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OLIVA, Margarida. O Diabo no “Reino de Deus”: por que proliferam as seitas?. São Paulo: Musa, 1997. 175 p.

OLIVA, Margarida. O Diabo no “Reino de Deus”: por que proliferam as seitas?. 1997. São Paulo: Musa, 175

Trata-se de um trabalho que contribui de modo significativo para urna maior compreensão do fenômeno Igreja Universal do Reino de Deus, na medida em que a preocupação da autora está centrada na elucidação de aspectos pertinentes ao fato religioso em si, enquanto sintoma que se manifesta em decorrência da realidade social brasileira.

A autora inicialmente questiona: qual é o conteúdo e a natureza da fé que responde ao apelo da IURD? De onde vem o dinamismo dessa nova seita? Há na sua mensagem algo que encontra ressonância no mais profundo da religiosidade popular? Questões importantes, principalmente se buscamos compreender as razões da receptividade da IURD no âmbito da religiosidade popular, religiosidade esta que está gerando, no campo religioso nacional, reações, principalmente dos católicos carismáticos ao avanço dos evangélicos. Avanço este, sem dúvida, comandado pelo fenômeno Igreja Universal do Reino de Deus.

Demonismo e exorcismo parecem se constituir como elementos propiciadores da difusão e do desenvolvimento da Universal. É a partir da concepção girardiana (René Girard) da violência presente no sagrado, do desejo mimético, do processo vitimatório, que a autora encontra instrumental teórico para visualizar e compreender a ênfase que a Universal dá à ação demoníaca e à prática do exorcismo. Segundo Oliva: “A ação diabólica e exorcismo são sintomas do pensamento religioso primitivo ainda predominante na humanidade e constituem a nosso ver o principio determinante do fenômeno iurdiano” (p. 19).

A proliferação das seitas no campo religioso nacional, e não somente neste, para Margarida Oliva, traduz-se no “sintoma de uma realidade mascarada”. A desigualdade social constitui a fonte geradora do retorno do pensamento religioso primitivo, caracterizado pelo demonismo e prática do exorcismo e da conseqüente proliferação das seitas. Nas palavras da autora: “O fosso cada vez maior que separa largas parcelas da humanidade da pequena minoria que usufrui das conquistas do fazer humano evoca o caos das origens, a violência desenfreada. Descasca o verniz da civilização e traz à tona o pensamento religioso primitivo – cujo caldo de cultura é a violência – mantido vivo sob as tintas da civilização cristã ocidental” (p. 21).

Oliva apresenta um retrato da Igreja Universal do Reino de Deus, tal como a conhece em São Paulo, retrato este que nos permite perceber a uniformização e a padronização das ações dos seus pastores e dirigentes, no sentido de serem utilizadas as mesmas estratégias de comunicação, possibilitando as mesmas reações dos fiéis seja em São Paulo ou em qualquer outro lugar. Oliva indica que: “A atitude do pastor, de modo geral, e a de animador de auditório. Dependendo dos dotes pessoais, os pastores estabelecem, uns mais outros menos, uma comunicação ativa com a assembléia” (p. 35). Há, portanto, um “esquema básico” das reuniões e cultos que visa as mesmas reações por parte dos adeptos.

A partir da leitura deste livro de Margarida Oliva, da forma como retrata a IURD, seus ritos, mitos, regras e reuniões, que se desenvolvem em “função do diabo, do seu exorcismo e do sacrifício (dízimo e ofertas espontâneas)”, podemos perceber nessa igreja a presença de um mecanismo de manipulação pela utilização de estratégia de comunicação de massa. Essa manipulação comunicacional, em nosso entendimento, traz à baila emoções. Observando as reuniões de “Corrente da Libertação”, Oliva constata que: “são verdadeiros psicodramas, de fato o rito do exorcismo – como encenação do mito – mobiliza as energias mais profundas e pode ter o efeito de catarse coletiva” (p. 48). De fato, em se tratando da Universal a presença da ação demoníaca, da libertação, do exorcismo é uma constante em todas as correntes, sendo que na “Corrente da Libertação” estes aspectos são predominantes.

Justamente o objetivo da autora é compreender a “importância do elemento nuclear da IURD: a ação diabólica e o exorcismo” reportando-se às raízes da mentalidade religiosa brasileira.

Com relação à cultura religiosa brasileira, a questão pertinente que se faz a autora é: “será que o problema de fundo não está na natureza do catolicismo brasileiro? Tentando responder ao seu questionamento menciona três fontes constituintes dos vários tipos de catolicismo brasileiro: européias, africanas e ameríndias.

Para a autora, alguns elementos do catolicismo medieval encontram-se ainda presentes “nas camadas populares analfabetas e semi-analfabetas que constituem a maioria da população brasileira”. Estes elementos são: “fascínio pelo milagre; o gosto das promessas; procissões e romarias; penitencialismo e a benção que retira o objeto do domínio do interdito e o recupera para uso benéfico” (p. 63).

Outro aspecto significativo que a autora detecta é a “doença do desenraizamento”, bloqueadora do amadurecimento da consciência coletiva. Este desenraizamento encontra-se em relação direta com o sentimento de não-pertencimento, marcante no processo de exclusão social, a que são submetidos os indivíduos, principalmente dos segmentos subalternos da população brasileira. A pergunta que a análise de Margarida Oliva nos possibilita realizar é: como desenvolver-se-á a consciência coletiva se a realidade social, desde a colonização propicia a exclusão, o desenraizamento? O individualismo exacerbado não teria neste fator espaço social propício para a sua difusão?

Oliva percebe existir uma “mentalidade primitiva, arcaica, que ainda predomina na alma brasileira” (p. 66), o religioso, o mágico constituir-se-ia como “base do sentir e do pensar da maioria do povo”. Predominam ainda: “dependência e submissão total a um poder transcendente e dispensador de todo o bem e de todo o mal; a manipulação ritual para atrair a proteção e esconjurar a desgraça; predominância da lógica do sentir sobre a lógica da razão” (p. 66-67).

Estabelece Oliva uma relação de interdependência entre vivência social e o imaginário religioso, no sentido de ser a vida em sociedade, também em nosso entendimento constituinte do universo simbólico de representações religiosas.

Trabalha também com o conceito cunhado por André Droogers de “religiosidade mínima brasileira”, conceito este que, para a autora, constitui-se no mínimo denominador comum constituindo a identidade religiosa brasileira, para consumo de massa, que permite o trânsito fácil entre as diversas religiões, seitas e outras expressões de religiosidade (p. 71). Este conceito de religiosidade mínima brasileira direciona para “um estágio de consciência fronteiriço ao do pensamento religioso primitivo, imerso no temor do sagrado, indeciso entre a magia e a religião”. Resgata a autora os traços característicos da religiosidade popular, a saber: atitude de dependência, privatização da religião, gregarismo e necessidade de sinais concretos.

Constrói também a autora em seu trabalho, uma breve história do diabo, demonstrando a sua evolução no imaginário popular. Assim ao abordar a ação diabólica e o exorcismo, constata que encontra-se na criatura humana a própria essência da ação diabólica, uma vez que o homem seria então “o principio, o meio e o fim da ação diabólica” (p. 105), na medida em que são os nossos sentimentos humanos que “permitem” e “concebem” a intervenção do diabo. É significativo o que nos diz Oliva: “A atividade do espírito maligno adapta-se ao ‘espirito da época’. O diabo depende inteiramente do contexto social para se manifestar numa pessoa e se manifesta segundo a cultura, os costumes, as crenças do meio social” (p. 108).

Abordando a possessão, estabelece que algumas condições são necessárias para a sua manifestação. De forma resumida, as condições seriam as seguintes: crença na realidade de um poder ou poderes sobrenaturais; crença que os poderes sobrenaturais podem influenciar os negócios humanos e serem diretamente influenciados por agentes humanos; apoio social de algum tipo; clima de instabilidade social.

Outro aspecto destacado pela autora, estabelecendo a dimensão social do diabo e seus demônios, é que o alvo de sua atividade destruidora é a própria destruição das relações humanas e na ordem em nome de Jesus Cristo.

Na parte intitulada “Na Aurora dos Tempos”, a consciência primitiva tem a regência das emoções que “predomina em largas camadas da população e aflora facilmente nas concentrações de massa” (p. 131).

A autora procura demonstrar que a IURD “se funda sobre os elementos religiosos mais primitivos” (p. 57), adaptados sob aspectos modernos. Para a autora, com a qual concordamos a força de atração, a receptividade da IURD, está justamente na “adoção” do sagrado primitivo, ambivalente, detentor do poder mais pleno sobre a vida humana.

O livro que procuramos apresentar é significativo pelas questões que suscita e pelo resgate que faz da concepção girardiana que encontra no sagrado a violência intestina que acompanha o homem em toda a sua história. Este resgate da relação de interdependência entre a violência e o sagrado é altamente positivo e instigante, ainda mais quando encontramos no fenômeno religioso Igreja Universal do Reino de Deus, como nos demonstra Margarida Oliva, o desenvolvimento das formas arcaicas do religioso.

Abordar a IURD através da concepção girardiana nos permite enriquecer a compreensão acerca deste fenômeno religioso. René Girard é um autor que suscita questionamentos e que de forma alguma pode ter desconsiderado o valor da profundidade de sua abordagem sobre a violência e o sagrado e, Margarida Oliva o resgata brilhantemente em sua abordagem, o que faz do presente livro uma leitura importante para todos os estudiosos da religião.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jun 1998
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