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Incorporando a mestiçagem: a fraude branca nas comissões de heteroidentificação racial

Incorporating miscegenation: White fraud in heteroidentification committees

Resumo

A partir de uma pesquisa de mestrado realizada com a Comissão de Aferição da Autodeclaração Étnico-Racial da Universidade Federal da Bahia (UFBA), este texto busca refletir sobre a fraude branca no sistema de cotas raciais que, na experiência de heteroidentificação racial, faz um corpo mestiço-negro. Esse fazer corporal, por meio da manipulação estética, é compreendido dentro do dispositivo da mestiçagem, e definido como um conjunto de técnicas discursivo-corporais, materialmente complementar ao mito da democracia racial. Dois outros fenômenos cruzam essa questão: o crescimento populacional negro no Brasil e a ampliação das políticas afirmativas destinadas a esse grupo. Mais pessoas estão denominando-se negras e, consequentemente, reivindicando acesso às cotas. Dessa forma, o problema do branco fraudador está sendo pensando, neste texto, em paralelo àqueles comumente apontados como “negros de pele clara” ou “pardos”: pessoas que se tornaram negras são as mesmas que fazem um corpo mestiço-negro para acessar as cotas?

Palavras-chave:
fraude; mestiçagem; negros de pele clara; políticas afirmativas

Abstract

Based on a master's research featuring the Ethnic-racial Self-declaration Assessment Committee of Bahia Federal University (UFBA), this paper aims to ponder over the white fraud in the racial quota system, which fabricates a mixed-black body in the context of racial heteroidentification. Such corporal fabrication, carried out through aesthetic manipulation, is comprehended within the miscegenation dispositive and defined as a set of corporal-discursive techniques materially complementary to racial democracy discourse. Two other phenomena intersect this question: the increasing number of black people in Brazil and the widening of affirmative actions targeting such group. As more people identify themselves as black, the access demand to quota system gets bigger. Thus, the white fraud issue is being addressed, in this paper, in parallel of those usually referred to as “light-skinned black” or “pardo (mixed)”: are the people who became black the same ones who fabricate a mixed-black body to have access to quota?

Keywords:
fraud; miscegenation; light-skinned black people; affirmative actions

Introdução

As políticas afirmativas, criadas num contexto de reconhecimento do racismo, por parte do Estado, e das identidades étnico-raciais para além da brasilidade, marcam um momento decisivo do que Ângela Figueiredo (2005FIGUEIREDO, A. Carta de uma ex-mulata à Judith Butler. Periódicus, [s. l.], n. 3, v. 1, p. 152-169, maio/out. 2005., p. 156) vai chamar de “desarticulação da celebração da mestiçagem”. Essa desarticulação, segundo a autora, se dá a partir da década de 1970, momento em que se conforma o “uso de termos identitários branco-negro1 1 Existe uma longa discussão quanto ao dualismo dessas categorias; uma das mais importantes se refere ao apagamento dos indígenas dentro dessa relação. Sobre isso, reproduzo um trecho de Véran (2010, p. 28) a respeito de um movimento nascido no Amazonas, o Nação Mestiça, e que toca diretamente nesse problema: “Fosse negro um mero agregado estatístico, não teria havido equívocos e conflitos. Mas diante da indissociação entre cor, origem e cultura, os caboclos tornaram-se invisíveis. Mais uma vez, como veremos, a questão não é meramente existencial: quando direitos fundamentais são definidos na base da identidade étnica, aceitar a invisibilidade é um suicídio político. Consequentemente, tornar o caboclo visível vai ser uma das preocupações centrais do Nação Mestiça.” no modelo político bipolar” (Figueiredo, 2005FIGUEIREDO, A. Carta de uma ex-mulata à Judith Butler. Periódicus, [s. l.], n. 3, v. 1, p. 152-169, maio/out. 2005., p. 156). Schwartzman (2009)SCHWARTZMAN, L. F. Seeing like citizens: unofficial understandings of official racial categories in a Brazilian university. Journal of Latin American Studies, Cambridge, n. 41, p. 221-250, 2009., ao falar sobre a implementação das cotas raciais na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), primeira universidade brasileira a adotar essa reserva de vagas, coloca tal “ação política” como parte de um “novo projeto racial”,2 2 Winant (1992 apudSchwartzman, 2009, p. 224-225, tradução minha), define esse novo projeto como: “[…] Simultaneamente, uma explicação da dinâmica racial e um esforço para reorganizar a estrutura social ao longo de linhas raciais específicas. […] [Os projetos raciais são] uma iniciativa discursiva ou cultural, uma tentativa de significação racial e formação de identidade, por um lado; e uma iniciativa política, uma tentativa de organização e redistribuição por outro.” cujo marco também seria a década de 1970: “O novo projeto racial do Brasil resulta de uma aliança entre ativistas do movimento negro e cientistas sociais orientados por metodologias quantitativas, que estudaram a desigualdade racial no Brasil” (Winant, 1992 apud Schwartzman, 2009, p. 224-225, tradução minha). Esse “novo projeto racial” estaria contrastando com o “velho projeto” da democracia racial, que, por sua vez, substituiria um ainda mais antigo, o projeto do branqueamento.3 3 Apesar disso, diferentes autores (Hofbauer, 2006; Skidmore, 1976; entre outros) vão mostrar que a “democracia racial” será orientada pelo branqueamento da população, de forma a não serem dois projetos distintos entre si.

Lembremos que, por muitos anos, a miscigenação foi o único fundamento de uma perspectiva de inclusão da população negra na sociedade brasileira. Os indicadores sociais, no entanto, mostravam que ela não tinha resolvido a participação social desse grupo. É nesse sentido que, observando as desvantagens sofridas por pretos e pardos, os movimentos negros irão articular a categoria “negro” como constituída por ambos os grupos. Essa composição estará em função de uma luta política de emancipação, em sua unidade:

Trata-se, sem dúvida, de uma definição política embasada na divisão birracial ou bipolar norte-americana, e não biológica. Essa divisão é uma tentativa que já tem cerca de trinta anos e remonta à fun dação do Movimento Negro Unificado, que tem uma proposta política clara de construir a solidariedade e a identidade dos excluídos pelo racismo à brasileira. Ela é anterior à dis cussão sobre as cotas ou ação afirmativa, que tem apenas uma dezena de anos. Mais do que isso, ela correu paralelamente à classificação popular cromática baseada justamente na multiplicidade de tons e nuanças da pele dos brasileiros, resultante de séculos de miscigenação. (Munanga, 2005-2006MUNANGA, K. Algumas considerações sobre “raça”, ação afirmativa e identidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 46-57, dez./fev. 2005-2006., p. 53).

Na medida em que o racismo no Brasil não é apenas simbólico, mas material, Anjos (2005ANJOS, J. C. dos. O tribunal dos tribunais: onde se julgam aqueles que julgam raças. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n. 23, p. 232-236, jan./jun. 2005., p. 235) dirá que os movimentos para desconstituí-lo não podem estar limitados a uma “pedagogia (des)racial”, pois seu caminho está dentro do “âmbito da ação política”. Aqui é onde trago as problemáticas relativas às políticas afirmativas e ao instrumento que, demandado especialmente pelos movimentos negros, se insere nas seleções públicas para cotas raciais, como parte da necessidade de aperfeiçoá-las: as comissões de heteroidentificação racial. Essas comissões têm como objetivo garantir a lisura no acesso de pessoas negras às vagas para cotistas, por meio da aferição da autodeclaração racial dos candidatos. A aferição não pretende suspender o que, subjetivamente, o indivíduo formulou quanto ao seu pertencimento identitário. O intuito é observar àqueles que, a partir de uma leitura fenotípica, se justifica o acesso às cotas. Rios (2018RIOS, R. R. Pretos e pardos nas ações afirmativas: desafios e respostas da autodeclaração e da heteroidentificação. In: DIAS, G. R. M.; TAVARES JUNIOR, P. R. F. (org.). Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS campus Canoas, 2018. p. 215-249. Disponível em Disponível em https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2019/03/Heteroidentificacao_livro_ed1-2018.pdf . Acesso em: 30 out. 2019.
https://www.geledes.org.br/wp-content/up...
, p. 236-237) nos fala:

Reconhecer ao fenótipo papel decisivo decorre da constatação de que, no racismo e na atribuição de identidades étnico-raciais, organiza-se uma taxinomia de indivíduos e de grupos humanos a partir da ideia de raça, fenômeno cultural que se utiliza de diferentes regras para traçar filiação e pertença grupal, conforme o contexto histórico, demográfico e social, […] associação esta que se valeu, ao longo da história, de vários marcadores, desde a cor, até outras características antropofísicas e psíquicas.

Osório (2013OSÓRIO, R. G. A classificação de cor ou raça do IBGE revisitada. In: PETRUCCELLI, J. L.; SABOIA, A. L. (org.). Características étnico-raciais: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. p. 82-98., p. 91-92) descreve três métodos de identificação racial;4 4 Definido por Osório (2013, p. 91) como “o procedimento estabelecido para decidir acerca do enquadramento dos indivíduos nos grupos definidos pelas categorias da classificação”. as comissões trabalhariam com os dois primeiros:

O primeiro é a autoatribuição, no qual o próprio sujeito da classificação escolhe seu grupo. O segundo é a heteroatribuição, no qual outra pessoa define o grupo do sujeito. O terceiro método é a identificação de grandes grupos populacionais dos quais provieram os ancestrais por intermédio de análise genética.

Uma das questões polêmicas dessa identificação é que, enquanto “é razoável esperar convergência entre os dois primeiros [autoatribuição e heteroatribuição] quando os sujeitos da classificação se apresentam de forma próxima ao estereótipo de um grupo” (Osório, 2013OSÓRIO, R. G. A classificação de cor ou raça do IBGE revisitada. In: PETRUCCELLI, J. L.; SABOIA, A. L. (org.). Características étnico-raciais: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. p. 82-98., p. 92), a divergência acontece quando os avaliados estão “na fronteira entre dois grupos” (Osório, 2013OSÓRIO, R. G. A classificação de cor ou raça do IBGE revisitada. In: PETRUCCELLI, J. L.; SABOIA, A. L. (org.). Características étnico-raciais: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. p. 82-98., p. 92); nesse momento temos os chamados “casos difíceis”.5 5 O termo é fruto do trabalho da Profa. Dra. Marcilene Garcia de Souza na formulação do método Oju Oxê, que, por sua vez, orienta os trabalhos da Comissão de Aferição da Autodeclaração Étnico-Racial da UFBA.

Apesar das suas controvérsias, a autodeclaração é o mecanismo mais valorizado para os processos de identificação racial. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho foi o “primeiro instrumento internacional que reconhece o direito à autodeclaração” (Rios, 2018RIOS, R. R. Pretos e pardos nas ações afirmativas: desafios e respostas da autodeclaração e da heteroidentificação. In: DIAS, G. R. M.; TAVARES JUNIOR, P. R. F. (org.). Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS campus Canoas, 2018. p. 215-249. Disponível em Disponível em https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2019/03/Heteroidentificacao_livro_ed1-2018.pdf . Acesso em: 30 out. 2019.
https://www.geledes.org.br/wp-content/up...
, p. 224) e diz que a “pessoa se identifica como pertencente a este grupo ou povo; ou o grupo se considera indígena ou tribal de acordo com as disposições da Convenção” (OIT, 2003 apudRios, 2018RIOS, R. R. Pretos e pardos nas ações afirmativas: desafios e respostas da autodeclaração e da heteroidentificação. In: DIAS, G. R. M.; TAVARES JUNIOR, P. R. F. (org.). Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas, metodologias e procedimentos. Canoas: IFRS campus Canoas, 2018. p. 215-249. Disponível em Disponível em https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2019/03/Heteroidentificacao_livro_ed1-2018.pdf . Acesso em: 30 out. 2019.
https://www.geledes.org.br/wp-content/up...
, p. 224, tradução minha).

A Comissão de Aferição da Autodeclaração Étnico-Racial, nos editais de processos seletivos para estudantes de graduação pretos e pardos, foi implementada na Universidade Federal da Bahia (UFBA) em 2019. Ela foi instituída pela Portaria Normativa MPDG n. 4/2018 (Brasil, 2018BRASIL. Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão. Secretaria de Gestão de Pessoas. Portaria Normativa nº 4, de 6 de abril de 2018. Regulamenta o procedimento de heteroidentificação complementar à autodeclaração dos candidatos negros, para fins de preenchimento das vagas reservadas nos concursos públicos federais, nos termos da Lei nº 12.990, de 9 de junho de 2014. Brasília: MPDG, 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de-conteudo/igualdade-racial/portaria-normativa-no-4-2018-regulamenta-o-procedimento-de-heteroidentificacao-complementar-a-autodeclaracao-dos-candidatos-negros-em-concursos-publicos/@@download/file/portaria-normativa-no-4-2018-regulamenta-o.pdf . Acesso em: 20 nov. 2020.
https://www.gov.br/mdh/pt-br/centrais-de...
) e pela Portaria UFBA 169/2019 (Universidade Federal da Bahia, 2019UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Gabinete da Reitoria. Portaria nº 169/2019, de 5 de dezembro de 2019. Salvador: UFBA, 2019.).6 6 No edital de 2020 (Universidade Federal da Bahia, 2020) constam citações de sua constitucionalidade através da Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012), da Lei nº 12.990/2014, que dispõe sobre a reserva de vagas em concursos públicos para cargos efetivos e empregos públicos, e da “jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, referindo-se à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186 e à Declaratória de Constitucionalidade nº 41- DF.ADC 41-DF. O trabalho da comissão da UFBA se divide em duas fases: a fase de treinamento e formação dos membros, e a fase da aferição dos candidatos. Pude acompanhar ambas. Toda a organização do trabalho da comissão e a própria metodologia do curso de preparação se baseiam no método Oju Oxê, criado pela professora e socióloga Marcilene Garcia de Souza.

Políticas afirmativas e autodeclaração racial

O Brasil tem registrado um aumento da população negra no país, recorrentemente atribuído às dinâmicas do processo de autodeclaração étnico-racial: mais pessoas estariam se identificando como pardas e pretas. Não coincidentemente, esse crescimento acompanha a ampliação das políticas afirmativas. Manoel, autodeclarado negro, de pele clara, graduando do curso de História da Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi aprovado pela Comissão de Aferição da UFBA como cotista em 2019. Apesar da inscrição no processo seletivo pelas cotas raciais, o “tornar-se negro” só vem acontecer depois do ingresso na universidade. Até a seleção, Manoel compreendia que seu direito à reserva de vagas se referia a uma autodeclaração parda, não negra. “As comissões de heteroidentificação”, diz a presidente da banca da UFBA, “também têm um papel educativo”.7 7 Essa fala aconteceu durante o curso de formação dos membros da comissão para o processo seletivo do primeiro semestre de 2020. Nesse momento, os membros participavam de uma aula que abordou a legislação das políticas afirmativas, das comissões, e sua institucionalização na UFBA, assim como questões do método Oju Oxê e dos processos classificatórios.

Isso desenha um desafio, porque diferentes casos denunciados8 8 Faço referência aos casos veiculados na mídia de fraudes nos sistemas de cotas de universidades públicas e concursos para cargos públicos; como exemplo, ver Estudante… (2020). pelos movimentos sociais apontam para a apropriação indevida dessas políticas pelos sujeitos brancos, que reivindicam uma parditude em referência a antepassados negros de sua família. É nesse contexto que a autodeclaração negra dos indivíduos pardos ou “negros pele clara” (Carneiro, 2016CARNEIRO, A. S. Negros de pele clara. In: CEERT. São Paulo: Ceert, 25 set. 2016. Disponível em Disponível em https://www.ceert.org.br/noticias/genero-mulher/13570/sueli-carneiro-negros-de-pele-clara . Acesso em: 26 jun. 2020.
https://www.ceert.org.br/noticias/genero...
) é colocada em suspenso.

O Estatuto da Igualdade Racial, instituído em 2010, formaliza a metodologia que já era adotada pelo IBGE, de contabilizar pretos e pardos como negros - e busca garantir que as políticas afirmativas sejam destinadas a ambos. Esse é um marco importante, porque colabora para a positivação da identidade negra e para agregar aqueles sujeitos cooptados pela ideologia do branqueamento, pretos e pardos, que, através de diferentes estratégias, estariam buscando amenizar as marcas da sua negritude.

Para Paulo Neves (2005NEVES, P. S. da C. Luta anti-racista: entre reconhecimento e redistribuição. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 20, n. 59, p. 81-96, 2005., p. 87), as políticas afirmativas, embora falem sobre discriminação positiva, cidadania diferencial e equidade, repercutem sobre as subjetividades quando “terão efeitos sobre o processo de construção das identidades, que retroagirão sobre as próprias políticas de identidade”. Podemos pensar, com isso, que essas políticas mexeram no tabuleiro racial do Brasil não só dinamizando a relação classe/raça, mas também as próprias autodeclarações raciais, ou seja, as proporções raciais do país.

A relação entre as políticas afirmativas e a reivindicação da identidade negra por parte desses sujeitos “pardos” acrescenta suspeita a essa autodeclaração. Apelida-se de “afroconvenientes”9 9 A pesquisa registra muitos usos do termo, às vezes atribuído a brancos que querem passar por negros nas seleções de cotistas, por exemplo; para referir-se às personalidades negras que manipulariam o discurso racial em benefício particular; ou para acusar “pardos” de uma autodeclaração negra instrumentalizada. Ver mais em Rodrigues (2021). aqueles pardos, por exemplo, que supostamente passaram a denominarem-se negros em vista das vagas para cotistas. Os estudantes e ex-estudantes da UFBA autodeclarados negros, de pele clara, com quem conversei, relatam já terem sido apelidados como “afroconveniente”, “afrobege” e, até mesmo, “neoneguinha solidão”.10 10 Jaci, uma das entrevistadas, entendeu que essa era uma forma de, ao mesmo tempo, negar a sua autodeclaração e desautorizar seu lugar dentro de uma pauta política, “a solidão da mulher negra”. Solidão essa que, sendo negra de pele clara, não sofreria, segundo a sua acusadora.

O fato é que, se o mestiço implicava um desafio epistemológico para a compreensão do campo das relações raciais no país, esse desafio foi transposto para a política, através das políticas afirmativas (Eduardo Oliveira e Oliveira, 1974 apudCampos, 2013CAMPOS, L. A. O pardo como dilema político. Insigh Inteligência, São Paulo, ano 16, n. 63, p. 80-91, out./dez. 2013., p. 82). A plasticidade da categoria “pardo” informa a complexidade desse tema, ao mesmo tempo que esse grupo conforma um agregado político importante para que se reconheça a extensão do racismo na sociedade brasileira. No entanto, é fato que, se antes a negrura era rejeitada, hoje não só pretos e pardos estão progressivamente assumindo essa autodeclaração, o fazem também sujeitos brancos, a fim de ingressarem nos cargos públicos como cotistas. Ou seja,

a ideia de que os brancos não se classificariam como negros, porque ninguém quer ser negro na sociedade brasileira ou porque as consequências sociais da negritude são muito pesadas, nem sempre é verdadeira. Os benefícios potenciais (pela primeira vez?) são muito grandes e, além disso, quem saberia da classificação, além do funcionário da universidade responsável pela admissão? A informação, certamente, não chegaria à polícia ou aos porteiros. (Telles, 2003TELLES, E. E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Tradução: Nadjeda Rodrigues Marques, Camila Olsen. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003., p. 292).

Como Edward Telles (2003TELLES, E. E. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Tradução: Nadjeda Rodrigues Marques, Camila Olsen. Rio de Janeiro: Relume Dumará: Fundação Ford, 2003., p. 263) nos mostra, esse problema está inserido na própria concepção das “políticas sociais brasileiras que visam combater o racismo e a desigualdade racial”, uma vez que, segundo o autor, além de um histórico relativamente recente, essas políticas encontram barreiras sociais e políticas para sua implementação.

Debatendo as fronteiras raciais

O treinamento dos membros da Comissão da UFBA de 2020, ano em que acompanhei o seu trabalho, foi realizado através de uma aula conduzida pela presidente da banca e outra professora, que chamarei respectivamente de Jurema e Mirtes. Elas discutiam desde questões legais, passando pela metodologia do trabalho da comissão, o Oju Oxê, até os critérios de aferição.

Mirtes, a professora que conduzia o curso, compartilhou, em um dado momento, as histórias que costuma ouvir, participando de bancas de heteroidentificação. Essas histórias, semelhantes entre si, falavam de pessoas que, no momento da aferição, ou, ao serem reprovadas, justificavam seu pleito através da alegação de um parentesco negro. Essa é uma questão antiga. Vamos aos exemplos dessa discussão na nossa história política: em ocasião da aprovação da lei estadual do Rio de Janeiro sobre a reserva de vagas nas universidades para pessoas negras, “o então secretário de Ciência e Tecnologia do Estado, Wanderley de Souza, que é um cientista da área da biomedicina, afirmou que ‘minha principal dificuldade é saber o que é negro e pardo no Brasil’” (Santos; Maio, 2008SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. Genótipo e fenótipo: qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, O.; SANSONE, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008. p. 83-120., p. 107). O desenrolar disso, contam Santos e Maio (2008)SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. Genótipo e fenótipo: qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, O.; SANSONE, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008. p. 83-120., foram as inúmeras ações judiciais11 11 A judicialização dessas candidaturas indeferidas para cotas raciais segue o seu curso. Isso explica, inclusive, a cuidadosa entrada que precisei fazer para acompanhar a comissão da UFBA, e o clima nitidamente tenso no dia das avaliações da banca. Narro, em outro lugar, como a minha falta de contato com alguns membros da banca despertou atenção sobre a minha presença: num momento de intervalo entre os turnos da manhã e da tarde, quando estava descansando, uma professora, membro da comissão com quem já havia estabelecido contato, passou por mim e, rindo, falou: “O pessoal estava lá falando, preocupado com você, eu falei que era a menina que está fazendo a pesquisa!” movidas pelos alunos brancos reprovados como cotistas, e a manipulação do argumento genético nesses processos. O professor de história da UERJ, José Roberto Pinto de Goés, “um crítico contundente da política de cotas adotada pela instituição” (Santos; Maio, 2008SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. Genótipo e fenótipo: qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, O.; SANSONE, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008. p. 83-120., p. 106), chegou a declarar:

Se você for candidato ao próximo vestibular da UERJ, declare-se negro ou pardo, está no seu direito. Você não estará mentindo. Você pode não saber, mas você também é meio africano. Todos somos crias da África, seja qual for a cor de nossa pele. (Santos; Maio, 2008SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. Genótipo e fenótipo: qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, O.; SANSONE, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008. p. 83-120., p. 110).

Gates Junior (2011)GATES JUNIOR, H. L. Os negros na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., em alguns incursos pela América Latina, vai escrever, de uma forma um tanto anedótica, sobre as dinâmicas de autodeclaração e heteroidentificação étnico-raciais em alguns desses países. No Brasil, e mais especificamente em Salvador, um dos intelectuais com quem o pesquisador conversou foi Vovô do Ilê. Vovô teria explicado a Gates Junior (2011GATES JUNIOR, H. L. Os negros na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 28) que “o Ilê Aiyê tem como missão preservar as formas tradicionais do candomblé e se restringe a membros negros”. Isso provocou o autor a querer saber como se determina a identidade negra “no arco-íris de pardos e pretos que configuram o rosto do Brasil” (Gates Junior, 2011GATES JUNIOR, H. L. Os negros na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 28). Vovô riu

[…] e respondeu que compete aos candidatos se autoidentificar. J. Lorand Matory me informou que “o teste original de ingresso no Ilê Aiyê consistia em arranhar a pele do candidato com a unha. O candidato só era admitido se a pele ficasse cor de cinza”. De bom humor, “Vovô” acrescentou: “Nós sabemos a diferença”. Fiquei com a impressão de que a definição de afro-brasileiro de “Vovô” era muito cosmopolita: se alguém diz que é negro, negro passa a ser. (Gates Junior, 2011GATES JUNIOR, H. L. Os negros na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 28).

Se fosse nos Estados Unidos, o autor continua, “uma enorme percentagem da população, demonstrada por seu DNA, quase com certeza atenderia aos requisitos da lei americana sobre hipodescendência, reafirmada pela Corte Suprema em 1986” (Gates Junior, 2011GATES JUNIOR, H. L. Os negros na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras, 2011., p. 28). Esse debate entre fenótipo e sangue é uma questão que aparece no curso de formação que acompanhei. Em um dado momento da aula, um membro branco, que chamarei de Joaquina, pede a fala e cita o caso dos irmãos gêmeos da UnB.12 12 Gêmeos idênticos submeteram fotografias à comissão avaliadora da UnB: um foi considerado negro, o outro, não. Ver mais em Para UnB… (2012). O faz para defender que outros dados, além do fenótipo, precisam ser levados em consideração na hora da heteroidentificação. O fenótipo, ela diz, pode ser construído (manipulado). Esse comentário abre uma sessão de discussão interessante entre os membros. Uma professora negra contesta: “O racismo não é subjetivo, numa abordagem policial você não traz sua genética, o racismo não pergunta com o que eu trabalho. O racismo é objetivo.” Na medida em que as comissões não pretendem analisar elaborações subjetivas, o seu trabalho será calcular como cada fenótipo se insere num sistema de poder que demarca lugares sociais pela aparência/raça. Ou seja, o racismo é um elemento desse cálculo.

Trago aqui uma parte da conversa que tive com Dias. Ele foi um candidato cotista reprovado pela comissão da UFBA em 2019. Diferentemente do que acontece com as demais pessoas com quem pude conversar no processo de pesquisa, e diferentemente também do discurso estabelecido pelos movimentos negros, que permite aos mestiços-negros migrarem de uma identificação como pardos, morenos ou termos similares, para uma identidade negra ou preta,13 13 Sobre a polêmica da escolha das categorias “preto” ou “negro”, ver Valentim (2020). Cuti (2010, p. 4) também irá nos trazer que “na década de 60, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos empregou a palavra ‘black’ cuja versão correta, no contexto social brasileiro, é ‘negro’ e não preto como querem alguns. Ou seja, este assumir a palavra ‘negro’ pelos próprios negros não é recente, nem tampouco local.” Dias não parecia elaborar, até o momento do nosso encontro, um sentimento de pertença com relação ao ser negro:

Gabriela: Você se entende como negro também [além de cotista]?

Dias: Olha, igual [como] a classificação da UFBA mesmo e até do IBGE, os pretos e pardos, eles estão meio que juntos, entendeu… Então, é… De qualquer forma, sim.

Dias sintetizou o seguinte: se pardo é negro, e eu sou pardo, por consequência, sou também negro. Nosso contato se deu primeiramente por uma rede social da internet, iniciamos conversa e então Dias pediu que lhe telefonasse. Na ligação, ele me falava com muita ansiedade como ser reprovado pela comissão havia mexido emocionalmente com ele e sua família, Dias me perguntava como poderia resolver aquilo. Ele contou que sempre que era provocado, desde criança, a falar sobre sua cor ou raça, respondia como sendo pardo. É algo, inclusive, que teria constado no recurso que endereçou à banca. Dias diz que seu pai é negro e que sua mãe é amarela. Não por ela ser asiática ou descendente desse povo, mas porque “ela é um branco pra amarelo”. É assim que as pessoas elaboram as categorias do IBGE. Para Dias, uma conversa com os candidatos que incluísse o tema do histórico familiar poderia resolver a “subjetividade da banca”, algo muito problemático, em sua opinião. Por outro lado, como sabemos, a racialização no Brasil não acontece pela “gota de sangue”, como informa a regra da hipodescendência dos Estados Unidos. Aqui, o critério é fenotípico, estético, melanodérmico, pigmentocrático. A posição de Dias, no entanto, não é isolada. Santos e Maio (2008SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. Genótipo e fenótipo: qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, O.; SANSONE, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008. p. 83-120., p. 106-107) mostram que o argumento biológico da mistura sempre volta para as discussões sobre identidades raciais no Brasil:

[…] o historiador Manolo Florentino, ao findar um texto sobre Gilberto Freyre, que considera um interlocutor oculto na discussão sobre cotas, afirmou: “um conselho aos ‘brancos’ que forem reprovados em concursos públicos sob a égide das cotas: munidos de Retrato molecular do Brasil,14 14 Sobre a pesquisa, ver mais em Santos e Maio (2008, p. 93): “Publicado em português em 2000 (PENA et al., 2000) na revista mensal de divulgação científica Ciência Hoje da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Dois artigos diretamente relacionados, com apresentação dos resultados em pormenores para a comunidade científica, apareceram no American Journal of Human Genetics (ALVES-SILVA et al., 2000; CARVALHO-SILVA et al., 2001), bem como um mais recente no Proceedings of the National Academy of Sciences (PARRA et al., 2003). A ampla repercussão que a pesquisa atingiu no Brasil se associa, sobretudo, ao texto de Ciência Hoje.” reivindiquem as vagas dos negros” […]. Em uma escala ainda mais abrangente, percebe-se a emergência de associações (como “nossa mestiçagem tem um teste de DNA”) que colocam os resultados da pesquisa genética como elementos questionadores da própria idéia de implementação de cotas raciais no Brasil.

Não é que, para Dias, a aparência seja um dado irrelevante. Ele elenca três fatores que devem ser levados em consideração no momento da avaliação das comissões: fenótipo, histórico familiar e “vivência”, que ele também chama de “cultura” - estaria inclusa, por exemplo, a experiência gastronômica e musical. Porém, para Dias, a comissão “só olhou quem sofre racismo”:

Por exemplo, eu não sofri preconceito, mas só porque eu não sofro preconceito não quer dizer que eu não faço parte daquela identidade; agora, e pra mim, eles tão fazendo essa seleção entendeu? De pessoas que sofreram ou não, ou podem sofrer preconceito na sociedade. […]

O dispositivo da mestiçagem e o controle de acesso às políticas públicas

Comecemos esta seção com uma imagem de Cuti (2010CUTI. Quem tem medo da palavra negro? Revista Matriz, Porto Alegre, p. 1-12, nov. 2010., p. 2) sobre a colonização:

Um assaltante que invade a sua casa com armas possantes, mata familiares seus, estupra, transmite doença, rouba seus pertencentes, faz você trabalhar para ele, obedecer às suas ordens, esse assaltante pode, se ele for fisicamente diferente de você, atribuir a essas diferenças a superioridade em relação a você, acreditar nisso e fazer até você crer nos argumentos dele, e ele pode também escrever livros e mais livros, produzir filmes e mais filmes, e ensinar para gerações e gerações, por vários meios, que você é inferior e ele é superior a você por conta das diferenças fenotípicas.

Weschenfelder e Silva (2018WESCHENFELDER, V. I.; SILVA, M. L. da. A cor da mestiçagem: o pardo e a produção de subjetividades negras. Análise Social, Lisboa, v. 53, n. 227, p. 308-330, 2018., p. 311) vão falar que, sendo parte do processo colonizador e a principal característica brasileira, “a mestiçagem funciona como uma engrenagem que produz verdades e formas de condução da população”. Os autores tratarão essa engrenagem como dispositivo. Eles falam que o tornar-se negro ou o “dar cor aos homens” seria constituído “por regimes de verdade” (Weschenfelder; Silva, 2018WESCHENFELDER, V. I.; SILVA, M. L. da. A cor da mestiçagem: o pardo e a produção de subjetividades negras. Análise Social, Lisboa, v. 53, n. 227, p. 308-330, 2018., p. 312), cujos “significados estão postos na epistemologização da raça e do corpo-espécie da população” (Weschenfelder; Silva, 2018WESCHENFELDER, V. I.; SILVA, M. L. da. A cor da mestiçagem: o pardo e a produção de subjetividades negras. Análise Social, Lisboa, v. 53, n. 227, p. 308-330, 2018., p. 312). Investindo numa análise sobre conteúdos produzidos para sites, os autores avaliam que

em diversas publicações, as blogueiras relatam que foram educadas para se perceberem como mulatas, mestiças, morenas, mas nunca como negras. Isso é entendido como algo extremamente negativo, como uma recusa do direito de afirmação da descendência africana. De modo geral, a crítica à mestiçagem está presente também nas produções académicas e nas mobilizações negras, que denunciam o discurso da democracia racial e seus efeitos perversos para a população afrodescendente, uma vez que amorteceu qualquer luta antirracista. A blogueira Shirlene Marques sintetiza o que entendeu após ler sobre o tema: Eis que as respostas chegaram: a denominação de uma pele morena, no Brasil, é usada para camuflar a pertença à raça negra, de ter o sangue negro no corpo. Essa possibilidade discursiva faz parte do contexto atual, mas está diretamente vinculada às mudanças ocorridas a partir do final da década de 1970. (Weschenfelder; Silva, 2018WESCHENFELDER, V. I.; SILVA, M. L. da. A cor da mestiçagem: o pardo e a produção de subjetividades negras. Análise Social, Lisboa, v. 53, n. 227, p. 308-330, 2018., p. 321).

Observando que a mestiçagem não foi uma prática tão largamente desenvolvida nos países africanos de colonização portuguesa, Tadei (2002)TADEI, E. M. A mestiçagem enquanto um dispositivo de poder e a constituição de nossa identidade nacional. Psicologia, Ciência e Profissão, [s. l.], v. 22, n. 4, p. 2-13, 2002. conclui que ela não deve ser tomada como uma disposição própria do português em “misturar-se”, como queria Gilberto Freyre. No Brasil, a mestiçagem seria engatilhada por uma estratégia de dominação. Tadei (2002TADEI, E. M. A mestiçagem enquanto um dispositivo de poder e a constituição de nossa identidade nacional. Psicologia, Ciência e Profissão, [s. l.], v. 22, n. 4, p. 2-13, 2002., p. 3) também compreende a miscigenação como um dispositivo definido por:

[…] um tipo de formação que, em determinado momento histórico, tem como função principal responder a uma urgência. Parafraseando Foucault, podemos dizer que o dispositivo pode se manifestar como programa de uma instituição ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar uma prática que permanece muda até então. Pode ainda funcionar como reinterpretação dessa prática, dando-lhe acesso a um novo campo de racionalidade.

Na forma de um dispositivo de poder, a miscigenação atuaria sobre a formulação de uma identidade nacional, domesticando as diferenças raciais e “gerando subjetividades dóceis, mal delimitadas e manipuláveis” (Tadei, 2002TADEI, E. M. A mestiçagem enquanto um dispositivo de poder e a constituição de nossa identidade nacional. Psicologia, Ciência e Profissão, [s. l.], v. 22, n. 4, p. 2-13, 2002., p. 3). Seu alcance é extenso, se comporta como “estrutura elementar presente em tudo o que tem sido produzido sobre nosso país e nossa identidade nacional em termos discursivos” (Tadei, 2002TADEI, E. M. A mestiçagem enquanto um dispositivo de poder e a constituição de nossa identidade nacional. Psicologia, Ciência e Profissão, [s. l.], v. 22, n. 4, p. 2-13, 2002., p. 3). Osmundo Pinho (2004PINHO, O. de A. O efeito do sexo: políticas de raça, gênero e miscigenação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 23, p. 89-119, jul./dez. 2004., p. 100) demostra isso quando fala sobre a funcionalidade do mito da democracia racial em desmobilizar os componentes étnicos da nação: “A síntese freyreana, como um instrumento de conversão ideológica, favoreceu a imobilidade - bem descrita nas estatísticas raciais - exatamente ao tentar demonstrar a modernização pela mestiçagem.” Na medida em que se produz o mestiço como “um objeto indeterminado, incapaz de propor-se como um sujeito” (Pinho, 2004PINHO, O. de A. O efeito do sexo: políticas de raça, gênero e miscigenação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 23, p. 89-119, jul./dez. 2004., p. 104), sua posição é útil para o controle social de uma “estratégia de bio-poder característica das formações sociais latino-americanas” (Pinho, 2004PINHO, O. de A. O efeito do sexo: políticas de raça, gênero e miscigenação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 23, p. 89-119, jul./dez. 2004., p. 104). A guinada para fora do círculo de controle começou a ser dada pela iniciativa das organizações negras, quando houve

[…] a emergência de novos sujeitos sociais afrodescendentes que, reflexivamente, passaram a produzir suas próprias interpretações sobre si e sobre a história das relações raciais em Salvador, deslocando formas cristalizadas de representação para a raça e para o gênero […].(Pinho, 2004PINHO, O. de A. O efeito do sexo: políticas de raça, gênero e miscigenação. Cadernos Pagu, Campinas, n. 23, p. 89-119, jul./dez. 2004., p. 105).

Na medida em que as políticas afirmativas incidem diretamente sobre o mito da democracia, desarticulam o dispositivo. Wlamyra Albuquerque e Walter Fraga Filho (2006ALBUQUERQUE, W. R. de; FRAGA FILHO, W. O Movimento Negro no Brasil contemporâneo. In: ALBUQUERQUE, W. R. de; FRAGA FILHO, W. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. p. 279-306., p. 305) nos falam que “os que são contra dizem que as cotas só aumentarão o racismo, porque incentivarão as disputas entre negros e brancos”, como se essas políticas estivessem produzindo uma clivagem racial na sociedade brasileira que por si só já não existisse. Ao contrário disso, continuam os autores,

trata-se de reverter - e não inverter - este quadro. Não se trata de uma coisa contra o branco, até porque o branco pobre é também contemplado em muitas propostas de cotas. A ideia é, simplesmente, de oferecer oportunidade para todos. Essa é a obrigação dos governos, e deve ser o objetivo das sociedades. (Albuquerque; Fraga Filho, 2006ALBUQUERQUE, W. R. de; FRAGA FILHO, W. O Movimento Negro no Brasil contemporâneo. In: ALBUQUERQUE, W. R. de; FRAGA FILHO, W. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006. p. 279-306., p. 305).

Sendo a universidade um lugar historicamente ocupado pela elite, os movimentos negros encararam os discursos contrários às cotas como formas de manter a exclusão de negros e negras desse ambiente, afinal, como nos fala Roger Bastide e Florestan Fernandes (1959BASTIDE, R.; FERNADES, F. Côr e estrutura social em mudança. In: BASTIDE, R.; FERNANDES, F. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sôbre aspectos da formação, manifestações atuais e efeitos do preconceito de côr na sociedade paulistana. 2. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1959. p. 77-162., p. 114, grifo dos autores), em um país miscigenado, foi importante zelar pela brancura para não ser confundido com um mestiço, mantendo os círculos da elite branca fechados para negros:

O que definia socialmente a noção de “raça”, no entanto, era o sentimento de comunhão dentro de um sistema de graduação social, de prestígio e de valores culturais. Daí a preocupação dos brancos: evitar o acesso dos negros e dos mestiços, tanto quanto possível, ao núcleo lega1 da família patriarcal; impedir tôda espécie de equiparação com o negro, em qualquer esfera da vida social. Os atributos pròpriamente raciais contavam como decorrência. Por isso, para êles as “raças” negras se compunham de indivíduos que se caracterizavam duplamente: pela condição de escravo e pela côr da pele. De outro lado, é preciso considerar que êstes dois elementos se confundiam completamente na representação social da personalidade-status do negro e do mulato. Negro equivalia a “indivíduo privado de autonomia e liberdade”; escravo correspondia (em particular do século XVIII em diante), a “indivíduo de côr”. Daí a dupla proibição, que pesava sôbre o negro e o mulato: o acesso a papéis sociais que pressupunham regalias e direitos lhes era simultâneamente vedado pela “condição social” e pela “côr”.

É justamente esse antecedente histórico e o processo de atualização do racismo que fazem com que a população negra lidere os piores indicadores sociais. Nesse sentido, temos o mito da democracia racial como um discurso politicamente intencionado, não como mera fábula ou mentira. Chauí (2000CHAUÍ, M. Com fé e orgulho. In: CHAUÍ, M. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p. 2-7., p. 5) fala de um mito fundador, tomado em seus sentidos antropológico e psicanalítico, como um “repertório inicial de representações da realidade”. Seu poder simbólico ou representacional é tão poderoso que

[…] em cada momento da formação histórica, esses elementos são reorganizados tanto do ponto de vista de sua hierarquia interna (isto é, qual o elemento principal que comanda os outros) como da ampliação de seu sentido (isto é, novos elementos vêm se acrescentar ao significado primitivo). Assim, as ideologias, que necessariamente acompanham o movimento histórico da formação, alimentam-se das representações produzidas pela fundação, atualizando-as para adequá-las à nova quadra histórica. É exatamente por isso que, sob novas roupagens, o mito pode repetir-se indefinidamente. (Chauí, 2000CHAUÍ, M. Com fé e orgulho. In: CHAUÍ, M. Mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Perseu Abramo, 2000. p. 2-7., p. 5-6).

O mito opera aqui tanto para negar os pertencimentos étnico-raciais em nome da identidade nacional quanto para reivindicá-la mestiça e, portanto, passível de ser mobilizada por qualquer brasileiro, independente da sua aparência. A fraude no sistema de cotas raciais por sujeitos brancos passa pela atualização do mito do qual fala Chauí. Se antes, para desconstituí-las, a tônica estava sobre a suposta racialização que as políticas estariam criando, hoje, a fim de fraudá-las, o discurso se formata para legitimar o ingresso de brancos em vagas de pessoas negras. Sobre isso, cabe lembrar que o estudo “Retrato molecular do Brasil” foi muito bem recebido em diferentes círculos do país, como nos disse Santos e Maio (2008)SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. Genótipo e fenótipo: qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, O.; SANSONE, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008. p. 83-120..

A pesquisa, já citada, se baseava na investigação genética de 200 homens autoclassificados brancos, de quatro macrorregiões do país (Norte, Nordeste, Sul e Sudeste). Elio Gaspari (2000, p. 14 apudSantos; Maio, 2008SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. Genótipo e fenótipo: qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, O.; SANSONE, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008. p. 83-120., p. 86), um articulista da Folha de S. Paulo, referiu-se ao trabalho como “um artigo fenomenal, […] uma verdadeira aula, motivo de orgulho para a ciência brasileira. […] É a comprovação científica daquilo que Gilberto Freyre formulou em termos sociológicos.” Falando sobre a magnitude da mestiçagem no Brasil, ele continua: “Há mais gente com um pé na cozinha do que com os dois na sala” (Gaspari, 2000, p. 14 apudSantos; Maio, 2008SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. Genótipo e fenótipo: qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, O.; SANSONE, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008. p. 83-120., p. 86). O “pé na cozinha” é uma expressão utilizada, inclusive, pelo presidente Fernando Henrique Cardoso quando em campanha, em meados da década de 1990. “Retrato molecular do Brasil” teria provado que, mesmo entre a população brasileira autodeclarada branca, existiam consideráveis misturas genéticas, inclusive de povos africanos. Dessa forma, o estudo fundamentou um argumento cientificista, geneticista, que comprovou a amplitude da miscigenação no país, base da democracia racial.

Brancos fraudadores e “casos difíceis”

Durante o curso de formação, a preocupação com os “casos difíceis” tomou grande parte do tempo. “Casos difíceis” é o termo criado por Marcilene Garcia de Souza para designar os “pardos” ou pessoas que estão no entrelugar de negros e brancos. Aquelas pessoas sobre quem, em outras palavras, você poderia se perguntar: é negro(a) ou branco(a)? A respeito disso, Mirtes cita as elaborações da professora Marcilene Garcia de Souza sobre as “bancas de inverno, de verão, do Nordeste, do Sul…”. É que a heteroidentificação precisa ser contextualizada; dados relativos à estação do ano, à classificação da cidade como interiorana ou litorânea, nordestina ou sulista, influenciam na organização estética dos candidatos que irão se apresentar. Eles poderão estar mais ou menos bronzeados, por exemplo.

O bronzeamento é uma prática interessante. Barickman (2009BARICKMAN, B. J. “Passarão por mestiços”: o bronzeamento nas praias cariocas, noções de cor e raça e ideologia racial, 1920-1950. Afro-Ásia, [s. l.], n. 40, p. 173-221, 2009., p. 189) explica que, sendo uma moda que começou nos Estados Unidos, quando chegou ao Brasil “os frequentadores de Copacabana e Ipanema tiveram de ajustar suas noções de cor e raça; e, nesse ajuste, tiveram, no mínimo, de aceitar que uma tez ‘marrom-escur[a]’ não era necessariamente incompatível com o status e a identidade como branco”. O autor traz ainda trechos da matéria de um jornal de Florianópolis, O Estado, que, no início da década de 1930, teria dito que as mulheres da “alta sociedade” na praia queriam “ficar com a epiderme da cor de Josephine Baker” (Barickman, 2009BARICKMAN, B. J. “Passarão por mestiços”: o bronzeamento nas praias cariocas, noções de cor e raça e ideologia racial, 1920-1950. Afro-Ásia, [s. l.], n. 40, p. 173-221, 2009., p. 195).15 15 Josephine Baker (1900-1970) foi uma artista negra norte-americana, cujo legado se destaca não só nas artes cênicas, como também na luta antirracista nos Estados Unidos e na resistência francesa antinazista, país onde viveu muitos anos de sua vida. Nilma Lino Gomes (2006GOMES, N. L. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006., p. 328) indica dois caminhos possíveis para compreendermos essa prática:

[…] como a manifestação de uma variação individual, uma modificação voluntária, que permite uma aproximação do “outro”, a partir de critérios essenciais da diferença, e como a assimilação de uma lógica de mestiçagem, que remete ao questionamento da supremacia branca.

Com isso, Gomes (2006)GOMES, N. L. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. nos dá uma pista para analisarmos o bronzeamento no contexto das bancas de aferição, ainda que a tônica seja outra. Vejamos: naquele contexto de pesquisa,16 16 O livro de Nilma Lino Gomes, publicado em 2006, se baseia na sua tese de doutorado, defendida em 2002. enegrecer não parecia ser uma opção, assim, tão largamente praticada pela branquitude do país. Hoje, por outro lado, as crescentes denúncias de fraudes no sistema de cotas raciais mostram que o bronzeamento é uma opção para buscar aprovação nas comissões de heteroidentificação dos editais. É pertinente, da análise da autora, a observação de que “o corpo mestiço do/a brasileiro/a, mesmo aquele produzido mediante bronzeamento artificial, não pode ser entendido fora do contexto do mito da democracia racial” (Gomes, 2006GOMES, N. L. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006., p. 331).

Na internet, um termo popular para esses brancos pintados de preto é o blackfishing. Oliveira (2019)OLIVEIRA, T. O que é o blackfishing? Alma Preta, [s. l.], 21 jan. 2019. Disponível em Disponível em https://www.almapreta.com/editorias/o-quilombo/o-que-e-o-blackfishing . Acesso em: 27 jun. 2020.
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explica que ele deriva de catfishing, “que significa impostor, neste caso é a prática de uma pessoa branca usar de elementos próprios da cultura negra”. A autora classifica-o como um “fenômeno sócio-comportamental” em que

[…] as pessoas usam características étnicas com intuito de tirar proveito pessoal dessa identificação, algo que vem se tornando cada vez mais comum nos últimos anos pelo crescimento da representatividade negra nos debates raciais. […] Além dos cabelos, estilos e trejeitos, as pessoas chegam ao ponto de usarem várias camadas de bronzeadores até adquirirem um tom de pele negro, o famoso moreno claro. (Oliveira, 2019OLIVEIRA, T. O que é o blackfishing? Alma Preta, [s. l.], 21 jan. 2019. Disponível em Disponível em https://www.almapreta.com/editorias/o-quilombo/o-que-e-o-blackfishing . Acesso em: 27 jun. 2020.
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).

Essa definição me remete a “afroconveniência”, termo que aparece em muitos momentos da pesquisa. Luís, um dos membros da comissão da UFBA, o define da seguinte maneira:

Eu vou me aproximar desse pertencimento africano em determinados contextos. Ora eu vou me africanizar, ora eu não vou me africanizar. Então assim: “Para uma cota eu me africanizo, depois eu me desafricanizo, já passei.” Aí depois que você chega lá em medicina, em direito, em sociologia ou qualquer outro curso, diz[em] assim: “Poxa, cotista como?” [É] porque ela estava africanizada, ou ele.

Retomando o argumento que comecei a esboçar a partir de Gomes (2006)GOMES, N. L. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2006., e trazendo para o contexto das bancas de aferição, o bronzeamento parece ser uma técnica de manipulação estética engatilhada pelo mito da democracia racial. Ao ser repetido ao longo da nossa história de nação, o argumento da mistura genética minimizou retoricamente as diferenças raciais e pavimentou o percurso que sujeitos brancos estão atravessando para montar um fenótipo mestiço-negro. É dessa forma que, possivelmente, o blackfishing (Estados Unidos) e o “afroconveniente” (Brasil) se diferenciam conceitualmente. O primeiro termo irá se referir, por exemplo, à Rachel Dolezal que alega uma “transracialidade” (Ideia…, 2017‘IDEIA de raça é uma mentira’: americana branca que se passou por negra se diz ‘transracial’. BBC News Brasil, [s. l.], 28 mar. 2017. Disponível em Disponível em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-39413853 . Acesso em: 20 nov. 2020.
https://www.bbc.com/portuguese/internaci...
). O “afroconveniente” será alguém que se diz fruto da mistura de raças, e cuja manipulação estética encontrará terreno ideológico já constituído, o de que a miscigenação amorenou brancos e pretos. Ambos os termos denotam a mesma prática, mas cada modus operandi responde às diferentes regras dos seus respectivos sistemas classificatórios. O “transracial” ou o blackfishing irá admitir seu pertencimento racial com desejo ou sentimento de pertença em outra raça, oposta a que lhe é socialmente designada. Dentro de um sistema classificatório explicitamente rígido, o blackfishing aponta para trânsfugas que reconhecem previamente as posições raciais estabelecidas. De outro modo, no Brasil, os “afroconvenientes” tomarão para si um sistema classificatório retoricamente dúbio e uma prática de mestiçagem largamente constituída. Da perspectiva de quem frauda, não se trata de brancos que se sentem negros ou que o querem ser, mas brancos geneticamente mestiços, cuja manipulação fenotípica alegará parte de sua natureza. Quando conversei com Dias, por exemplo, ele me disse que, apesar dos seus traços finos e cabelos lisos, apesar de nunca ter sofrido racismo, e de nunca ter, sequer, se percebido negro, sua pele clara não era “branca” (então era morena) e seu avô e pai seriam homens negros. Dias, lembremos, não foi aprovado pela comissão da UFBA e me falava que seu “histórico familiar” tinha que ser considerado. Dias não se sentia um branco querendo ser negro, mas um pardo cuja mistura racial era parte da sua identidade.

Durante o curso de formação, os membros ironizavam o fato de alguns candidatos se fantasiarem de negros, e brincaram sobre a necessidade de “trazer [levar] água micelar para tirar maquiagem” (Jurema). Essa manipulação estética à qual se referia Jurema é uma prática recorrente na nossa história de relações raciais, para um lado ou para o outro. Domingues (2002DOMINGUES, P. J. Negros de almas brancas? A ideologia do branqueamento no interior da comunidade negra em São Paulo, 1915-1930. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, v. 24, n. 3, p. 563-599, 2002., p. 580), por exemplo, nos fala que

[…] o “branqueamento estético” não se restringia ao alisamento dos cabelos, atingia a principal marca definidora de raça no Brasil: a cor da pele. Alguns produtos prometiam a proeza de transformar negro em branco mediante a despigmentação, ou seja, através do “clareamento” da pele:

Attenção. Milagre!…

Outra grande descoberta deste século, é o creme liquido. Milagre. Dispensa o uso de pó de arroz… Formula Scientifica allemã para tratamento da pelle. Clarea e amacia a cutis (O Clarim D’Alvorada, São Paulo, 28/9/1930).

O registro a seguir, trazido por Thales de Azevedo (1955AZEVEDO, T. de. Os tipos étnicos bahianos. In: AZEVEDO, T. de. As elites de côr: um estudo de ascensão social. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1955. p. 27-37. (Brasiliana, v. 282)., p. 36), informa um processo de transformação da cor que se constata pelo branqueamento e pela americanização:

Por influência de livros e de filmes cinematográficos norte-americanos, ouve-se às vezes falar em colored. Uma profissional morena diz que sabe que é colored; um diário local também descreveu com êsse termo um político mestiço. Um escritor bahiano assim resume, em livro recente, os problemas de semântica relacionados com a caracterização dos tipos físicos locais: “O preto claro se chama de mulato, mulato claro é moreno, sarará passou a louro. Pardo ninguém sabe o que seja. Branco fino se diz daquele cujas origens e aspecto não dão margem a que se desconfie de mestiçagem. E os que são brancos mestiços não gostam nada de mostrar retratos dos avós”.

Notemos que o fenômeno social da mudança de cor, no Brasil, se deu historicamente por duas vias: da palavra - onde uma diversidade de 135 cores apareceram como categorias furtivas à identidade negra em pesquisa do PNAD de 1976; e através das tecnologias de ordem estética. Nesse sentido, o bronzeamento ou o encrespamento dos cabelos no contexto das bancas de verificação estão inseridos em um conjunto de técnicas discursivo-corporais que habitam o imaginário social brasileiro e apontam para fronteiras de cor retoricamente fluidas. Essas fronteiras se movem no espaço comum constituído pela mestiçagem, do qual todos os brasileiros fariam parte. O gene mestiço pode ser ativado revelando a avó negra ou tomando sol. Lembremos que o mesmo procedimento, às avessas, era estimulado para o comportamento de brancos mestiços e mulatos. Skidmore (1976)SKIDMORE, T. E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976., por exemplo, fala que o trabalho de esconder os parentes negros é algo para levarmos em consideração e não exagerarmos na hora de dizer que a regra da “gota de sangue” não tem aplicabilidade no Brasil, se referindo a um momento em que a avó negra devia ser escondida, e não liberada do armário. Tudo isso demonstra que a ideologia da mestiçagem pavimentou o caminho pelo qual pessoas brancas se moveriam entre os dois lados da fronteira racial negro-branco, como algo próprio da brasilidade.

Conforme tenho traçado, a mobilidade nessas fronteiras de cor também foi estimulada para a população mestiça-negra como sinal de higiene, boa educação, boa aparência e obediência à norma. Essa “metade branca”, porém, do seu genótipo, não lhe serviu como passaporte para a incorporoção de uma identidade branca. Mauss (1974)MAUSS, M. As técnicas corporais. In: LÉVI-STRAUSS, C. (org.). Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU: Edusp, 1974. p. 211-233. nos fala algo muito interessante sobre o fazer corporal. Essa seria uma prática que incorpora a sociedade: “Chamo de técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que, nisto, não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição” (Mauss, 1974MAUSS, M. As técnicas corporais. In: LÉVI-STRAUSS, C. (org.). Sociologia e antropologia. São Paulo: EPU: Edusp, 1974. p. 211-233., p. 217).

As fraudes no sistema de cotas raciais, portanto, não configuram apenas um ato de roubar, mas de mobilizar um discurso basilar ao “fazer-se mestiço”, o mito da democracia racial. O branco fraudador manipula um conteúdo da tradição brasileira, o da mistura, ele faz, na linha do que Mauss escreve, seu corpo mestiço.

Trabalho com duas ideias que perpassam o campo das religiões afro-brasileiras: “manifestar” e “incorporar”. Essa é a intenção do título deste texto. Tentarei explicar brevemente: manifestar o orixá é a ideia de que essa divindade faz parte do próprio indivíduo, ela não se acopla ou se incorpora, como algo exterior a ele. Incorporam-se aquelas entidades que não constituem o sujeito, aquelas que lhe são alheias. Os “negros de pele clara” manifestam uma autodeclaração racial mediada por um contato com debates políticos e processos autorreflexivos. É assim que Manoel, por exemplo, começa a reenquadrar as rejeições sociais sobre sua aparência, ou discriminações diversas sofridas ao longo da vida, como situações motivadas pelo seu processo de racialização. Narrativa essa que, mesmo identificando-se como pardo, Dias não pode contar. Tornar-se negro é observar como a racialização construiu a sua autopercepção e como construiu também os caminhos da sua própria trajetória - atrelada a outros engajamentos, como de resistência, por exemplo. Diferente disso, o branco que frauda as comissões de heteroidentificação racial pelo enegrecimento da imagem incorpora uma identidade mestiça. Ele toma para sua organização estética um discurso nacional. Nesse sentido, é o corpo branco, e não mestiço, que está submetido ao fazer corporal de fronteira. O entrelugar não é negro, é branco pintado de marrom.

Considerações finais

Os brancos que performam mestiçagem o fazem através da encarnação do mito da democracia racial. Ao corpo branco é facultado o direito ao trânsito racial, parte das suas prerrogativas de poder. A manipulação estética, portanto, tomada no contexto das comissões de heteroidentificação, conforma técnicas discursivo-corporais inseridas no dispositivo da mestiçagem. Como um dispositivo, a mestiçagem atua no controle dos indivíduos racializados e dos seus movimentos políticos. Nesse contexto, o seu controle também se exerce no acesso às políticas públicas. Na ênfase da desconstituição das políticas afirmativas, as controvérsias recaíam sobre uma inconstitucionalidade e sobre a crítica de que, a partir dali, a sociedade brasileira estaria sendo racializada. A afirmação era que as políticas afirmativas eram descabidas, visto que no Brasil só existe um povo, o povo brasileiro, entre o qual não haveria barreiras de cor. No entanto, na medida em que essas políticas avançam, o argumento se formata. A ideia passa a ser que, sendo o povo brasileiro mestiço, todos deverão ter direito às cotas, e, sendo necessário provar, os recursos estéticos serão parte complementar desse discurso historicamente constituído pela democracia racial, pelo mito. Por isso, na medida em que o racismo é um dado objetivo, esse lugar de fronteira muito pouco estará habitado por pretos e pardos.

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  • 1
    Existe uma longa discussão quanto ao dualismo dessas categorias; uma das mais importantes se refere ao apagamento dos indígenas dentro dessa relação. Sobre isso, reproduzo um trecho de Véran (2010VÉRAN, J.-F. ‘Nação Mestiça’: as políticas étnico-raciais vistas da periferia de Manaus. Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, [s. l.], v. 3, n. 9, p. 21-60, jul./set. 2010., p. 28) a respeito de um movimento nascido no Amazonas, o Nação Mestiça, e que toca diretamente nesse problema: “Fosse negro um mero agregado estatístico, não teria havido equívocos e conflitos. Mas diante da indissociação entre cor, origem e cultura, os caboclos tornaram-se invisíveis. Mais uma vez, como veremos, a questão não é meramente existencial: quando direitos fundamentais são definidos na base da identidade étnica, aceitar a invisibilidade é um suicídio político. Consequentemente, tornar o caboclo visível vai ser uma das preocupações centrais do Nação Mestiça.”
  • 2
    Winant (1992 apudSchwartzman, 2009SCHWARTZMAN, L. F. Seeing like citizens: unofficial understandings of official racial categories in a Brazilian university. Journal of Latin American Studies, Cambridge, n. 41, p. 221-250, 2009., p. 224-225, tradução minha), define esse novo projeto como: “[…] Simultaneamente, uma explicação da dinâmica racial e um esforço para reorganizar a estrutura social ao longo de linhas raciais específicas. […] [Os projetos raciais são] uma iniciativa discursiva ou cultural, uma tentativa de significação racial e formação de identidade, por um lado; e uma iniciativa política, uma tentativa de organização e redistribuição por outro.”
  • 3
    Apesar disso, diferentes autores (Hofbauer, 2006HOFBAUER, A. Branqueamento, democracia racial e tipologias étnicos-raciais. In: HOFBAUER, A. Uma história de branqueamento ou o negro em questão. São Paulo: Editora Unesp, 2006. p. 215-288.; Skidmore, 1976SKIDMORE, T. E. Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.; entre outros) vão mostrar que a “democracia racial” será orientada pelo branqueamento da população, de forma a não serem dois projetos distintos entre si.
  • 4
    Definido por Osório (2013OSÓRIO, R. G. A classificação de cor ou raça do IBGE revisitada. In: PETRUCCELLI, J. L.; SABOIA, A. L. (org.). Características étnico-raciais: classificações e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. p. 82-98., p. 91) como “o procedimento estabelecido para decidir acerca do enquadramento dos indivíduos nos grupos definidos pelas categorias da classificação”.
  • 5
    O termo é fruto do trabalho da Profa. Dra. Marcilene Garcia de Souza na formulação do método Oju Oxê, que, por sua vez, orienta os trabalhos da Comissão de Aferição da Autodeclaração Étnico-Racial da UFBA.
  • 6
    No edital de 2020 (Universidade Federal da Bahia, 2020UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Pró Reitoria de Ensino de Graduação. Coordenação de Seleção e Orientação. Anexo complementar III - Edital 2020.1. Salvador: UFBA, 2020. Disponível em: Disponível em: https://ingresso.ufba.br/sites/ingresso.ufba.br/files/anexo_iii_ingresso2020.1.pdf . Acesso em: 20 nov. 2020.
    https://ingresso.ufba.br/sites/ingresso....
    ) constam citações de sua constitucionalidade através da Lei de Cotas (Lei nº 12.711/2012), da Lei nº 12.990/2014, que dispõe sobre a reserva de vagas em concursos públicos para cargos efetivos e empregos públicos, e da “jurisprudência do Supremo Tribunal Federal”, referindo-se à Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186 e à Declaratória de Constitucionalidade nº 41- DF.ADC 41-DF.
  • 7
    Essa fala aconteceu durante o curso de formação dos membros da comissão para o processo seletivo do primeiro semestre de 2020. Nesse momento, os membros participavam de uma aula que abordou a legislação das políticas afirmativas, das comissões, e sua institucionalização na UFBA, assim como questões do método Oju Oxê e dos processos classificatórios.
  • 8
    Faço referência aos casos veiculados na mídia de fraudes nos sistemas de cotas de universidades públicas e concursos para cargos públicos; como exemplo, ver Estudante… (2020)ESTUDANTE denuncia que pessoas que não se enquadram no critério de seleção entraram em medicina na através das cotas UFBA. G1, [s. l.], 17 nov. 2020. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2020/11/17/estudante-denuncia-que-pessoas-que-nao-se-enquadram-no-criterio-de-selecao-entraram-em-medicina-na-atraves-das-cotas-ufba.ghtml . Acesso em: 20 nov. 2020.
    https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/20...
    .
  • 9
    A pesquisa registra muitos usos do termo, às vezes atribuído a brancos que querem passar por negros nas seleções de cotistas, por exemplo; para referir-se às personalidades negras que manipulariam o discurso racial em benefício particular; ou para acusar “pardos” de uma autodeclaração negra instrumentalizada. Ver mais em Rodrigues (2021)RODRIGUES, G. M. B. (Contra)mestiçagem negra pele clara, anti-colorismo e comissões de heteroidentificação racial. 2021. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021. Disponível em https://repositorio.ufba.br/handle/ri/34195. Acesso em: 10 set. 2021.
    https://repositorio.ufba.br/handle/ri/34...
    .
  • 10
    Jaci, uma das entrevistadas, entendeu que essa era uma forma de, ao mesmo tempo, negar a sua autodeclaração e desautorizar seu lugar dentro de uma pauta política, “a solidão da mulher negra”. Solidão essa que, sendo negra de pele clara, não sofreria, segundo a sua acusadora.
  • 11
    A judicialização dessas candidaturas indeferidas para cotas raciais segue o seu curso. Isso explica, inclusive, a cuidadosa entrada que precisei fazer para acompanhar a comissão da UFBA, e o clima nitidamente tenso no dia das avaliações da banca. Narro, em outro lugar, como a minha falta de contato com alguns membros da banca despertou atenção sobre a minha presença: num momento de intervalo entre os turnos da manhã e da tarde, quando estava descansando, uma professora, membro da comissão com quem já havia estabelecido contato, passou por mim e, rindo, falou: “O pessoal estava lá falando, preocupado com você, eu falei que era a menina que está fazendo a pesquisa!”
  • 12
    Gêmeos idênticos submeteram fotografias à comissão avaliadora da UnB: um foi considerado negro, o outro, não. Ver mais em Para UnB… (2012)PARA UnB, um era branco e outro, negro. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 28 out. 2012. Disponível em: Disponível em: https://www.estadao.com.br/noticias/geral,para-unb-um-era-branco-e-outro-negro-imp-,951965#:~:text=H%C3%A1%20cinco%20anos%2C%20os%20irm%C3%A3os,do%20sistema%20de%20cotas%20raciais . Acesso em: 23 nov. 2020.
    https://www.estadao.com.br/noticias/gera...
    .
  • 13
    Sobre a polêmica da escolha das categorias “preto” ou “negro”, ver Valentim (2020)VALENTIM, M. L. Negro ou preto? Eis a questão. Mídia Ninja, [s. l.], 2 abr. 2020. Disponível em: Disponível em: https://midianinja.org/editorninja/negro-ou-preto-eis-a-questao/ . Acesso em: 23 nov. 2020.
    https://midianinja.org/editorninja/negro...
    . Cuti (2010CUTI. Quem tem medo da palavra negro? Revista Matriz, Porto Alegre, p. 1-12, nov. 2010., p. 4) também irá nos trazer que “na década de 60, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos empregou a palavra ‘black’ cuja versão correta, no contexto social brasileiro, é ‘negro’ e não preto como querem alguns. Ou seja, este assumir a palavra ‘negro’ pelos próprios negros não é recente, nem tampouco local.”
  • 14
    Sobre a pesquisa, ver mais em Santos e Maio (2008SANTOS, R. V.; MAIO, M. C. Genótipo e fenótipo: qual “retrato do Brasil”? Raça, biologia, identidades e política na era da genômica. In: PINHO, O.; SANSONE, L. Raça: novas perspectivas antropológicas. 2 ed. Salvador: Associação Brasileira de Antropologia: EDUFBA, 2008. p. 83-120., p. 93): “Publicado em português em 2000 (PENA et al., 2000) na revista mensal de divulgação científica Ciência Hoje da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Dois artigos diretamente relacionados, com apresentação dos resultados em pormenores para a comunidade científica, apareceram no American Journal of Human Genetics (ALVES-SILVA et al., 2000; CARVALHO-SILVA et al., 2001), bem como um mais recente no Proceedings of the National Academy of Sciences (PARRA et al., 2003). A ampla repercussão que a pesquisa atingiu no Brasil se associa, sobretudo, ao texto de Ciência Hoje.”
  • 15
    Josephine Baker (1900-1970) foi uma artista negra norte-americana, cujo legado se destaca não só nas artes cênicas, como também na luta antirracista nos Estados Unidos e na resistência francesa antinazista, país onde viveu muitos anos de sua vida.
  • 16
    O livro de Nilma Lino Gomes, publicado em 2006, se baseia na sua tese de doutorado, defendida em 2002.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2021
  • Aceito
    14 Fev 2022
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