of Anthropocene. Heritage & Society, v.8, n.1, p.24-42, 2015.; Holtorf, 2015HOLTORF, Cornelius. Averting loss aversion in cultural heritage. International Journal of Heritage Studies, v.21, n.4, p.405-421, 2015.; Olsen, Pétursdóttir, 2016; DeSilvey, 2017DESILVEY, Caitlin. Curated decay: heritage beyond saving. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2017.).
  • 6
    Nessa e nas demais citações em inglês a tradução é livre.
  • 7
    As demais hipóteses de datação para o Antropoceno mencionadas no artigo referem-se aos seguintes marcos: desde o Pleistoceno tardio e início do Holoceno; em torno de 7.000 AP; entre 3.000 e 2.000 AP; e 1610, hipótese denominada Orbis spike por Lewis e Maslin (2015)LEWIS, Simon L.; MASLIN, Mark A. Defining the Anthropocene. Nature, v.519, n.7542, p.171-180, 2015..
  • 8
    É necessário levar em conta, no entanto, que, “enquanto a maioria das historiadoras e dos historiadores continua pouco preocupada com o conceito de Antropoceno, alguns subgrupos – como as historiadoras e os historiadores ambientais, intelectuais, da economia e da ciência – têm tratado disso de maneira vigorosa se não consistente” (Zalasiewicz et al., 2021ZALASIEWICZ, Jan et al. The Anthropocene: comparing its meaning in geology (chronostratigraphy) with conceptual approaches arising in other disciplines. Earth’s Future, v.9, n.3, 2021. Disponível em: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1029/2020EF001896. Acesso em: 25 jan. 2022.
    https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1...
    , p.14).
  • 9
    Para uma apresentação instrutiva dessas possibilidades narrativas, ver Mello (2010)MELLO, Ricardo Marques de. Teoria do discurso historiográfico de Hayden White: uma introdução. Revista Opsis, v.8, n.11, p.120-145, 2010.. Sobre os limites dessas formas de imaginação historiográfica para a representação do Antropoceno, ver Simon (2020)SIMON, Zoltán Boldizsár. The limits of Anthropocene narratives. European Journal of Social Theory, v.23, n.2, p.184-199, 2020..
  • 10
    A ideia de uma prática de teorização colaborativa, inspirada nas discussões teóricas da história pública, me foi generosamente apresentada pela primeira vez, em comunicação pessoal, por Rodrigo Turin. Os eventuais equívocos na sua formulação escrita são, no entanto, de minha inteira responsabilidade.
  • 11
    Por isso a própria “convocação de Gaia” (Stengers, 2015STENGERS, Isabelle. No tempo das catástrofes: resistir à barbárie que se aproxima. São Paulo: Cosac Naify, 2015.; Latour, 2020a), por exemplo, não poderia ser considerada idônea, porque, de um ponto de vista etnológico, “Gaia não é consenso científico aceitável por todos os juízes de boa fé” (Almeida, 2021ALMEIDA, Mauro W.B. Anarquismo ontológico e verdade no Antropoceno. In: Almeida, Mauro W.B. Caipora e outros conflitos ontológicos. São Paulo: Ubu, 2021., p.315).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Maio 2022
  • Aceito
    18 Dez 2022
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