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Apresentação

Apresentação

Se o século XIX foi embalado sobremaneira por um tempo de emergência do processo de industrialização no contexto ocidental moderno e marcado pela acirrada divisão internacional das lógicas de produção do capital, o século XX nos empresta a dimensão de um tempo de consolidação do capitalismo como ordem mundial dos fatores ideológicos e políticos que dinamizaram as lógicas desenvolvimentistas e determinaram as formas da vida social nos Estados-nação.

O valor-trabalho foi, nessas conjunturas, o sistema de disposição de valores predominante na materialização do trajeto humano, orientando os modos de organizações econômicas, de instituições de mercado e de comportamentos de consumo de impacto mundial. Realidade social esta construtora de uma cultura do trabalho no movimento de processos que se radicaram: a industrialização, a proletarização, a mecanização, a urbanização e, no rastro, o que o sociólogo alemão George Simmel definiu por tragédia da cultura, para sintetizar as complexidades que essa estrutura econômica - que perpassou os tempos modernos aos tempos contemporâneos - nos revela: contradições, paradoxos, conflitos e injustiças, muitas injustiças. Não nos surpreende, portanto, que uma especialidade no campo de estudos sociais definida por antropologia do trabalho e dos trabalhadores, e de forma bastante participativa no Brasil, se tornou uma área de reflexão de enorme responsabilidade científica e política de interpretação das complexidades que encerram os fenômenos relacionados à cultura do trabalho, das práticas e dos saberes de ofícios, dos agenciamentos profissionais, das trajetórias laborais, das redes de trocas sociais, e, em seu bojo, o compromisso de compreender os impactos gerados por estruturas econômicas contraditórias, modos de dominação econômicas opressivos, gerenciamentos do trabalho assimétricos, distribuição da produção de forma desigual e discriminatória seja no mundo rural, seja no mundo urbano.

Marshall Sahlins, um eminente antropólogo americano que nos legou uma emérita reflexão crítica sobre o reducionismo utilitário da cultura, qualificando a razão simbólica ou significativa do empreendimento humano, nos lançou um desafio analítico sobre as complexidades das estruturas de longa duração e, não raro, idealizadas por instituições de poder e de interesse de exploração econômica naturalizadas como permanentes. Assim, a naturalização do capitalismo em suas múltiplas faces de dominação (liberal, neoliberal, etc.) se dispõe como sistêmica e normatizada. Justamente para desvendar essa trama, importa reconhecer as estruturas das conjunturas trazendo a indagação sobre "como as categorias culturais se atualizam num contexto específico por meio da ação interessada dos agentes históricos e da pragmática de sua interação".1 1 Marshall Sahlins, Cultura na prática, Rio de Janeiro: UFRJ, 2004, p. 366. Podemos então, à luz deste desafio, perguntar sobre a pluralidade e multiplicidade de formas e lógicas que o trabalho, como ação da vida humana, opera no século XXI. Podemos sugerir que as dialéticas dos eventos em torno do valor-trabalho, simbolicamente constituídas e concretamente vividas pelos trabalhadores, nos entusiasma a conjugar estudos antropológicos com potencial para interpretar essas inteligibilidades históricas, sociais e culturais em suas disposições éticas e morais.

Estamos convencidos que os estudos etnográficos no campo interpretativo da teoria antropológica têm justamente este potencial de desnaturalizar a cultura do trabalho como uma determinação estrutural presa às amarras do capitalismo mundial, de programas globais e desenvolvimentista, liberais e neoliberais. Quais são as descontinuidades lógicas, as inteligibilidades práticas, as microações criativas em cada ato de trabalho nas diversas esferas da vida social? A pergunta é pretensiosa e é justamente dessas armadilhas semânticas que queremos nos afastar, não por temer a simplificação e a generalização, mas porque almejamos construir um debate aberto, não conclusivo, mas sem dúvida crítico das experiências plurais que colocam a categoria trabalho em alto relevo.

Para compor um estado da arte de estudos recentes trazemos 14 artigos que aspiramos representativos das dinâmicas temporais em diversos contextos "periféricos" das estruturas dominantes, como no Brasil, no Chile, na Argentina e no México.

Iniciamos nosso dossiê com o estudo de Areli Escobar Salazar que tem por título "Las fábricas de la charla en Chile: apuntes preliminares sobre la materialidade y la subjetividad del trabajo en los call centers". A partir de questões-chave como a nova divisão global do trabalho, mudanças no processo produtivo, especializações nas atividades profissionais, a autora vislumbra a organização do trabalho e da subjetividade laboral dos trabalhadores de call centers, empresas de serviços que surgem nos anos 1990 no Chile. Assinala aos leitores tratar-se de um processo estrutural em crise, quando mais não seja da crise dos modelos de exploração econômica do fordismo e do taylorismo, modelos dominantes de organização do trabalho, aspectos problematizados a partir do estudo de caso junto a trabalhadores nesse contexto.

O próximo artigo é intitulado "Fazer a feira e ser feirante: a construção cotidiana do trabalho em mercados de rua no contexto urbano", da antropóloga Viviane Vedana. Na perspectiva de uma antropologia dos e com os trabalhadores a autora interpreta as narrativas e ações laborais de uma central de abastecimento em uma capital brasileira do Sul do país, Porto Alegre. Tomando essa cidade como objeto temporal a autora nos apresenta, a partir de um exercício etnográfico, as práticas cotidianas como o resultado da sistematização de um conjunto de saberes e experiências construídas no dia a dia do mercado pelos trabalhadores entrevistados.

Maria Leticia Mazzucchi Ferreira, historiadora e antropóloga, é a autora do próximo artigo, intitulado "Os fios da memória: Fábrica Rheingantz entre passado, presente e patrimônio". Dessa vez somos convidados a compartilhar do trabalho da tessitura da memória em um cenário fabril. Ambientado na cidade de Rio Grande (RS), a empresa de vocação fabril é mote de tempos de produção industrial e de criação de uma comunidade identificada com essa atividade. Crises econômicas, entre outras questões, levam ao fechamento da indústria, e a autora estuda junto a ex-trabalhadores os processos de mudança que os impactaram com conflitos e embaraços na vida cotidiana: o desemprego, a dívida, a ameaça da perda da habitação operária e mais, as démarches de transformação do espaço fabril em patrimônio industrial.

Na esteira de reflexão das transformações de indústrias tradicionais como a de exploração mineral, segue o artigo de María Fernanda Hughes, intitulado "Re-estructuración capitalista: precariedad laboral y resistencia. La protesta de los mineros del cobre en Chile". Após os anos de chumbo que determinaram transformações na estrutura econômica dos países latino-americanos, a autora relata essa realidade para o caso chileno, organizando essa notícia em termos históricos e sociológicos. Transmite, em seguida, a sua experiência de campo junto a trabalhadores chilenos do cobre em El Teniente, submetidos na atualidade organizacional aos processos de subcontratação ou terceirização, bem como às novas formas de estruturas sindicais.

É também dedicado à relação sindical de trabalhadores de atividades tradicionais o próximo artigo. Em "Trabalho e ação coletiva: memória, espaço e identidades sociais na Cidade do Aço", Marco Aurélio Santana e Massimiliano Mollona analisam as formas pelas quais militantes dos movimentos sindical e popular constroem suas memórias acerca das mobilizações experimentadas no município de Volta Redonda (RJ) nas décadas de 1980 e 1990, verificando as representações de cidade que perpassam esse trabalho de memória.

Lenin Pires nos traz em seguida o artigo sob o título "Entre notas e moedas: trocas e circulação de valores entre negociantes em Constitución". O estudo antropológico sobre as práticas comerciais se desenrola em um bairro situado ao sul da cidade de Buenos Aires. Em sua reflexão sobre a articulação entre distintos valores - materiais, morais, éticos e estéticos - na construção de lógicas intrínsecas à circulação de bens e pessoas, não está ausente o reconhecimento do processo de produção etnográfica, contextualizando o campo interpretativo desse processo de circulação de práticas e valores monetários. É também de Buenos Aires que advém o próximo relato etnográfico sobre os trabalhadores. Mariano D. Perelman nos apresenta o artigo "Trabajar en los trenes. La venta ambulante en la ciudad de Buenos Aires", que trata da atividade de trabalhadores informais, em que desvenda um mundo econômico singular de regras e lógicas próprias apreendidas na representação desses trabalhadores.

É do México que lemos o próximo relato de pesquisa. Alejandra Navarro Smith contribui com o trabalho intitulado "Pescadores cucapá contemporáneos: investigación y video colaborativo en un escenario de conflicto". Adentramos agora a perspectiva da ambientalização dos conflitos e da pesquisa com imagens, tão cara aos organizadores deste dossiê. Trata-se de uma investigação levada a termo junto aos pescadores indígenas cucapá que clamam pelo direito a essa atividade tradicional em reserva protegida. Conhecemos no artigo a organização operada pela comunidade por seus direitos de trabalho bem como a atuação da antropóloga visual em um projeto de colaboração educacional.

O mundo rural brasileiro, em especial os trabalhadores em contextos rurais e moradores seja no campo, seja em cidades de pequeno porte de vocação rural, é representado neste número pelo artigo de Verena Sevá Nogueira, intitulado "Trabalho assalariado e campesinato: uma etnografia com famílias camponesas". O trabalho sazonal ritma a vida de trabalhadores no município de Aracatu (BA). É em torno da cultura do café que homens e mulheres se deslocam em condições migratórias investigadas etnograficamente pela autora, que investe nas condições de trabalho, na organização familiar, nas dinâmicas produtivas e reprodutivas desses trabalhadores mantendo um atento diálogo com a bibliografia privilegiadamente brasileira que construiu escola interpretativa sobre o tema.

Margarete Fagundes Nunes, Magna Lima Magalhães e Ana Luiza Carvalho da Rocha são as autoras do próximo artigo apresentado intitulado "Trabalho negro, memória negra no Vale do Sinos (RS): narrativa etnobiográfica de Vó Nair". É na voz desta trabalhadora negra, do alto dos seus 94 anos, que partilhamos o relato de sua trajetória de "escrava de estimação" à benzedeira, configurando seu processo vivido no mundo do trabalho livre ao longo de sua vida de mulher adulta e casada. As autoras traçam os paradoxos e dilemas dessa trajetória em uma ambiência citadina de imigração alemã, em Novo Hamburgo, cidade gaúcha brasileira que se consolidou na economia do couro e calçados.

O trabalho da memória dos antigos habitantes da região missioneira gaúcha também é o legado que testemunha o artigo "Memórias de trabalho nas paisagens missioneiras do 'antes-tempo'", do antropólogo Flávio Leonel Abreu da Silveira. Fruto de um trabalho etnográfico nas paisagens de São Miguel (RS), as ações técnico-culturais relacionadas ao universo do trabalho são narradas pelos interlocutores mergulhados em inteligibilidades imaginárias e cosmográficas.

Os grandes projetos desenvolvimentistas promovem a construção de infraestruturas de toda ordem, novas estradas, novas casas, novas instituições, e no Brasil, como mostra o romance Jorge, um brasileiro, escrito pelo mineiro Oswaldo França Jr. e publicado em 1967, essas travessias e esforços nômades conformam os arranjos da vida social de uma importante parcela de trabalhadores do país. Tendo como metanarrativa o citado romance, André Dumans Guedes compõe em "Na estrada e na lama com Jorge, um brasileiro. Trabalho e moradia nas fronteiras do desenvolvimento", um diálogo por um lado com sua pesquisa etnográfica desenvolvida no norte de Goiás junto a garimpeiros atingidos por barragens e junto a trabalhadores de hidrelétricas, mineradoras e empreiteiras e, por outro lado, com os estudos sociais que analisam e interpretam a condição de trabalho na construção de grandes projetos desenvolvimentistas em que se movem peões, corridos e paus-de-arara: deslocamentos de trabalhadores, fluxo de experiências, encruzilhada de múltiplos sentidos.

Coletores de lixo atuam em diversos níveis de tarefas, práticas e saberes. Nessa complexidade de atuação como tratar de um conceito que marcou de forma contundente a teoria histórico-estrutural, a alienação? Santiago Bachiller desconstrói esse conceito em "El verdadero fantasma es el trabajo no cuestionado. Analizando etnográficamente al concepto de alienación", partilhando de sua experiência de campo que teve lugar em Comodoro Rivadavia, uma cidade na Patagônia argentina.

Finalizamos nosso dossiê com o artigo de Luciana Gonçalves de Carvalho, intitulado "Relações de trabalho nos balatais do Pará", estado ao norte do Brasil. Parte de um estudo etnográfico empreendido junto a trabalhadores extrativistas do látex, uma atividade em desuso pelo desvalor do produto-base. Mas velhos balateiros de Monte Alegre, Almeirim e Alenquer são no presente motivados a narrar essas trajetórias laborais estetizando em suas memórias as experiências vividas desse saber-fazer.

O Espaço Aberto dá continuidade ao reconhecimento de uma produção intelectual no campo antropológico frutífero tendo as condições de vida da classe trabalhadora como foco interpretativo de fundação. A antropóloga argentina Andrea Roca revisita o livro O vapor do diabo, publicado originalmente em 1976 como resultado da dissertação de mestrado do professor do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o antropólogo brasileiro José Sergio Leite Lopes. Em artigo intitulado "A tradução de uma etnografia por uma antropóloga. O caso de O vapor do diabo", a autora homenageia essa obra central na formação de aprendizes e pesquisadores de antropologia motivados ao estudo sobre o trabalho, da cultura operária e da reprodução da classe trabalhadora, temas que consolidaram a linha de pesquisa dos estudos antropológicos da classe trabalhadora no Brasil.

Em seguida trazemos neste Espaço privilegiado de divulgação de trajetórias intelectuais a entrevista de José Sergio Leite Lopes com Moacir Palmeira, professor de antropologia no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mesclando a linha de pesquisa da antropologia dos trabalhadores rurais com a linha de antropologia política, o protagonista dos estudos dos "tempos da política" recebe este oportuno tributo que coloca em destaque, em seu depoimento, os seus estudos que trataram das transformações contemporâneas da plantation açucareira no Nordeste brasileiro e das mobilizações camponesas na segunda metade do século XX e, mais recentemente, seus estudos antropológicos sobre os assentamentos de reforma agrária no Brasil.

Para a capa deste número ousamos repetir uma das imagens mais recorrentes ao longo do século XX para representar uma crítica ao capitalismo, ao individualismo moderno, à alienação no trabalho. Charles Chaplin em Tempos modernos se confunde com as engrenagens que simbolizam as formas de dominação nos processos produtivos da classe proletária. A força dessas alegorias, desse filme clássico, da atuação de Chaplin, dessas engrenagens que rodam sem parar dramatizam os ritmos temporais que repercutem nos tempos contemporâneos grávidos de novas questões, novos problemas, novos dilemas, mas, da mesma forma, encompassados de paradoxos, contradições e conflitos que ambientalizam a vida de trabalhadores na condição presente em suas crises e tragédias. Problemas sociais que seguem a nos desafiar, a cada exercício etnográfico, ao relato franco e ao debate aberto.

Cornelia Eckert

Ana Luiza Carvalho da Rocha

José Sergio Leite Lopes

  • 1
    Marshall Sahlins,
    Cultura na prática, Rio de Janeiro: UFRJ, 2004, p. 366.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jul 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2013
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